sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ANTOLOGIA MUSICAL POPULAR BRASILEIRA - AS MARCHINHAS DE CARNAVAL


Marchinhas e canções
09/Mai/98
Walnice Nogueira Galvão
A CANÇÃO NO TEMPO - 85 ANOS DE MÚSICAS BRASILEIRAS /LIVRO/; MÚSICA POPULAR: UM TEMA EM DEBATE /LIVRO/; AS ORIGENS DA CANÇÃO URBANA /LIVRO/ANTOLOGIA MUSICAL POPULAR BRASILEIRA - AS MARCHINHAS DE CARNAVAL


do grau de maturidade atingido pelos trabalhos sobre música popular entre nós dão testemunho "A Canção no Tempo", de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, e "As Origens da Canção Urbana", de José Ramos Tinhorão. Os três autores são tarimbados especialistas e já deram mostras de sua competência em outras instâncias.
Comecemos pelo primeiro livro. Planejado em três volumes, dos quais só o primeiro sai agora, tem concepção ambiciosa e realização impecável. Finca pé no início do século e vem até o umbral da bossa nova. Os recortes são irregulares, cada capítulo se detendo nos limites cronológicos das sucessivas fases até 1929, quando a produção se acumula e cada ano passa a ser examinado separadamente.
Os capítulos obedecem ao seguinte formato: período, indicado no título; seleção das canções mais importantes, cada uma com seu comentário separado; lista de suas melhores gravações; lista de outros sucessos nacionais; lista de sucessos estrangeiros no período, o que é uma ótima idéia. Fecha o capítulo uma cronologia, trazendo não só o rol das datas de nascimento ou morte dos artistas, mas ainda efemérides relevantes, como por exemplo a implantação de avanços tecnológicos ou descobertas correlacionadas, no país e no exterior; acrescentam-se balizas políticas. Um índice final relaciona os títulos de todas as canções mencionadas, facilitando a consulta.
Os comentários são sucintos e de gosto seguro. Nem sectários nem dogmáticos, esboçam compreensivamente as principais linhas de desenvolvimento da canção brasileira. Por outro lado, exercitam o senso crítico, não se entregando indiscriminadamente ao elogio, o que costuma resultar em indiferenciação.
Cabe ao leitor o direito de desconfiar de que este tenha sido o volume de execução mais fácil, pois ocupa sozinho o maior período, aproximadamente dois terços do total. O que seria de se esperar, estando melhor estudado o mais remoto e por isso revelando-se menos refratário a um propósito organizatório. Basta lembrar a abundância de excelentes monografias surgidas nesta década sobre artistas de primeira linha, que vão de Noel Rosa a Ary Barroso, passando por Carmen Miranda, pela turma da bossa nova e pelo clube da esquina.
Mas seria pena se o projeto, ainda inconcluso, estacasse em 1985, como prometido. O mais difícil de pensar é o quadro de intensa diversificação que ocorreu desde aquele ano e que bem mereceria um quarto volume. O amador musical se sente aturdido pelo excesso de desinformação, quase sempre marqueteira, e fica à míngua de uma categorização, bem como do estabelecimento de parâmetros.
Quanto ao conteúdo, esforçando-se, o leitor chega a formular algumas dúvidas. Por que, entre as principais canções do ano de 1947, seleciona-se exatamente a marchinha de carnaval "Pirata da Perna de Pau", de João de Barro? Saem no ano "Anda Luzia", do mesmo autor; ou os choros "Ingênuo" e "Incêndio", ambos de Pixinguinha e Benedito Lacerda; ou "Pela Décima Vez", composto por Noel Rosa em 1935, mas sucesso nesse ano; ou o Lupicínio Rodrigues do ano, "Felicidade"; ou "Lá Vem a Baiana", de Dorival Caymmi; ou os dois Luiz Gonzaga da mesma safra, "Dezessete e Setecentos" e "Vou pra Roça"; ou o samba-canção "Se Queres Saber", de Peterpan; ou mesmo uma raridade, como a graciosa rancheira "Sá Mariquinha", de Luiz Assunção e Evenor Pontes. Não parece justo.
É verdade que primeiro fere os olhos, ou melhor, os ouvidos, o "embarras de richesses". Num mesmo ano, com exceção da rancheira, obras dos mais representativos autores: até de Noel Rosa, já morto há tempos. Estando a marchinha então no auge e havendo outra canção de João de Barro na parada, infere-se que esta deve ter sido escolhida para acentuar a continuidade do gênero; mas a explicação resta insatisfatória.
Esta observação serve só para implicar com alguma coisa, já que de modo geral o trabalho é mais do que correto. E nem o leitor dominaria a perícia de saber que essas canções são de 1947, ou 1946, ou 1948, não fosse a lista de "Outros Sucessos" generosamente anexada a cada capítulo.
O segundo lançamento, o de José Ramos Tinhorão, na realidade são dois. E o autor constitui um ponto de referência incontornável na área, sendo seus numerosos livros obrigatórios em qualquer bibliografia. Por coincidência, saem agora simultaneamente seu trabalho mais erudito, "As Origens da Canção Urbana", e uma reedição de "Música Popular: Um Tema em Debate", de 30 anos atrás. Este último, juntamente com "O Samba agora Vai... A Farsa da Música Brasileira no Exterior", encarna uma feroz análise política da bossa nova, cavalo de batalha do autor, como é sabido.
É curioso que o novo livro e a reedição pareçam escritos por dois autores diferentes. Enquanto o novo é circunspecto, levando a pesquisa a sério e enveredando por insuspeitados interesses sofisticadíssimos (Arcipreste de Hita, o "Cancioneiro" de Garcia de Resende etc.), o antigo afoitamente se lança à interpretação, utilizando fórmulas que mesmo na ocasião já eram rançosas, mas de boa briga. O leitor leva um susto e indaga: será que é o mesmo Tinhorão? Será que ele ainda sustenta o que escreveu 30 anos atrás? Que a bossa nova á uma bobagem, é mistificação, é música ruim etc.? Deve sustentar, porque se trata de uma 3ª edição revista e ampliada. Seus alvos são, como se sabe, a classe média e os americanos. A classe média, por ser o berço da bossa nova, quando ela é por natureza acometida do desvio de "idealismo" e incapaz de criatividade, o que é apanágio do povo. Os americanos, ora os americanos... Mas, no caso, por causa da deformação que o jazz infligiu ao samba (menos mal, diríamos nós), conúbio duvidoso de que nasceu a bossa nova, essa bastarda.
Dá para entender um pouco e até simpatizar com os cuidados que subjazem à atitude de Tinhorão. O que o atemoriza, e não só a ele, mas também a outros que, como ele, são respeitados pesquisadores e aficionados da música popular, é a ameaça de descaracterização que a todo momento pesa sobre ela, sobretudo por via da comercialização. Como resistir à sedução dos tremendos investimentos que ela atrai, contanto que se vergue a certas exigências? Outrora, os sambistas vendiam suas criações por quaisquer mil-réis, e assim foram esbulhados para sempre de seu fino produto, não lhes cabendo nem os lucros nem a glória. Hoje isso não mais ocorre, mas em compensação o volume de negócios ultrapassa anualmente o bilhão de dólares. Tendo o Brasil se tornado nesse ínterim o sexto mercado musical do mundo, pode-se valorizar melhor em quanto importa travar uma batalha perdida depois da outra, no afã de preservar a autenticidade ou, como se diz, a fidelidade às raízes.
Já o livro novo efetua uma investigação erudita, em materiais sobretudo portugueses, procurando perquirir onde começa essa maneira tão moderna de cantar solando e se acompanhando a instrumento de cordas. O autor avança a hipótese de que essa maneira seria muito mais antiga do que se costuma pensar e solidamente implantada na tradição colonial brasileira e lusitana. Neste interessantíssimo livro, é de se contemplar um Tinhorão composto e contido.
Vale registro ainda a "Antologia Musical Popular Brasileira - As Marchinhas de Carnaval", organizada por Roberto Lapiccirella. Na forma de um grande caderno espiral, cada par de páginas traz uma canção com letra e melodia cifradas, com diagramação de acordes para violão, cavaquinho e piano, sendo ideal para quem quer cantar e executar em solo, como a figura delineada pela pesquisa de Tinhorão. Apresenta uma introdução historiando o gênero, informações sobre as principais gravações, um comentário, a caricatura do autor e, no final, minibiografias de todos eles.Trata-se de uma coletânea bastante completa, incluindo, afora as marchinhas do título, marchas-rancho e frevos. Só vai até o ano de 1982, sendo que as duas últimas marchinhas são... frevos. Mas o defeito não é do livro e sim da história, pois a marchinha, como se sabe, desapareceu: as antigas é que são cantadas todos os anos no carnaval. Anuncia-se outro volume, com sambas carnavalescos. Produção visivelmente doméstica e despretensiosa, poderia alçar-se a outro patamar se caprichasse mais no suporte e se o comentário a cada canção fosse um pouco mais rigoroso. Nem se discute sua inegável utilidade.
Em resumo, o panorama destes estudos não poderia ser mais rico em sua variedade. Ganhamos uma nova publicação de cunho enciclopédico, esplendidamente realizada; um Tinhorão inusitado, ao lado da reedição de um outro tão clássico quanto polêmico; e um álbum que nem por ser modesto deixa de bem atender às necessidades dos amadores do gênero. É o que se descortina no momento e só se pode almejar que assim persista.
Walnice Nogueira Galvão é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora, entre outros, de "Desconversa" (Universidade Federal do Rio de Janeiro).


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CONCEITOS DE JORNALISMO


Mandamentos do jornalismo
09/Mai/98
Marcello Rollemberg
MICHAEL KUNCZIC /AUTOR/; CONCEITOS DE JORNALISMO

