domingo, 28 de outubro de 2012

TRABALHO E VADIAGEM

Marco Aurélio Garcia
Professor do Departamento de História da Unicamp, onde dirige o Arquivo Edgard Leuenroth e consultor do CEDEC

TRABALHO E VADIAGEM - A origem do trabalho livre no Brasil - Lúcio Kowarick, Brasiliense, São Paulo, 1987.

O povo brasileiro, que já "assistiu bestializado"a proclamação da República e que hoje é convidado a "trabalhar mais"para resolver os graves problemas que afetam seu cotidiano, tem sido objeto de sucessivas configurações por parte das classes dominantes. Não só das nacionais. Às vésperas da República, como lembra José Murilo de Carvalho, em seu Os Bestializados (Companhia das Letras), o embaixador francês no Brasil escrevia a seu governo, afirmando que a rigor não se podia falar em povo no Brasil.

O que sobrou de tudo isso foi o "populacho", a "ralé", a "malta"e tantas outras formas pelas quais as ideologias dominantes tentaram dar conta daqueles "resíduos sociais"que, na bipolaridade de classes da sociedade escravocrata não cabiam nem entre os senhores, nem entre os escravos.

É sobre estes "resíduos sociais"que Lúcio Kowarick se debruça em seu Trabalho e Vadiagem - A origem do trabalho livre no Brasil. Versão destinada ao grande público de trabalhos acadêmicos realizados aqui e no exterior (incluindo sua tese de livre-docência), o livro busca captar no curso da história social brasileira aquilo que a sociologia dos anos 60/70 estudou sob o conceito de "marginalidade".

O propósito sem dúvida é ambicioso, tendo em vista o amplo período compreendido. Kowarick percorre-o no entanto com segurança ainda que os especialistas pudessem exigir aqui e ali maior profundidade.

Não se lhe negará, porém, familiaridade com a historiografia do período que ele utiliza para desmontar uma série de idées-reçues a partir das quais se tratou de dar conta dos complexos fenômenos sociais advindos da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil.

Desta crítica historiográfica emerge uma tese central do livro: as distintas configurações do fenômeno social aludido pela expressão "marginalidade", não são mais do que o resultado das metamorfoses do capitalismo brasileiro desde o período colonial até os pródromos da industrialização, onde a análise se interrompe. Metamorfose que se dá dentro de uma constante: a sistemática e permanente desconfiança vis-à-vis do trabalhador livre nacional, que só é convocado para tarefas secundárias e aviltadas, recebendo aí um tratamento à imagem e semelhança daquele dispensado aos escravos. Socialmente este trabalhador-livre é visto como vadio, indolente, preguiçoso. Estes e outros adjetivos não estarão, no entanto, encobrindo, formas particulares de resistência a um trabalho que é socialmente desvalorizado e materialmente brutal? Kowarick não nos dá uma resposta mais explícita a esta crucial pergunta. A necessidade de uma explicação macro-histórica, cuja importância é bom não esquecer, afasta o arguto analista da pesquisa empírica de certas dinâmicas sociais, sobretudo no fim do século XIX e princípios deste, que seriam necessárias para uma compreensão do período a partir dos dominados.

O resultado do trabalho no entanto é significativo e ilumina em forma definitiva o ethos capitalista brasileiro. As estratégias patronais respondem a interesses imediatos e corporativos, o que explica a "vitalidade"da escravidão, bem maior do que certa historiografia fez supor, da mesma forma que esclarece melhor as opções em termos de imigração estrangeira, o pequeno papel conferido ao trabalho-livre nacional, associado às particularidades (até tecnológicas) do processo de industrialização no país, são responsáveis pelo desenvolvimento de um capitalismo"atípico"no Brasil que permite saltar por cima do artesanato como momento da industrialização.

Aspecto que ressalta na análise de Kowarick é o peso que têm nessa configuração particular do capitalismo brasileiro as políticas das classes dominantes. O autor se desfaz dos reducionismos economicistas que procuram nas estruturas a chave dos comportamentos sociais, reduzindo os atores a meras projeções delas.

Detendo-se nas primeiras décadas do século, o livro é de uma surpreedente atualidade. É impossível não detectar nas condições de trabalho atuais, onde não faltam inclusive as denúncias de ressurgências de formas de escravidão ou semi-escravidão ou no discurso empresarial dominante que se faz ouvir no debate constitucional, ecos das falas e práticas patronais de muitas décadas passadas. Ou não haverá uma continuidade entre o desprezo patronal pelo trabalho ontem como hoje (apesar da sua valorização retórica), ou uma continuidade entre políticas salariais de arrocho, ou estratégias que visavam estimular a rotatividade da força de trabalho já no século passado?

Trabalho e vadiagem apresenta os ingredientes de uma boa análise social, lançando simultaneamente luzes sobre o passado e sobre o presente.
REVISTA LUA NOVA

O ESPAÇO DO CIDADÃO

Milton de Abreu Campanário
Prof. da Faculdade de Economia e Administração - USP

O ESPAÇO DO CIDADÃO - Milton Santos, NOBEL, São Paulo, 1987.

No momento em que novas formas de convívio social são debatidas na Constituinte, a questão da cidadania ganha um novo relevo com a publicação de O Espaço do Cidadão do Professor Milton Santos. Trata-se, a bem da verdade, de um texto que aponta a indignação de um cidadão perante a falta de integralidade de sua própria condição e a simples inexistência da mesma para milhões de brasileiros.

O grande mérito do livro está em procurar inserir a espacialização da cidadania no contexto da redemocraticação brasileira. Parte-se, então, para a defesa de um "modelo cívico-territorial"onde a gestão democrática do uso do espaço, construído ou não pelo homem, sirva de instrumento para políticas efetivamente redistributivistas e que promovam a justiça social. Em defesa desta tese, a arma utilizada é a denúncia. Inúmeros são os aspectos da vida nacional denunciados pelo autor e que comprometem o exercício da cidadania. A começar pela pergunta: há cidadãos neste País? A resposta está contida na própria definição de cidadania como uma conquista social. A sociedade brasileira ainda não aprendeu a conquistá-la. A cultura não foi impregnada com direitos e deveres de respeito à dignidade e à liberdade humanas.

