MARTINS, A. C. I. O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai. São Paulo: Todavia, 2020. 384p
A vida de Paulo Rónai, tradutor, crítico literário e educador húngaro, cujo fôlego destinou-se à construção de pontes culturais entre o Brasil e a Europa do século XX, é o assunto do livro O homem que aprendeu o Brasil da escritora e jornalista Ana Cecília Impellizieri Martins (2020). A reconstrução das aventuras (e agruras) que trouxeram o intelectual às terras brasileiras em 3 de março de 1941, bem como de sua trajetória aqui, é fruto de uma pesquisa marcada tanto pela acuidade na análise de um vasto material arquivístico e bibliográfico quanto pelo tensionamento das esferas coletiva e individual nas conjunturas do nazifascismo e do exílio no Brasil em pleno Estado Novo.
Nas palavras de Nora Tausz Rónai,1 arquiteta e escritora, “colaboradora para o resto da vida” de Paulo Rónai, a postura assumida por Ana Cecília Martins (2020, p.15) se traduz em imagem: apreciar a beleza de uma pérola, indagando acerca do tempo e do processo de sua formação.2 A beleza da vida e obra de Rónai surge de uma história de dor, transformada pelo amor às palavras, pela curiosidade genuína para com o outro (sua língua, cultura, sentimento do mundo) e pelas possibilidades de comunicação e compreensão mútua. Interessa à biógrafa demonstrar o “movimento de assimilação no país” (p.12) desse homem “intelectual humanista […], empenhado em sobreviver” (p.15).
Percebe-se a argúcia do olhar investigativo de Ana Cecília Martins em relação ao material do acervo pessoal de Paulo Rónai e de cinco arquivos públicos e nacionais: diários, cartas, manuscritos, publicações, dedicatórias, documentos oficiais e registros de uma rede de contatos tecida no Brasil. A autora buscou familiarizar-se com Rónai pelos vestígios de seus gestos e sua dicção. “As marcas pessoais que Paulo imprimiu em seu diário foram criando códigos que se tornaram aos poucos reconhecíveis. Um evento importante sublinhado; as abreviações decifradas pelo léxico que se repete, assim como os nomes, também abreviados, de personagens de sua órbita profissional e íntima” (p.42). Por isso, ao acompanhar a biografia desse importante tradutor e crítico literário, não veremos tantas menções a “Rónai” quanto ao “Paulo”, essa terceira identidade do intelectual que, em 1928, deixou de usar o nome húngaro Pál para assumir profissionalmente o nome francês Paul e, a partir de 1941, adotar o nome brasileiro Paulo e a nacionalidade correspondente.
Ana Cecília Martins oferece-nos um retrato poliédrico não só do próprio Rónai, mas também do Brasil - socialmente complexo, politicamente ambíguo e, no âmbito cultural, marcado pela colaboração florescente entre artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros, que aqui puderam encontrar abrigo das perseguições nazistas e da Segunda Guerra. Quem deseja conhecer a biografia de Paulo Rónai acaba adentrando outras biografias individuais e coletivas, relevantes no cânone literário brasileiro, e divisa uma troca autêntica entre a cultura brasileira e as tradições europeias representadas pelos intelectuais e artistas de expressão magiar, francesa, alemã e de tantos outros contextos linguísticos. Por isso, conhecer Rónai é aprender o Brasil ao qual ele teve acesso, é conhecer Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda e João Guimarães Rosa (citando só alguns de seus amigos). A dedicação de Paulo Rónai à literatura, ao trânsito de línguas e culturas, conduziu-o a uma trajetória brilhante neste país, que agora pode ser reconhecida como merece.
O livro não é só um mergulho na vida particular de Paulo Rónai no Brasil, é também uma enriquecedora exposição do contexto cultural, político e social do biografado na Hungria, seu país de origem: seus escritores e cientistas notáveis, o desmembramento do Império Austro-húngaro, as crises oriundas das duas Grandes Guerras e o impacto do nazismo sobre o país. Esse panorama evidencia a tensão entre a contingência política e as ações individuais, observando as consequências diretas daquela na vida de Rónai e sua família. Na Hungria, com as leis antissemitas restringindo o número de judeus no ensino superior (assim como em outros setores), a entrada de Rónai na Universidade não foi definida exclusivamente pela sua capacidade intelectual, mas dependeu também da solidariedade (ou da postura ética) de um colega que lhe cedeu seu próprio lugar devido ao reconhecimento da qualidade do percurso acadêmico de Rónai. Dr. Paul Rónai recebeu a titulação em Filologia e Letras neolatinas, sua formação contou com dois períodos de estudo na Sorbonne e na Aliança Francesa em Paris. Lendo Dom Casmurro em tradução francesa, descobriu Machado de Assis na voz de um tradutor brasileiro expatriado. Essa leitura provocara o impulso inicial do filólogo e professor húngaro em direção ao Brasil, mas foi através da poesia que se deu o encontro definitivo com o português brasileiro.
