João Paulo Peixoto (Org.) – Governando o Governo: modernização da administração pública no Brasil
Paulo César Nascimento *
A presença do Estado na vida do cidadão e na sociedade em geral tem sido um tema recorrente nas diversas disciplinas que constituem as ciências sociais, como a economia, a ciência política, a administração pública e a sociologia, para citar algumas delas. E, a partir de uma série de fenômenos mundiais recentes – a derrocada do socialismo no leste europeu, as reformas em curso na República Popular da China, a aceleração dos processos de globalização e as periódicas crises financeiras mundiais -, a discussão sobre as funções do Estado nas sociedades contemporâneas tem gerado novas polêmicas, colocando em xeque antigos paradigmas.
É nesse contexto que a coletânea de textos organizada pelo professor João Paulo Peixoto, cientista político da Universidade de Brasília – Governando o Governo: Modernização da Administração Pública no Brasil, publicada este ano (2008) pela editora Atlas de São Paulo -, não pode deixar de ser bem-vinda para o público leitor brasileiro. O livro, que reúne artigos de diversos estudiosos do Estado brasileiro e suas instituições, oferece um painel diversificado e ao mesmo tempo integrado da problemática das reformas do Estado no Brasil, das ideologias e paradigmas que têm informado este debate, bem como análises sobre as relações entre executivo e legislativo e a inserção do Brasil na arena internacional.
A primeira questão abordada no livro é o enigma de governos de esquerda no Brasil terem adotado políticas “neoliberais”, tema do artigo do prof. João Paulo Peixoto, “Statecraft no Brasil: Ideologia e Pragmatismo”. A partir dessa indagação, Peixoto discute ainda a validade da velha dicotomia Estado “máximo” versus Estado “mínimo”, que tradicionalmente tem animado as discussões entre esquerda e direita no Brasil e no resto do mundo.
Como explicar então que o social-democrata Fernando Henrique Cardoso, e Luis Inácio Lula da Silva, oriundo de uma esquerda ainda mais radical, adotaram em seus mandatos reformas estruturais de cunho liberal, voltadas para a transformação do Estado brasileiro, tais como privatizações de estatais ineficientes, corte de subsídios, ajuste fiscal, liberalização econômica e comercial, etc.? No caso específico das privatizações, elas ocorreram no governo Fernando Henrique Cardoso, mas Lula não só não reverteu nenhuma delas, como já deu sinal verde, recentemente, para que o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, seja administrado por empresas privadas.
A resposta do autor inclui um painel sobre as mudanças no sistema mundial nas últimas décadas: a derrocada do chamado “socialismo real” e as reformas ora em curso na China são expressões do fracasso do planejamento estatal e do Estado-empresário. O mesmo se deu na América Latina com o Chile e a Argentina de Menem, países que empreenderam reformas de cunho liberal, sendo que o primeiro tornou-se um exemplo de sucesso econômico. Poderíamos ainda incluir nesse panorama mundial a corrente ideológica chamada de Terceira Via, desenvolvida pelo sociólogo Anthony Giddens e posta em prática pelo partido trabalhista britânico.
Basicamente, essa nova corrente abriu mão de uma série de postulados clássicos da social-democracia européia, enfatizando o mercado como fator fundamental de criação de riqueza e desenvolvimento. Em todos esses casos, fosse o toque inicial das reformas a política como na ex-URSS e na Argentina, ou a economia como na China e no Chile, o Estado intervencionista foi desafiado e reformas liberais colocadas em prática.
O professor João Paulo Peixoto, entretanto, não cai na armadilha, como o professor norte-americano Francis Fukuyiama o fez, de sugerir o Estado mínimo como alternativa definitiva para a futura história mundial: “Admitindo-se a hipótese de que um Estado estritamente não-intervencionista nunca existiu e provavelmente jamais existirá, o dilema recorrente não é mais saber se o Estado deve ou não intervir no setor econômico, mas passa a girar em torno de qual seja o escopo das ações estatais e os limites a se impor a elas” (Peixoto, João Paulo M., Governando o Governo: Modernização da Administração pública no Brasil, editora Atlas., São Paulo, 2008, p. 7).