A cidadania é uma conquista pouco conhecida no País. De fato, a partir de uma história onde o destaque maior é para os escravos e párias do que para proletários, a cidadania assumiu, inicialmente, a forma de trabalhismos onde obviedades como direito a férias e de voto para mulheres foram "conquistados"juntamente com o direito do trabalhador de possuir e vender sua capacidade de trabalho no espaço urbano tomado pela indústria. A espacialidade da cidadania brasileira, até hoje eminentemente urbana, foi instrumentalizada na formação de força de trabalho industrial, confundindo-se com a urbanização da acumulação primitiva que deu popularidade aos seus padrinhos políticos, particularmente Getúlio Vargas e herdeiros.

O Professor revolta-se contra aquela origem do modelo cívico e do arquétipo político brasileiros: "Numa democracia verdadeira, é o modelo econômico que se subordina ao modelo cívico. Devemos partir do cidadão para a economia e não da economia para o cidadão". Tal subordinação encontraria no consumismo exacerbado de épocas recentes o maior obstáculo ao exercício da cidadania. O consumismo é o ópio do povo, insinua o Professor. Criticá-lo é auxiliar o aprendizado da cidadania. Socializar a informação, a educação e o consumo do espaço (acessibilidade compulsória aos bens e serviços sociais) são itens imprescindíveis do modelo cívico-terrítorial proposto.

Em torno desta utopia, cuja armação teórica envolve uma dose bastante forte de idealismo, a cidadania aparece, aos olhos do autor, como que inviabilizada pela divisão da sociedade em classes e pela subordinação do trabalho ao capital. Convém aleitar, contudo, que é precisamente na busca da cidadania, na busca da sociedade civil, que descobriremos as diferenciações sociais, territoriais e de classe, que estiveram encobertas tanto tempo pelo populismo e pelo arbítrio. Procurar identidades políticas e desvendar desigualdades sociais é a prática da dernocracia e a conquista permanente da cidadania.

REVISTA LUA NOVA

sábado, 18 de agosto de 2012

DEFESA DO MARXISMO


DEFESA DO MARXISMO
José Carlos Mariátegu, Ed. Boitempo


Referência do pensamento marxista na América Latina, José Carlos Mariátegui continua atual quase um século após sua morte. Apesar do recorte de época da obra Defesa do Marxismo, o intelectual aponta elementos essenciais para se analisar a atual crise do capitalismo. Ao refutar teses de pensadores europeus antes e depois da Primeira Guerra Mundial, utiliza fundamentos econômicos e políticos relevantes para qualquer análise de conjuntura. A psicologia e filosofia também são utilizadas pelo autodidata para dar consistência ao seu materialismo histórico.
Naquela época o autor já detectou a formação do império norte-americano, que, segundo ele, necessitava de uma grande força de expansão e domínio para cumprir o seu destino histórico. Criticava o “processo de concentração capitalista que confere o mais decisivo poder às oligarquias financeiras e aos trustes internacionais”. Para ele, por outro lado, o socialismo não poderia ser a consequência automática de uma bancarrota do capitalismo. Crítico ferrenho dos reformistas, defendia uma revolução como resultado de um tenaz e esforçado trabalho de ascensão.
Mariátegui unia o pensamento à ação. Foi fundador do partido socialista em seu país, era militante ativo e sempre teorizou sobre temas relacionados. Nesta obra, analisa a Revolução Russa, a Primeira Guerra Mundial, o surgimento dos partidos comunistas na Europa, dentre outros aspectos históricos do período, e ainda propõe o feminismo como instrumento revolucionário. A mídia também não foge de sua visão: “a impressora rotativa é um indústria reservada aos grandes capitais”, sentencia.
Seus ensaios não se limitam a críticas. Mariátegui aponta caminhos na perspectiva de uma nova ordem revolucionária que racionalizará e humanizará os costumes. O socialismo vem a ser um renascimento de valores espirituais e morais oprimidos pela organização e pelos métodos capitalistas. É na disputa de classes, abordada em toda a obra, que seu espírito crítico se revela em linguagem clara e precisa.

Eduardo Sá
Jornalista e editor do Fazendo Media (www.fazendomedia.com)
Le Monde Diplomatique

sábado, 11 de agosto de 2012

Luiz Gama, contemptor de nossas falsas elites


Fábio Konder Comparato
Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. @ –fkcomparato@gmail.com


Durante muito tempo, historiadores e sociólogos consideraram ter havido um claro contraste entre a escravidão de africanos nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto lá os escravos foram tratados cruelmente, aqui os cativos receberam tratamento benigno, senão francamente protetor.
A meu ver, na origem dessa suposta contradição de atitudes, encontramos uma diferença radical de mentalidades. Os americanos não costumam dissimular suas convicções, e dizem francamente o que pensam. Nós, ao contrário, timbramos em proclamar nossos bons sentimentos em relação aos pobres e infelizes.
Sob esse aspecto, encarnamos à perfeição o poeta fingidor de Fernando Pessoa. Fingimos tão completamente, que chegamos por fim a nos convencer de nossa "índole reconhecidamente compassiva e humanitária", como afirmou o autor do único tratado jurídico sobre a escravidão brasileira.1 Aliás, na Exposição Internacional de Paris de 1867, o nosso governo informava, oficialmente, que "os escravos são tratados com humanidade e são em geral bem alojados e alimentados... O seu trabalho é hoje moderado... ao entardecer e às noites eles repousam, praticam a religião ou vários divertimentos".2
Nesse contexto nacional de permanente autoelogio coletivo, a personalidade de Luiz Gama, retratada neste livro muito bem organizado pela professora Lígia Fonseca Ferreira, aparece como realmente excepcional. O menino negro, vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha dez anos, tendo aprendido a ler e escrever somente aos dezessete anos, tornou-se um intelectual apurado e o maior advogado de escravos que este país conheceu. Praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro ilegal mais de quinhentos negros – fato sem precedentes na história mundial da advocacia. Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais do que qualquer abolicionista brasileiro, não hesitou em desmascarar pela imprensa – o grande instrumento de contrapoder da época – a falsidade de nossas pretensas elites.


