quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Tratado de história das religiões


Mircea Eliade –Tratado de história das religiões (1919). São Paulo: Martins Fontes, 2010, 479 p.

Antonio Paim *

Com a publicação do Tratado de história das religiões, a Editora Martins Fontes completa, de certa forma, a divulgação do que se considera seja a parcela central da obra de Mircea Eliade (1907/1986). Temos em vista o fato de constar de seu catálogo O sagrado e o profano e Dicionário das religiões.
Eliade coroa a trajetória iniciada por William James (1842/1910) na obra Variedades da experiência religiosa, aparecida em 1902. Agora a investigação não mais diz respeito ao que melhor poderia expressar aquilo a que corresponderia o “outro mundo”. Volta-se para esclarecer o lugar que a dimensão religiosa ocupa na constituição da pessoa humana. James classificou a massa de informações disponíveis sobre a vivência religiosa em sua terra natal (Estados Unidos). Indicou que a expressão de sua autenticidade encontrava-se no papel que viria a desempenhar na vida de quem a tivesse experimentado. Em síntese, o objeto do estudo passa a ser a experiência religiosa. O passo seguinte seria dado pelo pensador alemão Rudolf Otto (1864/1937) ao publicar, em 1917, livro intitulado Idéia do sagrado.
A contribuição de Eliade cifra-se no estabelecimento de que a vivência do sagrado situa-se entre os primeiros passos que a espécie humana empreenderia no sentido de orientar-se no espaço circundante. E mais: que essa vivência irá permear a formação da personalidade, vindo a ocupar lugar especial na maneira pela qual iremos construindo referenciais, sem nos darmos conta. Associa a essa experiência fundante o fato de que todos dispomos da reminiscência de espaços mais significativos que outros (a experiência espacial que associamos aos primeiros amores; a terra natal, etc.). O homem religioso tem horror à homogeneidade do espaço profano. Perde ali o referencial. Assim, para o homem religioso emerge a necessidade de encontrar o espaço sagrado. Eliade apresenta exemplos edificantes da permanência, em nossa vida cotidiana, daquilo a que corresponderiam as vivências primordiais da espécie humana.
Importa aqui salientar outra categoria fundamental a que recorre em sua doutrina. Trata-se do termo hierofania.
Hierofante era o nome que designava, na Grécia Antiga, o sacerdote que presidia aos mistérios de Elêusis, um dos cultos então praticados. Cumpria-lhe anunciar o sagrado. Assim, a hierofania corresponde ao elemento a partir do qual tem-se acesso à esfera do que seria o sagrado.
Eliade reuniu a documentação disponível acerca das mais expressivas religiões existentes na obra História das crenças e das idéias religiosas, em três volumes. A partir desse material, pode estabelecer o que se poderia denominar de tipologia das hierofanias, isto é, dos elementos através dos quais certas civilizações buscaram aproximar-se do sagrado.
O próprio Eliade explica deste modo o caminho escolhido: “A via que seguimos, se não é a mais simples, é pelo menos a mais segura. Começamos a nossa pesquisa pela exposição de algumas hierofanias cósmicas, o Céu, as Águas, a Terra, as Pedras. Se escolhemos estas classes de hierofanias, não foi porque as consideramos como as mais antigas (o problema histórico não se coloca por enquanto) mas porque a sua descrição explica, por um lado, a dialética do sagrado e, por outro, as estruturas segundo as quais o sagrado se constitui. Por exemplo, o exame das hierofanias aquáticas ou celestes prover-nos-á de um material documental apto a levar-nos à compreensão: 1º) do sentido exato da manifestação do sagrado nestes níveis cósmicos (o Céu e as águas); 2º) da medida em que as hierofanias uranianas ou aquáticas constituem estruturas autônomas, isto é, revelam uma série de modalidades complementares e integráveis do sagrado. Passaremos em seguida às hierofanias biológicas (os ritmos lunares, o Sol, a vegetação e a agricultura, a sexualidade, etc.), e finalmente aos mitos e aos símbolos.”
O fato de que tenhamos escolhido que as instituições sociais sejam estruturadas segundo princípios estritamente laicos não deveria significar que devamos desvalorizar a dimensão do sagrado como constitutiva de nosso modo de ser. A subestimação da dimensão religiosa levará inevitavelmente à incapacidade de lidar com o sagrado. O mérito da cultura geral consiste precisamente em permitir que saibamos colocar cada um dos seus componente no lugar próprio.
Levando em conta que o nosso sistema de ensino não toma conhecimento da cultura humanista, cumpre destacar a importância das edições que a Martins Fontes tem patrocinado. Pelo menos torna acessível parte dos textos básicos constitutivos do que se convencionou chamar de cânon, isto é, as obras básicas da cultura ocidental, entre as quais a presença de Eliade é inquestionável.


Mircea Eliade
Mircea Eliade nasceu na capital da Romênia (Bucareste). Depois de adquirir formação intelectual na pátria de origem e interessando-se pelo estudo da religião, concluiu a Universidade de Calcutá, na Índia, onde permaneceu de 1928 a 1931. Seus primeiros estudos, dedicados à religião hindu, apareceram em 1935. Durante a guerra, viveu em Lisboa, radicando-se em Paris, no pós-guerra, onde seria professor na École des Hautes Études. Finalmente, deu cursos e orientou teses na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Faleceu nessa última cidade.
Revista Liberdade e Cidadania

Sabres e utopias


Mario Vargas Llosa – Sabres e utopias. Visões da América Latina (2009).

Antonio Paim *

Além de renomado autor de romances justamente o que lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2010, Mario Vargas Llosa é igualmente articulista e ensaísta, na condição de colaborador assíduo de periódicos em diversos países europeus, nos Estados Unidos e entre nós. O livro Sabres e utopias. Visões da América Latina contém uma seleção daqueles artigos e ensaios nos quais abordou temas da cultura e da política dessa parte do mundo. A denominação que atribuiu às partes do livro são bem expressivas do seu conteúdo: 1- A peste do autoritarismo; 2-Auge e declínio das revoluções; 3-Obstáculos ao desenvolvimento: nacionalismo, populismo, indigenismo, corrupção; 4-Em defesa da democracia e do liberalismo; e 5- Os benefícios do irreal: arte e literatura latino-americanas.
Reconhece a ambigüidade do conceito de América Latina. Assim, escreve: “As fronteiras nacionais não sinalizam as reais diferenças existentes na América Latina. Estas ocorrem no interior de cada país e de forma transversal, englobando regiões e grupos de países. Há uma América Latina ocidentalizada, que fala espanhol, português e inglês (no Caribe e na América Central) e é católica, protestante, atéia ou agnóstica, e uma América Latina indígena, que, em países como México, a Guatemala, o Equador, o Peru e a Bolívia, reúne milhões de pessoas e preserva instituições, práticas e crenças de raiz pré-hispânica. Mas essa América indígena, por seu lado, não é homogênea; constitui um outro arquipélago e apresenta diferentes níveis de modernização.” (p. 315) Destaca o fato de que, na sua opinião “felizmente”, a mestiçagem acha-se muito difundida, o que tem permitido a incorporação de contribuições tanto dos africanos que vieram para o continente na condição de escravos como dos participantes da posterior emigração de outros povos da Europa, além de espanhóis e portugueses, bem como da Ásia.
Não obstante essa diversidade e sobretudo a sobrevivência de práticas e costumes anteriores à colonização européia, responde afirmativamente à pergunta: “a América Latina faz parte do Ocidente, culturalmente falando, ou se trata de algo essencialmente distinto, como seriam a China, a Índia ou o Japão?” Lembro aqui que Samuel Huntington (1927/200), na sua obra, tornada clássica, O choque das civilizações (1993) respondeu negativamente à questão, arrolando a cultura latino-americana como distinta da ocidental.
Vargas Llosa passa em revista o ciclo autoritário, de origem militar, bem como as dificuldades na subseqüente construção democrática. Nesse particular, destaca o traço da cultura latino-americana que, em muitos casos, tem impedido a modernização econômica. Um dos ensaios dedicados ao tema está intitulado de “queremos ser pobres”. Afirma textualmente: “Enquanto a democratização estancou ou recuou em países como a Venezuela, assiste-se no campo econômico ao ressurgimento do populismo, como conseqüência do fracasso de certas reformas de abertura e privatização, apresentadas de maneira falaciosa como “neoliberais”. (p. 196)
Não deixa de ser curiosa esta observação: “Uma reforma mal feita costuma ainda ser mais prejudicial do que a ausência de reformas. Foi o caso do Peru, onde a ditadura de Fujimori “privatizou” um grande número de empresas públicas durante os funestos anos de 1990-2000. Essas privatizações eram, é claro, uma caricatura grotesca do que é e de qual o sentido da transferência de empresas do Estado para o setor privado, algo que é feito para saneá-las, moderniza-las, obriga-las a competir e a prestar serviços melhores aos consumidores. No entanto, elas foram feitas para transformar monopólios públicos em monopólios privados, para favorecer determinadas pessoas e grupos econômicos ligados à camarilha governante e, sobretudo, para que Fujimori, Montesinos e toda a sua laia cortesã de militares, empresários e funcionários enchessem os bolsos com comissões e tráfico de influência envolvendo vários milhões de dólares.”
Faltou registrar o caso do Brasil onde a privatização, ocorrida no governo FHC, extremamente bem sucedida, veja-se nesta mesma página www.flc.org.br na seção “Documentos de interesse” foi virulentamente combatida pelo PT, tanto no ciclo de sua efetivação como ao longo dos oito anos de seu governo, neste último caso para lançar uma cortina de fumaça sobre o fato de que a interrupção levada a cabo tinha em vista colocar em seu lugar política de favorecimento de certos grupos empresariais, que se dispusessem a aceitar espécie de “estatização disfarçada”.
Parece-lhe que a preocupação em desvendar o que seria a “identidade” da América Latina “pretensão inútil, perigosa e impossível, pois a identidade é algo que diz respeito aos indivíduos e não às coletividades” tem servido para fomentar divisões artificiais e criar um clima favorável a pregações demagógicas. Na Bolívia, concretamente, a pretexto de restaurar a dignidade dos autóctones, estão sendo erodidas as instituições do governo democrático-representativo.
O autor da seleção, o escritor colombiano Carlos Granes, refere o fato de que Vargas Llosa haja flertado com a esquerda nos primeiros tempos e a contribuição de Fidel Castro no sentido de que abrisse os olhos à realidade. Essa revisão, escreve, adveio da “evidência de que Cuba não era a concretização de uma utopia, mas sim uma grande armadilha para escritores e opositores do regime”. Desde então, progressivamente, aproximou-se do liberalismo, convencendo-se de que fornecia sólidos fundamentos à aspiração à liberdade que acalentava. Presentemente, como se pode ver dos ensaios reunidos na parte 4, passou a figurar entre os principais representantes da doutrina liberal.
Por fim, cabe registrar que o autor detém-se no fenômeno da literatura latino-americana, que destoa do melancólico panorama que tem proporcionado no terreno político.