Mas se cai a idéia de Estado Máximo ou Mínimo, vão por água abaixo igualmente as ideologias que a sustentavam. O Estado “necessário” não é nem o Estado “Máximo” da esquerda nem o Estado “Mínimo” dos fundamentalistas liberais. É fruto de uma visão pragmática da realidade, que exige que a função do Estado não seja empresarial, mas reguladora. Este é o novo paradigma a ser explorado, que segundo Peixoto difere-se de outras tentativas modernizantes levadas a cabo na história do Brasil, como o esforço getulista da década de 30 do século passado, e o regime militar de 1964, que apostaram em um Estado intervencionista capaz de promover a modernização do país.
A argumentação de Peixoto parece sugerir que o abandono do Estado intervencionista pelo Estado gerencial aconteceu pelo esgotamento da eficácia do primeiro, fenômeno aliás não só brasileiro como mundial. Existe, como lembra Peixoto, uma relação “pendular” de cunho mundial que faz os países inclinarem-se ora por um modelo intervencionista, ora por um modelo mais liberal. A década de 1960, por exemplo, pautou-se pela guerra fria, o que incentivou no Brasil um Estado autoritário intervencionista. Já nesta época pós-guerra fria em que vivemos, com a vitória do liberalismo, a opção pela modernização e por reformas do Estado acontece em um clima político de democracia, o que pode tornar as reformas mais lentas, porém imbuídas de maior legitimidade.
A realidade dessa forma retoma seus direitos, para além das ideologias tradicionais, e o pragmatismo, por sua vez, ganha corações e mentes não devido a qualquer superioridade intelectual, mas pela ausência de idéias novas à esquerda e direita. A eficiência, nesse sentido, precisa de demonstração prática, mais do que respaldo teórico.
Reformas estruturais são problemas de Estado, e não de governo, e por isso elas transcendem as ideologias e as disputas partidárias. Ainda assim, é razoável supor que a composição política de cada governo, e o grau de institucionalidade de cada país, influenciam a dinâmica das reformas. Este é o tema do artigo do Professor Antonio Carlos Pojo do Rego, “As Relações Executivo-Legislativo no Brasil Contemporâneo”, onde o autor mostra as especificidades da política brasileira embutidas no conceito de “presidencialismo de coalizão”. (O conceito “presidencialismo de coalizão” foi elaborado pelo professor do Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Sérgio Henrique Hudson de Abranches. Ver a esse respeito seu artigo “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, Dados, v. 31, nº1, 1988.).
O chamado “presidencialismo de coalizão”, como lembra o professor Antonio Carlos Pojo, baseando-se em Bolívar Lamounier, não chega a constituir-se em um tipo específico de presidencialismo, sendo na realidade uma forma de condução de política, empregada sempre que o presidente não dispõe de maioria nas duas casas legislativas, o que tem ocorrido desde a chamada “Nova República”. Trata-se, então, de uma relação entre os partidos e o executivo, em que o presidente, em troca de apoio político, cede aos partidos pastas ministeriais, de forma a obter maioria parlamentar.
Como Pojo observa, o “presidencialismo de coalizão” é a forma que o poder executivo no Brasil encontrou para realizar seu programa de governo e levar a cabo suas políticas públicas. Ele nasce a partir de deformações no sistema político brasileiro, tais como o sistema eleitoral proporcional com lista aberta e a fragmentação do sistema partidário. E, como em um círculo vicioso, gera suas próprias deformações, pois enfraquece o poder decisório do executivo e incentiva a desarmonia na ação governamental.
O “presidencialismo de coalizão” torna a autoridade do presidente sobre seu Ministério uma mera formalidade, já que os ministros indicados pelos partidos passam a manter uma relação mais próxima com as bancadas no Congresso do que com o chefe do executivo. Como conseqüência, as assessorias parlamentares dos Ministérios passam a desempenhar um papel crucial na determinação das políticas públicas, já que são responsáveis por boa parte do relacionamento entre o Congresso e o Executivo. São elas, como o professor Antonio Carlos Pojo assinala, que determinam “quem recebe o quê, quando e como”. (Pojo, Antonio Carlos, “As relações Executivo-Legislativo no Brasil Contemporâneo”, in Governando o Governo, op. cit., p. 42).
Além do clientelismo que o “presidencialismo de coalizão” incentiva, a falta de fidelidade partidária acaba por minar o já fraco controle dos partidos sobre seus representantes no Congresso, já que estes acabam determinando seus votos pelo atendimento de suas demandas específicas. O que, por sua vez, faz com que o Executivo empregue com mais freqüência o dispositivo das medidas provisórias de forma a desentravar sua agenda de políticas públicas.