Gama escolheu como principais alvos de seus ataques desmascaradores os dois grupos que mais se distinguiram no triste papel de legitimar a escravidão negra: os clérigos e os magistrados.3
Já no século XVI, os jesuítas de Angola distinguiram-se na coordenação do tráfico negreiro de Angola para o Brasil. À ordem de cessação desse comércio de carne humana, baixada pelo Geral da Companhia em 1590, os padres de Angola responderam que "não é escandaloso de pagar as nossas dívidas em escravos, pois eles são a moeda corrente no país, assim como o ouro e a prata o são na Europa e o açúcar no Brasil".4
No curso dos séculos seguintes, várias ordens religiosas passaram a possuir grandes fazendas, onde acumulavam milhares de escravos. Em algumas delas, instituíram-se criatórios de escravos. O norte-americano Thomas Ewbank, que visitou o Brasil em meados do século XIX, informou que num "grande estabelecimento" que a ordem beneditina possuía na Ilha do Governador, no Rio, "numerosas gerações de rapazes e moças de cor são lá criadas até terem idade suficiente para serem enviadas ao trabalho nas propriedades do interior".5
Na verdade, os escravos eram também numerosos dentro dos próprios conventos de frades e freiras. Em meados do século XVIII, no Convento do Desterro da Ordem das Suplicantes, em Salvador, 75 religiosas eram servidas por 400 escravas.6
Fato é que a Igreja Católica não manifestou, até as vésperas do 13 de maio, o menor empenho pela abolição da escravatura.
Ao ser promulgada a Lei do Ventre Livre em 1871, D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, em linguagem retorcida, fez questão de se pronunciar contra a abolição total e imediata. "Os revolucionários que profanem o nome da liberdade", escreveu ele em carta pastoral. "Nós, porém, mostremos que por ela, quando justa, como em nosso caso, sabemos fazer algum sacrifício, principalmente sendo este compensado por bem de ordem mais elevada, sem exclusão dos bens materiais e pecuniários." No Pará, na mesma ocasião, o bispo d. Antonio de Macedo Costa dirigiu enérgico protesto contra aquela Lei ao presidente da província, arguindo que se tratava de violação dos direitos da Igreja por uma medida "irregular e anticanônica".7
Quanto aos magistrados, as providências de justiça que deles podiam esperar os cativos eram praticamente nulas; não só pelo velho costume da corrupção, mas também por serem eles, quase sem exceção, proprietários de escravos.
A corrupção geral da Justiça no Brasil foi atestada pela maior parte dos viajantes estrangeiros.
No relato de sua viagem ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, Saint-Hilaire observou: "Em um país no qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações".8
No mesmo sentido, John Luccock: "Na realidade parece ser de regra que no Brasil toda a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que talvez ninguém o considere danoso (a tort); por outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apenas para provocar a completa ruína do queixoso".9
E Charles Darwin, por ocasião da estadia do Beagle em nosso país: "Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados".10
Compreende-se, assim, o grau de destemor e pertinácia, demonstrados por Luiz Gama, quando se opôs sem meias palavras, em mais de uma ocasião, a juízes pusilânimes e servis diante de senhores de escravos.11
Ao assim proceder, seguiu ele as lições de Cícero no De Oratore, sobre a conduta e as qualidades intrínsecas daquele que pleiteia no foro ou na tribuna política. Em primeiro lugar, o que o grande romano chamou de acumen, vale dizer a argúcia em argumentar. Em segundo lugar, a diligentia, ou seja, o zelo e aplicação constantes na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio. Além disso, o probare, ou destreza em provar a verdade, aliado ao conciliare, ou arte de atrair simpatia. Por fim, o movere, isto é, a capacidade de suscitar a emoção no espírito dos ouvintes.
Vamos, portanto, ler os libelos contidos neste livro, como se estivéssemos a ouvir o maior defensor de escravos que este país jamais conheceu.

Notas
1 Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico-Jurídico-Social. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. t.II, p.61 e 114. 
2 Citado por Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. p.63.     
3 Em relação aos primeiros, leia-se, nas p.95 e ss., o artigo "Apontamentos Biográficos", publicado no Radical Paulistano, onde é descrita sarcasticamente a pessoa de um bispo diocesano de São Paulo. Quanto aos magistrados, leiam-se todos os artigos de jornal reproduzidos nas p.101 a 129.
4 Cf. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979. t.2, p.200.
5 Thomas Ewbank, Vida no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Livraria Itatiaia, 1976. p.102.  

6 Cf. Pedro Calmon, História social do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s. d. 1º t., p.74.       
7 História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980. t.II/2, p.277-8.
8 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Livraria Itatiaia, 1975. p.157.    
9 Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Livraria Itatiaia, 1975. p.321.
10 O Diário do Beagle. Editora UFPR, 2006. p.100.
11 Leia-se o artigo "O Novo Alexandre", às p.121 e ss.
 Instituto de Estudos Avançados

Grundise - Manuscritos Econômicos de 1857:58: Esboços da Crítica da Economia Política

Grundise - Manuscritos Econômicos de 1857:58: Esboços da Crítica da Economia Política
Karl Marx, Ed. Boitempo


Obra póstuma de Marx, publicada pela primeira vez em 1939 na extinta URSS, constitui esboço fundamental do que o autor desenvolveria, de modo sistematizado, em Para a crítica da Economia Política (1859) e o livro I de O capital (1866). Trata-se de um estudo inacabado, um manuscrito crítico de Economia Política não destinado a publicação. Sua leitura, fundamental para os estudiosos do marxismo, “é como ter acesso ao laboratório de estudos de Marx”, como sublinha a apresentação de Duayer da presente edição. Mergulhando em pesquisa de grande amplitude, é possível interpretar de modo direto o método de investigação e pesquisa de Marx, distinto, como é sabido, de seu método de exposição científica.
Objetivamente, a presente edição dos Grundrissedivide-se em três importantes textos. O primeiro, “Batiat e Carey”, apresenta uma análise crítica de importantes expoentes da economia moderna, representativos da teoria da harmonia das classes: um protecionista, outro livre-cambista. Traz ainda um pequeno excerto sobre a fonte de renda do trabalhador. Já o segundo texto, “Introdução”, também conhecido pelo título de “Introdução à contribuição à crítica da Economia Política”, além de uma contribuição metodológica, aborda a relação de interação entre produção, distribuição, troca (circulação) e consumo, como constitutivos de uma unidade dentro da totalidade da estrutura de produção. A última parte, “Elementos fundamentais para a crítica da Economia Política”, consiste nosGrundrisse propriamente ditos.
Aqui, o autor analisa a universalidade das categorias da Economia Política – a teoria do valor, relação trabalho material e imaterial, tempo de trabalho necessário e tempo livre, dinheiro, produção e circulação do capital, lucro e juros –, além da luta de classes e outros temas fundamentais. Projeta, a partir disso, o desenvolvimento do indivíduo social no quadro de uma sociedade de transição socialista.
Pela primeira vez em português, a recente edição que o leitor brasileiro tem agora à disposição vem preencher uma lacuna histórica na literatura marxista divulgada no Brasil.