Mario Vargas Llosa
nasceu em Arequipa, Peru, em 1936. Viveu em Paris nos anos sessenta. Nesse mesmo período publicou seus primeiros romances. Seu rompimento completo com as “revoluções” que se propunham mudar radicalmente o quadro regional de subdesenvolvimento acha-se expresso em pronunciamento público de 1976. Passa a defender a via das urnas como o único meio legítimo de ascensão ao poder. Foi candidato à Presidência do Peru em 1990, sendo derrotado. Desde então, radicou-se na Espanha sem perder os vínculos com a sua terra natal.
Revista Liberdade e Cidadania

O ANO DO GALO. VERDADES SOBRE A CHINA e A ECONOMIA NÃO MENTE


Guy Sorman – O ANO DO GALO. VERDADES SOBRE A CHINA e A ECONOMIA NÃO MENTE. Tradução brasileira: São Paulo, Editora É Realizações, 2008

Antonio Paim
*

Guy Sorman, jornalista francês de grande nomeada, notadamente a partir da década de oitenta passou a abordar temas polêmicos que, ao contrário do que supunham os seus oponentes, serviram para aumentar a sua audiência, transformando-o numa referência. Estão nesse caso os livros The Conservative Revolution in América (1984) e Exit from Socialism (1990).

Para escrever Sair do socialismo, logo em seguida à queda do Muro de Berlim (novembro, 1989), Sorman entrevistou as principais lideranças emergentes no Leste.
As entrevistas, por si mesmas, evidenciavam as escassas possibilidades de que países como Rússia e Polônia viessem a constituir sistemas democráticos. Em primeiro lugar, com a única exceção da então denominada Tchecoslováquia, sequer tiveram no passado essa experiência.

Mesmo essa única exceção, não conseguiu estruturar um projeto democrático que lhe servisse de Norte. Começou fracionando-se. Eslováquia e República Tcheca formaram logo dois países. Na atualidade, a República Tcheca tem 26 partidos representados no Parlamento. Apesar de admitida na Comunidade Européia o que lhe assegurou a sobrevivência econômica elegeu para a Presidência oponente dessa decisão (pertencente ao grupo chamado de euro-cético) de que resultou tivesse a Comunidade ficado propensa a expulsa-la (o Presidente da Comissão Européia, órgão executivo da Comunidade, o português Durão Barroso, chamou publicamente o Presidente da Tchecoslováquia, Vaclav Klaus, de chantagista).

O desdobramento do quadro político nos outros países não é muito diferente. Na Rússia, os setenta anos de comunismo serviram sobretudo para reforçar a tradição despótica que a caracterizou ao longo de sua milenar história. De modo que, embora não se trate mais de aberto totalitarismo, o regime em vigor estruturou-se em bases autoritárias, de que a mídia tem fornecido freqüentes exemplos.

Nos antigos satélites, a situação não é muito diversa da vigente na Tchecoslováquia. O exemplo da Polônia ilustra bem a situação, por ser o país onde o sistema comunista foi derrubado, pacificamente, por movimento, popularizado com o nome de Solidariedade (graças à presença de Gorbachov no poder, na Rússia, garantia de não intervenção do Exército Vermelho, como se dera no passado, na Hungria). Nas primeiras eleições parlamentares livres (1991), concorreram mais de cem partidos, vinte e nove dos quais conseguiram pelo menos eleger um deputado. Esse quadro não se alterou no período subseqüente.

Em síntese, no Leste Europeu, decorridos mais de vinte anos da derrocada do comunismo, vigora, na maioria dos ex-satélites soviéticos, o que o conhecido estudioso italiano da política, Giovani Sartori, denominou de “pluralismo atomizado”, para indicar que impossibilita o funcionamento do sistema democrático-representativo, dependente dos partidos políticos. Tudo indica que a manutenção de eleições periódicas, e o aparente respeito às garantias constitucionais, sem que as violações redundem em sua eliminação, deve-se ao fato de que constitui condição de permanência na Comunidade Européia, a que foram admitidos.

Vista à distância, o resultado descrito parece fácil de ter sido percebido na época, o que não ocorreu. Sorman, que a previu, foi duramente criticado. Dava consistência à sua previsão o fato de que apontou a dificuldade com que iriam esbarrar: a ausência completa de lideranças liberais, isto é, de líderes políticos minimamente familiarizados com a teoria do governo representativo, que lhes tivesse proporcionado a consciência de sua complexidade e eventualmente o caminho a ser seguido na transição.

Os dois livros objeto desta resenha seguem a linha precedentemente esboçada: contrapor-se às simplificações popularizadas pelas “viúvas do comunismo” que ainda encontram audiência, sobretudo no seu país de origem, a França. Merecem que chamemos a atenção para a importância (e, de certa forma, a novidade, tendo em vista que, no particular, muito nos assemelhamos à França).

The Empire of Lies foi traduzido ao português com o título de O ano do Galo. Verdades sobre a China.

Sorman dispôs-se a escrever The Empire of Lies depois de sucessivas visitas àquele país e de haver ali permanecido durante dois anos inteiros (2005 e 2006). Nesse período, esteve em diferentes localidades, conseguindo identificar dissidentes, entrevista-los, como também a dirigentes comunistas. Do mesmo modo que com a publicação de Sair do socialismo, pretende que círculos intelectuais do Ocidente, notadamente da França, procurem enxergar a China com outros olhos. E, talvez, que as potencias ocidentais não persistam na tolerância às arbitrariedades ali cometidas, ou pelo menos, que suas lideranças não sejam surpreendidas quando os fatos para os quais adverte se tornem gritantes, como ocorreu com a antiga URSS.

A primeira ilusão em relação à China consiste na suposição, alardeada com certa insistência, de que, no fim de contas, o “capitalismo” acabará desembocando na democracia. Ignora-se a total ingerência do Partido Comunista na economia na suposição de que a prosperidade acarretada pelo desenvolvimento econômico conduzirá à democracia. Lembra que no próprio Sudeste Asiático há exemplos de que tal não acontece: Singapura.

Outra ilusão consiste na insistência de que a base cultural facultada pelo confucionismo conduzirá a passos efetivos na direção do ordenamento democrático, invocando o exemplo de Taiwan. Nesta ilha, insiste Sorman, o que há de singular é a convivência da tradição confucionista com o budismo, o catolicismo e o protestantismo. Assim, se o reordenamento em causa requer suportes culturais, à luz do exemplo seria proveniente do pluralismo, que não é tolerado na China, impondo-se a unanimidade em torno do Partido Comunista.

Outra crítica é dirigida ao confronto com a União Soviética, na tentativa de favorecer a China. Na verdade, os indícios que aponta permitem classificá-la como igualmente totalitária. O Prêmio Nobel da Paz facultado em 2010, ao dissidente Liu Xiaobo, sem dúvida, veio em favor da tese de Sorman. A feroz repressão contra manifestantes na Praça da Paz Celestial, ocorrida há cerca de duas décadas, evidencia a persistência dessa política.
A seu ver, o Ocidente tem manifestado uma crença desmedida nas estatísticas chinesas, esquecendo que a União Soviética as falsificava sem qualquer “má consciência”.

Cabe lembrar que o filósofo polonês Leszek Kolakowski (1927/2009) obrigado a abandonar seu país natal e acolhido pela Universidade inglesa de Oxford fundamentou a tese de que o suporte do comunismo, na prática do que chamou diretamente de Grande Mentira, provém de sua crença na hipótese de que “os fins justificam os meios”.
A crítica norte-americana recebeu favoravelmente as advertências de Sorman, ressaltando a consistência de sua base documental.

Quanto ao outro livro A economia não mente veio a ser editado em 2008, tanto na França como no caso da tradução brasileira. Consiste numa contribuição original à discussão ocorrida a propósito da crise financeira, surgida no ano anterior da edição, e que se acha em vias de superação. Preserva inteira atualidade, como espero demonstrar nas breves indicações adiante.

O ponto de partida diz respeito à constatação de que, segundo o comprovam os dados estatísticos, em apenas uma geração o crescimento econômico estendeu-se por todas as partes do planeta. O motor desse fenômeno denomina-se inovação. A experiência indica, também, que nem toda inovação será bem sucedida. Assim, a exemplo do que gera ou acelera crescimento, a economia progride por tentativa e erro. A pane que se tornara patente foi corretamente diagnosticada e programada a intervenção estatal para corrigi-la e não para restaurar o modelo anterior de minuciosa regulamentação, inibidora do que tem assegurado a difusão da prosperidade (denominado, como indicamos, de inovação).

Nessa altura, pergunta o autor: qual é a mensagem? E, responde: “Aprender com seus sucessos e erros, sem jamais renunciar a uma abordagem científica, sem jamais ceder nem à euforia nem ao pânico. O que de pior pode acontecer, em caso de crise, é renunciar aos conhecimentos adquiridos para recair nas paixões ideológicas”. Essas paixões, lembra, no século passado implicaram em “matança maior que qualquer epidemia”,
A comprovação da tese antes resumida começa pela demonstração dos notáveis avanços alcançados pela ciência econômica, possibilitando a melhor compreensão dos motores do crescimento. À luz dessa compreensão, Sorman empreende o balanço da globalização. Esse balanço é suficientemente abrangente para incluir não apenas os emergentes, como é de praxe, mas os continentes tradicionalmente retardatários e mesmo o Leste Europeu.

Igualmente inovadora é a análise do que denomina de declínio da Europa, isto é, o fato de que a criação da Comunidade não se tenha traduzido na disseminação do dinamismo apresentado pela Alemanha mas da contaminação do conjunto pelos “lanterninhas”. Acredita e irá tentar comprova-lo que corresponde a “fenômeno sem mistério” para os economistas. Como expositor de reconhecida competência, Sorman produz, também aqui, demonstração convincente do que afirma.

A conclusão central da obra acha-se formulada deste modo: a despeito das preferências políticas e das discórdias teóricas, a economia tornou-se uma ciência ancorada numa base de conhecimento e experiências incontestáveis. Sintetiza em dez teses o que conteria de consensual.


Guy Sorman
Nascido em Paris, em 1944, Guy Sorman é professor do Instituto de Ciência Política conhecido pela sigla em francês sciensepô e tem ministrado cursos em universidades norte-americanas, Stanford entre elas. Colabora regularmente nos principais jornais franceses, artigos transcritos em periódicos de diversos países. Tem publicado ensaios notáveis no site www.city-journal.org, mantido pelo Manhattan Institute for Political Research, sediado em New York. Seu último ensaio, dedicado ao Japão depois da última catástrofe natural, parte da tese de que “o país, com a classe de sempre, continuará sendo a principal potência asiática”.
Revista Liberdade e Cidadania

domingo, 4 de dezembro de 2011

Soldados da pátria: história do exército brasileiro 1889-1937




Frank D. McCann - Soldados da pátria: história do exército brasileiro 1889-1937

Marcos Poggi *

A leitura do minucioso trabalho de pesquisa histórica realizado pelo professor McCann, se não fica a impressão de que a história do “Brasil República” se confunde com a história do Exército Brasileiro, resta pelo menos a certeza de que o papel desempenhado pelo Exército a partir de 1889 foi decisivo na formação do país em que o Brasil se transformou. Em uma sociedade sem tradição ou memória republicana (Portugal, a pátria mãe, somente se tornaria uma República em 1910), e sem instituições consolidadas (o arcabouço institucional do Império foi desestruturado nos primórdios da República), após 1898, a única instituição nacional estruturada, à exceção dos partidos políticos, capaz de participar efetivamente do exercício do poder, era o Exército.