A relação de Rónai com as línguas e as literaturas que pesquisava parece atravessada ou motivada por uma percepção sinestésica, manifesta no caráter sensual de sua crítica: sentia as palavras, a atmosfera que criam com sua sonoridade, seu ritmo, seu sabor e suas imagens. A novidade e a materialidade do português representaram para Rónai (2014, p.38), “consolado pela interessante experiência linguística”, uma sobrevida em meio aos avanços do nazismo. Em seus escritos, nota-se que suas hipóteses de leitura extrapolam a matéria linguística, dirigindo-se também à pessoa “que se encontra atrás das frases, ambições, objetivos” de um texto (ibidem, p.137). Esse ímpeto levou Rónai a contatar os poetas brasileiros que traduzia, entre eles diplomatas e funcionários públicos ligados ao Ministério da Educação e a órgãos culturais. Rónai trabalhou para difundir suas obras na Hungria, estabeleceu relações cordiais, e isso justificaria sua vinda ao Brasil como mediador cultural. Ao narrar o árduo trâmite burocrático que envolveu o exílio de Rónai, enquanto esse traduzia e lecionava nos liceus de Budapeste e durante o período em que esteve detido num campo concentração, Ana Cecília Martins situa o leitor nos bastidores da política internacional brasileira no Estado Novo, simpático à ideologia nazifascista, com suas leis também antissemitas e adidos, salvo alguns, alinhados ao regime. Rónai, por fim, obteve - com muito custo e aflição - não só um visto, mas uma ocupação profissional na sua área de formação e um formidável círculo intelectual e artístico, onde encontrou amizades que o ampararam e acolheram no país de refúgio.
Interessante seria observar o comentário de Drummond sobre o abrasileiramento de Paulo Rónai em paralelo com o relato deste a respeito de Cecília Meireles. Drummond sugeriu que “os motivos pessoais de angústia que [Rónai] trazia da Europa não afetariam esse abrasileiramento progressivo” (p.137). Embora o poeta tivesse consolado muitas vezes o amigo húngaro, como indica a biógrafa, ele aqui parece elogiar a separação entre as emoções penosas vividas pelo exilado em função do seu desenvolvimento pleno em um novo contexto cultural. Rónai, por sua vez, relata ter encontrado em Cecília Meireles uma empatia rara: “poucos aquilatavam como ela a profundeza do drama individual de cada um de nós [refugiados]. A capacidade requintada de sentir, adivinhar e imaginar levara-a a compreender-nos” (p.133). Esses fragmentos refletem um pouco da delicada situação vivida pelo exilado húngaro com relação à sua dor, à possibilidade de encontrar acolhimento e sua necessidade de integrar-se em um novo local para sobreviver e voltar a viver.
Ana Cecília Martins menciona um comovente gesto de Rónai: ele haveria datilografado para si o conteúdo da carta de despedida do escritor austríaco Stefan Zweig. Nesse ponto do livro, a biógrafa tangencia aspectos sensíveis do exílio, como o medo do suicídio e a coragem de sobreviver, comparando Paulo Rónai a Zweig e Vilém Flusser, três exilados no Brasil. A morte voluntária de Zweig, autor mundialmente lido, teve um grande impacto no meio intelectual e talvez tenha sido ainda mais profundo na vida de outros exilados. Duas reflexões, entre tantas outras, essa obra pode suscitar, sobretudo no que diz respeito à literatura de exílio: a primeira incidiria sobre a experiência do deslocamento, em sentido amplo, que não terminaria ao se aportar ao país de refúgio. A segunda reflexão apontaria para a diversidade de experiências e reações individuais dos exilados, que, enquanto um coletivo, vivenciariam a perda identitária e a condição do refugiado, mas que se diferenciariam em muitos fatores, como idade, grau de instrução, recursos econômicos e contatos prévios, articulação para estabelecer novos contatos e obter recursos e vistos, sua condição psíquica… o “mal do exílio”, ainda que vivido por todos eles, nunca é o mesmo. Por isso, é tão importante um certo cuidado, de modo a se evitar generalizações e juízos de valor ao dar voz a essas vidas, umas já muito conhecidas, outras quase nada, quando não absolutamente esquecidas. Cuidado que a proposta de uma biografia como essa pressupõe.