Michelangelo Marques Torres 
Mestrando em Sociologia na Unicamp e professor da Escola Técnica Estadual de São Paulo.

Le Monde Diplomatique Brasil 

Indignai-vos

Indignai-vos
Stéphane Hessel, Ed. Leya


Em meio aos abalos econômicos com reflexos na constituição política da União Europeia, Stéphane Hessel, a partir de relatos de sua trajetória pessoal, convoca as pessoas para que despertem da inércia individualista e resistam, retomando aspirações coletivas. O livro, de rápida leitura e demorada reflexão, traduzido no Brasil como Indignai-vos!, é uma convocação contra a indiferença.
Sua análise da conjuntura fala das perdas da garantia de direitos sociais provocadas pelas reformas estatais em curso no século XXI. O exame da situação, porém, não parece ser o foco dessa obra. O autor usa esses assuntos para demonstrar o que lhe toca, cabendo ao leitor reconhecer em sua realidade os motivos para se indignar.
Diz ele: “Olhem ao seu redor e encontrarão fatos concretos que justifiquem sua indignação”. Trata-se de um manifesto pelo direito de indignar-se, faculdade daqueles que não aguentam o estado de indiferença. O convite é à autorresponsabilização por meio da indignação que nasce da vontade de compromisso com a história.
Hessel embasa suas convicções no contraste entre duas visões de história: uma que percebe o sentido de liberdade no curso dos acontecimentos, fruto da aproximação com Hegel; e outra que traz a eminência catastrófica como forma de observação do fluxo histórico, advinda de Walter Benjamin. Lendo esse manifesto e observando as manifestações que acontecem pelo mundo (Primavera Árabe, Acampamento na Praça do Sol, Atos na Grécia) parece estar nascendo o espírito de uma época que se cansa da indiferença e se indigna.
O livro é útil não apenas para compreender o que se passa em outras realidades. Afinal, no Brasil, onde a festa nos constitui, as expressões de insatisfação também estão presentes. Ou estamos desatentos à indignação que inspira participantes de churrascos de gente diferenciada, de marchas de vadias ou atos pela liberdade, entre twitaços, mamaços e outras tantas manifestações latentes?

Clóvis Henrique Leite de Souza 
Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília e pesquisador associado ao Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e ao Laboratório de Conversas (Labcon/UCB).
Le Monde Diplomatique Brasil 

COOJORNAL: Um jornal de jornalistas sob o Regime Militar

COOJORNAL: Um jornal de jornalistas sob o Regime Militar
Rafael Guimarães, Ayrton Centeno, Elmar Bones (orgs.), Ed. Libretos


Coojornal foi o nome de uma cooperativa de jornalistas de Porto Alegre, e também de um jornal que circulou nas bancas entre 1976 e 1982. A cooperativa, fundada em 1974, foi uma resposta dos jornalistas gaúchos às limitações e constrangimentos criados pela censura aos órgãos de imprensa. O veículo surgiu como uma publicação regional, mas logo passou a privilegiar temáticas nacionais e caracterizou-se por reportagens que historiavam o golpe militar de 64, seus atores políticos, suas memórias e, inclusive, a reação armada da oposição.
O livro foi organizado por jornalistas que integraram a cooperativa. Com uma introdução de dez páginas contando a história da cooperativa e do jornal, o restante da publicação é ocupado por 33 reportagens, “apresentadas da forma que foram publicadas originalmente e transcritas para a nova ortografia”. As capas das edições das matérias, fotos e charges são reproduzidas e o leitor tem uma espécie de grande reportagem, ágil, viva e contundente da história brasileira dos anos 1950 ao início dos anos 1980: a morte de Vargas, o exílio de Jango, as memórias de Brizola, os diários do general Mourão Filho, os retratos de Golbery, de dom Vicente Scherer, as provocações de Fernando Gabeira à esquerda tradicional. Assim como a matéria sobre o impacto que relatórios do Exército (em fevereiro de 1980, a respeito das operações no Vale do Ribeira e na Bahia para liquidar Carlos Lamarca) provocaram. Essa reportagem, por sinal, provavelmente provocou o fim do jornal e da cooperativa – devido às pressões do Exército sobre os anunciantes e à instauração de Inquérito Policial Militar.
Um livro de reportagens que reflete as inquietações daqueles tempos de regime militar. Inquietação sintetizada por Elis Regina, entrevistada em 1979: “Não tem alternativa, bicho. Não tem! Tem que conviver com o que está aí. Ou então fazer uma estação. É o caso de vocês: “tá” enchendo o saco trabalhar no jornal dos outros? Faz um jornal”. Um jornal de investigação memoralística, no caso – o que a grande imprensa não fazia por razões que a história do Coojornalexemplifica. Um jornal com reportagens que podem ser lidas até hoje.