A influência da Marinha em parte afetada por sua conhecida tradição monarquista, segundo McCann, foi adicionalmente prejudicada pela rebelião de 1893 e pela revolta dos marinheiros em 1910. Naquelas circunstâncias, restou à força naval um papel coadjuvante no cenário político da República. Por seu turno, a Guarda Nacional, que era tida como concorrente do Exército, não se manteve e foi extinta.

A outra instituição estruturada em todo o país era a Igreja. Mas esta tinha um caráter internacional, carecendo, portanto, de algo que a pudesse classificar como uma entidade brasileira, credencial indispensável para qualificá-la para uma participação senão indireta e relativamente discreta da vida política do país.

A importância do Exército ao longo do período republicano pode ser inferida pelas inúmeras citações do autor, de que é exemplos a de a de Osvaldo Aranha: Tudo se relaciona com o Exército. De fato, apesar da impressão contrária reinante em muitas quadras da história republicana, não nos iludamos: a partir de 1898, tudo tem se relacionado com o Exército. No período pesquisado por McCann, que se encerra em 1937, o Exército esteve presente, e foi ator decisivo, em todos os capítulos importantes da História do Brasil, seja em função da forma como seus líderes usaram o Poder Civil , seja como aparentemente foram por este cooptados. É sobretudo notável conhecer (como ressaltado em artigo da American History Review) “como os oficiais (do Exército) lutaram entre si e fizeram alianças chaves com as lideranças civis para se tornar uma força tão influente”.

O fato é que o Exército foi protagonista de ponta em tudo de importante que aconteceu no Brasil no período estudado: no episódio do fechamento do Congresso por Deodoro em 1891; na Revolta da Armada em 1893, na Guerra Federalista do Rio Grande do Sul em 1894/1895; na Guerra de Canudos em 1896/1897; na Luta pelo Acre em 1903; na Revolta da Vacina em 1904; na Revolta da Chibata em 1910; na Guerra do Contestado de 1912 a 1915; nos Movimentos Tenentistas na década de 1920, em especial, nos levantes de 1922 e 1924, marcados pela francofobia dos revoltosos, e que tiveram como estopim as famosas cartas falsas de Arthur Bernardes com insultos a Hermes da Fonseca; na Revolução de 1930; no Levante Paulista de 1932; nas conspirações de 1934 e 1935; na Revolta Comunista de 1935; na repressão de 1936; e no mergulho da ditadura de Vargas em 1937. Parte desses e de outros episódios não citados fazem parte da meritória luta do Exército pela manutenção da unidade nacional e defesa de nossas fronteiras.

Um crítico mais rigoroso poderia ressalvar a aparente relativa parcimônia de McCann em relação aos fundamentos filosóficos e motivações ideológicas que estiveram na base do desempenho dos principais líderes do Exército. Como exemplo, as menções ao positivismo restringem-se ao reconhecimento de sua importância na época da Proclamação da República. E ao citar Francisco de Paula Cidade que afirmara que a influência do positivismo desaparecera do seio do Exército na segunda década da República, na verdade o autor faz caso omisso dos desdobramentos do sentimento jacobino nas décadas subseqüentes. A bem da verdade, McCann poderia ter aprofundado em algumas passagens as considerações sobre a importância dos fundamentos ideológicos que permearam o pensamento das principais lideranças do Exército. Sem embargo, há no livro menções a outras tendências no meio militar como a Conferência Vicentina, o marxismo, o nacionalismo de Alberto Torres, e o próprio movimento integralista.

Mas mesmo essa ressalva tem uma explicação no fato de que a pretensão de McCann não foi, em absoluto, a de proceder a uma análise profunda dos aspectos filosóficos subjacentes à atuação dos atores estudados. E, sim, com base em impressionante trabalho de pesquisa documental, trazer à tona as circunstâncias factuais em que se desenrolaram os principais fatos históricos desse período tão importante na formação da identidade nacional. Esta, a propósito, a linha típica de criação dos brasilianistas norte-americanos, que, aliás, tem suprido consideráveis lacunas de nossa historiografia.

A denominação Soldados da Pátria decorre da cultura gestada nos primórdios da República no seio do Exército, de que “a Pátria está acima da Constituição” e que, portanto, a lealdade deve ser devida em primeiro lugar á Pátria, e, depois, à Constituição. E graças a McCann, podemos compreender porque e como os soldados da pátria se tornaram também os senhores da República neste país.

O autor, Frank D. McCann é um conhecido brasilianista. Professor de História da Universidade de New Hampshire, e professor visitante da Universidade de Brasília, é autor de outros livros importantes relacionados à História Militar do Brasil como a A Nação Armada: Ensaios sobre a História do Exército Brasileiro (Guararapes, 1982) e Aliança Brasil- Estados Unidos, 1937 -1945 (Biblioteca do Exército Editora, 1995).

Marcos Poggi
Ex-oficial de Marinha (Corpo da Armada), bacharel em Ciências Navais, economista especializado em transportes, estudioso de História e Filosofia, ensaísta e escritor. Co-autor do livro Planejamento e gestão empresarial sob inflação, publicado pela Editora Campus; de dois romances (Equinócio e A senhora da casa do sono) editados pela 7 Letras; e de ensaios e artigos em obras coletivas. Colabora com frequência na imprensa brasileira (principalmente JB, O Globo e Jornal da Tarde)
Revista Política e Cidadânia

A tradição anglo-americana da liberdade


João Carlos Espada – A tradição anglo-americana da liberdade

Antonio Paim *

O prof. João Carlos Espada vem de reunir em livro o enunciado dos cursos que ministra, há vários anos, dedicados ao pensamento político contemporâneo, onde procura identificar a singularidade da tradição anglo-americana. Para ressaltar o significado, naquela tradição, da defesa da liberdade, começa com cinco autores que atuaram num período do século XX em que a democracia liberal atravessou seus momentos mais difíceis, isto é, os ciclos da Segunda Guerra e da guerra fria, que se seguiu. São estes: Karl Popper, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin, Michael Oakeshott e Leo Strauss. Em continuação, para desvendar as demais características, estão estudados Ralf Dahrendorf, Irving Kristol e Gertrude Himmelfarb, vindo na seqüência James Madison, Edmund Burke e Alexis de Tocqueville. São todos autores considerados relevantes no período histórico em causa, habitualmente estudados na ordem cronológica. O reordenamento do prof. Espada do mesmo modo que as omissões explicam-se porque se trata da identificação da mencionada singularidade, razão pela qual coroa-se com Winston Churchill.

O princípio norteador do reordenamento adotado no curso do prof. Espada repousa na admissão da existência de culturas políticas sedimentadas pela tradição. Esclarece: “Por cultura política não pretendo designar nenhuma doutrina política particular, como socialismo, liberalismo ou conservadorismo. Também não me refiro ao ideário específico da chamada esquerda, ou da chamada direita, nem mesmo do chamado centro. Por cultura política pretendo designar algo que serve de base a essas divisões: algo que talvez pudéssemos designar como o idioma político ou as categorias conceptuais que fornecem as referências comuns ou o pano de fundo no qual rivalizam as famílias políticas.” Na verdade, tem em vista tradições culturais tout-court, que informam não apenas a vida política. Não se trata simplesmente de algo cuja presença se limitasse à vida política expressa na obra dos que ao tema se dedicaram, porquanto extravasa esse contexto.

O objetivo que o prof. Espada tem em vista consiste em estabelecer contraponto entre as culturas inglesa e francesa. Essa diferenciação será iluminada pelo entendimento que revelam em face de três conceitos, que se são chaves para a análise (ou o comportamento político) não se revelam apenas nesse plano. Seriam: revolução, ordem social e liberdade.

Prosseguindo, dirá que enquanto a cultura francesa tem na mais alta conta a idéia de revolução, o termo raramente é utilizado pelos ingleses e quando tal se dá terá conotação negativa. Dizendo-o com suas palavras: “Em França, fala-se de revolução como sinônimo de progresso: revolução no conhecimento científico, revolução nas artes, na tecnologia, na economia. É mesmo provável que o termo Revolução Industrial, inicialmente aplicado na Inglaterra, seja de origem francesa. Na verdade não houve nenhuma “revolução industrial” na Inglaterra: houve apenas um longo processo de modernização econômica, tecnológica e social que deu origem ao que chamamos sociedade industrial. Mas essa transformação foi apenas um agregado de inumeráveis transformações graduais, descentralizadas e não centralmente dirigidas, cuja gênese pode aliás nem ter estado na chamada burguesia, mas na própria aristocracia que iniciou a intensificação da exploração agrícola.” Portanto, a diferenciação não se circunscreve à política.

Passemos ao segundo conceito-chave (ordem social). Escreve: “Na tradição francesa, quando se pensa em ordem social, pensa-se numa ordem que alguém terá organizado: um sábio legislador, um grupo fundador, enfim, alguém ou algum grupo que organizou alguma coisa com um propósito determinado. Na tradição de língua inglesa, pelo contrário, a idéia de ordem social, de instituição social, não está necessariamente associada ao desígnio central de ninguém. Nesta tradição, é freqüente recordar que algumas das mais indispensáveis instituições sociais não foram centralmente desenhadas, simplesmente emergiram como resultado da interação.” E, mais adiante: “Na tradição francesa, apropiadamente também chamada de cartesiana, é difícil aceitar ou conceber que uma ordem social possa funcionar melhor sem ser centralmente dirigida, ou minuciosamente regulada.”

No caso do terceiro conceito, de liberdade, o prof. Espada fará um confronto entre dois pensadores políticos: Isaiah Berlin e Rousseau. Reconhece que a idéia de liberdade negativa (“usufruto de um modo de vida pacífico sem intromissão de terceiros”), preconizada pelo primeiro, pode induzir à complacência com modos de vida desviantes, ou excêntricos, ainda que mereça conotação positiva na cultura inglesa. Acrescentando: “mas tem uma enorme vantagem política: resiste a qualquer tentativa autoritária de obrigar os homens a serem livres, para usar uma famosa expressão de Jean-Jacques Rousseau. Na cultura política inglesa, esta expressão não faz sentido.”

O sentido da proposição do prof. Espada acha-se claramente expresso ao associa-la ao que Max Weber denominou de “tipos ideais”. Assim, parece adequado transcrever integralmente tal esclarecimento: “Não pretendo por isso subsumir toda a riqueza de cada uma daquelas culturas políticas nos traços vincados que vou utilizar. Pela mesma razão não pretendo que todas as características da cultura política inglesa, ou anglo-americana, sejam positivas nem que todas as da cultura francesa sejam negativas. Em boa verdade, como observou o meu querido amigo Seymour Martin Lipset, recentemente falecido, seria possível encontrar contrapartidas negativas para quase todos os traços positivos da cultura política anglo-americana. Se ela tem, no entanto, uma vantagem conclusiva, esta reside na recusa da utopia e no reconhecimento da imperfeição inerente a todo empreendimento humano. Gostaria por isso que o meu argumento, certamente elogioso para a cultura política anglo-americana, fosse interpretado no quadro falibilista que tanto ajudou a fomentar.”