Nesse contexto, como seria possível reformar o sistema político brasileiro? Pojo sugere que o sistema parlamentarista seria uma solução, já que o sistema de gabinete baseia-se em uma harmonia entre o executivo e o legislativo. Contudo, a sociedade brasileira não tem se manifestado a favor do parlamentarismo, o que torna difícil sua adoção no Brasil. Um Presidente popular poderia forçar reformas a partir da convocação de plebiscitos, mas como a história recente de vários países latino-americanos atesta, este é um mecanismo perigoso, pois é fácil de ser empregado para fins autoritários e anti-institucionais.
Reformar o Estado, dessa forma, exige uma compreensão minuciosa do que se quer reformar e de como realizar as reformas. Nesse sentido, o terceiro capítulo do livro, de autoria do professor Rogério F. Pinto – “As Reformas do Estado e o Paradigma da Nova Economia Institucional”, é importante porque como o título sugere, traz à tona a discussão sobre a fundamentação teórica das reformas do Estado. (Como o autor do artigo esclarece, a Nova Economia Institucional também é conhecida como Neo-Institucionalismo, paradigma desenvolvido pelo historiador Douglass North e o economista Oliver).
Segundo Rogério Pinto, A Nova Economia Institucional (NEI) analisa o Estado como um conjunto de organizações dos três poderes regidos pela institucionalidade fixada na constituição do país. Reformar o Estado, nesse sentido, significa alterar o quadro institucional , ou seja, o sistema de normas que define a forma como o país é governado. Alterações no quadro institucional, por sua vez, afetam inapelavelmente as organizações administrativas responsáveis pela operacionalidade do Estado, como um efeito em cadeia. (Rogério Pinto definiu bem as diferenças conceituais entre instituição e organização, utilizando a metáfora do futebol: suas regras seriam as instituições, e os clubes as organizações. Ver Governando o Governo, op. cit., p. 52.).
A instituição do mercado é central para a abordagem neoinstitucionalista, já que é ele que regula os incentivos de oferta e demanda de bens. Contudo, o Estado nessa perspectiva tem que garantir o direito de propriedade e respeitar os termos contratuais, para que os mecanismos de mercado funcionem a contento e com o mínimo de distorções possíveis.
A importância do enfoque neoinstitucionalista está em seu esforço para capturar a lógica das reformas do Estado. Estas têm que gerar instituições capazes de garantir o equilíbrio do mercado, incentivar o desenvolvimento, baixar os custos das transações comerciais e econômicas, bem como garantir a transparência das atividades públicas e a lisura das informações econômicas e políticas. A administração estatal, por sua vez, teria que reger-se por critérios orçamentários realistas, eficiência operacional e decisões democráticas.
Um fator influente na dinâmica das reformas, mencionado mas não desenvolvido no texto do professor Rogério, é o que Douglass North chama de path dependency ou precedência histórica. O quanto a cultura de um país, suas experiências históricas e tradição de institucionalidade podem incentivar ou constranger mudanças em políticas públicas e administração? O professor Paulo Roberto de Almeida, em seu artigo “Planejamento Econômico no Brasil: Uma Visão de Longo Prazo (1934 -2006)”, aborda este tema à sua maneira, quando analisa a tradição histórica brasileira de planejar a economia do país.
Como demonstra o professor Almeida, o Estado brasileiro tem uma longa experiência em planejamento de médio e longo prazos. Através de diferentes órgãos, como o BNDE, Ipea, Secretaria e Ministério do Planejamento, realizou-se um esforço a nível estratégico para atingir objetivos econômicos que pudessem desenvolver o país. Contudo, este macro planejamento, como mostra Paulo Roberto de Almeida, falhou em reduzir as enormes iniqüidades distributivas existentes ou proporcionar educação de qualidade para a população.
Pior ainda, problemas agudos da economia brasileira, tais como inflação e desajustes cambiais, fizeram com que o Estado brasileiro passasse a privilegiar medidas emergenciais de ajuste e estabilização macroeconômica, em detrimento de perspectivas estruturais de planejamento econômico.
Um assunto não abordado no artigo do prof. Almeida é o planejamento estratégico elaborado pelo setor privado. Que mudanças traria a expansão, nas empresas privadas, da utilização de métodos de gestão voltados para processos de médio e longo prazos? Um fortalecimento do papel da sociedade no planejamento econômico enfraqueceria a path dependency brasileira de privilegiar a gestão estatal?