Vitor Biasoli
Doutor em História pela USP e professor na UFSM.
Le Monde Diplomatique Brasil

Segurança Alimentar e Nutricional

Segurança Alimentar e Nutricional
Chistiane Gasparini Araújo Costa, Ed. Annablume Editora/Fapesp


Diante do quadro de grandes transformações das duas últimas décadas, e sua repercussão nos padrões de produção e consumo de alimentos, fortalece-se no Brasil a temática da segurança alimentar e nutricional, que trata da dimensão cultural, social e ambiental relacionada aos alimentos e à alimentação.
Segurança alimentar e nutricional: significados e apropriações traz os diferentes significados da incorporação do enfoque de segurança alimentar e nutricional por parte dos movimentos e organizações da sociedade civil participantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na gestão 2004/2007.
O estudo de Christiane Costa representa uma contribuição valiosa para o campo da saúde pública, ao discutir a questão da elaboração e introdução de políticas públicas promotoras de saúde na área da alimentação e nutrição, com foco no papel dos movimentos sociais, entidades e organizações da sociedade civil nos fóruns institucionalizados de participação social.
Os resultados mostram que o enfoque da segurança alimentar e nutricional foi incorporado no sentido de favorecer a interação entre os campos temáticos das esferas da produção e do consumo e, consequentemente, valorizar uma perspectiva intersetorial de impulsionar a visão do alimento e da alimentação como um direito humano, e priorizar uma perspectiva dialógica e emancipatória nos processos educativos.
A pesquisa aponta que o Consea tem conseguido impulsionar a temática, dentre outros fatores, em decorrência da sólida base de sustentação junto aos movimentos e entidades que militam e atuam na área da alimentação e nutrição, e compõem redes associativas reconhecidas como fóruns importantes das discussões e proposições para a área.
Nesse sentido, a publicação desse trabalho oferece subsídios para reflexão sobre a atuação das entidades da sociedade civil nos fóruns participativos – potencialidades, limites e desafios – para garantir a incorporação dos interesses populares nas políticas públicas.


Cláudia Maria Bógus
Professora associada da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Le Monde Diplomatique Brasil 

A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada

A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, Ed. Companhia das Letras


Os ensaístas Gilles Lipovetsky e Jean Serroy reúnem-se pela segunda vez para adicionar mais um elemento ao mosaico paisagístico do mundo contemporâneo que buscam decodificar. Professor da Universidade de Grenoble, Jean Serroy tem uma trajetória voltada à literatura do século XVII e ao cinema contemporâneo. O filósofo Gilles Lipovetsky, também ligado à Universidade de Grenoble, tornou-se célebre por tratar da moda e do consumo para compreender o que ele chama de hipermodernidade. Ambos já haviam publicado juntos o livro Tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna(Editora Sulina, 2009) e, continuando as análises, desta vez o foco é a cultura-mundo, assim denominada por eles como a cultura globalizada do mundo hipermoderno.
A atual globalização econômica, permanentemente acirrada pelas tecnologias de comunicação instantânea, produziu uma cultura cosmopolita e cosmopolítica que atravessa as fronteiras e envolve o planeta numa mesma lógica. Para reconhecê-la, é preciso entender os quatro polos que, segundo os autores, estruturam os novos tempos: o hipercapitalismo, a hipertecnicização, o hiperindividualismo e o hiperconsumo. A cultura-mundo se define pelo significativo crescimento da esfera cultural e sua absorção pela ordem mercantil − é a excrescência das indústrias culturais e a cultura da vida cotidiana. Os autores frisam a todo momento a característica ambivalente da cultura-mundo, por ser uma cultura universal não totalizante. Ela é formada pelos idiomas, hábitos e estilos das mais diversas localidades, postos em comunicação e hibridização.
Apresentado agora ao leitor brasileiro, o livro data originalmente de 2008, momento da eclosão da primeira amostra da crise financeira internacional a que os autores fazem diversas referências e que novamente encontramos em uma nova fase. Entretanto, importantes efeitos a que hoje assistimos, como as rebeliões juvenis na Europa, não foram observados a tempo pelos autores ao escreverem esse livro, fato que talvez alterasse as conclusões por vezes conservadoras a que eles chegam.

Luís Eduardo Tavares
Sociólogo, mestre pela PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política

Le Monde Diplomatique Brasil

Diversidade sexual e homofobia no Brasil

Diversidade sexual e homofobia no Brasil
Gustavo Venturi e Vilma Bokary (orgs), Ed. Fundação Perseu Abramo


O livro Diversidade sexual e homofobia no Brasilé publicado em um momento ímpar de nosso debate sobre direitos, relações sociossexuais e formas interseccionadas de intolerância e discriminação. Em meio a avanços e retrocessos, entre conquistas no Judiciário e um disparatado “Dia do Orgulho Heterossexual”, os resultados de uma pesquisa homônima ao livro são a chave de entrada para um universo de pessoas e relações que a imaginação homofóbica julga “estranho” ou “desconhecido”. O livro não traz vítimas nem algozes, pois trata as várias dimensões, faces e nuances da homofobia, reconhecendo o alcance, mas também os limites do termo.
Ao longo de treze capítulos, pesquisadores e militantes destrincham a violenta eficácia das representações e práticas acerca de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Mas se os dados analisados mostram um cenário violento, ou mesmo cruel, nada permite reduzir essa realidade à violência física e aberta. Nutrido por outras investigações da Fundação Perseu Abramo, o survey vai além do dito, do explicitamente homofóbico e ressentido que habita a cultura sociossexual brasileira, e inquere o não dito. Nessa dupla chave, a homofobia é mais que o ódio aberto e intransigente, é a pretensa tolerância típica do “não tenho nada contra, mas...”. Dessa postura de pesquisa resulta um cenário que desfaz os pequenos lugares-comuns que engendram a sociabilidade intolerante e preocupa quem vislumbra uma sociedade mais democrática.
Os domínios e os sujeitos tratados no livro são variados, indo da saúde aos direitos, passando por marcadores intersecionados da diferença, chegando à articulação entre recursos socialmente herdados, disposições públicas e indisposições privadas. Nesse emaranhado todo, Diversidade sexual e homofobia no Brasil desvela um país violentamente ambivalente: ao mesmo tempo que uma suposta liberdade sexual abençoa nossa população, não param de crescer os clamores por “decência”, “moral” e “valores”, enfim, por punição. Quem são as práticas e os sujeitos punidos, todos sabemos; suas razões, ou algumas delas, serão encontradas aqui.