A exposição toma por base as obras relacionadas aos temas estudados; no caso de Popper, por exemplo A sociedade aberta e seus inimigos; de Hayek, A Constituição da liberdade e assim por diante, buscando também familiarizar os alunos com a bibliografia que lhes haja sido dedicada.

Tradição anglo-americana da liberdade constitui forma original e criativa de aproximação ao pensamento político contemporâneo. Professores e alunos dos centros universitários dedicados à ciência política muito se beneficiariam dessa revisita ao grupo de pensadores estudados. A par disto, João Carlos Espada não é um desconhecido nesses círculos na medida em que tem freqüentado seminários em nosso país, além de que o Instituto Tancredo Neves dedicou-se um dos Cadernos Liberais (nº 10.Direitos sociais de cidadania. Brasília, 2000).

João Carlos Espada concluiu doutorado em ciência política na Universidade de Oxford, Inglaterra (1994), tendo em seguida atuado como professor visitante nas Universidades norte-americanas de Brown e Stanford (anos letivos 1994/96 e 1995/96), após o que foi convidado para organizar o Instituto de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa, que dirige, desde então. Autor de extensa bibliografia.

Antonio Paim
Concluiu sua formação acadêmica na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, iniciando carreira acadêmica na década de sessenta, na então denominada Faculdade Nacional de Filosofia, tendo pertencido igualmente a outras universidades. Aposentou-se em 1989, como professor titular e livre docente. Desde então, integra a assessoria do Instituto Tancredo Neves, que passou a denominar-se Fundação Liberdade e Cidadania. É autor de diversas obras relacionadas à filosofia geral, à filosofia brasileira e à filosofia política.
Revista Política e Cidadânia

O Antigo Regime e a Revolução


Alexis de Tocqueville - O Antigo Regime e a Revolução

Ricardo Vélez Rodriguez *

Tradução de Rosemary C. Abílio.
São Paulo: Martins Fontes, 2009, 286 p.

A Editora Martins Fontes vem de acrescentar, ao seu valioso Catálogo de obras clássicas, O Antigo Regime e a Revolução, de Alexis de Tocqueville (1805/1859), aparecido em 1856. Precedentemente, com a publicação de A democracia na América, em 1835, Tocqueville havia logrado notável sucesso na recuperação do ideal democrático. A democracia fora associada à anarquia --e à correlata instabilidade política-- instaurada pela Revolução Francesa. O livro viera comprovar que não se vinculava à instauração do governo representativo mas às elocubrações de Rousseau, durante muito tempo batizadas de “liberalismo radical”. Somente em período recente encontrou-se denominação adequada, posto que não guarda qualquer vínculo com a doutrina liberal. Presentemente, tornou-se conhecido como democratismo. Essa distinção ficaria muito nítida depois da Revolução de 1848 na França, na medida em que já se dispunha de termo de comparação. A Revolução de 1830 introduzira, em caráter pioneiro no país, instituições liberais. Entre outras coisas, o confronto iria evidenciar que o democratismo continuava atuante, preservada a sua capacidade demolidora.

Tocqueville parte do registro de que, em 1789, os franceses se propuseram cortar em dois o seu destino. Imaginavam poder separar por um abismo o que haviam sido até então do que queriam ser daí em diante. Pessoalmente acreditava que tiveram menos sucesso do que imaginavam. A fim de testar essa hipótese, era mister “interrogar em seu túmulo uma França que não existe mais” e tentar reconstituir, com base na documentação preservada, os traços essenciais do Antigo Regime. Descreve as dificuldades encontradas nessa investigação e resume os principais resultados.

“O que é válido dizer --escreve-- é que destruiu inteiramente ou está destruindo (pois perdura) tudo o que na antiga sociedade decorria das instituições aristocráticas e feudais, tudo o que de algum modo se ligava a elas, tudo o que trazia delas, em qualquer grau que fosse, a menor marca. Conservou do antigo mundo apenas o que fora alheio a essas instituições ou podia existir sem elas. O que a Revolução foi menos que tudo é um acontecimento fortuito. Pegou o mundo de surpresa, é bem verdade, e entretanto era apenas o complemento do mais longo trabalho, o encerramento súbito e violento de uma obra na qual dez gerações de homens haviam trabalhado. Se não tivesse acontecido, o velho edifício social não teria deixado de cair em todo lugar, aqui mais cedo, ali mais tarde; apenas teria continuado a cair parte por parte em vez de desmoronar de uma só vez. A Revolução concluiu bruscamente, por um impulso convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem complacência, o que teria se encerrado pouco a pouco, por si mesmo ao longo do tempo. Essa foi a sua obra.” (ed. cit., pág. 25)
Na pesquisa que empreendeu, Tocqueville deu preferência à consulta direta a registros da atuação administrativa da época. Assim, por exemplo, consultou as atas das assembléias dos “estados” em que eram subdivididos os grupos sociais: nobreza, clero e “terceiro estado”, isto é, habitantes dos burgos --núcleos que, em muitos casos, depois deram origem às cidades--, entre os quais sobressaíam os comerciantes.

Basicamente, O Antigo Regime e a Revolução viria comprovar que esta última vinculava-se a arraigada tradição francesa: o fenômeno do centralismo cartorial, traço marcante da política francesa no século XVIII. Ao contrário do que se alardeava, a Revolução não se fizera para debilitar o poder político.
O registro da tradição acha-se expresso com as seguintes palavras: "Um estrangeiro, ao quem fossem entregues hoje todas as correspondências confidenciais que enchem os arquivos do Ministério do Interior e das administrações departamentais logo ficaria sabendo mais sobre nós do que nós mesmos. Como se verá ao ler este livro, o século XVIII, a administração pública já era muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa. Estava incessantemente auxiliando, impedindo, permitindo. Tinha muito a prometer, muito a dar. Já influía de mil maneiras, não apenas na condução geral dos assuntos públicos, mas também na sorte das famílias e na vida privada de cada homem. Ademais, era sem publicidade, o que os levava a não terem receio de expor a seus olhos até as fraquezas mais secretas". (ed. cit.; Prefácio, pág. XLIII)

Tocqueville chamava a atenção para o efeito político que esse centralismo causava na sociedade francesa: o despotismo. O centralismo tirava da sociedade a sua iniciativa e a transformava em eterno menor de idade perante o Estado todo-poderoso. O grande mal causado à França pelo centralismo era antigo, no sentir de Tocqueville. A substituição paulatina do velho direito consuetudinário germânico pelo direito romano situava-se nas origens de todos os males, e era como que a fonte jurídica legitimadora do processo centralizador, que se alastrou depois a todos os aspectos da vida social. O despotismo é, na sua essência, centralizador.

O processo de substituição do direito consuetudinário pelo direito romano acha-se minuciosamente documentado na obra em apreço. Inicialmente ocorrido na Alemanha, generalizou-se pela Europa afora, ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, quando do surgimento dos Estados nacionais. O efeito prático da obra dos jurisconsultos a serviço das nascentes monarquias modernas foi a consolidação de Estados absolutos, mais fortes do que a sociedade, sobranceiros a ela e dela sugando tudo, até a liberdade de associação e a livre iniciativa. Essa é a alma despótica do Ancien Régime, que animava as novas práticas administrativas. Em relação a esse ponto, frisa Tocqueville: "O que já caracteriza a administração na França é o ódio violento que lhe inspiram indistintamente todos aqueles, nobres ou burgueses, que queiram ocupar-se de assuntos públicos sem ela. O menor corpo independente que pareça pretender formar-se sem seu concurso amedronta-a; a menor associação livre, qualquer que seja o objetivo, importuna-a; deixa subsistirem apenas as que compôs arbitrariamente e que preside. Mesmo as grandes companhias industriais pouco lhe agradam; resumindo, não pretende que os cidadãos se intrometam de nenhum modo que seja nos exames de seus próprios assuntos; prefere a esterilidade à concorrência. Mas, como é preciso sempre deixar aos franceses a doçura de um pouco de licença, a fim de consola-los de sua servidão,o governo permite que se discuta muito livremente toda espécie de teorias gerais e abstratas em matéria de religião, filosofia, moral e mesmo política. Admite de bom grado que ataquem os princípios fundamentais em que se assenta então a sociedade e que discutam até mesmo Deus, contanto que não falem mal nem sequer de seus menores agentes. Acha que isto não lhes diz respeito".(trad. citada, págs. 72-73)

O que Tocqueville afirmava do centralismo despótico, aplicava-se, em primeiro lugar, à França revolucionária. Em que pese o fato das juras libertárias dos jacobinos, no entanto a Revolução terminou sendo deglutida pelos velhos hábitos centralizadores e despóticos. O nosso autor cita, para confirmar essa apreciação, as palavras que Mirabeau escrevia secretamente ao rei, menos de um ano depois de ter eclodido a Revolução: "Comparai o novo estado das coisas com o Antigo Regime; é aí que nascem as consolações e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembléia Nacional, e é a mais considerável, é evidentemente favorável ao governo monárquico. Então não é nada estar sem parlamento, sem pays d´états, sem corpo de clero, de privilegiados, de nobreza? A idéia de formar apenas uma única classe de cidadãos teria agradado a Richelieu: esta superfície uniforme facilita o exercício do poder. Vários reinados de um governo absoluto não teriam feito tanto pela autoridade régia, quanto esse único ano de Revolução.” (trad. cit., pág. 11)
Arguto observador do fenômeno revolucionário, Tocqueville comenta as palavras de Mirabeau, destacando o caráter cosmético da Revolução de 1789, no que tange ao despotismo centralizador. O processo revolucionário fez ruir um governo e um reino, mas sobre as suas cinzas ergueu um Estado muito mais poderoso que o anterior.

Os breves comentários precedentes permitem situar o significado da contribuição de Tocqueville no entendimento da direção central seguida pela Revolução Francesa. Atrelada assim à diretriz norteadora do Estado Moderno --substituir a descentralização feudal pelo centralismo monárquico--, graças à influência dos “philosophes”, Rousseau á frente, abriu uma senda distanciada do que efetivamente de novo trouxera a Revolução Gloriosa inglesa: o governo representativo, que, progressivamente, iria incorporar o ideal democrático. Na preservação, deste, no continente, seria igualmente decisiva a contribuição de Alexis de Tocqueville.

Ricardo Vélez Rodriguez
Colombiano naturalizado brasileiro, concluiu mestrado e doutorado entre nós. Presentemente, é professor adjunto na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Tornou-se um dos principais estudiosos do pensamento político brasileiro, sendo autor de numerosa bibliografia. A par disto, preserva interesse no estudo da cultura latino-americana.
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Revista Política e Cidadânia

O pensamento político de Campos Sales



Arsênio Eduardo Corrêa – O pensamento político de Campos Sales

Ricardo Vélez Rodriguez *

Londrina; Edições Humanidades, 2009, 126 p.