para muita gente, o jornalismo é uma das profissões mais poderosas e charmosas do mundo. Afinal, o jornalista é aquele tipo de pessoa que viaja muito, cobre guerras, revoluções, pequenas e grandes tragédias humanas, investiga com a agudeza de um detetive e denuncia e condena com a isenção de um juiz.
Talvez aí, nesse conceito exterior um tanto míope do que é ser, de fato, um jornalista, resida o mais sério problema para se entender o "métier" do homem de imprensa. É verdade que, de algumas décadas para cá, o jornalista -o repórter, mais precisamemte- ganhou essa aura artificial de super-homem, aquele que, em nome da verdade dos fatos e de melhor informar, tudo pode. Só que não pode. A história não é tão simples e brilhante assim.
Se, de um lado, essa imagem de homens atrelados à verdade absoluta e à democracia ganhou contornos reais com casos como os de Watergate, nos EUA, ou, mais recentemente e diretamente ligado ao Brasil, com a descoberta das falcatruas do governo Fernando Collor, por outro, a tão decantada e até certo ponto intocável "liberdade de imprensa" foi colocada no banco dos réus com a morte da princesa Diana. Não foram só os "paparazzi" que estiveram na berlinda, mas também um boa parcela da imprensa -séria ou não- que acabou sendo questionada.
Todas essas questões estão agora em um livro indicado sobretudo para aqueles que estudaram ou estudam em uma faculdade de Comunicação. Mas não só a esses. "Conceitos de Jornalismo", na verdade, destina-se a todos os que desejam entender melhor essa profissão tão invejada e que, de uma maneira ou outra, questionam quais são realmente seus limites.
Professor do Instituto de Comunicações da Universidade Johanes Gutenberg, de Mainz, na Alemanha, M. Kunczik vem há anos estudando os efeitos e as teorias da chamada "comunicação de massa". Ao escrever este livro, ele não fez mais um "vade mecum" da comunicação, mas sim uma obra reflexiva em que os principais pontos da profissão e da formação do bom jornalista são elencados e discutidos. "Esta obra procura preencher um vazio, clarear as condições do trabalho jornalístico -por exemplo, quais são as normas e exigências que o estruturam, quais as autopercepções profissionais que existem etc. A intenção é provocar reflexão crítica com relação à sua própria condição social e à atividade de trabalho e aguçar o senso de responsabilidade do jornalista para com a sociedade", diz o autor, tocando, no final, em um dos pontos mais sérios da questão: a responsabilidade social do jornalista.
Essa é, certamente, a mais importante e talvez a mais complicada atribuição do jornalista. Em seu nome muitas coisas boas já foram feitas, mas grandes equívocos também foram cometidos. É a tal história de querer ser detetive e juiz ao mesmo tempo. Em muitos casos, o jornalista perde a percepção de seus limites, tão empolgado (vamos colocar assim) fica com a sua pauta, com o seu trabalho. Só que essa empolgação não pode eclipsar o senso profissional, e isso Kunczik deixa muito claro em seu livro.
Ao longo das mais de 400 páginas, o autor procura todo o tempo trazer o jornalista de volta à realidade, dando contornos bem nítidos às tarefas que o cercam. Até uma lista de "mandamentos" da profissão é apresentada pelo autor, por mais óbvio que isso possa parecer. Procurando o contexto em vários outros estudiosos da comunicação, em profissionais conceituados e no próprio princípio norteador da profissão colocado pela Federação Internacional de Jornalistas, Kunczic, na verdade, encontrou informações discordantes e complementares entre si.
O estudioso G. Bentele, por exemplo, crê que se deva informar objetivamente, sem emoções e de modo desapaixonado, selecionando palavras neutras para escrever o contexto. Já o "eminente" jornalista da televisão alemã Franz Alt discorda. Para ele, "objetivo é aquilo que agrada, que é útil, que alguém quer escutar. Espectadores e partidos políticos (...) não consideram objetivo aquilo que não lhes agrada", transcreve Kunczik. Entendimentos tão dissonantes sobre um aspecto tão simples dão mostras de como a questão talvez ainda esteja longe de ser finalizada.
Mas um ponto deve ser levado em consideração na citação acima: o envolvimento dos políticos com os jornalistas, uma relação para lá de delicada. Adulados quando interessa, criticados e perseguidos quando deixam de sê-lo -principalmente nos países de Terceiro Mundo- os jornalistas são uma esfinge ainda não decifrada para a classe política. O intrincado envolvimento das duas partes é dissecado pelo autor, sempre lembrando que "o jornalismo competente, responsável e crítico constitui um apoio importante para a promoção da democracia". Tem gente que não concorda, mas isso é outra história.
Antes de fazer um estudo científico ou social do jornalismo, o que Kunczic fez, de fato, foi um alentado perfil da profissão, uma análise aprofundada e viva do que é, na verdade, ser jornalista. Para alguns, o livro talvez não traga grandes revelações. Mas, para uma parcela significativa -e aí não se inclui unicamente o profissional que ganha a vida correndo atrás das notícias- ele pode ter o sabor de uma revelação, de um guia para se entender melhor as razões pelas quais o jornalismo é considerado charmoso, mas também intrincado e muito, muito, perigoso.
Marcello Rollemberg é jornalista e escritor.


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A ALEMANHA DE SCHREBER - UMA HISTÓRIA SECRETA DA MODERNIDADE


Os delírios de Schreber
09/Mai/98
Iray Carone

ERIC L. SANTNER /AUTOR/; A ALEMANHA DE SCHREBER - UMA HISTÓRIA SECRETA DA MODERNIDADE
um leitor desatento deste livro pode perder o fio da meada de sua argumentação, que atravessa uma floresta de citações, livros, autores e remete sobretudo a Freud, Kafka, Foucault, Canetti e Benjamin. Daí que nem sempre atinge o ponto nodal da revisão do famoso caso Schreber: na verdade, o autor pretende ter lançado novas hipóteses e sugestões para superar e transcender os limites da explicação psicanalítica freudiana e de outras que se seguiram.
Seria possível perguntar, inicialmente, por que as "Memórias de um Doente dos Nervos", de Daniel P. Schreber, escritas no auge de sua loucura, deram tanto pano para mangas -a obra de Santner, entre outras virtudes, serve para informar sobre a produção psicanalítica, filosófica e literária que tematizou esse relato autobiográfico. Como se sabe, o livro de Schreber deixou de interessar exclusivamente ao meio psicanalítico desde a sua publicação em 1903, pois são muito recorrentes as análises políticas atuais do fascismo, latente ou manifesto, que fazem uso paradigmático dos seus delírios paranóicos.
O autor diz que o seu interesse por Schreber coincidiu com a "escalada perturbadora" de manifestações de paranóia nos EUA, quando, após a Guerra Fria, era legítimo esperar pela sua atenuação. Na falta do espectro de um inimigo definido como "o império do mal", a paranóia se alastrou como pólvora por intermédio de vários meios públicos de expressão, materializando uma cultura propícia ao surgimento de algum tipo de fascismo.
A grande hipótese do autor, no entanto, é a de que Schreber não pode ser considerado como o protótipo de um líder fascista que construiu um discurso fantasioso para dar "plausibilidade" aos seus delírios de poder, embora tenha sofrido, no corpo e na alma, as aflições derivadas de um poder discricionário e protofascista, encarnado pelo despotismo familiar e pela psiquiatria do seu tempo.
A análise de conteúdo dos delírios schreberianos, diz o autor, atesta que ele foi um filho da crise da modernidade, um emblema das disfunções políticas do seu tempo e do seu país, mas não a prefiguração da solução totalitária que se seguiu a essa crise. Os delírios de Schreber revelam que ele resolveu o seu conflito na direção inversa ao processo histórico alemão (que desembocou no nazismo e na perseguição aos judeus), pois se identificou com as figuras do judeu errante e da mulher/concubina de Deus. Vítima do poder disciplinar, Schreber ingressou, de modo definitivo, no "universo da abjeção", tal como o personagem Gregor Samsa da novela de Kafka.
Sua segunda crise "nervosa", segundo Santner, foi disparada pela investidura simbólica no alto círculo do poder, ou seja, após sua nomeação oficial como juiz-presidente da Suprema Corte de Apelação da Saxônia, em 1893. A fantasia de metamorfose num ser emasculado, misto de judeu circuncidado e concubina de Deus, foi a solução dramática e delirante do seu psiquismo em apuros.
Ora, diz o autor, qual foi a razão pela qual Freud, após ter observado, no relato autobiográfico de Schreber, uma relação estreita e temporal entre a explosão da libido homossexual ou emasculação ("Entmannung") e a sua nomeação para uma posição de autoridade jurídica ("Ernennung"), a deixou de lado, alegando falta de conhecimento mais preciso sobre a história da vida de Schreber?
Freud recorreu, sem dúvida, à sua teoria do desenvolvimento psicossexual da libido e à hipótese do recalcamento para caracterizar Schreber como um caso típico de fixação da libido que não negociou "a passagem para além de uma homossexualidade com toques narcísicos". Nesse sentido, ele seria um sujeito exposto ao perigo de não segurar uma onda súbita e intensa de emasculação, suficiente para sexualizar os seus instintos sociais e desfazer sublimações até então construídas. A crise reveladora desse processo de desenvolvimento inacabado teria sido despertada pelo encontro transferencial com o seu psiquiatra, Emil Flechsig, que o devolveu aos estágios anteriores de relações homoeróticas com outros machos significativos, ou seja, com seu pai e o irmão mais velho.
Em última análise, Freud estaria preocupado em firmar e defender a teoria da libido, muito embora tenha confessado, nas entrelinhas, que nas psicoses um distúrbio secundário e induzido dos processos libidinais poderia ser resultante de mudanças anormais do ego. Assim, a crise da modernidade na Alemanha guilhermina, diz Santner, poderia fornecer a chave da compreensão dos distúrbios libidinais e das fantasias delirantes de Schreber, pois "uma crise da função simbólica -a inscrição de alguém numa rede simbólica por meio de nomes e símbolos- pode manifestar-se no campo da sexualidade, ou, para dizê-lo em termos mais foucaultianos, como sexualidade". Freud foi fiel à psicanálise ao analisar Schreber à luz da teoria da libido, mas ao preço de não resgatar a Alemanha de Schreber -daí a ênfase de Santner na história familiar, na questão judaico-alemã e nas crises institucionais da virada do século. Resumindo: trata-se de uma Alemanha particular, que secretou os seus males nos delírios sexuais de um homem.
Iray Carone é professora do Instituto de Psicologia da USP.


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CAPITALISMO, GLOBALIZAÇÃO E PSICANÁLISE


Uma ética para a psicanálise
09/Mai/98
Maria Rita Kehl
PAULO SILVEIRA /ORGANIZADOR/; IRENE CARDOSO /ORGANIZADORA/; UTOPIA E MAL-ESTAR NA CULTURA: PERSPECTIVAS PSICANALÍTICAS /LIVRO/; RICARDO GOLDENBERG /ORGANIZADOR/; GOZA!-CAPITALISMO, GLOBALIZAÇÃO E PSICANÁLISE