José Szwako
Doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.
Le Monde Diplomatique Brasil

Ler Marx

Ler Marx
Gérard Duménil, Michael Lowy e Emmanuel Renault., Ed. UNESP


O século XXI inicia-se com uma conjunção de crises − econômica, ambiental, alimentar, política −, que revelam os limites da formação social capitalista. Juntamente, percebe-se a retomada do interesse pela obra de Karl Marx. Neste contexto, Ler Marxtraz uma contribuição crucial ao salientar a necessidade de se voltar aos escritos do próprio Marx para compreendê-lo, não confundindo as ideias do autor “com suas caricaturas autoritárias”. Assim, Duménil, Löwy e Renault apresentam trechos da obra de Marx, situando-os em seu contexto histórico e teórico de produção, explicitam questões relevantes e apontam alguns de seus desdobramentos.
Michael Löwy é o autor da primeira parte do livro, referente à política. Ele foca sua análise em algumas ideias centrais que aparecem nos textos políticos de Marx, realizando um exame da maioria da produção intelectual do filósofo − o que é feito com maestria. Destacam-se as observações de Löwy quanto à atualidade das formulações teóricas de Marx neste início de século XXI.
Emmanuel Renault é o autor da segunda parte do livro, referente à filosofia. Renault foca sua análise nos textos produzidos por Marx entre 1843 e 1846. A questão central são as motivações que conduziram Marx ao “abandono da filosofia” e à matriz filosófica desse abandono na produção posterior do autor. Como Renault busca comprovar em seu estudo, esse “abandono da filosofia” visa mais a um transformar radical da prática filosófica do que a uma liquidação da filosofia.
A terceira e última parte do livro é de autoria de Gérard Duménil, que analisa a economia em Marx. Duménil apresenta as motivações que levaram o escritor alemão a realizar o enorme investimento intelectual em economia política e apresenta as contribuições do autor sobre o método da economia política, para então realizar uma análise minuciosa de O capital.
Enfim, em Ler Marx tem-se uma relevante contribuição tanto aos iniciantes nos escritos de Marx quanto aos estudiosos do autor.

Juliano Palm
Historiador e mestrando em Ciências Sociais pela CPDA/UFRRJ.
Le Monde Diplomatique Brasil

O tempo entre costuras

O tempo entre costuras
Maria Duenas, Ed. Planeta


Contando apenas com a costura, a vida de Sira Quiroga se divide basicamente em três fases permeadas por uma traição e duas guerras. Ao final de cada fase, parece que a história está prenunciando o fim, mas eis que ocorre uma reviravolta e o enredo recomeça com uma nova trama, outras pessoas, mas a mesma personagem principal.
No início, Sira é uma jovem ingênua que costura para ajudar a mãe em um ateliê em Madri e está definindo os traços que dará a sua vida. Quando parecem estar certos, ela vive uma paixão avassaladora e parte para uma aventura no Marrocos. Ali vive uma história sem restrições ou limites, até que seu amado lhe surpreende, abandonando-a. Sem alternativas de retorno a Madri, começa uma nova fase, em que precisa reestruturar sua vida sozinha, com poucos recursos. Nesse momento, personagens importantes entram na trama, e a protagonista vive momentos de suspense e perigo, mas alcança paz e conforto com a costura.
Inserida na elite marroquina, ela vive distante dos horrores por que passa sua terra natal com a Guerra Civil Espanhola. Quando Sira alcança aparente estabilidade e novamente a história poderia terminar, a autora cria um recomeço e coloca a protagonista num novo enredo, agora num contexto de Guerra Mundial.
Maria Duenas descreve os caminhos de uma mulher que encara a vida de forma solitária, mas nunca sozinha. Talvez o mais fascinante do livro seja acompanhar os passos dessa personagem num tempo em que, em geral, o papel das mulheres na sociedade se restringia ao desempenhado pelas próprias frequentadoras do ateliê de Sira: esposas. Porém, mesmo elas, nessa história, têm atuação fundamental, já que se tornam mais do que clientes de Sira − são ingênuas delatoras daqueles que lhes proporcionam seu principal papel: os maridos. Assim, a autora consegue criar um enredo com personagens complexos, que fogem dos estereótipos mesmo que de forma sutil.
Sofia Reinach
Mestranda em Administração Pública e Governo pela EAESP/FGV na temática de gênero e leitora de romances nas horas vagas
Le Monde Diplomatique Brasil 

Capitalismo globalizado e recursos territoriais: Fronteiras da acumulação do Brasil Contemporâneo

Capitalismo globalizado e recursos territoriais: Fronteiras da acumulação do Brasil Contemporâneo
Alfredo Wagner Berno de Almeida e outros, Ed. Lamparina


Nascido da iniciativa de um conjunto de laboratórios acadêmicos dedicados à pesquisa social aplicada ao território, esse livro traz nova luz ao debate contemporâneo sobre as inflexões do capitalismo brasileiro nesta década do século XXI. As contribuições dos autores combinam análises macroeconômicas refinadas sobre as transformações recentes da economia mundial, brasileira e da América Latina com reflexões sobre seus efeitos nos territórios, isto é, numa escala, digamos, “real”, em que estão em jogo disputas em torno de recursos territoriais, naturais e sociais. Os artigos oferecem ao leitor análises de alta densidade sobre a face menos gloriosa da expansão das fronteiras do capitalismo brasileiro e suas implicações políticas, sociais e ambientais. Questionam-se, aqui, os rumos e sentidos do que se tem entendido por “desenvolvimento”, com base em estudos que evidenciam a associação indissolúvel entre o processo de acumulação do capitalismo brasileiro contemporâneo e os processos de expropriação territorial e desapossamento sociocultural sobre os quais estão erigidas suas bases. Em outras palavras: a tão celebrada acumulação intensiva do capitalismo brasileiro − setor industrial e de serviços de ponta, alto rendimento do capital e ganhos de produtividade – não é, segundo a perspectiva trazida por essa coletânea, desvinculável dos processos de acumulação extensiva via expansão das fronteiras pela expropriação de recursos comunais e expansionismo territorial predatório. Pela solidez das contribuições de seus autores e atualidade dos temas que aborda, é um livro obrigatório para estudiosos e demais interessados nas transformações do capitalismo brasileiro contemporâneo e, em particular, nas dinâmicas socioespaciais conflituosas nascidas da generalização do processo de acumulação por espoliação induzido pelas políticas de crescimento econômico adotadas pelo país na última década. Seus autores procuram assim encarnar uma postura intelectual que visa, nos termos de Edward Said, mudar o clima moral do debate sobre “desenvolvimento”.


Cecília Campello do A. Mello
Doutora em Antropologia e professora adjunta do IPPUR/UFRJ.