O autor, Dr. Arsênio Eduardo Corrêa, brilhante advogado paulista, é membro do Instituto de Humanidades. A obra constitui importante contribuição para o melhor conhecimento da forma em que se deu o início da denominada “política dos governadores” posta em execução por Campos Sales (1841-1913), quando da sua passagem pela Presidência da República (entre 1898 e 1902).

Arsênio Corrêa dividiu a sua obra em quatro partes: I – Campos Sales e a implantação do modelo político adotado na República Velha. II – Na vazante da “maré cheia liberal” emergem correntes autoritárias. III – O pensamento político de Campos Sales. IV – Epílogo.

O autor destaca que duas foram as marcas registradas dos três primeiros governos republicanos (presididos sucessivamente por Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais): instabilidade crescente e autoritarismo. Tal circunstância decorreu da ruptura ensejada com a queda do Império e o abandono das instituições do governo representativo no novo ciclo histórico. “A opção por uma república federativa, nos moldes americanos, – frisa o autor – levou o governo a adotar a teoria da descentralização. Portanto de uma prática organizacional de mais de meio século (...), saltamos no escuro para uma nova organização política e administrativa” [pg. 16].

Como ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Sales tentou dar estabilidade à administração (presidida pelo velho Marechal Deodoro, bastante doente), mediante a tese da responsabilidade compartilhada do Chefe do Executivo e os seus ministros, nos atos de governo. No mandato de Prudente de Morais, que seguiu ao bonapartista governo de Floriano Peixoto, a instabilidade aumentou, na medida em que o Presidente da República ficou refém do Partido Republicano Federal, sendo que o chefe deste, nas palavras de José Maria Belo, tornou-se “uma espécie de condestável da República” [pg. 28].

As instituições republicanas, no Brasil, passaram a sofrer das mesmas contradições que enfrentou a Terceira República francesa: acirrada disputa entre o Executivo e o Parlamento, como destacava José Maria Belo: “O poder do Congresso e o poder do Presidente da República harmonizavam-se apenas nos artigos constitucionais; na realidade, não se entenderiam nunca” [História da República, 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 151].

A “política dos governadores”, posta em execução por Campos Sales ao longo do seu mandato presidencial (1898-1902), foi a resposta dada pelo mandatário a essa crônica instabilidade. Antônio Paim sintetizou assim a essência daquela: “A peça-chave dessa política consistia em delegar à Mesa da Câmara, composta pela Chefia do Executivo, a atribuição de reconhecer os diplomas dos parlamentares. Às eleições concretas se substituía a ata da apuração, confeccionada na Capital da República a partir do único critério de assegurar maioria sólida ao governo, sem maiores compromissos com o evento real. Viu-se então representantes eleitos que perdiam seus votos na confecção da ata e toda sorte de chicana. Tudo isto mediante simples arranjo no Regimento da Câmara dos Deputados, intocada a Constituição” [A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 62].

Arsênio Corrêa caracterizou a “política dos governadores” como um expediente pragmático do governo para garantir a unidade política e a estabilidade, sem intervir direto nos Estados, mas manipulando o mecanismo de legitimação das eleições, privilegiando os interesses do Executivo e do Partido Republicano, ao seu serviço. Eis a caracterização efetivada pelo autor: “A política dos governadores foi, portanto, a unidade política estabelecida por Campos Sales, que pressupunha a não intervenção nos Estados. Isso trouxe a perda de importância das eleições, consolidando as situações estaduais, cuja legitimidade era equivalente à da União.

É forçoso reconhecer que assegurou estabilidade política. Naturalmente, às custas da legitimidade da representação, vale dizer, do abandono do espírito que presidiu à estruturação das instituições de tal governo, no Segundo Reinado. Ali, o foco estava na determinação dos interesses que deveriam ser representados. E, subseqüentemente, a avaliação sucessiva da capacidade respectiva de assegurar-lhe legitimidade. Agora o foco mudava completamente de direção: assegurar o livre exercício do poder, excluída a possibilidade de negociação fora dos círculos que tivessem comprovado sua fidelidade ao sistema republicano. Somente o Partido Republicano tinha autorização de funcionamento e, portanto, de participar dos pleitos em que era admitida a disputa” [pg. 61].

O efeito produzido pelo arranjo autoritário foi a desvalorização da representação e a instabilidade, que conduziriam diretamente à adoção, mais adiante, do modelo de ditadura republicana criado por Castilhos no Rio Grande do Sul. O autor ilustrou esses aspectos negativos da seguinte forma: “Os efeitos das novas regras estabelecidas no Regimento Interno da Câmara revelaram-se devastadores. A primeira vez em que se deu sua aplicação, em 1900, sob Campos Sales, (com a atuação da) Comissão instituída a partir da Mesa Cessante, deixaram de ser reconhecidos 74 mandatos, cerca de 35% do total (o Parlamento se compunha de 212 representantes). O caso extremo deu-se na Câmara eleita em 1912: 91 mandatos deixaram de ser reconhecidos, 43% do total. Criou-se, assim, uma falsa estabilidade, na medida em que exigia fosse desfigurada a representação. Ainda que a Constituição fosse mantida e submetidos ao Parlamento os freqüentes estados de sítio, a providência tornou-se a ante-sala do longo ciclo autoritário vivido pela República brasileira” [p. 61].

A formulação da “política dos governadores” por Campos Sales alicerçava-se no democratismo rousseauniano, de que o mencionado homem público era tributário, como, aliás, a geração de jovens bacharéis formados no Largo de São Francisco, na segunda metade do século XIX. Segundo Arsênio Corrêa, Campos Sales deixou-se seduzir pelo ideal do caudilhismo militar em que era muito rica a tradição política hispano-americana, claramente professado por Quintino Bocaiúva, um dos mais atuantes propagandistas das idéias republicanas e que integrou, junto com Campos Sales, o primeiro gabinete republicano. Com essa geração de bacharéis que chegavam à vida pública, salvo contadas exceções como o calejado liberal Rui Barbosa, passou a prevalecer, como marco teórico que daria vida às instituições republicanas, o democratismo rousseauniano, em substituição às idéias liberais de Locke, Constant de Rebecque, Guizot e Tocqueville, em que tinham se formatado as instituições imperiais. O abandono da questão da representação de interesses dos cidadãos era apenas o corolário dessa opção teórica.

À luz do espírito de Rousseau foi aclimatada, pela elite bacharelesca à cuja testa situou-se Campos Sales, a concepção que tinha vingado no século XIX, na França, nos ciclos do republicanismo bonapartista (1799-1804), do Primeiro Império (1804-1814), da Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870). Efetivamente, os dois Napoleões (tio e sobrinho) forjaram nova teoria da representação, inspirada no ideal da “vontade geral” do filósofo de Genebra, nos seguintes termos: 1) O governante (presidente eleito, primeiro cônsul ou imperador) é o verdadeiro representante da “vontade geral” da Nação. 2) Os corpos colegiados são legitimados, como representantes secundários da “vontade geral”, pelo primeiro mandatário. 3) As eleições são apenas mecanismos secundários para provisão dos corpos colegiados, que passarão a desempenhar apenas funções técnicas (elaborar o orçamento, por exemplo), sendo que toda a questão de legislar e governar cabe ao Executivo, ajudado pelo Conselho de Estado, que é integrado, basicamente, por técnicos escolhidos a dedo pelo primeiro mandatário. 4) Quando as eleições são praticadas para eleger os mandatários nos ciclos republicanos (como quando Luís Napoleão assumiu a Presidência da República, em 1848) legitimam um poder que não pode ter limites e que é republicano pelo fato de ter sido eleito.

A fim de situar esse modelo no contexto em que foi gerado, vale a pena analisar os seus aspectos fundamentais. Jacques Necker (1732-1804), ministro das Finanças de Luís XVI e pai de Madame de Staël (1766-1817), analisou detalhadamente a Constituição de 22 Frimário, ano VIII (1800), que sagrou um modelo de República autoritária, presidida pelos três Cônsules, sendo Bonaparte o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, 1977, p. 105-108]. O pai de Madame de Staël considerava que, não tendo sido estabelecida, nessa Constituição, uma verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade. A propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a atenção ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de Republicano, nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi confiada à Nação. No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente democráticas, mas também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação do Corpo Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus sacrifícios. Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela Nação. Vemos na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses comporem o Poder Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado nomeava Deputados às Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais importante de todas, foi substituída por uma ficção no novo código político da França. Concede-se ao Povo um direito de indicação que não significa nada para ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker, Dernières vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française par M. Necker, Paris: Bibliothèque de France, 1802, vol. I, p. 1-2].

Ora, nenhuma estabilidade institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de faz-de-conta, modelo da que, no final do século XIX, os Castilhistas instaurariam no Rio Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único poder verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: "Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação).

Uma fachada de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: O que há na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem" [Chevallier, ob. cit., p. 107].

A propósito dessa enorme encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é ao mesmo tempo motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado" [Necker, ob. cit., p. 4-5].
O modelo de representação previsto pela Constituição bonapartista do ano VIII constituía uma caricatura da prática do verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados para votar segundo as normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre uma população de mais de vinte milhões de Franceses), nos seus respectivos cantões indicariam as pessoas que, segundo o seu critério, pudessem desempenhar cargos públicos. Daí sairia uma massa de cinco mil homens aptos para receberem do Senado Conservador, formado à revelia da Nação, a responsabilidade de administrar a máquina do Estado. Seria uma representação às avessas, que personificaria os interesses de Bonaparte e da sua burocracia, deixando de lado os reais interesses dos cidadãos. "Essas listas de elegibilidade - frisava Necker [ob. cit., p. 10-11] - teriam pouca credibilidade, ao reduzir cinco milhões de homens a cinco mil, sem nenhuma das precauções que garantem ao menos um sentimento de interesse, um grau formal de atenção a essa grande ação política".

Este modelo de representação às avessas foi posto em prática, com grande sucesso, por Napoleão III, ao longo da Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870), com uma inovação: a prática corriqueira do plebiscito, a fim de dar um verniz de legitimidade democrática às decisões tomadas pelo dono do poder. Sabemos de que forma Napoleão III abusou dessa modalidade de governo, tipicamente ditatorial, fato que levou Victor Hugo a escrever: “Não, esse homem não raciocina; tem necessidades, tem caprichos, tem de os satisfazer. São vontades de ditador” [Napoleão – O pequeno. Tradução de Márcia Aguiar, São Paulo: Ensaio, 1996, p. 108]. Quando a oposição questionava a legitimidade do Presidente-ditador e, após 1852, do Imperador, este lembrava que tinha sido eleito em 1848 como Presidente com 5,5 milhões de votos e que dois plebiscitos com mais de 95% dos votos legitimaram a sua auto-nomeação, primeiro como Cônsul (em dezembro de 1851) e logo como Imperador (em novembro de 1852).