em 1929/30, assombrado diante da fúria anti-semita que se alastrava pela Europa, Freud escreveu "O Mal-Estar na Civilização". Nesse texto, hoje canônico, analisa os efeitos tanáticos do recalque instituído pelo pacto civilizatório sobre a vida social. É sua reflexão mais pessimista sobre as chances de uma solução de compromisso feliz entre o sujeito e a comunidade, mais pessimista ainda porque Freud, ao contrário de Rousseau, não concebe a condição humana fora do laço social. Não existe "eu" sem o outro -e ainda assim, "eu" o odeio. O termo "mal-estar" instituiu-se, na psicanálise, como expressão desta tensão permanente entre "eu" e o outro.
O pessimismo freudiano e o malfadado acerto de suas intuições -no ano de sua morte, 1939, o Ocidente veria o início da Segunda Guerra e a emergência da intolerância erigida em razão de Estado- deixaram às gerações de psicanalistas que se seguiram como que um legado, uma tarefa por cumprir: a produção, a partir do discurso psicanalítico, de alguma perspectiva mais feliz para a precária convivência entre os homens.
No Brasil, nesta última década, os psicanalistas vêm sendo convocados -pela imprensa, pela televisão, pela universidade- a formular, mais do que um prognóstico: uma perspectiva ética. A velha repressão revela-se inadequada para domesticar o sujeito do inconsciente; os imperativos morais costumam produzir exatamente o seu contrário. É possível formular um novo código para reger a vida em sociedade que dê conta deste sujeito que emergiu desde o relaxamento das condições repressivas nas últimas décadas deste século? O sujeito organizado a partir de uma ordem social que privilegia o gozo e abomina as interdições é ainda o mesmo sujeito do discurso psicanalítico?
Duas coletâneas de ensaios lançadas no final do ano passado buscam discutir estas questões. "Utopia e Mal-Estar na Cultura" e "Goza!".
Digamos que no primeiro caso, como a inclusão do termo "utopia" no título já anuncia, estamos do lado dos que buscam responder ao paradoxo freudiano com um certo otimismo. No segundo, pelo lado do imperativo do gozo, não se deve esperar boas notícias. Os dois livros, entretanto, revelam que a neurose deixou de ser o sintoma social que preocupa o pensamento psicanalítico contemporâneo. A delinquência generalizada, a perversão, a falência da ordem simbólica e o surgimento de um novo modo de organização do laço social -que alguns analistas qualificam como "discurso do capitalista", em lugar do antigo "discurso do mestre" da teoria lacaniana- são as questões que vêm convocando a psicanálise a pensar para além das quatro paredes da clínica.
No ensaio de abertura de "Utopia e Mal-Estar", Paulo Silveira analisa o individualismo contemporâneo segundo as perspectivas do antropólogo Louis Dumont (in "O Individualismo - Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna", Rocco), apontando para o que ele chama de inconsciente social, a dimensão recalcada da origem dos poderes do Estado moderno. O inconsciente social corresponde, no indivíduo, à ideologia: "Faceta social do inconsciente do eu", que funciona obturando a falta no Outro e impedindo assim o advento do sujeito do desejo. O êxito desta operação explica, segundo Silveira, o advento do narcisismo como sintoma social do individualismo contemporâneo. Ainda assim, in extremis, ele nos lembra que "o significante não é tudo" (Lacan) ou "a ideologia não é tudo" (Dumont) e sugere que ainda há espaço para a formulação de uma utopia, uma ética do desejo, para o nosso tempo. Uma ética da amizade em lugar do pathos do amor romântico, sugere em outro ensaio o psicanalista Jurandir Freire Costa. A abertura de novas possibilidades narrativas, propõe Irene Cardoso. Uma ética nietzscheana do "amor fati" que desloque as perspectivas metafísicas em decadência no Ocidente, escreve Alfredo Naffah Neto.
Os autores de "Goza!", analisando os efeitos da globalização do capital sobre os sujeitos, não falam em utopias. Nem poderiam, uma vez que partem da perspectiva sombria de que nas sociedades organizadas segundo o discurso do capitalista "os valores da eficiência econômica se estendem a todos os âmbitos da vida social" (Thomás Abraham, pág. 55). Na primeira parte do livro, psicanalistas das duas principais escolas do pensamento pós-lacaniano dedicam-se a pensar o que é possível propor, em sociedades privadas de valores extra-econômicos, as quais, ainda segundo Abraham, "tendem a uma deriva perigosa". Ricardo Estacolchic lembra a dimensão simbólica da verdade, que sustenta o valor dos atos e das palavras humanas, sem a qual a vida social descamba para a barbárie.
Na mesma linha, Charles Melman pergunta: de que se autoriza o mestre (para regular o laço social)? De nada, além de um símbolo. No discurso capitalista, em que a autoridade se funda diretamente da posse do objeto "a", o símbolo fracassa. Melman lembra que deve existir um valor de referência para além da fórmula capitalista dos valores de troca ou, como escreve Ricardo Goldenberg na apresentação do livro, para além do discurso cínico segundo o qual "tem valor aquilo que se vende". Este valor de referência, no entanto, não existe em lugar nenhum. Devemos inventá-lo e sustentá-lo, não por qualquer razão econômica, mas porque precisamos dele para superar a lei da selva.
Significativamente, o ensaio de encerramento de "Goza!", de autoria de Ricardo Goldenberg, analisa a razão cínica moderna em contraposição ao cinismo clássico, fundado pelo filósofo Diógenes. Justamente porque tem conhecimento de que nada sustenta o simbólico a não ser a ação dos homens, o cínico atual não faz cerimônias em erigir sua satisfação pulsional em lei, aproximando-se, com isto, do canalha. Goldenberg, apesar da diferença de perspectivas, vai ao encontro de Paulo Silveira ao concluir seu ensaio apelando para a necessidade de se formular uma ética da pulsão.
A leitura das duas coletâneas convoca o leitor a pensar neste sentido. De minha parte, só me sinto capaz de contribuir com uma dúvida: será que o desejo, pedra fundamental do pensamento psicanalítico, marca da singularidade do sujeito, pode ser a origem de uma ética para o nosso tempo? Ou será que uma ética só pode se fundar, não contra o desejo como quis a igreja católica durante 2.000 anos, mas apesar dele? Neste caso, os psicanalistas não teriam muito a dizer a respeito -a não ser como homens de bem.
Maria Rita Kehl é psicanalista.


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MENDES DA ROCHA


A arquitetura como ação
09/Mai/98
Sophia Silva Telles
PAULO MENDES DA ROCHA /ARQUITETO/; JOSEP MARIA MONTANER /AUTOR/; MARIA ISABEL VILLAC /AUTOR/; MENDES DA ROCHA


este pequeno livro faz parte de uma coleção que publica regularmente arquitetos contemporâneos, distribuída também em inglês e francês. É obra de referência que traz, além de uma seleção econômica de projetos e memoriais, uma nota biográfica, a cronologia de obras e projetos, e ainda uma bibliografia. A introdução do volume ficou a cargo do arquiteto espanhol Josep Maria Montaner e da jovem arquiteta brasileira Maria Isabel Villac, organizadora do livro, com um ensaio genérico mais distante dos projetos.
Sem ainda nenhuma publicação brasileira sobre a sua obra, Paulo Mendes da Rocha vem merecendo uma particular atenção internacional. Embora o arquiteto já fosse, de longa data, uma referência das mais importantes para a produção no país, uma obra como o Museu Brasileiro de Escultura - Mube (1990) permitiu, sem dúvida, um reconhecimento quase imediato por parte da mídia e de arquitetos estrangeiros. Além disso, o arquiteto recebeu o grande prêmio da Bienal de Arquitetura do Chile em 1995 e vem sendo convidado com frequência para ir ao exterior.
Na apresentação, Montaner procura muito corretamente situar o arquiteto para um público estrangeiro, relembrando vários nomes da produção moderna no país e localizando as habituais influências corbuserianas e miesianas; faz ainda as não menos usuais referências a Niemeyer, Artigas e a algo do brutalismo inglês, além de algumas outras associações. Nessa sequência de influências e analogias, Montaner refere-se, muito de passagem, à "arquitetura minimal" e afirma uma sintonia do arquiteto com "os referentes mais minimalistas" do século 20, de Mies Van der Rohe a Tadao Ando. Como a palavra "minimal" nomeia precisamente uma produção das artes plásticas norte-americanas dos anos 60, com desdobramentos na Land-art até o conceitual, será interessante fazer notar, numa referência também de passagem, que Paulo Mendes da Rocha está muito próximo do contexto neoconcretista brasileiro em alguns surpreendentes procedimentos de projeto, seja no modo como se afasta da arquitetura como "objeto", seja na sua afinidade em pensar o projeto enquanto ação e não como produto.
De qualquer maneira, a "minimal" era mais do que simplesmente conhecida pelo neoconcretismo, para não falar da "arte povera" italiana, contemporânea e paralela à "minimal".
A divulgação desse pequeno livro no momento em que dois projetos foram recentemente inaugurados -a reforma da Pinacoteca do Estado e das galerias da Fiesp- certamente contribui para o entendimento do partido do arquiteto. Apesar disso, a paginação correta do livro talvez pudesse estar mais atenta ao trabalho. A disposição das fotos, pequenas plantas e detalhes ampliados, alguns desnecessários, são problemas recorrentes, aliás, em livros e revistas de arquitetura.
Sem o menor receio em enfrentar o valor histórico da Pinacoteca e o peso institucional da Federação das Indústrias, em ambos os casos o arquiteto se propõe a repensar os usos, não as funções. São coisas diferentes. Os novos projetos cumprem perfeitamente as funções a que se destinam. O que propõem são uma mudança nos modos de uso dos espaços. Na Pinacoteca, em vez de restaurar o antigo edifício, preocupando-se com acabamentos e soluções técnicas previsíveis, o projeto teve a coragem de bloquear a entrada principal, inverter o eixo de circulação e criar, por isso, espaços internos inusitados. As passarelas metálicas são decorrência dessa determinação espacial e tão pouco têm o caráter de "objetos", estão já tão incorporadas àquele espaço, que quase esquecemos de que nunca antes tinham estado ali. No moderno prédio da Fiesp, pesada construção em concreto armado, o arquiteto liberou todo o térreo, inclusive cortando lajes existentes, e utilizou vigas metálicas ancoradas nos pilares para construir, literalmente, um pequeno edifício dentro de outro edifício, uma caixa de vidro que vaza de ponta a ponta as galerias para o público da avenida Paulista. Não são reformas, exatamente, são uma transformação do lugar.
E quem ainda se lembraria do lote vazio na esquina de uma grande avenida e se terá dado conta, antes do Mube, de que o terreno tinha um desnível de cerca de quatro metros? É difícil aceitar a descrição de Montaner, ao dizer que "o objeto arquitetônico outorga um novo valor ao lugar". Aquilo era um terreno vazio, lugar nenhum. Construiu-se um lugar exatamente porque o projeto fez de todo o terreno o museu.
Montaner afirma que Paulo Mendes compartilha com Niemeyer a concepção do objeto autônomo enquanto escultura. Se em Niemeyer pode-se discutir tal imagem, em Paulo Mendes é muito difícil generalizar. Muito mais recorrente no arquiteto é o procedimento de tratar todo o espaço, e não o de implantar um objeto dentro do lote, como demonstraria em ponto menor a casa Milan, por exemplo, não publicada no livro. Mas os projetos selecionados, ainda assim, são exemplares dos usos não previstos do espaço, que é a marca de seu partido.
Um ginásio de esporte, em geral um volume fechado que deve ser circundado, no Clube Paulistano em São Paulo, transforma-se numa praça completamente aberta, com sua arquibancada abaixo do nível da rua e uma cobertura plana suspensa por seis pilares gigantes. Em 1957 era um espanto não apenas a audácia técnica da estrutura, como a liberdade em contrariar a tipologia habitual da construção, oferecendo-a à circulação da cidade. Um partido próximo do Pavilhão do Brasil em Osaka - 1970, uma cobertura autoportante e vazada de luz, apoiada agora em simples ondulações do terreno, com apenas um pilar de marcação. Um céu brasileiro sobre o chão japonês, metáfora de uma paisagem solidária entre países. As descrições dos projetos, feitas pelo próprio arquiteto no livro, em geral indicam o modo como repensa sempre as situações e as reformula, às vezes radicalmente, em vez de desenhar soluções para problemas dados.
No projeto da loja Forma, em São Paulo, numa avenida de trânsito rápido como a Cidade Jardim, a fachada é a diagramação de uma página de design em dimensão de outdoor. Solução gráfica somente permitida pela habilidade técnica em dissolver o volume e suspender a vitrine, acima dos carros, desocupando todo o lote para um estacionamento. Paginação perfeita para móveis e automóveis, homenagem moderna ao livro "Aprendendo com Las Vegas", do arquiteto Robert Venturi, em que não falta o humor sutil de uma escada retrátil como entrada da loja.
Há uma série de outros exemplos desses "modos de uso" inesperados de uma função. Na residência que pedia um anexo para a biblioteca, o arquiteto inverteu o programa e fez do anexo o corpo principal da casa, recuando as funções domésticas para o fundo do lote. A biblioteca é um volume desconstruído, se quiser, pela estranha inflexão da parede cega da fachada que, suspensa entre duas empenas ( paredes estruturais) e em leve rotação, desestabiliza o "objeto". As empenas são pintadas de amarelo claro e o plano cego, de um rosa luminoso. Muito neoconcreto, nada minimal.
Uma das mais comuns "desleituras" corbuserianas de Paulo Mendes é sua negação do volume, como se veria de modo mais evidente em outras casas, infelizmente não publicadas no livro. Nas residências gêmeas ( Butantã, São Paulo, 1962) em concreto armado e aparente, pensadas como modelo para a pré-fabricação, quatro pilotis sustentam dois planos -piso e cobertura, discretamente deslocados um do outro por frestas de luz. Superfícies sombrias com um perímetro iluminado. Lygia Clark teria entendido.
Os projetos de Paulo Mendes da Rocha escapam da figuração porque são proposições programáticas. São ações, não formas. Desenhos sem imagem que permitem, por isso, todas as imagens.
Sophia Silva Telles é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.