Le Monde Diplomatique Brasil 

E se Obama fosse africano

 
E se Obama fosse africano
Mia Couto, Ed. Companhia das Letras


O livro é uma reunião de ensaios que refletem sobre mazelas e potencialidades do continente africano e conferem continuidade ao papel de intervenção social que Mia Couto vem construindo com tamanha seriedade, numa boa dose de observação e de mágica nas palavras.
O autor moçambicano traça uma crítica clara à falta de investimento em educação e trabalho no país, sem o qual o continente não poderá extrapolar os status de ausência, de caso clínico ou de quintal do mundo e assumir protagonismo em sua história. Suas reflexões representam o grito por um pensamento produtivo, igualitário e ousado, que seja capaz de se opor às margens de um sistema que comprime as águas volumosas que banham o continente.
Com exceção daquele que empresta título à obra, os textos reunidos foram pensados para participações em encontros e colóquios dentro e fora de Moçambique. Desses, três foram realizados no Brasil.
No artigo “E se Obama fosse africano?”, o autor moçambicano especula sobre as dificuldades que o presidente encontraria para chegar ao poder nesse continente e continuar a exercê-lo de maneira democrática.
A corrupção, as doenças, as queimadas, a ciência, o hip-hopmoçambicano, a solidariedade entre iguais, as formas de violência... São diversos os temas tratados nessa coletânea, e, ao abordar peculiaridades do país de onde escreve, o autor fala de temas universais, por se referir sempre a humanidades: desejos, angústias, injustiças, descobertas, alegrias, efemeridades.
Logo no início do volume é narrada a história do velho guarda de uma estação hidrológica de Moçambique, que cumpria com dedicação a missão de preencher formulários para o controle fluvial, embora tal programa federal houvesse sido extinto com a guerra. Quando seus formulários acabaram e não havia a quem os solicitar, o velho guarda começou a fazer registros na parede da estação. Mia nos faz lembrar que em todas as partes do mundo há gente “inscrevendo na pedra os minúsculos sinais da esperança”.


Telma Hoyler
Pesquisadora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Ceapg-FGV e Instituto Pólis.
Le Monde Diplomatique Brasil

Ideologia: uma breve história do conceito


Marcus V. Mazzari
Professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, tradutor e também autor, entre outros, de Labirintos da aprendizagem – Pacto fáustico, romance de formação e outros temas de literatura comparada(Editora 34, 2010). Elaborou os prefácios, comentários e notas aos volumesFausto I (Editora 34, 2004 – edição revisada e ampliada: 2010) e Fausto II, de Goethe (Editora 34, 2007), em tradução de Jenny Klabin Segall.  @ –mazzari@usp.br


Com a publicação em 2010 do volume Ideologia e contraideologia, Alfredo Bosi se lança a um considerável desafio, o qual pode ser sintetizado na metáfora do "nó ideológico". Essa imagem se explicita no título do último ensaio, que busca desenovelar os vários fios envolvidos na trama ideológica vislumbrada na obra ficcional de Machado de Assis (em especial, nas Memórias póstumas de Brás Cubas). Mas, para enfrentar tal tarefa, é necessário antes abrir clareiras no tremedal teórico que envolve o conceito de "ideologia" e, para isso, Bosi percorre um longo itinerário, que vai às raízes da filosofia ocidental. Pois se a palavra idéologie foi cunhada em 1796 pelo pensador sensista Destutt de Tracy, a pré-história desse conceito pode ser sondada já na oposição, articulada por Platão, à atividade dos sofistas, "primeiros profissionais da retórica e do mercado ideológico que a história da filosofia registra". É claro que esse percurso pela intrincada trajetória do conceito "ideologia" não é realizado apenas em função da obra machadiana, pois na verdade todo o livro constitui um extraordinário esforço de elucidar alguns dos fios que o pensamento ocidental urdiu em "nó ideológico"; mas, chegando o leitor ao último ensaio, vários pressupostos da argumentação crítica lhe estarão suficientemente claros, refiram-se eles a concepções de Karl Mannheim, Marx e Engels, dos moralistas, ou ainda a particularidades da história do liberalismo na Europa, nos Estados Unidos e, sobretudo, no Brasil.