Que o modelo de pseudo-representação rousseauniana posto em marcha por Napoleão Bonaparte e pelo seu sobrinho Luís Napoleão ainda está vigente, o provam as atuais circunstâncias dos populismos latino-americanos. Fazem uso e abuso do mecanismo da re-eleição e do plebiscito na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na dança do tango-populista pelo casal Kirschner, na Argentina, e nas pretensões de terceiro mandato presidencial na Colômbia e no Brasil. Isso para não falar na arquiditadura cubana, velha de meio século. Vida longa para o despotismo republicano e para o modelo reacionário de legitimação que foi posto em prática por Campos Sales no Brasil, na virada do século XIX para o XX!

Ricardo Vélez Rodriguez
Colombiano naturalizado brasileiro, concluiu mestrado e doutorado entre nós. Presentemente, é professor adjunto na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Tornou-se um dos principais estudiosos do pensamento político brasileiro, sendo autor de numerosa bibliografia. A par disto, preserva interesse no estudo da cultura latino-americana.
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Guiseppe Vacca - Por um novo reformismo



Guiseppe Vacca - Por um novo reformismo

Leonardo Prota *
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2009

Guiseppe Vacca é um dos artífices da transformação do Partido Comunista Italiano (PCI) em Partito della Sinistra Democrática (PSD), criado em 1991. É autor de extensa bibliografia e reconhecido como um dos principais teóricos da esquerda italiana.

O PCI distinguia-se das organizações congêneres por associar-se à interpretação do marxismo nascida no que o grande filósofo italiano Rodolfo Mondolfo (1877/1976) iria denominar de “clima ocidental de cultura”. Assim, de modo crescente recusaria os dogmas da versão soviética (tomada violenta do poder; repúdio à democracia representativa; negação de qualquer validade à filosofia contemporânea e, sobretudo, o anti-clericalismo). Deste modo, corresponde a uma espécie de desdobramento natural o fato de que, com o fim da União Soviética, buscasse aproximar-se da social democracia européia. Não por acaso o novo partido adota sigla similar à maioria das agremiações socialistas, a começar do PSD Alemão.

Decorridos três lustros daquela iniciativa (criação do PSD), sua liderança empreende o balanço dessa experiência. A decisão de efetivá-la repousava na firme adesão à Comunidade Européia e ao modelo em que se estribava: fidelidade ao sistema democrático representativo; adesão à economia de mercado e preservação e aprimoramento dos institutos relacionados ao que se denominou de solidariedade.

Em que pese a clareza dessa opção, o PSD italiano não conseguiu tornar-se uma alternativa de governo, a exemplo do que se vinha consolidando no seio da Comunidade Européia. Progressivamente, em número cada vez maior de países integrantes, o modelo político emergente singularizava-se por repousar na alternância no poder de liberais conservadores e sociais democratas. Em contrapartida, no cenário italiano os governos afeiçoados à postura social democrata não se firmaram.

O PSD havia chegado ao poder mas não conseguira estruturar base governamental capaz de liderar as reformas que complementassem a integração da Itália à Comunidade Européia. Resumidamente, era preciso torná-lo confiável para liderar as forças que deverão integrar o pólo alternativo.

Decidida a perseguir tal posição, a liderança decidiu dissolver o PSD e, para substituí-lo, criou, em 1907, o Partido Democrático. A decisão em apreço estriba-se no que Guiseppe Vacca iria denominar de novo reformismo. Os ensaios reunidos na obra de que ora nos ocupamos versam precisamente sobre esse aspecto.

O processo segundo o qual o desenvolvimento do capitalismo no século XX proporcionou razoável distribuição de renda --e substancial elevação do padrão de vida dos trabalhadores-- é examinado pelo autor do ponto de vista da social democracia. O afiançamento desta, após a Segunda Guerra teria demonstrado, como diz, que aquela corrente soube enfrentar “a contradição entre interesses de classe e responsabilidade nacional, entre justiça social e racionalidade econômica”.

Os governos socialistas atuaram no sentido de criar o Estado Social sem asfixiar a livre iniciativa. E, mais, quando a crise dos anos setenta o exigiu, os sociais democratas reconheceram haver pecado por excesso de estatismo, contribuindo no sentido de proceder-se à imprescindível adaptação requerida “pela passagem da economia mista ao Estado Regulador” (a frase é do autor).

Guiseppe Vacca atribui a maior relevância ao Tratado de Maastricht (1991) que entende ter dado início à construção da união política européia e lançou as bases da unificação do velho continente. Afirma que o objetivo prioritário europeu, com o surgimento da moeda única, passou a consistir no estabelecimento do espaço econômico indispensável para enfrentar os desafios da competição global. Numa palavra, trata-se, desde então, de transformar a Europa em novo ator político global.

Escreve: “A Itália das desvalorizações, da dupla dívida (pública e externa), da inflação de dois dígitos e do exorbitante déficit orçamentário não era compatível com a mudança representada pela integração européia. Malgrado isto, nas eleições políticas de 1992, os partidos de governo não deram nenhum sinal de querer alterar a rota, continuando a pedir votos para proteger a Itália dos riscos da instabilidade.

Por sua vez, o PSD mostrava desconhecimento do vínculo externo gerado pelo Tratado de Maastricht e limitava-se a pedir votos para mandar para casa a coalizão pentapartidária, sem introduzir inovações significativas nem na análise do país nem no Programa. Para o PSD foi uma derrota contundente, uma vez que ficou aquém dos l7%.” ( pág. 229).

Em síntese, para o autor, embora admitido na Internacional Socialista e tendo participado da fundação do Partido Socialista Europeu, o PSD não se tornara do dia para a noite num partido social democrata de tipo europeu.

O relevante na análise de Guiseppe Vacca reside no fato de que não cogita apenas de repetir o tipo de reformismo que levou os sociais democratas europeus a participar do ciclo de prosperidade econômica do pós-guerra, batizado pelos franceses de “os trinta anos gloriosos”. Agora encontrava-se diante de novo marco.

Usando sua própria expressão: “a visão do interesse nacional tornou-se parte integrante da percepção do interesse comum europeu.”

Guiseppe Vacca constata que a direita assimilou adequadamente o novo quadro. Afirma: “apresenta-se como partido inteiramente conforme o Partido Popular Europeu (PPE), não é mais eurocéptico, coloca de lado o individualismo e o liberalismo extremados que caracterizavam a Força Itália, adota a “economia social de mercado”, defende o “modelo social europeu” e apóia a unificação política da Europa. Deste modo, a configuração da direita mudou consideravelmente”.
No entender do autor, criado em 2007, o Partido Democrático precisa assimilar o novo paradigma decorrente do projeto de construção européia. O reformismo passa a ter escala continental. Esta a novidade em torno da qual se desenvolve a teoria constante do livro que comentamos.

A construção européia corresponde à experiência política mais relevante de nosso tempo. Configura nova modalidade de exercício do poder pela alternância das duas correntes políticas que se tornaram as mais relevantes: o conservadorismo liberal, --expresso pela moderação consubstanciada na atuação do Partido Popular Europeu (PPE)-- e a social democracia. Por um novo reformismo ajuda-nos a compreender o significado desse processo, à luz da vivência de um país com o qual o Brasil guarda estreitos vínculos.

Leonardo Prota
Nasceu na Itália, naturalizando-se brasileiro. Basicamente desenvolveu extensa obra educacional no Norte do Paraná, nos três níveis de ensino, jubilando-se como professor titular da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pioneiro na organização do ensino de informática em nível superior. Encontrando-se entre os fundadores do Instituto de Humanidades, atua como seu diretor executivo (www.institutodehumanidades.com.br)
Revista Política e Cidadânia

Governando o Governo: modernização da administração pública no Brasil


João Paulo Peixoto (Org.) – Governando o Governo: modernização da administração pública no Brasil

Paulo César Nascimento *

A presença do Estado na vida do cidadão e na sociedade em geral tem sido um tema recorrente nas diversas disciplinas que constituem as ciências sociais, como a economia, a ciência política, a administração pública e a sociologia, para citar algumas delas. E, a partir de uma série de fenômenos mundiais recentes – a derrocada do socialismo no leste europeu, as reformas em curso na República Popular da China, a aceleração dos processos de globalização e as periódicas crises financeiras mundiais -, a discussão sobre as funções do Estado nas sociedades contemporâneas tem gerado novas polêmicas, colocando em xeque antigos paradigmas.

É nesse contexto que a coletânea de textos organizada pelo professor João Paulo Peixoto, cientista político da Universidade de Brasília – Governando o Governo: Modernização da Administração Pública no Brasil, publicada este ano (2008) pela editora Atlas de São Paulo -, não pode deixar de ser bem-vinda para o público leitor brasileiro. O livro, que reúne artigos de diversos estudiosos do Estado brasileiro e suas instituições, oferece um painel diversificado e ao mesmo tempo integrado da problemática das reformas do Estado no Brasil, das ideologias e paradigmas que têm informado este debate, bem como análises sobre as relações entre executivo e legislativo e a inserção do Brasil na arena internacional.

A primeira questão abordada no livro é o enigma de governos de esquerda no Brasil terem adotado políticas “neoliberais”, tema do artigo do prof. João Paulo Peixoto, “Statecraft no Brasil: Ideologia e Pragmatismo”. A partir dessa indagação, Peixoto discute ainda a validade da velha dicotomia Estado “máximo” versus Estado “mínimo”, que tradicionalmente tem animado as discussões entre esquerda e direita no Brasil e no resto do mundo.

Como explicar então que o social-democrata Fernando Henrique Cardoso, e Luis Inácio Lula da Silva, oriundo de uma esquerda ainda mais radical, adotaram em seus mandatos reformas estruturais de cunho liberal, voltadas para a transformação do Estado brasileiro, tais como privatizações de estatais ineficientes, corte de subsídios, ajuste fiscal, liberalização econômica e comercial, etc.? No caso específico das privatizações, elas ocorreram no governo Fernando Henrique Cardoso, mas Lula não só não reverteu nenhuma delas, como já deu sinal verde, recentemente, para que o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, seja administrado por empresas privadas.

A resposta do autor inclui um painel sobre as mudanças no sistema mundial nas últimas décadas: a derrocada do chamado “socialismo real” e as reformas ora em curso na China são expressões do fracasso do planejamento estatal e do Estado-empresário. O mesmo se deu na América Latina com o Chile e a Argentina de Menem, países que empreenderam reformas de cunho liberal, sendo que o primeiro tornou-se um exemplo de sucesso econômico. Poderíamos ainda incluir nesse panorama mundial a corrente ideológica chamada de Terceira Via, desenvolvida pelo sociólogo Anthony Giddens e posta em prática pelo partido trabalhista britânico.

Basicamente, essa nova corrente abriu mão de uma série de postulados clássicos da social-democracia européia, enfatizando o mercado como fator fundamental de criação de riqueza e desenvolvimento. Em todos esses casos, fosse o toque inicial das reformas a política como na ex-URSS e na Argentina, ou a economia como na China e no Chile, o Estado intervencionista foi desafiado e reformas liberais colocadas em prática.