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METAMORFOSES - A POESIA DE CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

O lugar do poeta
09/Mai/98
Melânia Silva De Aguiar
EDWARD LOPES /AUTOR/; METAMORFOSES - A POESIA DE CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

nos últimos anos, o século 18 em Minas Gerais tem sido privilegiado em áreas diversas com estudos significativos, desde os históricos, propriamente, até os de análise e compreensão das manifestações artísticas do tempo, aí incluídas as novas edições que se têm feito dos poetas do chamado "grupo mineiro". Cláudio Manuel da Costa, um dos mais expressivos do período, é agora tema do livro de Edward Lopes, com prefácio de Fábio Lucas.
O livro abre com uma introdução onde o autor ressalta o esquecimento do poeta mineiro por parte da crítica brasileira de modo geral e a ausência de edições confiáveis de sua obra, "em que pese o meritório esforço de João Ribeiro no ordenar a edição das 'Obras Poéticas' de 1903". Lamenta ainda o estudioso a escassez de trabalhos dedicados à visão de conjunto das obras artísticas que floresceram à volta do episódio da Inconfidência mineira e lança o seu protesto contra o desconhecimento do que ela representou. O autor encerra esta introdução com uma exortação no sentido de um resgate ainda que mínimo da enorme dívida que temos para com aquele que, juntamente com seus companheiros, "tornou brasileiras as letras dessa terra".
Seguem seis capítulos, onde o autor busca situar o panorama político-econômico-cultural do tempo, a ideologia e o tipo de discurso poético vigentes, a posição de Cláudio como "continuador da época barroca entre nós" e "iniciador do novo estilo neoclássico", os espaços da poesia do vate mineiro (geográfico, mítico e literário), a imitação neoclássica e a temática claudiana, seu soneto e "seus programas formal e pictórico".
Na conclusão encontram-se reforçados os argumentos já apontados na introdução e no desenvolvimento da obra, relativos, entre outros, à importância e ao fastígio cultural da segunda metade do século 18 em Minas Gerais, à influência dos poetas brasileiros desta fase sobre os portugueses, ao acriticismo de nossos manuais de literatura, visível, segundo o autor, nas afirmações reproduzidas mecanicamente sobre aqueles poetas; encerrando, expressa o desejo de ver reavaliados "globalmente" os escritores desta fase.
O livro de E. Lopes, concluído em 1991, é feliz nas condensações de grandes panoramas político-econômico-culturais; desenvolve análises originais dos sonetos, apoiadas em seguros conhecimentos de linguística e semiótica; possui, em linhas gerais, boas e perspicazes colocações, vazadas em tom entusiasmado e até apologético, o que não é raro nos estudiosos mais atentos de Cláudio Manuel da Costa.
Entretanto, apesar das qualidades, o livro de Lopes se ressente de duas falhas sérias: o autor resvala em dados histórico-bibliográficos importantes para o justo delineamento das questões que propõe e desconhece informações básicas, já divulgadas em letra de forma. Os equívocos com nomes de obras e datas de publicação comprometem o trabalho de Lopes e constituem uma fonte de enganos em cadeia, nociva a uma história literária já bastante prejudicada ultimamente por um descaso generalizado. Vejam-se, por exemplo, os erros que comete nas afirmações que seguem (e aqui vai uma reduzida amostra): "Só 15 anos mais tarde, em 1768, beirando já os 40 anos de idade, é que Cláudio dará à luz suas 'Obras Poéticas'±"; e ainda: "Tais dados significam que, sem embargo, não consideremos mais do que os dois volumes das 'Obras', de 1768". Ora, o autor desconhece que as "Obras", de 1768, em apenas um volume, não se confundem com as "Obras Poéticas", de 1903, editadas com este nome por João Ribeiro e contendo, além das "Obras" de 1768, a reprodução de outros poemas: o "Vila Rica", concluído em 1773, os editados por Ramiz Galvão na "Revista Brasileira" (com omissão de uma parte final na edição de 1903), um "Epicédio" e dois poemas localizados em coletâneas antigas. Por outro lado, referindo-se ao "Munúsculo Métrico', ainda à pág. 67, como "seu primeiro livro editado já em 1751", engana-se de novo, já que esta prioridade histórica é do "Culto Métrico", de 1749, texto que esteve desaparecido e que foi divulgado em 1973, em tese de doutorado, juntamente com o "Munúsculo Métrico", por sugestão e deferência de Rodrigues Lapa, que o encontrara pouco antes na Biblioteca de Coimbra (1).
Prosseguindo nos equívocos, à mesma página, declara o autor destas "Metamorfoses": "Foi inevitável (...) que suas quatro primeiras obras se filiassem ao modo barroco, sem evitar nem mesmo, como atesta o 'Labirinto de Amor', a contaminação com aquela classe de artefatos lembrados por Verney no 'Verdadeiro Método'±". Não se explica a alusão ao "Labirinto de Amor", como "atestando" alguma coisa, já que, embora consabidamente barroco, não pode por si mesmo "atestar" nada, por ser, lamentavelmente, um dos textos de Cláudio não localizados até o momento. A par disto, encerrar em 1768 a fase produtiva de Cláudio é outro engano lastimável: o autor desconhece (ou esquece) que o "Vila Rica", "O Parnaso Obsequioso" e outras composições poéticas bem datadas são posteriores a 1768, integrem ou não a edição de João Ribeiro.
Contudo, o problema maior que se pode apontar no texto de Lopes é a omissão e o desconhecimento de informações contidas em publicações reconhecidamente importantes para a compreensão do século 18 mineiro e de Cláudio Manuel da Costa (e aqui não estou, por uma questão de envolvimento pessoal, referindo-me apenas, apesar de considerá-la importante, à edição dos poetas inconfidentes, de 1996, da Nova Aguilar, de que tive oportunidade de participar). Se é certo que o estudo de Lopes se encerrou em 1991, como faz supor a página final do livro, é também verdade que em sua recente publicação não poderia ter sido ignorado, ainda que com uma pequena nota, o que se fez nestes últimos anos sobre o assunto focalizado. Certas afirmações defasadas relativas a estudos e edições não comprometeriam tanto a verdade dos fatos.
Da mesma forma, não poderiam estar ausentes trabalhos mais antigos, como os de Rodrigues Lapa, que deixou páginas indispensáveis sobre a fase e sobre o poeta; as traduções do mesmo Cláudio de duas peças de Metastasio ("Artaxerxe" e "Demofoonte"), localizadas por Tarquínio de Oliveira no Museu de Música da Cúria de Mariana; as várias publicações de Affonso Ávila sobre as artes em Minas Gerais; os livros e artigos de Hélio Lopes. Estes trabalhos estão ausentes das reflexões e da bibliografia estampadas no livro de Lopes, já não se falando de livros, teses e artigos relevantes, ultimamente produzidos na Universidade Federal de Minas Gerais, na de Ouro Preto, na Pontifícia Universidade Católica (RJ) etc.
O entusiasmo de Lopes pela poesia daquele "que enfermou de desgraçado" e a acuidade com que examina aspectos de sua obra (particularmente os sonetos) só podem ser bem-vindos aos estudiosos de Cláudio e do arcadismo/barroco mineiros, quando mais não fosse, pelo que reiteram sobre a necessidade de se dar a Cláudio o posto que verdadeiramente deve ocupar nos quadros da historiografia literária brasileira. Estes quadros, queiramos ou não, sinalizam de formas diversas uma hierarquia valorativa que não tem feito a devida justiça ao nosso poeta.
Tendo sido o escritor mais produtivo da fase (2), sua obra é dotada no seu conjunto de uma densidade e consistência raras, que traduzem a vitalidade de uma consciência crítica em permanente questionamento do fazer poético, aliada a uma aguda e admirável sensibilidade. Tudo isto percebeu Edward Lopes. O que é de fato de se lamentar é que um pesquisador, que com tanto ardor e sentido crítico enfatiza a magreza dos estudos sobre o século 18 mineiro e, particularmente, sobre Cláudio Manuel da Costa, tenha-se limitado a referências e a publicações restritas, deixando praticamente de lado trabalhos decisivos e interessados em preservar a memória de um passado sem dúvida glorioso. Não será desconhecendo o que se fez e escreveu sobre Cláudio Manuel da Costa e o arcadismo que se servirá da melhor forma sua memória e sua obra.
Notas
1. "O Jogo de Oposições na Poesia de Cláudio Manuel da Costa" (tese de doutorado), de Melânia Silva de Aguiar. Belo Horizonte, UFMG, 1973.
2. Das 777 páginas de textos poéticos da edição "A Poesia dos Inconfidentes - Poesia Completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto" (org. Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996), 481 são de Cláudio, 267 de Gonzaga e 29 de Alvarenga Peixoto.
Melânia Silva de Aguiar é professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais.


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O "URAGUAI" E A FUNDAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

"O Uraguai" através dos tempos
09/Mai/98
Alcir Pécora
VÂNIA CHAVES /AUTORA/; O "URAGUAI" E A FUNDAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