Além do sofrimento pessoal e circunstancial pelo qual passou Stefan Zweig, ele se desiludira também com o país que escolheu como último destino de exílio. Foi duramente criticado por seu livro Brasil, um país do futuro (publicado em 1940) no Correio da Manhã, expressivo jornal carioca, e “em Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira e Rubem Braga, prevalecia a ideia de que o livro de Zweig tinha sido escrito para enaltecer o Brasil do Estado Novo” (p.176). Ana Cecília Martins menciona a dissensão em torno da obra, mas, se muitos fatores distanciam Stefan Zweig e Paulo Rónai, seria possível inferir que ambos se encontravam no Brasil sob a mesma cláusula de exceção: “pessoas [de origem semítica] de notória expressão cultural, política e social”,3 de quem era esperado que se engajassem em projetar uma certa imagem do Brasil. O húngaro, tendo acesso a um círculo intelectual sólido e prestigiado, trabalhou em prol do retrato de um Brasil literário específico e menos idealizado. Nas palavras de Drummond endereçadas a Rónai, abalado pela notícia do suicídio: “Zweig não conheceu as pessoas certas. Sua história é outra, meu caro amigo” (p.173).
A representação de certos exilados como “vencedores na vida”, expressão que o próprio Paulo Rónai pareceu estranhar,4 é discutível, porque reforça a construção da narrativa histórica que toma por objeto de empatia sempre os vencedores, segundo uma leitura benjaminiana (Benjamin, 2013). A história dos exilados, ao contrário, seria parte da história dos vencidos. Para sobreviver, eles fizeram apostas com a capacidade e os recursos de que dispunham, enfrentaram adversidades e arbitrariedades políticas. Rónai trabalhou muitíssimo para “merecer seu destino” no Brasil (p.15), mantendo a esperança de trazer sua família e sua noiva, Magda Péter, em segurança ao país. Num gesto de gratidão pela vida, dedicou-se inteiramente à expansão das relações culturais Brasil-Europa. Contudo, um exemplo amargo dessa arbitrariedade é o fato de que o visto de sua noiva foi negado pelo mesmo governo Vargas que permitira a Rónai vir. A família Rónai se reuniria mais uma vez no Rio de Janeiro, mas Magda acabaria por desaparecer nas mãos da Gestapo.
Na biografia, vê-se que Paulo Rónai (2012, p.199) se dispôs a abandonar a miragem do país de destino, para buscar e traçar seu próprio “fio condutor”. Sua desconfiança diante do próprio conhecimento traduziu-se numa postura de renovada curiosidade pelas dinâmicas linguísticas e culturais do Brasil, interpretando a literatura brasileira. Tornou-se ainda representante dessa no exterior, não por interesse político, por fascínio ingênuo, mas por ter sido alguém “profundamente interessado no outro” (p.171), pela sua compreensão do valor da alteridade e pelas possibilidades de identificação humana.
Referências
BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. Org. e trad. João Barrento. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
MARTINS, A. C. I. O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai. São Paulo: Todavia, 2020. 384p.
RÓNAI, P. A tradução vivida. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. 255p.
_______. Como aprendi o português e outras aventuras. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014. 264p.
Notas
1
Cf. Relato de Nora Tausz Rónai, em “Escritores, tradutores e críticos literários” (temporada 1, ep.2). Canto dos exilados [Série]. Direção de Leonardo Dourado. Roteiro de Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Arte 1; Telenews; Riofilme, 2016. (51 min.)
2
Em favor da legibilidade da resenha, as citações do livro de Ana Cecília Impellizieri Martins serão, a partir de agora, indicadas apenas pelo número de páginas.
3
Cláusula de exceção no decreto que restringia a concessão do visto brasileiro a judeus, de 7 de junho de 1937 (p.64, 114).
4
Cf. Discurso proferido na cerimônia de posse da cátedra de francês no Colégio Pedro II (p.252
Rev. Est. Avançados