O professor João Paulo Peixoto, entretanto, não cai na armadilha, como o professor norte-americano Francis Fukuyiama o fez, de sugerir o Estado mínimo como alternativa definitiva para a futura história mundial: “Admitindo-se a hipótese de que um Estado estritamente não-intervencionista nunca existiu e provavelmente jamais existirá, o dilema recorrente não é mais saber se o Estado deve ou não intervir no setor econômico, mas passa a girar em torno de qual seja o escopo das ações estatais e os limites a se impor a elas” (Peixoto, João Paulo M., Governando o Governo: Modernização da Administração pública no Brasil, editora Atlas., São Paulo, 2008, p. 7).

Mas se cai a idéia de Estado Máximo ou Mínimo, vão por água abaixo igualmente as ideologias que a sustentavam. O Estado “necessário” não é nem o Estado “Máximo” da esquerda nem o Estado “Mínimo” dos fundamentalistas liberais. É fruto de uma visão pragmática da realidade, que exige que a função do Estado não seja empresarial, mas reguladora. Este é o novo paradigma a ser explorado, que segundo Peixoto difere-se de outras tentativas modernizantes levadas a cabo na história do Brasil, como o esforço getulista da década de 30 do século passado, e o regime militar de 1964, que apostaram em um Estado intervencionista capaz de promover a modernização do país.

A argumentação de Peixoto parece sugerir que o abandono do Estado intervencionista pelo Estado gerencial aconteceu pelo esgotamento da eficácia do primeiro, fenômeno aliás não só brasileiro como mundial. Existe, como lembra Peixoto, uma relação “pendular” de cunho mundial que faz os países inclinarem-se ora por um modelo intervencionista, ora por um modelo mais liberal. A década de 1960, por exemplo, pautou-se pela guerra fria, o que incentivou no Brasil um Estado autoritário intervencionista. Já nesta época pós-guerra fria em que vivemos, com a vitória do liberalismo, a opção pela modernização e por reformas do Estado acontece em um clima político de democracia, o que pode tornar as reformas mais lentas, porém imbuídas de maior legitimidade.

A realidade dessa forma retoma seus direitos, para além das ideologias tradicionais, e o pragmatismo, por sua vez, ganha corações e mentes não devido a qualquer superioridade intelectual, mas pela ausência de idéias novas à esquerda e direita. A eficiência, nesse sentido, precisa de demonstração prática, mais do que respaldo teórico.

Reformas estruturais são problemas de Estado, e não de governo, e por isso elas transcendem as ideologias e as disputas partidárias. Ainda assim, é razoável supor que a composição política de cada governo, e o grau de institucionalidade de cada país, influenciam a dinâmica das reformas. Este é o tema do artigo do Professor Antonio Carlos Pojo do Rego, “As Relações Executivo-Legislativo no Brasil Contemporâneo”, onde o autor mostra as especificidades da política brasileira embutidas no conceito de “presidencialismo de coalizão”. (O conceito “presidencialismo de coalizão” foi elaborado pelo professor do Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Sérgio Henrique Hudson de Abranches. Ver a esse respeito seu artigo “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, Dados, v. 31, nº1, 1988.).

O chamado “presidencialismo de coalizão”, como lembra o professor Antonio Carlos Pojo, baseando-se em Bolívar Lamounier, não chega a constituir-se em um tipo específico de presidencialismo, sendo na realidade uma forma de condução de política, empregada sempre que o presidente não dispõe de maioria nas duas casas legislativas, o que tem ocorrido desde a chamada “Nova República”. Trata-se, então, de uma relação entre os partidos e o executivo, em que o presidente, em troca de apoio político, cede aos partidos pastas ministeriais, de forma a obter maioria parlamentar.

Como Pojo observa, o “presidencialismo de coalizão” é a forma que o poder executivo no Brasil encontrou para realizar seu programa de governo e levar a cabo suas políticas públicas. Ele nasce a partir de deformações no sistema político brasileiro, tais como o sistema eleitoral proporcional com lista aberta e a fragmentação do sistema partidário. E, como em um círculo vicioso, gera suas próprias deformações, pois enfraquece o poder decisório do executivo e incentiva a desarmonia na ação governamental.

O “presidencialismo de coalizão” torna a autoridade do presidente sobre seu Ministério uma mera formalidade, já que os ministros indicados pelos partidos passam a manter uma relação mais próxima com as bancadas no Congresso do que com o chefe do executivo. Como conseqüência, as assessorias parlamentares dos Ministérios passam a desempenhar um papel crucial na determinação das políticas públicas, já que são responsáveis por boa parte do relacionamento entre o Congresso e o Executivo. São elas, como o professor Antonio Carlos Pojo assinala, que determinam “quem recebe o quê, quando e como”. (Pojo, Antonio Carlos, “As relações Executivo-Legislativo no Brasil Contemporâneo”, in Governando o Governo, op. cit., p. 42).

Além do clientelismo que o “presidencialismo de coalizão” incentiva, a falta de fidelidade partidária acaba por minar o já fraco controle dos partidos sobre seus representantes no Congresso, já que estes acabam determinando seus votos pelo atendimento de suas demandas específicas. O que, por sua vez, faz com que o Executivo empregue com mais freqüência o dispositivo das medidas provisórias de forma a desentravar sua agenda de políticas públicas.

Nesse contexto, como seria possível reformar o sistema político brasileiro? Pojo sugere que o sistema parlamentarista seria uma solução, já que o sistema de gabinete baseia-se em uma harmonia entre o executivo e o legislativo. Contudo, a sociedade brasileira não tem se manifestado a favor do parlamentarismo, o que torna difícil sua adoção no Brasil. Um Presidente popular poderia forçar reformas a partir da convocação de plebiscitos, mas como a história recente de vários países latino-americanos atesta, este é um mecanismo perigoso, pois é fácil de ser empregado para fins autoritários e anti-institucionais.

Reformar o Estado, dessa forma, exige uma compreensão minuciosa do que se quer reformar e de como realizar as reformas. Nesse sentido, o terceiro capítulo do livro, de autoria do professor Rogério F. Pinto – “As Reformas do Estado e o Paradigma da Nova Economia Institucional”, é importante porque como o título sugere, traz à tona a discussão sobre a fundamentação teórica das reformas do Estado. (Como o autor do artigo esclarece, a Nova Economia Institucional também é conhecida como Neo-Institucionalismo, paradigma desenvolvido pelo historiador Douglass North e o economista Oliver).

Segundo Rogério Pinto, A Nova Economia Institucional (NEI) analisa o Estado como um conjunto de organizações dos três poderes regidos pela institucionalidade fixada na constituição do país. Reformar o Estado, nesse sentido, significa alterar o quadro institucional , ou seja, o sistema de normas que define a forma como o país é governado. Alterações no quadro institucional, por sua vez, afetam inapelavelmente as organizações administrativas responsáveis pela operacionalidade do Estado, como um efeito em cadeia. (Rogério Pinto definiu bem as diferenças conceituais entre instituição e organização, utilizando a metáfora do futebol: suas regras seriam as instituições, e os clubes as organizações. Ver Governando o Governo, op. cit., p. 52.).

A instituição do mercado é central para a abordagem neoinstitucionalista, já que é ele que regula os incentivos de oferta e demanda de bens. Contudo, o Estado nessa perspectiva tem que garantir o direito de propriedade e respeitar os termos contratuais, para que os mecanismos de mercado funcionem a contento e com o mínimo de distorções possíveis.

A importância do enfoque neoinstitucionalista está em seu esforço para capturar a lógica das reformas do Estado. Estas têm que gerar instituições capazes de garantir o equilíbrio do mercado, incentivar o desenvolvimento, baixar os custos das transações comerciais e econômicas, bem como garantir a transparência das atividades públicas e a lisura das informações econômicas e políticas. A administração estatal, por sua vez, teria que reger-se por critérios orçamentários realistas, eficiência operacional e decisões democráticas.

Um fator influente na dinâmica das reformas, mencionado mas não desenvolvido no texto do professor Rogério, é o que Douglass North chama de path dependency ou precedência histórica. O quanto a cultura de um país, suas experiências históricas e tradição de institucionalidade podem incentivar ou constranger mudanças em políticas públicas e administração? O professor Paulo Roberto de Almeida, em seu artigo “Planejamento Econômico no Brasil: Uma Visão de Longo Prazo (1934 -2006)”, aborda este tema à sua maneira, quando analisa a tradição histórica brasileira de planejar a economia do país.

Como demonstra o professor Almeida, o Estado brasileiro tem uma longa experiência em planejamento de médio e longo prazos. Através de diferentes órgãos, como o BNDE, Ipea, Secretaria e Ministério do Planejamento, realizou-se um esforço a nível estratégico para atingir objetivos econômicos que pudessem desenvolver o país. Contudo, este macro planejamento, como mostra Paulo Roberto de Almeida, falhou em reduzir as enormes iniqüidades distributivas existentes ou proporcionar educação de qualidade para a população.

Pior ainda, problemas agudos da economia brasileira, tais como inflação e desajustes cambiais, fizeram com que o Estado brasileiro passasse a privilegiar medidas emergenciais de ajuste e estabilização macroeconômica, em detrimento de perspectivas estruturais de planejamento econômico.

Um assunto não abordado no artigo do prof. Almeida é o planejamento estratégico elaborado pelo setor privado. Que mudanças traria a expansão, nas empresas privadas, da utilização de métodos de gestão voltados para processos de médio e longo prazos? Um fortalecimento do papel da sociedade no planejamento econômico enfraqueceria a path dependency brasileira de privilegiar a gestão estatal?

E finalmente, não se pode falar de desenvolvimento econômico e modernização sem levar em conta o sistema internacional. Como o Brasil interage com outras nações é de capital importância para um país que tenta atrair investimentos ou empréstimos estrangeiros e expandir seu comércio internacional. O professor Eiiti Sato, diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, analisa a política exterior do Brasil em três momentos históricos: o pós- segunda guerra mundial, o período “castelista” do regime militar de 1964, ,e mais recentemente, com Fernando Henrique Cardoso, a aposta no multilateralismo. O que o professor Sato argumenta é que em todos esses momentos, o ajustamento do Brasil à ordem internacional não trouxe benefícios significativos ao país por uma incompatibilidade entre os objetivos brasileiros e as características de cada um desses momentos do sistema internacional.

Não que o professor Sato julgue errônea, por exemplo, a decisão do governo Erico Gaspar Dutra, em 1946, de se alinhar com os Estados Unidos. O Brasil estava se democratizando, tinha sido aliado dos Estados Unidos durante a guerra, e por isso nada mais lógico que esperasse tratamento privilegiado, em termos de investimentos, empréstimos e apoio político, da parte daquele país. Porém, a ordem internacional entrava no período da guerra fria, e as relações com o Brasil passaram a ser secundárias para os Estados Unidos. A idéia de desenvolvimento econômico e social através de parceria com os Estados Unidos não se materializou.

Da mesma forma, a reaproximação com os Estados Unidos encetada pelo primeiro governo militar, e reforçada com as tinturas ideológicas do combate ao comunismo, tinha como objetivo o acesso do Brasil a investimentos de instituições internacionais de fomento. Essa estratégia provocou um desenvolvimento dependente onde o país mostrou toda sua vulnerabilidade na crise de petróleo da década de 1970, acompanhada por forte endividamento externo.