O Uraguai" através dos tempos
ALCIR PÉCORA
este trabalho de Vânia Chaves é o primeiro volume de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Lisboa, em 1990. Constitui um tremendo esforço de levantamento e estudo da recepção crítica e intertextual do poema "O Uraguai" (1769), de José Basílio da Gama (1741-1795). Como é sabido, a epopéia celebra a expedição de Gomes Freire de Andrade à frente de uma força luso-espanhola destinada a fazer cumprir o Tratado de Madrid (1750), em que Portugal cederia à Espanha a colônia de Sacramento e receberia o território dos chamados Sete Povos das Missões, obrigando as aldeias jesuíticas a mudar-se dali. A recusa custou-lhes, para ficar nos números da batalha de Caibaté, a morte de 1.400 índios e a prisão de 127, em uma hora de combate, para um morto português e dois espanhóis. O poema polidamente emudece a respeito.
Vânia inicia sua história de leituras de "O Uraguai" pela "autocrítica" basiliana, com a carta que o poeta envia a Metastasio, em 1760, presenteando-o com a obra de tema "tutto americano". Também examina o parecer da Real Mesa Censória sobre o poema, assinado por Azevedo Coutinho (1769), que lhe aponta certos defeitos, em parte decorrentes da própria dificuldade da poesia épica, mas ressalta-lhe qualidades superiores, reveladas em "imagens magistrais", sobretudo na confecção do episódio de Lindoya. Em 1786, o livro recebe o contra-ataque jesuítico: a "Resposta Apologética" do padre Lourenço Kaulen denuncia o uso por Basílio de fontes mentirosas, como a "Relação Abreviada" (1757) e a "Dedução Cronológica e Analítica" (1767-68), forjadas pelo Estado português como peça da campanha internacional que movia contra os jesuítas. Basílio era dado como cúmplice dessa campanha e desqualificado como um "papagaio do Brasil", dono de um caráter indigno, que traía sem pudor a Companhia que antes o acolhera.
Ao fim do século 18, as críticas apresentam oscilações, como mostra Vânia, sobretudo no tocante à definição de seu gênero, caracterizado como épico, épico-lírico e mesmo satírico ou dramático, variando também as hipóteses sobre quais seriam os principais protagonistas: Pombal, Andrade, os jesuítas ou os índios. Com a queda do marquês, decaiu a sua recepção em Portugal e tornou-se predominante a de seus conterrâneos do Brasil, destacando-se os poemas que lhe dedicaram Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto.
No século 19, com a independência política do Brasil, a leitura brasileira e a portuguesa tomam rumos distintos. Em Portugal, Vânia aponta Garrett como principal interlocutor de Basílio. O seu "Bosquejo da História da Língua e da Literatura Portuguesa" (1826) dá-lhe destaque na produção árcade dos brasileiros, a qual incorpora (para mim, muito acertadamente, mas não para Vânia, que o julga contraditório) à história literária de Portugal, ao mesmo tempo em que vê no "Uraguai" certo "espírito nacional", mas "sufocado pela educação européia". O segundo modelo decisivo da leitura de Basílio, no início do século, é fornecido por Ferdinand Denis, cujo "Resumé de la Histoire Littéraire du Brésil" (também de 1826) concede-lhe lugar-chave na evolução para uma "literatura nacional", dado seu "indianismo" e gosto pela "natureza americana".
No Brasil, no mesmo período, houve oito reimpressões do poema, e consagraram-lhe páginas reconhecidas Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Alencar, Machado, entre outros, destacando-se como razões de sua estima o que nele julgavam revelador de marcas de nacionalidade ou de elementos biográficos e psicológicos. Permaneciam as divergências sobre o gênero épico ou não do poema, assim como sobre a natureza efetiva ou não de sua "brasilidade". Ao fim do século, a principal leitura do poema é a de José Veríssimo, que reconhece nele, assim como no "Caramuru" (1781), de Santa Rita Durão, o cumprimento da exigência épica de manter uma relação essencial com o momento histórico. De resto, entende-o como próprio do espírito brasileiro anterior à Inconfidência, em que aparece já um sentimento de igualdade em relação à metrópole, mas sem desejo ainda de independência política, de tal modo que seu interesse mais imediato era agradar Pombal. Também valoriza o que chama seu feitio original face ao modelo camoniano, decorrente menos da vontade de inovação que da inadequação do assunto aos moldes clássicos, e resultando disso, enfim, o "primeiro poema romântico" português. Nesse sentido, louva-lhe ainda a introdução no modelo épico de elementos originais da América, como a natureza, os índios e seus costumes, gerando assim uma "primeira poesia americana".
Passando ao século 20, a tendência portuguesa é desinteressar-se pelo poema, repondo uma recepção semelhante à do 19, em que o "Uraguai" é incorporado à literatura portuguesa árcade, numa posição de mediano relevo, tendo como méritos principais a "cor" americana, caracterizada pelo assunto, a natureza e o índio, e a inovação do gênero épico. Já no Brasil, as alterações são mais profundas: até o predomínio modernista, o poema segue com boa presença no mercado editorial, com três edições em circulação. Com os modernistas, contudo, Vânia aponta uma "quebra do prestígio", citando-o apenas Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, para destacar-lhe seu "sentimento nacional". A essa indiferença segue-se a hostilidade manifesta na celebração do bicentenário do nascimento de Basílio realizada pela Academia Brasileira de Letras, em 1941. Clóvis Monteiro e Afrânio Peixoto censuram-lhe a postura antijesuítica e o mau-caráter, negando-lhe tudo o que se considerava mais meritório no poema: brasilidade, indianismo, originalidade face a Camões ou ao arcadismo italiano e, enfim, recusando-lhe o romantismo. O que, para mim, mas não para eles, nem para Vânia, parecem críticas que soam como enormes vantagens do poema.
Na década de 50, algumas leituras importantes da obra são analisadas por Vânia, como as de Sérgio Buarque e de Antonio Candido. Este vê no poema uma matéria lírico-heróico-didática com "disfarce épico", na mesma linha de suas outras leituras de árcades pelas quais nutre maior simpatia, ou seja, em que julga reconhecer maior distanciamento da convenção árcade e maior densidade subjetiva ou socionacional. Também valoriza o que pensa ser uma substituição mais original e realista do pastor árcade pelo rústico indígena. Já Sérgio Buarque acentua o parentesco do "Uraguai" com a epopéia italiana e, em particular, com o modelo de Tasso, assim como seu caráter simbólico de luta das Luzes contra a ignorância; também destaca seu interesse imediato e encomiástico, mais que histórico, caracterizando-o como uma "epopéia de circunstância".
A conclusão do exaustivo exame das leituras do poema é que a questão da brasilidade constitui o "fulcro controverso da sua trajetória no espaço literário português e brasileiro". E, embora a interpretação pessoal da autora não se dê neste volume, há nele pistas claras de sua tendência para valorizar o que, no "Uraguai", representa um passo decisivo, fundante, de um "processo de gestação" colonial da literatura brasileira. Isso, a despeito do que entende como "ambiguidades" do poema, que "justifica a empresa colonial civilizadora" e, ao mesmo tempo, valoriza "as gentes e o universo em que se implantou".
Até onde vejo, porém, esta concepção do problema tem contra si dois argumentos fortes. Primeiro, o que quer que se entenda por processo de "formação" orienta para a descoberta de um sistema de práticas de cultura muito útil para a descrição de questões lançadas coerentemente apenas no século 19; logo, se é legítimo buscá-lo, não se pode pretender que descreva bem aquilo mesmo que apenas dilui, por predomínio de novos interesses intelectuais. Assim, no século 19, ou mesmo no 20, foi importante a descoberta de um específico nacional que se associava a um modelo de maior prestígio internacional, capaz de tornar subalterna a referência portuguesa na constituição dos paradigmas literários brasileiros: isto fez parte das "provas" que autorizaram a sua substituição por balizas italianas ou francesas, de feitio menos beato e mais moderno. Tomar a "gestação" literalmente, e não como argumento útil a posteriori, é fazer do processo a alegoria de uma substância a-histórica, "a brasilidade", que hoje tem no máximo uma utilidade turística.
O segundo ponto a considerar é que o foco da atual renovação dos estudos coloniais está posto na descoberta do funcionamento de um modelo histórico dominante no momento daquela produção (o da unidade teológico-retórico-política), que foi deixado de lado pela investigações prioritariamente interessadas em produzir o autônomo nacional. Vale dizer, para mim, o que faz a graça dos estudos coloniais é a vontade de descrever mecanismos verossímeis não-nacionais (embora com aplicações específicas nas diferentes regiões ou países), classicizantes (vale dizer, não puristas e favoráveis à geração de gêneros mistos), convencionais (mas não "disfarces", e sim signos de uma economia artística produtiva) e artificiosos (mas não "fora-de-lugar", antes, funcionais como modos de inserção na hierarquia social e letrada da colônia).

Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade de Campinas (Unicamp) e autor de "Escritos Históricos e Políticos do Padre Antonio Vieira" (Martins Fontes).


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GUIA LITERÁRIO DA BÍBLIA


A retórica das escrituras
09/Mai/98
Moacyr Scliar
ROBERT ALTER/ORGANIZADOR/; FRANK KERMODE /ORGANIZADOR/; GUIA LITERÁRIO DA BÍBLIA