E finalmente, não se pode falar de desenvolvimento econômico e modernização sem levar em conta o sistema internacional. Como o Brasil interage com outras nações é de capital importância para um país que tenta atrair investimentos ou empréstimos estrangeiros e expandir seu comércio internacional. O professor Eiiti Sato, diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, analisa a política exterior do Brasil em três momentos históricos: o pós- segunda guerra mundial, o período “castelista” do regime militar de 1964, ,e mais recentemente, com Fernando Henrique Cardoso, a aposta no multilateralismo. O que o professor Sato argumenta é que em todos esses momentos, o ajustamento do Brasil à ordem internacional não trouxe benefícios significativos ao país por uma incompatibilidade entre os objetivos brasileiros e as características de cada um desses momentos do sistema internacional.
Não que o professor Sato julgue errônea, por exemplo, a decisão do governo Erico Gaspar Dutra, em 1946, de se alinhar com os Estados Unidos. O Brasil estava se democratizando, tinha sido aliado dos Estados Unidos durante a guerra, e por isso nada mais lógico que esperasse tratamento privilegiado, em termos de investimentos, empréstimos e apoio político, da parte daquele país. Porém, a ordem internacional entrava no período da guerra fria, e as relações com o Brasil passaram a ser secundárias para os Estados Unidos. A idéia de desenvolvimento econômico e social através de parceria com os Estados Unidos não se materializou.
Da mesma forma, a reaproximação com os Estados Unidos encetada pelo primeiro governo militar, e reforçada com as tinturas ideológicas do combate ao comunismo, tinha como objetivo o acesso do Brasil a investimentos de instituições internacionais de fomento. Essa estratégia provocou um desenvolvimento dependente onde o país mostrou toda sua vulnerabilidade na crise de petróleo da década de 1970, acompanhada por forte endividamento externo.
Mais recentemente, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, o país voltou sua política externa para o multilateralismo, com a esperança de potencializar suas reivindicações através de instituições internacionais e regionais, somente para descobrir que os impasses tanto no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e na sucedânea Organização Mundial do Comércio, assim como a recusa dos Estados Unidos em aderir ao tratado de Kioto, ou a falta de entusiasmo das principais potências com a reivindicação do Brasil de ocupar um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, eram manifestações de que a velha política do poder informava a postura das potências mundiais nos foros e organismos internacionais.
A sugestão do professor Sato é que o paradigma realista está muito vivo nas relações internacionais, e a política externa brasileira tem que ficar atenta para esse fato.
Governando a Governança vem enfim enriquecer os estudos sobre reformas do Estado, administração e políticas públicas no Brasil. Os insights dos autores sobre temas tão diversos como a adoção do pragmatismo reformista por correntes ideológicas de esquerda, a dinâmica das relações executivo-legislativo, o paradigma do neoinstitucionalismo, a tradição brasileira de planejamento econômico, e os dilemas da política exterior brasileira, fazem avançar o debate sobre possíveis soluções para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Contudo, alguns temas importantes ficaram de fora deste livro, que esperamos sejam abordados em trabalhos posteriores desses ou de outros estudiosos das reformas de Estado. O primeiro deles tem a ver com a influência da cultura nas decisões políticas, ou cultura política, que está relacionada obviamente com a idéia de path dependence. Esta é uma questão que precisa ser mais analisada, pois é possível que, apesar de toda modernização do Brasil , visões favoráveis ao Estado paternalista, e relações clientelistas continuam muito presentes no ethos brasileiro, constituindo-se em barreiras a mudanças.
Um segundo tema que precisa ser abordado é a questão da democracia e da cidadania. Estudos sobre reformas de Estado sempre mencionam a democracia como parte integrante do esforço reformista, mas geralmente esquivam-se de refletir mais profundamente sobre sua importância. A Reforma do Estado não deve obedecer somente a motivações econômico-racionais, mas também propiciar ao cidadão comum condições para que ele seja mais participante dos processos decisórios, fortalecendo dessa forma as instituições democráticas.
Paulo César Nascimento
Professor do Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília. Bacharel e mestre em história pela Universidade Amizade dos Povos, Moscou (1980/1989); mestre em filosofia pela PUC/Rio (1989); Doutor em Ciência Política pela Columbia University (Nova York). Na UnB desde 2005, é professor-adjunto.