Mais recentemente, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, o país voltou sua política externa para o multilateralismo, com a esperança de potencializar suas reivindicações através de instituições internacionais e regionais, somente para descobrir que os impasses tanto no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e na sucedânea Organização Mundial do Comércio, assim como a recusa dos Estados Unidos em aderir ao tratado de Kioto, ou a falta de entusiasmo das principais potências com a reivindicação do Brasil de ocupar um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, eram manifestações de que a velha política do poder informava a postura das potências mundiais nos foros e organismos internacionais.

A sugestão do professor Sato é que o paradigma realista está muito vivo nas relações internacionais, e a política externa brasileira tem que ficar atenta para esse fato.

Governando a Governança vem enfim enriquecer os estudos sobre reformas do Estado, administração e políticas públicas no Brasil. Os insights dos autores sobre temas tão diversos como a adoção do pragmatismo reformista por correntes ideológicas de esquerda, a dinâmica das relações executivo-legislativo, o paradigma do neoinstitucionalismo, a tradição brasileira de planejamento econômico, e os dilemas da política exterior brasileira, fazem avançar o debate sobre possíveis soluções para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.


Contudo, alguns temas importantes ficaram de fora deste livro, que esperamos sejam abordados em trabalhos posteriores desses ou de outros estudiosos das reformas de Estado. O primeiro deles tem a ver com a influência da cultura nas decisões políticas, ou cultura política, que está relacionada obviamente com a idéia de path dependence. Esta é uma questão que precisa ser mais analisada, pois é possível que, apesar de toda modernização do Brasil , visões favoráveis ao Estado paternalista, e relações clientelistas continuam muito presentes no ethos brasileiro, constituindo-se em barreiras a mudanças.

Um segundo tema que precisa ser abordado é a questão da democracia e da cidadania. Estudos sobre reformas de Estado sempre mencionam a democracia como parte integrante do esforço reformista, mas geralmente esquivam-se de refletir mais profundamente sobre sua importância. A Reforma do Estado não deve obedecer somente a motivações econômico-racionais, mas também propiciar ao cidadão comum condições para que ele seja mais participante dos processos decisórios, fortalecendo dessa forma as instituições democráticas.

Paulo César Nascimento
Professor do Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília. Bacharel e mestre em história pela Universidade Amizade dos Povos, Moscou (1980/1989); mestre em filosofia pela PUC/Rio (1989); Doutor em Ciência Política pela Columbia University (Nova York). Na UnB desde 2005, é professor-adjunto.

Revista Política e Cidadânia

Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no Brasil



Oliveiros S. Ferreira – Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no Brasil

Leonardo Prota *

Oliveiros Ferreira foi um dos principais redatores e editorialistas de O Estado de S. Paulo num período crucial da ingerência militar na política, com a peculiaridade de que o jornal, que progressivamente viria a ser a mais visível trincheira contra aquela ingerência, na época a apoiava abertamente. Vivenciando esse período desde um observatório privilegiado, Oliveiros adquiriu amplo conhecimento dos personagens representativos do que batizaria de Partido Fardado. Reuniu sobre o tema material primoroso e, depois de fazer incursões a bem dizer tópicas As Forças Armadas e o desafio da Revolução (1964); O fim do poder civil (1966); Forças Armadas para que? (1988); e, mais recentemente Vida e morte do Partido Fardado (2000) dispôs-se a produzir uma síntese: Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no país (São Paulo, Harbra, 2007).

A hipótese explorada é a de que, notadamente no período republicano, configuram-se dois poderes que acabariam confrontando-se: o Estado (a União) e a Federação. Nesse confronto, o Estado só consegue firmar-se recorrendo à força. Parte do pressuposto de que “não há dificuldade em reconhecer a Federação como um dos atores principais de nossa história; a dificuldade, apesar das sucessivas intervenções unitárias, digamos assim, reside em ver o Estado como desempenhando um dos principais papeis.” Registra que os esforços para destacar a sua contribuição na formação da nacionalidade é vista com desconfiança, arrolando-os simplesmente como provindo de inspiração autoritária.

A intervenção da força armada no embate terá sido sempre a serviço de um dos dois personagens; “em 1889, da Federação; depois de 1930, nas sucessivas intervenções em força, massa e com êxito, da União.” Ainda que, ressalva, “em muitas ocasiões procuravam atuar como atores principais da peça.”

Oliveiros não ignora que há outros processos simultâneos em curso, se nos voltarmos para a sociedade. Contudo, enfatiza: “o que os move diz respeito ao Estado Brasileiro.” Separa também o último período abrangido por sua análise (1990/2002). Interessa-lhe determinar o papel do Partido Fardado quando se tratava de tornar ao Estado “forte, organizador e condutor da sociedade.” E, mais: “Não se negará, no processo que tentamos descrever, fatos que escapam explicitamente ao confronto entre União e Federação e só podem ser explicados pelo jogo das personalidades.” Assim, responde de antemão às críticas que lhe poderiam ser dirigidas. Acrescente-se que a hipótese acadêmica típica procede desse modo, isto é, isola o fenômeno a ser estudado, sem embargo da atenção às influências exteriores que possam ter atuado sobre o processo, que terá oportunidade de assinalar, como indicaremos.

Para bem situar aquilo que seria específico do Partido Fardado, refuta a hipótese de que os “tenentes” teriam dado o tom da Revolução de 30. Escreve: “O que separava Góis Monteiro de Juarez Távora era uma questão que o jovem tenente não levava em conta: o comandante militar da revolução aceitava a chefia política do Rio Grande oficial e a Getúlio Vargas permaneceria leal até 29 de outubro de 1945”. (p.39). No capítulo “Os militares em cena” (págs. 49-66) empreende também uma crítica brilhante à tese, vigente sobretudo de 1945 a 1965 que muito apropriadamente denomina de “mito”, segundo a qual as Forças Armadas preencheriam o vácuo deixado pela abolição do Poder Moderador.

Afirma então: “Vivendo da ilusão do mito, não se apercebem que foi nesse período do qual não se podem excluir Jacareacanga e Aragarças, 1956 e 1958 que um amplo segmento da Força Armada tomara consciência de que os políticos não eram capazes de realizar os ideais pelos quais haviam lutado desde 1930.” (p.64)
Portanto, está posta a questão: na República, depois de se ter colocado ao serviço da Federação com o que viabilizou a derrubada da Monarquia, o Partido Fardado irá colocar-se ao serviço do Estado (União) até que se dê conta de que os políticos não se têm revelado aptos a concretizar os ideais pelos quais se batem (1964).

Antes de documentar o evento em se revela plenamente aquela conversão, Oliveiros examina a reconhecida influência positivista no Exército brasileiro e sugere uma outra que não fora referida: o que chama de liberal-militarismo.

A fim de construir sua interpretação, o autor repassa os principais eventos políticos depois de trinta: Plano Cohen, os integralistas e o desfecho daqueles embates. Talvez o cerne da hipótese de Oliveiros esteja no capítulo que intitulou de “Uma visão do Estado Novo” (p. 303-322) no qual avança a tese de que aquele regime seria de natureza corporativista. Isto é, instaurou no país diversas corporações, dotadas de tal rigidez que iriam perpetuar-se a exemplo do sindicalismo de Estado.

Assim, não tendo sido lograda a organização das classes sociais, condição para a democracia estabelecida por Oliveira Viana, o regime que sucedeu ao Estado Novo tangenciava o país real. Os partidos políticos não davam (e nem podiam dar) conta do recado, criando-se o caldo de cultura para a tutela do Partido Fardado.

Oliveiros reuniu (e soube explorar) vasta documentação sobre o movimento de março de 1964. Vê-se claramente como os artífices da rebelião foram deixados de lado pelo general Costa e Silva, que se auto-intitulou Comandante da Revolução e pretendia manter o Presidente da Câmara (Ranieri Mazili) na chefia (formal) do governo “até que se esgote o resto do mandato”. Alem disto, deixa claro que “em 1965 verei o que faremos nos próximos dez anos”. Essa situação explicaria o movimento dos governadores para empossar Castelo Branco, que ocupava o segundo lugar na hierarquia do Exército, como Chefe do Estado Maior.

No capítulo final, Oliveiros apresenta uma síntese que pode ser resumida do modo que se segue. “Em 1964 escreve, o Exército abandonou o texto oficial pelo qual os atores vinham pautando sua ação e, fingindo apoiar-se na Federação para restabelecer a Ordem, ocupou o poder do Estado o soberano é quem decide da exceção , destruiu seu aliado da véspera e impôs à União a sua peculiar maneira de ver o mundo, que antes de tudo foi burocrática e negadora dos princípios liberais e individualistas em torno dos quais se vinha articulando a vida política desde o Império.” E, mais adiante: “Em 1969, triunfante a União e submetida a Federação, o Partido Fardado está praticamente sem espaço para atuar, golpeado pela Junta Militar e condenado pelas ações repressivas que praticava sem norte. Nesse quadro, sem apoio de setores civis de importância social e política, o Exército começou a perder vitalidade política e, lentamente, se retirou de cena juntamente com as outras Armas, dez anos depois. Então, cedeu o papel de protagonista aos partidos políticos civis que pretendiam corresponder a algum projeto nacional”. (p. 579).

Do que precede, vê-se que o livro de Oliveiros corresponde a importante contribuição no sentido de ser reconstituído o longo ciclo de ingerência militar na política durante a República. Contudo, para termos uma visão completa da trajetória da instituição caberia ter presente o esforço em prol da profissionalização. Tomando por base a premissa estabelecida por Samuel Huntingtoin (1927/2008), no livro The Soldier and the State (1957), segundo a qual a ingerência militar na política denota baixo nível de profissionalismo, o brigadeiro Murillo Santos procurou documentar esse lado (O caminho da profissionalização das Forças Armadas, Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, 1991). Afirma que Castelo Branco vislumbrava incompatibilidade entre a mentalidade profissional (“sedimentada na defesa do Brasil e de suas instituições” ) e a que denominava de “miliciana” (“dá margem ao surgimento da tendência da política partidária em se servir dos militares e a destes em se envolverem nas questões partidárias”). A seu ver, algumas reformas que introduziu visavam dificultar (ou inviabilizar) a indesejável ingerência, entre estas o afastamento automático dos que passassem a exercer mandatos eletivos e a limitação do tempo de permanência, na ativa, no posto de general.



Oliveiros S. Ferreira, a par de sua conhecida atuação como jornalista, desenvolveu paralelamente atividade acadêmica na Faculdade de Filosofia na USP, pela qual se formou e onde concluiu o doutorado e a livre docência, sempre integrado à área dedicada ao estudo da política. De sua ampla bibliografia, além dos mencionados estudos sobre as incursões do Exército na política, consta livro pioneiro sobre o processo de descolonização da África Negra.

Leonardo Prota
Nasceu na Itália, naturalizando-se brasileiro. Basicamente desenvolveu extensa obra educacional no Norte do Paraná, nos três níveis de ensino, jubilando-se como professor titular da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pioneiro na organização do ensino de informática em nível superior. Encontrando-se entre os fundadores do Instituto de Humanidades, atua como seu diretor executivo (www.institutodehumanidades.com.br)

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