chegando a São Paulo, no começo de março, vi na livraria do aeroporto de Guarulhos dois livros sobre a Bíblia. Um deles, apregoado como best seller, chama-se "O Código da Bíblia". O autor, Michael Drosnin, afirma que, com o auxílio do computador, encontrou no texto bíblico mensagens cifradas -avisando da morte do primeiro-ministro Yitzhak Rabin. A Bíblia permite desvendar o futuro, afirma ele, com a férrea convicção que caracteriza os crentes de todos os tempos.
Este é um tipo de leitura que se pode fazer da Bíblia. Outro tipo de leitura é representada pelo livro que estava ao lado. Trata-se do "Guia Literário da Bíblia". Tive o prazer de conhecer um dos organizadores, Robert Alter, em Berkeley -participamos juntos de um seminário sobre literatura judaica contemporânea. Nele, a imagem do homem corresponde à imagem do intelectual: uma manhã encontrei-o entregue à prosaica ocupação de reproduzir textos em uma fotocopiadora. Nada mais longe da imagem de um intérprete original da Bíblia, e no entanto é exatamente isto que Alter é, bem como Frank Kermode, conhecido crítico (é de lamentar que nem a edição brasileira, nem a americana -esta da prestigiosa Harvard University Press- dêem mais informações sobre os autores; apenas as universidades em que lecionam são mencionadas).
E no entanto esse "Guia Literário da Bíblia" é, certamente, a mais importante obra que se escreveu sobre o tema. Como diz George Steiner, a influência da Bíblia faz-se sentir em escritores como Thomas Hardy, Thomas Mann, Gide, Proust, Hemingway, Faulkner, uma lista à qual deve ser acrescentado o nome de Kafka, cujas parábolas têm evidentemente inspiração bíblica. De onde brota esta influência é a pergunta a que os diversos autores -todos professores universitários- se propõem a responder.
Partem de um fato básico: "A Bíblia, considerada como um livro, atinge seus efeitos por meios que não são diferentes dos geralmente empregados pela linguagem escrita. Isto é verdade, quaisquer que sejam nossas razões para lhe atribuir valor -como o relato da ação de Deus na história, como o texto fundador de uma religião ou religiões, como um guia para a ética, como evidências sobre povos e sociedades no passado remoto, e assim por diante. De fato, a análise literária deve vir primeiro". Um objetivo que Umberto Eco caricaturou, quando escreveu o suposto parecer do leitor de uma editora acerca da Bíblia: "Há personagens demais", diz, entre outras coisas.
Não é tarefa fácil tal análise literária. Pouco sabemos sobre a forma como a Bíblia foi escrita. O próprio termo Bíblia (do grego "ta biblia", os livros) é controverso; faz supor, diz Alter, que os antigos escritores hebreus compuseram suas histórias, poemas, leis e listas genealógicas com a idéia de que estavam fornecendo o prelúdio a um outro conjunto de textos a ser escrito mais tarde em outra língua, o grego -ou seja, o Novo Testamento. A Bíblia hebraica é designada pelos judeus como "Tanach", um acrônimo para "Torah" (Pentateuco), "Neviim" (Profetas) e "Ketuvim" (coletânea de escritos ou: tudo o mais). Os textos eram, de tempos em tempos, revisados e emendados. Há pelo menos três estilos bíblicos, convencionalmente conhecidos como E (de "Elohim", um dos nomes da divindade), J (de "Javeh", outro nome da mesma divindade) e P (de "Priestly", sacerdotal), os dois primeiros datando do início da monarquia davídica, o terceiro posterior, cobrindo um período total de mil anos (o mesmo período, observa Alter, que vai da "Chanson de Rolland" a Robbe-Grillet).
A hipótese é periodicamente posta em dúvida, mesmo porque todos os originais desapareceram: os manuscritos sagrados mais antigos, do século 1º a. C., são os textos encontrados nas cavernas de Qumran. Também nada se sabe dos autores, o que levou Harold Bloom a especular que, em alguns casos, poderia até se tratar de uma autora -para ele, a narrativa é típica de uma "visão feminina". Contudo, e de novo usando Bloom -a "angústia da influência"-, há alusões internas, textos influenciando outros textos. Disto Alter dá um exemplo: as palavras que Booz diz a Rute ("Deixaste pai e mãe na terra natal para vires morar no meio de um povo que não conhecias") lembram a ordem de Deus a Abraão: "Sai de teu país, deixa teus parentes e a casa de teu pai e vem para o país que te mostrarei" e conferem a Rute o caráter de "mãe fundadora": tanto Abraão como Rute renunciam a seus laços naturais por outros, contratuais -o que é uma constante injunção na trajetória do chamado povo eleito. A redação do texto é uma pista fundamental para compreendê-lo; ou seja, o meio -a forma literária- é quase a mensagem.
Mas não é isso, claro, que faz da Bíblia literatura. Há uma inegável dimensão estética nos "Salmos", nos "Provérbios" e -naturalmente- no "Cântico dos Cânticos", dimensão esta contrabalançada, mas não anulada, pelas aborrecidas genealogias e pelos preceitos, dietéticos ou outros. Conclui Alter: "O impulso literário no Israel antigo era tão forte quanto o impulso religioso (...), de modo que, para entender o segundo, é preciso levar em conta o primeiro". Não estamos falando só de linguagem, mas também dos fascinantes personagens, muito mais complexos do que parecem. Esaú, por exemplo. Será ele, pergunta Alter, um bronco governado pelos roncos do próprio estômago? Assim o vemos no episódio do prato de lentilhas, mas, 20 anos depois, o que temos é um homem generoso para com seu irmão, que até o chama de "amo". Diferente dos personagens de novela de TV, Esaú evolui, muda. E, no caso, a mudança é importante. Os epônimos para Jacó e Esaú, Israel e Edom, sugerem uma oposição política: o povo eleito contra um de seus inimigos históricos, o mocinho contra o bandido. Mas o autor do texto consegue livrar as personagens da conotação maniqueísta, panfletária; faz "um tipo de literatura ideológica que incorpora um reflexo de autocrítica ideológica".
O "Guia Literário da Bíblia" compreende, além da introdução, três partes: "O Antigo Testamento", "O Novo Testamento" e "Ensaios Gerais". Cada parte destas, por sua vez, abrange vários ensaios. Assim, J. P.Fokkelman fala-nos do "Gênesis" e do "Êxodo", James Ackerman aborda "Números" e Herbert Marks fala dos "Profetas" -mas alguns destes merecem capítulos à parte.
É o caso da saborosa história de Jonas, que James Ackerman -para quem se trata de obra-prima da literatura- aproxima à sátira clássica. O nome do profeta já é significativo: "Ioná" em hebraico é pombo, uma ave assustadiça que se lamenta quando atormentada. E tormentos não faltam a Jonas. Pior, é uma constante aporrinhação resultante de insondáveis desígnios divinos. Deus manda que ele anuncie a destruição de Nínive; em vez de obedecer, o profeta foge (e a palavra hebraica que o designa é "yarad", descer), como se rumasse a um mundo inferior. Mas não adianta tomar o navio; Deus provoca uma tempestade que quase destrói o barco; os marinheiros lutam, Jonas dorme. Há um sorteio, ele é atirado pela amurada, um peixe o engole e o vomita no lugar que ele evitava, Nínive. Jonas então cumpre a ordem divina e anuncia a destruição da cidade. Os ninivitas instantaneamente se arrependem, Deus volta atrás -para grande aborrecimento de Jonas, que, pelo jeito, fez papel de bobo. À espera da destruição da cidade, Jonas vive em uma tenda no deserto, sob a sombra de uma planta -que, por ordem de Deus, é destruída por um verme.
Ackerman faz a análise literária da linguagem do texto, do caráter do personagem, das alusões. Mais que isso, vincula a história à sátira clássica, então em desenvolvimento em outras partes do mundo mediterrâneo. Finalmente, situa-a em seu contexto histórico. A comunidade de Judá passou por um período difícil ao regressar do exílio babilônico. As esperanças escatológicas formuladas em outras profecias, notadamente as de Isaías, não se realizaram. O resultado: frustração. A raiva que Jonas sente da suposta injustiça divina provavelmente era um sentimento disseminado à época. Jonas é, portanto, uma figura paradigmática, deste período e de outros semelhantes -daí a sua permanência.
No caso do Novo Testamento temos uma situação diferente -quatro textos que giram em torno do mesmo tema, a vida, paixão e morte de Jesus, mas escritos de forma diferentes. Por exemplo, "Marcos representa o ponto em que a tradição oral foi pela primeira vez desafiada pela escrita". Seu texto prima pela concisão, ao passo que Mateus e Lucas se expandem mais na narrativa. Os evangelhos guardam íntima relação com o Antigo Testamento -são numerosas as alusões a este-, comprovando o fato que as pesquisas históricas tornam cada vez mais evidente: os primeiros cristãos não se consideravam os fundadores de uma nova religião, mas sim os continuadores e reformadores do judaísmo. Nas palavras de Kermode, "o evento ou dito antecipado no texto antigo é cumprido no novo, e o novo é portanto validado por ele; mas também o contém e transcende". Também é importante assinalar que os evangelistas se viam como narradores de uma história realmente acontecida. Para os pesquisadores hoje empenhados na busca do "Jesus histórico" a interpretação dos evangelhos é crucial.
Como diz John Barton no "London Review of Books", Kermode e Alter conseguem com este livro dar novo rigor e seriedade ao movimento Bíblia Como Literatura. Trata-se de uma obra que prima pela abrangência; há inclusive um glossário de termos bíblicos e literários. Quanto à tradução brasileira, é correta e fluente, como pude constatar, comparando-a com o texto original (que é de 1987). Neste momento em que cresce no mundo a maré fundamentalista e em que textos religiosos são usados como norma de conduta política e forma de opressão contra outros é consolador saber que existem pessoas dedicadas a examinar um livro tão importante como a Bíblia sob o aspecto de mensagem literária. Que é talvez o aspecto mais transcendente de uma obra que há milênios condiciona os destinos de nosso mundo e mobiliza de maneira irresistível corações e mentes.
Moacyr Scliar é escritor, autor, entre outros de "A Majestade do Xingu" (Companhia das Letras).


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OS DOIS CORPOS DO REI

Deus entre os homens
09/Mai/98
Renato Janine Ribeiro
FILOSOFIA; POLÍTICA; ERNST KANTOROWICZ /AUTOR/; OS DOIS CORPOS DO REI

ao publicar "Os Dois Corpos do Rei", em 1957, Kantorowicz já escrevera obras importantes, como uma biografia de Frederico 2º e vários artigos. Mas foi com esse livro que revolucionou os estudos políticos medievais e mesmo modernos. Antes, a Idade Média era estudada para se identificar o advento do espírito leigo em detrimento do religioso -como fez Lagarde, em seu útil "O Nascimento do Espírito Leigo na Idade Média". Ou para mostrar como as realezas nacionais se expandiram, em prejuízo do poder imperial. Ou, ainda, para expor os conflitos entre o papa e o imperador. Em suma, um progresso era avaliado segundo o avanço do espírito leigo sobre a teologia, do poder civil e -quase diríamos- "nacional", em detrimento dos universais imperial e pontifício.
A novidade de Kantorowicz está já no título, que descreve sua obra como um ensaio de "teologia política". A idéia era inquietante: contra uma tradição que media o progresso no pensamento político pela sua laicização, nosso autor atribuía-o, justamente, à teologia. Mas isto se esclarece quando observamos o papel que assume, no livro, a figura de Cristo.
A grande inovação de Cristo, em face da religião judaica, foi instituir uma ponte entre o homem e o Criador. O humano e a divindade, na maior parte das religiões monoteístas, estão afastados. Com Cristo, porém, temos a rara figura de um deus que se torna homem e sofre o que há de pior em nossa condição. Isso levará, aliás, a longas discussões ao longo dos primeiros séculos da era cristã, quase caindo na heresia, sobre uma dupla natureza de Deus-Filho: enquanto deus, enquanto homem.
Ora, essa condição de Cristo virá resolver um problema decisivo na política -sobretudo inglesa- da passagem da Idade Média para a Renascença. Como entender a proeminência do monarca, homem que se destaca sobre os demais? Uma solução "convencional" estaria em simplesmente "desumanizar" o rei, divinizando-o. Assim agiram Alexandre, o Grande, e os romanos, quando proclamavam deuses os seus imperadores, por vezes ainda em vida.
Mas essa opção serve mal ao monoteísmo e a seu Deus zeloso. Será preciso, então, uma saída que a um tempo exalte o rei, dando-lhe parte divina, e o controle: porque um problema essencial na política era como controlar o monarca sem ser pela revolta e o regicídio.
A saída estará em transferir aos governantes o caráter duplo do Filho de Deus. Cristo é homem e deus. Cada rei será homem (e pois sujeito às " infirmities", isto é, a tudo o que é limitado e sofredor em nossa condição) e deus (detentor de um poder que, enquanto dure, fará dele o representante do Criador na Terra). Cada rei terá um corpo finito, físico, mas também um "corpo místico".
Analisando-se a cerimônia da coroação régia, vê-se como o que é finito no homem se torna, graças aos santos óleos, divino -melhor dizendo, torna-se crístico. Insisto: este é um meio de semidivinizar o rei. A realeza crística da Idade Média não se confunde com a doutrina -mais ambiciosa- do direito divino dos reis, que, ao contrário do que se imagina, é mais moderna, datando de Jaime 1º da Inglaterra, em fins do século 16.
Os resultados dessa cristianização do monarca são notáveis. Aliás, esse processo ficará mais claro se virmos o que sucede ao maior (em tese!) dentre os monarcas -o papa. Lembremos o que a Igreja fez para impedir que o poder pontifício ficasse em mãos incontroladas de um indivíduo ou de sua família: ela instituiu o celibato clerical.
Este, salvo acessos de moralismo bastante curtos no tempo, não significava tanto a castidade dos sacerdotes, mas sim e sobretudo a ilegitimidade de seus filhos. O problema não era fazer ou não sexo, era herdar ou não bens. Padres e bispos teriam amantes, mas, não podendo casar-se legalmente, seus filhos nunca poderiam ser seus herdeiros: assim se impedia que se transmitissem as sés, as catedrais, os mosteiros de pai para filho. Desse modo a Igreja romana desde cedo protegeu seus bens do que hoje chamamos patrimonialismo, isto é, a apropriação privada do que pertence a uma instituição.
A doutrina dos dois corpos do rei cumprirá papel análogo, mas em escala maior. Há um corpo permanente, místico, que nunca morre, o Rei com maiúscula. Há um corpo frágil, doente ou pelo menos mortal, o rei com minúscula, o monarca atual. Este último assume, mas só por um tempo, as vestes do outro (por sinal, vestes, figurinos, estátuas são decisivos nessa representação da monarquia).
O monarca atual tem amplos poderes, mas ai dele se confundir sua missão temporária com o corpo místico! Tão logo desapareça, os excessos que tenha cometido poderão ser desfeitos por seu sucessor. Isso está num preceito do direito canônico, cedo retomado pelos Estados que, ao longo dos séculos 14 e 15, sacodem a tutela pontifícia e imperial: o patrimônio da Igreja não se confunde com o arbítrio do papa, nem o "estate of the Crown", os bens régios, com os desejos do rei. Dos desmandos de um príncipe, o seu sucessor sempre poderá anular os efeitos.
A doutrina dos dois corpos do rei será, assim, a forma mais explícita de uma doutrina que tem alcance e papel europeus: a da identificação/distinção entre o cargo e quem o exerce. Por toda a parte, esta é uma preocupação. Sabem todos que os reis exageram, mas também sabem que é difícil contê-los pelos canais usuais. O direito canônico ajuda, a longo prazo, anulando os excessos, mas só depois de morto o príncipe. É preciso mais que isso. É necessário distinguir o que é da esfera pública, o que é da esfera privada -para usarmos uma linguagem mais recente.
Naquela época, é claro, não se emprega este discurso. Fala-se em "corpo místico", para definir a dimensão em que o rei se faz Rei, largando o plano da "enfermidade" (não só as doenças, mas a mortalidade), da natureza ou do mundo criado, para subir ao da graça ou do Criador. Mas no corpo místico divisa-se, de longe, o que mais perto de nós se chamará dimensão pública do poder.
Que alcance tem essa teoria tardo-medieval, que culmina na Inglaterra sob a dinastia Tudor, no século 16? Cabe indagar por que os doutrinários da época vieram a pensar o que hoje chamamos de poder público mediante o conceito de corpo místico, que inicialmente designava a hóstia, o corpo místico de Cristo. Essa raiz teológica da política moderna merece atenção, porque é um débito que fica.
Mas talvez o importante mesmo seja que esse livro teve forte sucesso, embora demorado -tardou mais de 20 anos a se tornar um "cult", porém desde os anos 80 serviu para explicar fenômenos políticos e sociais inclusive mais recentes, como a monarquia absoluta francesa ou até a mística dos presidentes de nosso tempo.
Deste ponto de vista, "Os Dois Corpos do Rei" ajudou a romper uma imagem ainda positivista da história política e das mentalidades, que propunha o progresso como vitória do espírito leigo sobre a superstição. Esse modelo teve forte impacto na universidade brasileira -e sobretudo na USP- desde a década de 1930. Para a cultura francesa republicana posterior ao caso Dreyfus, em que se inspirava, vencer a superstição era ato político fundamental.
Hoje, porém, nossos referentes são outros: podemos assim ver que o nascimento da modernidade não passou pela mera oposição entre leigo e religioso, mas que o elemento teológico foi decisivo na nova política -assim como, mostra Frances Yates em outro livro notável, seu "Giordano Bruno e a Tradição Hermética" (Cultrix), o fator mágico foi fundamental na construção da ciência moderna.
Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "Ao Leitor Sem Medo - Hobbes Escrevendo Contra o seu Tempo" (Brasiliense).


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50 ANOS DE CIÊNCIA ECONÔMICA NO BRASIL - PENSAMENTO, INSTITUIÇÕES, DEPOIMENTOS

O Brasil dos economistas
09/Mai/98
Reginaldo C. Moraes
MARIA RITA LOUREIRO /ORGANIZADORA/; 50 ANOS DE CIÊNCIA ECONÔMICA NO BRASIL - PENSAMENTO, INSTITUIÇÕES, DEPOIMENTOS /LIVRO/; JOSEPH L. LOVE /AUTOR/; A CONSTRUÇÃO DO TERCEIRO MUNDO - TEORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO /LIVRO/; RESENHA


eis dois livros indispensáveis ao leitor interessado nas formas pelas quais o Brasil foi interpretado pelos seus intelectuais. A coletânea organizada por M.R. Loureiro certamente atrairá aqueles que pretendem conhecer a trajetória do pensamento econômico no Brasil. Mas é também bastante útil para quem tenta entender o papel dos intelectuais nas instituições que estes criam e nas quais se criam. Como lembra Eleutério Prado, trata-se de uma coleção de materiais diversos, em origem, densidade e acabamento -"a síntese será feita pela história".
Dito isto, talvez pareça um pouco estranho o início desta resenha. Mas não vejo outra saída, já que a parte um (o item "pensamento" referido no título) tem ela mesma um começo desalentador. Não tenho aqui espaço para me alongar neste comentário, mas não desanime, leitor amigo, com o ensaio de Bresser Pereira, que pretende apresentar as "interpretações fundamentais" sobre a realidade brasileira -e acaba por fornecer listagens de nomes e obras com tentativas classificatórias no mínimo constrangedoras. Não desanime, leitor -repito. O restante do livro vale a pena, e muito. Ainda nesta primeira parte, um capítulo escrito por Ricardo Bielschowski resume seu importante estudo sobre o pensamento desenvolvimentista ("Pensamento Econômico Brasileiro", Ed. Contraponto). A eventual restrição que se poderia fazer, sem diminuir a validade do texto, é a de que se trata de reimpressão de artigo já antigo (1991), estando desatualizado em algumas referências. A seguir, Guido Mantega procura recompor os meandros do pensamento econômico brasileiro entre os anos 60 e 80, um mapeamento útil, ainda que forçado a conter, em 50 págs., esses 20 anos e muitos autores, que Mantega chama espirituosamente de rebeldes. Leda Paulani fecha a seção focalizando um episódio significativo da história "imediata" do pensamento econômico brasileiro: a teoria da inflação inercial. Concisa e claramente, resume a doutrina, pergunta pela sua filiação (ortodoxia, heterodoxia) e problematiza a idéia de que seja "uma criação teórica genuinamente nacional".
A segunda parte traz ensaios que examinam as instituições brasileiras de ensino e pesquisa em economia. A organizadora do livro volta ao instigante tema de seu livro recém-lançado ("Os Intelectuais no Governo", Fundação Getúlio Vargas) -em pequeno ensaio, examina como o Instituto Brasileiro de Economia (FGV), o Ipea (Ministério do Planejamento) e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (USP) vieram a constituir não apenas centros de ensino, mas também núcleos de preparação de quadros para ações de governo e de pesquisa voltada para a formulação de políticas.
Na terceira parte, a transcrição dos vivos debates ocorridos no seminário da USP intitulado "Cinquenta Anos de Ciência Econômica no Brasil" é seguida por um estudo de Ana Maria Bianchi, contextualizando e problematizando temas do evento. O volume finda com uma coleção de depoimentos de João Paulo dos Reis Velloso, Maria Conceição Tavares e Julian Chacel.
O segundo livro vem com a chancela do brazilianista Joseph Love, já bastante conhecido entre nós, sobretudo pelo seu estudo sobre o papel de São Paulo na economia e na política brasileiras.
Agora Love nos traz uma "história das idéias" -"história comparada" que pergunta "como o ritmo da absorção de instituições e idéias, bem como a reação a conjunturas econômicas, levaram não apenas à redescoberta ou à reinvenção de idéias (teorias, propostas, pressupostos explícitos ou implícitos, receituário de políticas) semelhantes, mas também à descoberta de novas idéias".
A comparação -aparentemente bizarra, reconhece o autor, no prefácio- faz-se entre o pensamento econômico corporativista e protecionista romeno (personificado em Mihail Manoilescu) e o estruturalismo cepalino, em especial o brasileiro, cuja estrela-guia é Celso Furtado.
A extensão do livro é mais do que justificada pela descrição cuidadosa dos eventos e pelo detalhe da documentação, que mostram, atrás do texto, os vários anos de pesquisa histórica que o tornaram possível. Embora não seja, declaradamente, a intenção do autor, o livro se permite alguns vôos lampejantes e sugestivos para posteriores desenvolvimentos. É uma das muitas e proveitosas formas de lê-lo, aliás.
Intrigado pela constatação de que, na década de 30, "Manoilescu fornecera aos industriais paulistas o que parecia ser um embasamento científico para a industrialização em um país predominantemente agrícola", Love pôs-se a estudar o meio intelectual em que o romeno escrevera e o meio em que repercutira, de um lado e outro do Atlântico.
A "ponte Manoilescu" revela sua existência imediatamente quando o autor examina seu forte impacto no Brasil, entre industriais, estadistas e intelectuais (Roberto Simonsen e provavelmente Vargas, entre os primeiros; Oliveira Vianna, Francisco Campos, Azevedo Amaral, tradutor de Manoilescu, entre os segundos). Mas os vínculos iriam mais longe no tempo e na profundidade. O pensador romeno encarnava e liderava todo um protesto contra a ortodoxia neoclássica e a ideologia liberal que a acompanhava. A partir daí, Love se viu perguntando "como o problema do atraso foi teorizado em dois países, em contextos geopolíticos diferentes". O estruturalismo cepalino surge então no horizonte desse estudo comparativo. E dá, assim, forma final ao ensaio.
Alguns terminarão a leitura e se darão por satisfeitos. Outros encontrarão ricas sugestões para estudos complementares. Para estes últimos, é um livro para ler com vagar, com o cuidado de anotar indicações, nem sempre sublinhadas pelo autor -talvez até algumas delas mais ou menos não-intencionais...
Ainda caberia uma palavra sobre duas ou três idéias furtivas lançadas na conclusão e no curto prefácio escrito para a edição brasileira.
O prefácio adianta que na conclusão o autor daria asas a especulações, ao perguntar, um tanto retoricamente, "se a intervenção estatal terá ou não saído de vez do cenário histórico". O leitor vai à conclusão e encontra esta afirmação: "Patente foi o fato de que caíram em desfavor, nas últimas duas décadas, as soluções estatais para os problemas do atraso econômico". Tudo diferente do período anterior, em que "o papel do Estado... aparecia... como a arena suprema do processo decisório e a propriedade estatal configurava-se como um novo pólo no conjunto de soluções para o problema do atraso".
O exame dessas doutrinas e de seu contexto pode nos sugerir muitas reflexões prospectivas. O surgimento e a audiência conquistadas por autores como Manoilescu e os cepalinos estão datados por limites muito precisos. Inserem-se no que poderíamos chamar de pequeno século 20, período demarcado pelo desmoronamento do padrão-ouro e pelas drásticas mudanças da política monetário-cambial norte-americana dos anos 70, seguidas, como se sabe, de uma avalanche desregulamentadora nos mercados financeiros mundiais. Nesse intervalo, a relativa diminuição do poder monitorador dos financistas, detentores de riqueza líquida, abre uma fresta no qual emergem e/ou transbordam políticas econômicas nacionalistas de vários tipos.
A pergunta do prefácio é então reescrita: "Terão as doutrinas examinadas neste livro não apenas um passado, mas também um futuro?". O autor sugere que sim. Mas volte o leitor ao curto prefácio e notará o quanto é, ao mesmo tempo, inocente e ferino: "Se um dos autores tratados neste livro, o atual presidente da República..., acredita agora que... o papel do Estado não é mais, como ele um dia imaginou, o de 'moldar o progresso', os artífices do Consenso de Washington pouco teriam a objetar". E a maldade talvez esteja aí: "Os historiadores talvez entendam melhor que os cientistas sociais o fato de que a história é cheia de surpresas". Leia e confira. Vale a pena.

Reginaldo C. Moraes é professor de ciência política na Universidade de Campinas e autor de "Celso Furtado, o Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal" (Ática).


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RUBRO VEIO: O IMAGINÁRIO DA RESTAURAÇÃO PERNAMBUCANA


O nativismo pernambucano
09/Mai/98
Guilherme Pereira Das Neves
Editoria: Caderno Especial

EVALDO CABRAL MELLO /HISTORIADOR/; RUBRO VEIO: O IMAGINÁRIO DA RESTAURAÇÃO PERNAMBUCANA

para aquilatar a importância deste livro, cujo título é tirado de um verso do hino de Pernambuco, vale assinalar que sua primeira edição data de 1986. Naquele ano, o célebre "Montaillou", de Le Roy Ladurie, circulava havia pouco mais de dez anos; "O Medo no Ocidente", de J. Delumeau, surgira em 1978; "O Queijo e os Vermes", de C. Ginzburg, em 1980; "O Retorno de Martin Guerre", de Natalie Davies, em 1983; "O Grande Massacre dos Gatos", de R. Darnton, e o primeiro volume de "Os Lugares da Memória", organizado por Pierre Nora, acabavam de vir à luz, em 1984.
Não se trata, com isso, de reivindicar a obra para o campo de uma história das mentalidades, cuja designação o autor julga "bem insuficiente para a ambição do seu escopo e para a variedade de seu método", como, aliás, evidenciam os títulos arrolados acima. Menos ainda de proceder a uma crítica maliciosa, sugerindo tratar-se de trabalho de inspiração estrangeira e desvinculado de nossa realidade. Mas, sim, de destacar a sintonia que há entre a sensibilidade de Cabral de Mello e certas correntes inovadoras da historiografia contemporânea, sensibilidade que ele viria a reafirmar com "O Nome e o Sangue" (1989) e "A Fronda dos Mazombos" (1995). Ou seja, chamar a atenção para a originalidade deste livro, cujo único parentesco próximo, em nosso meio, talvez se encontre em "Visão do Paraíso" (1958), de Sérgio Buarque de Holanda.
"Rubro Veio" procura delimitar, desde a expulsão dos holandeses em 1654 até o início do século atual, o lugar ocupado pela "restauração pernambucana no imaginário nativista". A cada um dos dez capítulos, o tema se enriquece, esclarecendo a especificidade das representações mentais que se desenvolveram na província em torno do período neerlandês. No percurso, nunca linear, mas sempre claro, esse nativismo, tão importante para explicar a posição singular ocupada por Pernambuco no império, é constantemente matizado.
Calçado no conhecimento assegurado em duas análises anteriores ("Olinda Restaurada", 1975, e "O Norte Agrário e o Império", 1984), o autor também não deixa de caracterizar a sociedade da açucarocracia. E, sobretudo, de analisar a historiografia, em particular a regional, sobre o "tempo dos flamengos", ao longo de mais de dois séculos. Na realidade, as grandes personagens deste livro são os próprios historiadores, desde os primeiros cronistas, como frei Manuel Calado, passando pelos autores do século 18 e inícios do 19, como Borges da Fonseca e Fernandes Gama, até os debates realizados na órbita do Instituto Arqueológico, criado em 1862, envolvendo Pereira da Costa, Raposo de Almeida, Alfredo de Carvalho e outros.
Para tanto, Cabral de Mello recorre, no primeiro capítulo, a um "inventário da memória", que inclui em seu âmbito a tradição oral e os monumentos, a toponímia e as festividades, a produção iconográfica e literária relacionadas ao período. O último, "Marginália: Os Alecrins no Canavial", serve como uma espécie de contraponto aos demais, sob a forma de uma análise socioeconômica do espaço pernambucano, permitindo ao leitor dimensionar a distância entre o discurso nativista e a realidade daquele momento, tal como hoje pode concebê-la o historiador.
No intervalo, o nativismo é explorado sob diversos ângulos. Em "A Cultura Histórica do Nativismo", verdadeiro "tour de force", ele procede a uma deslumbrante análise da recepção posterior, cambiante com a conjuntura, que vieram a encontrar as principais fontes de época, como o "Castrioto Lusitano". Central para a argumentação, "À Custa de Nosso Sangue, Vidas e Fazendas" busca, a partir de "pronunciamentos fragmentários e esporádicos" e da argumentação contrária, emitida pelas autoridades reinóis, recuperar "o discurso político do primeiro nativismo pernambucano", isto é, até 1817, tal como se articulou, na segunda metade do século 17, para elaborar as relações da açucarocracia com a Coroa portuguesa. Num procedimento que faz lembrar as análises de Pocock e Skinner, o assunto desdobra-se no seguinte, "A Metamorfose da Açucarocracia", acompanhando a formação da idéia de uma "nobreza da terra", decisiva para o imaginário da província, com o exame das expressões utilizadas para designá-la, do desenvolvimento da prática genealógica para identificá-la e, para justificá-la, da atribuição de um caráter aristocrático à colonização duartina do século 16.
"No Panteão Restaurador" move o foco cronológico para o século 18 e inícios do 19. Primeiro, revela o complexo jogo de interesses que motivou a fixação da tetrarquia de heróis constituída por Vieira, Vidal, Dias e Camarão, com a exclusão dos mestiços e o desdobramento da raça branca em dois representantes, em função da necessidade de contemplar tanto reinóis quanto mazombos, cuja oposição se acirrara com a Guerra dos Mascates (1710). Segundo, aponta o sutil deslocamento da concepção de uma "nobreza da terra" para a de uma pernambucanidade identificada aos feitos e glória militares.
Nos dois capítulos seguintes, Cabral de Mello volta-se, com uma aguda percepção, para o papel político da religião no Antigo Regime. Em "Olinda Conquistada", traça, com muitas nuanças, a trajetória do pensamento historiográfico sobre as causas da conquista holandesa, desde a ingênua visão providencialista de Calado até a concepção secular de Fernandes Gama. Em "A Terrena Obra e a Celeste Empresa", elabora o que se poderia denominar de uma economia do sagrado, verificando o lugar ocupado pelo sobrenatural nas façanhas da guerra e a fortuna incerta dos protetores celestes, como Santo Antônio.
Finalmente, nos capítulos 8 e 9, concentra o enfoque no século 19. De um lado, investiga os altos e baixos da "nostalgia nassoviana", nascida da insatisfação com a herança portuguesa. De outro, os riscos que tal atitude comportava para a integridade do império e a reação que provocou ("Olinda ou Olanda").
Ao trançar e retrançar a trama desses fios, a partir de um completo domínio das fontes e da bibliografia, Cabral de Mello consegue não só fornecer uma densa análise do imaginário pernambucano, calcado na restauração seiscentista, mas também destacar a especificidade de Pernambuco em relação ao conjunto do Brasil. "Rubro Veio" converte-se, assim, no plano mais imediato, em convite, ou repto, ainda não aceito, para que estudos semelhantes investiguem o imaginário que se teria constituído nas demais regiões. Nessa senda, muito do que se pensa, em geral, sobre o nativismo de fins do século 18 e inícios do 19, acriticamente herdado, em grande parte, da historiografia nacionalista oitocentista, exigiria, certamente, uma reformulação.
Além disso, "Rubro Veio" sugere também uma outra questão mais ampla. Em um de seus últimos textos, F. Furet salientou a possibilidade de que se valeu a Revolução Americana para incorporar o seu próprio passado em uma única história, ao passo que 1789 dividiu os franceses entre os simpatizantes da revolução e os do Antigo Regime. Nesse sentido, ao permitir a Pernambuco construir-se "na história", o imaginário da restauração distinguiu-o do restante do país, incapaz de se pensar historicamente, apesar dos esforços de Varnhagen. E, sob essa ótica, o virtual desaparecimento do nativismo pernambucano no início do século 20, detectado por Cabral de Mello, torna-se ainda mais intrigante. Será que a incorporação ao Brasil só pode fazer-se ao preço de uma abdicação da história? Será que o Brasil não precisa da história para constituir-se como nação?
Dedicada, como originalmente, ao grande mestre pernambucano José Antônio Gonsalves de Mello pelos seus "50 anos de labor historiográfico", esta oportuna reedição de "Rubro Veio" volta a tornar disponível uma das obras mais originais e instigantes da moderna historiografia brasileira, em cujo imaginário já ocupa o lugar de uma jóia, de raro e fino lavor.
Guilherme Pereira das Neves é professor do departamento de história da Universidade Federal Fluminense e autor de "E Receberá Mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o Clero Secular no Brasil, 1808-1828" (Arquivo Nacional).


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GAVETA DOS GUARDADOS 2

Gaveta dos guardados
09/Mai/98
Iberê Camargo
LITERATURA; IBERÊ CAMARGO /ARTISTA PLÁSTICO/ GAVETA DOS GUARDADOS

A memória é a gaveta dos guardados. Nós somos o que somos, não o que virtualmente seríamos capazes de ser.
Minha bagagem são os meus sonhos. Fui o poeta das ruas, das vielas silenciosas do Rio, antes que se tornasse uma cidade assolada pela violência. Sempre fui ligado à terra, ao meu pátio.
No Rio Grande do Sul estou no colo da mãe. Creio que minha fase atual, neste momento, em 1993, reflete a eterna solidão do homem.
A obra só se completa e vive quando expressa. Nos meus quadros, o ontem se faz presente no agora. Lanço-me na pintura e na vida por inteiro, como um mergulhador na água. A arte é também história. E expressa a nossa humanidade. A arte é intemporal, embora guarde a fisionomia de cada época. Conheci em Paris um escultor brasileiro, bolsista, que não frequentava museus para não perder a personalidade, esquecendo que só se perde o que se tem.
Cada artista tem seu tempo de criação. É difícil saber quando começa a gravidez e quando se dá o parto. Há pintores que são permanentemente prenhes, parindo ninhadas, como era o caso de Picasso. Eu, antes de iniciar a viagem -o quadro-, consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas, quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida e me leva a descobrir o novo quadro. Todo criador é um Pedro Álvares Cabral. A lenda chinesa ensina que a espontaneidade -Tchuang-tseu desenhou um siri num abrir e fechar de olhos- exigiu de Tchuang-tseu anos e anos de aprendizado e observação da natureza, que, como se sabe, é a fonte do conhecimento. O exemplo do mestre chinês foi há muito esquecido pelas gerações. Hoje, predomina a pressa...
VIVER é andar, é descobrir, é conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no agora e retorno às coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de ser criança outra vez para resgatá-las com as mãos. Talvez tenha sido o que fiz, pintando-as. As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua. O pintor cria imagens para expressar seus sentimentos. Estes podem ser do real ou formas abstratas, pouco importa. Creio que sua criação e duração na obra do artista são determinadas pelo subconsciente.
A memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima dos meus quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito.
A memória pertence ao passado. É um registro. Sempre que a evocamos, se faz presente, mas permanece intocável, como um sonho. A percepção do real tem a concreteza, a realidade física, tangível. Mas como os instantes se sucedem feito os tique-taques do relógio, eles vão se transformando em passado, em memória, e isso é tão inaferrável como um instante nos confins do tempo.
Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo -o existir. É difícil, senão impossível, precisar quando as coisas começam dentro de nós.
Em verdade, não sou um admirador das coisas que faço. Não sou uma pessoa extasiada com seu fazer, como se eu merecesse um pedestal. Essa decantação da forma em muitas águas, tanto nas palavras como nas linhas, na pintura, é uma depuração, uma síntese que leva ao que eu chamo uma "transfiguração" situada além da aparência. Importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um.
Não há um ideal de uma beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é minha vida, e tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo.
Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor. Das minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua (1).
Entendo que a vida é uma caminhada. Os ciclistas de meus quadros são caminhantes, no fundo, sem meta. São seres desnorteados. No andar do tempo, vão ficando as lembranças; os guardados vão se acomodando em nossas gavetas interiores. Como temos cicatrizes! A vida foi causando essas feridas que nos acompanham até o fim. Nós somos como as tartarugas, carregamos a casa. Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos testemunhar o hoje se não tivéssemos por dentro o ontem, porque seríamos uns tolos a olhar as coisas como recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos ver as coisas com clareza e nitidez porque temos um passado. E o passado se coloca para ajudar a ver e compreender o momento que estamos vivendo.
O momento é cheio de uma totalidade. Somos alguém envolvido pelas coisas, envolvido pela água, envolvido pelo vento, pelos componentes físicos. O que me prende não é a nomenclatura dos elementos, mas o próprio envolvimento. As coisas são assim: encontramos a última palavra, elas se acabam. Quando eu quero me ver livre, expressar tudo que tenho dentro de mim, lanço o quadro e aparece a imagem. Mas a imagem continua sendo um enigma outra vez. Pensamos que tudo apareceu revelado, e de fato revelou-se. Mas também não se revelou: está visível, mas continua o enigma. Eu apenas objetivei em forma o enigma que estava dentro. A interrogação continua. E a resposta não foi dada.
A vida dói... Para mim o tempo de fazer perguntas passou. Penso numa grande tela que se abre, que se me oferece intocada, virgem. A matéria também sonha. Procuro a alma das coisas. Nos meus quadros o ontem se faz presente no agora. A criação é um desdobramento contínuo, em uníssono com a vida. O auto-retrato do pintor é pergunta que ele faz a si mesmo, e a resposta também é interrogação. A verdade da obra de arte é a expressão que ela nos transmite. Nada mais do que isso!
Porto Alegre, 1993 e 1994.
Nota
1. Apelido de Juliana Burn, ama-de-leite do pintor.


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