Impressiona, em primeiro lugar, a profusão de teóricos visitados ao longo dos 25 ensaios do livro. Em seu primeiro bloco (transpondo-se o portal de entrada "socrático-platônico") estão Francis Bacon, cuja doutrina dos "ídolos" avulta como um marco inicial na reflexão moderna sobre ideologia, assim como Montaigne e Thomas Morus. Alfredo Bosi passa em revista vários outros nomes envolvidos nos embates ideológicos dos primeiros tempos da Era Moderna, enfocando na sequência as Luzes, o período pós-revolucionário, e assim sucessivamente, até chegar a Habermas e outros contemporâneos. Contudo, a linearidade da cronologia é complexificada à medida que se criam vasos comunicantes entre os ensaios, o que dá grande vivacidade ao conjunto. Desse modo, o esboço utópico de Morus retorna, acompanhado de comentários de Horkheimer, num momento posterior do livro, que destaca as circunstâncias históricas propiciadoras do advento das utopias renascentistas, sobretudo a miséria dos camponeses ingleses e italianos, que Morus e Tommaso Campanella atribuíram à ausência de limites para a propriedade privada.
Na impossibilidade de se deter aqui sobre cada um dos teóricos comentados, valeria ressaltar alguns momentos do amplo panorama construído pelo autor, como os capítulos dedicados ao pensamento de Rousseau, resistente às "máximas" ideológicas de seu tempo, ou de Montesquieu, que deu ênfase às ideias de "condição" e "relação" para a compreensão do "Espírito das Leis". Em outro capítulo particularmente denso, sintetizam-se linhas de força do pensamento de Vico, Condorcet e Hegel sob o prisma de três figuras: o ciclo dos fluxos (corsi) e refluxos (recorsi) na filosofia da história viquiana; a linha reta do "perfectibilismo" (termo que remonta ao Discurso sobre a desigualdade de Rousseau) no teórico do progresso Condorcet; e, ainda, a espiral dialética delineada por Hegel, espécie de linha ascendente que, voltando sobre si mesma para cumprir o seu percurso, só avança "depois de ter-se curvado, compondo uma figura que é ascendente na direção geral e, por um breve momento, parece fechar-se no seu movimento interno". Também a teoria política de John Locke é minuciosamente reconstituída por Bosi, que aponta, já nesse manancial do liberalismo inglês, a "conjugação de retórica universalizante e interesses particulares", pois afinal o teórico da tolerância teria sido ao mesmo tempo acionista da Royal African Company, e em seu esboço social a escravidão estaria legitimada enquanto "um ato de força tornado legal (a lawful conqueror) e reconhecido como pacto imemorial". Não por acaso, o segmento sobre Locke figura na segunda parte do livro, voltada às intersecções ideológicas entre Brasil e Ocidente, em cujo contexto levanta-se uma das teses centrais do livro, que ressurge no ensaio sobre Machado sustentando que o liberalismo excludente não representa uma excrescência brasileira, deslocamento aberrante de ideias europeias para o nosso contexto, mas antes "um complexo de medidas econômicas e políticas efetivas que regeram todo o Ocidente atlântico desde o período napoleônico e a Restauração monárquica francesa".
Essa observação ajuda a elucidar o desenho geral do livro: vários pontos desenvolvidos na primeira parte, que percorre momentos cruciais do pensamento ocidental, retornam na segunda, que se debruça mais especificamente sobre aspectos da história brasileira, em particular liberalismo, escravidão e luta abolicionista, ou ainda projetos trabalhistas, sobretudo sob o governo de Getulio Vargas, cuja análise se desenvolve perante o pano de fundo do Welfare State inglês e do État-Providence. O fio que alinhava esses 25 ensaios é explicitamente o conceito de ideologia, que Bosi opera em suas duas acepções, designadas por Norberto Bobbio como sentido forte e fraco. O primeiro caracteriza-se por uma dimensão por assim dizer metonímica, já que busca conferir camuflagem universal a interesses particulares, e remonta, sobretudo, à Ideologia alemã, em que Marx e Engels definem ideologia como "falsa consciência" – também como inversão da objetividade histórica, conforme se formula nessa célebre passagem: "Se no todo da ideologia os homens e suas relações aparecerem de ponta-cabeça, como numa camera obscura, então esse fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, do mesmo modo como a inversão dos objetos na retina resulta do imediato processo físico de vida".
Mas se o estudo de Bosi abre amplo espaço a essa obra de Marx e Engels que inaugurou nova fase na crítica ideológica, ele não dispensa menor atenção à outra acepção do termo "ideologia", na qual o qualificativo "fraco" se deve apenas à sua dimensão não valorativa, que faz jus ao sentido etimológico de "doutrina de ideias". Esse significado mais flexível, como também se pode entender o adjetivo "fraco", é tributário da sociologia do saber (Wissenssoziologie) e terá recebido sua elaboração mais consistente na obra de Karl Mannheim Ideologia e utopia(1929), que consequentemente ocupa posição de relevo na argumentação crítica de Alfredo Bosi. Nessa perspectiva, ideologia equivaleria de certo modo à "visão de mundo", ultrapassando o significado mais restrito de "falsa consciência", o que já se prefigura, como lembra o excelente "interlúdio weberiano", na opção de Max Weber pelo termo "ética" (e não ideologia) protestante.
Acolhendo a hipótese habermasiana de uma relação emancipadora entre "conhecimento e interesse", pode-se dizer que uma das motivações que imantam o esforço teórico desenvolvido nesse livro é o desejo de adensar a resistência ao "liberalismo econômico puro e duro", que recrudesceu consideravelmente nas últimas décadas do século XX. Seria legítimo dizer, portanto, que se trata de um projeto "contraideológico", e sua contribuição entre nós se fará sentir tanto nos estudos sociológicos como literários (por exemplo, na árdua tarefa de destrinçar "nós ideológicos" em obras do porte das Memórias póstumas). Entende-se daí a relevância que o autor dispensa ao pensamento – e, mais ainda, à práxis – de figuras como Gramsci e Simone Weil, aproximadas justamente numa chave de resistência. Pelo lado brasileiro, a empatia de Bosi faz avultar Joaquim Nabuco e Celso Furtado, aos quais são dedicados dois dos mais belos ensaios. Como perceberá o leitor, nesse livro que abrange tão vasto material teórico e histórico, a clareza da exposição encontra-se intimamente conjugada com a atenção ao fato concreto (a verità effettuale della cosa encarecida por Maquiavel) e a tendência a sempre historicizar concepções e ações das figuras enfocadas, conforme se mostra exemplarmente em relação a nomes como Perdigão Malheiro e Tavares Bastos, já antes enaltecidos por Nabuco.
É claro que, em face de um trabalho de tão amplo espectro, pode-se apontar para uma ou outra lacuna, fazer essa ou aquela ressalva etc. Um possível exemplo: Ernst Bloch é mobilizado, ao lado de Walter Benjamin, na argumentação – aliás, plenamente legítima – que procura mostrar o lado "desalienante" da religião; contudo, essa tarefa seria mais dificultosa se fosse considerado (pois também contraideologias e utopias não estão isentas de contradições) que Bloch, o filósofo do "princípio-esperança" e do "ainda não", foi um dos mais veementes defensores do estalinismo. E já que os dois últimos ensaios da primeira parte são dedicados ao "projeto fáustico" e ao Fausto de Goethe, seria cabível uma referência a Oswald Spengler, que em sua obra de inspiração nietzschianaA decadência do Ocidente caracterizou pioneiramente o homem ocidental, em sua incansável aspiração por transformar o mundo e expandir fronteiras, como "fáustico", contrapondo-o ao homem "apolíneo" da Antiguidade, voltado tão somente ao presente e, assim, alheio à dimensão do passado e do futuro. Mas semelhantes objeções ou eventuais lacunas que se possam verificar nessa incursão de Alfredo Bosi pela espinhosa história do conceito de ideologia serão afinal irrelevantes diante dos seus inúmeros méritos, entre os quais está o de aguçar a percepção do leitor para aquilo que Paul Ricouer chamou de "clausura ideológica" (clôture idéologique).
Instituto de Estudos Avançados - USP

E se Obama fosse africano

E se Obama fosse africano
Mia Couto, Ed. Companhia das Letras


O livro é uma reunião de ensaios que refletem sobre mazelas e potencialidades do continente africano e conferem continuidade ao papel de intervenção social que Mia Couto vem construindo com tamanha seriedade, numa boa dose de observação e de mágica nas palavras.
O autor moçambicano traça uma crítica clara à falta de investimento em educação e trabalho no país, sem o qual o continente não poderá extrapolar os status de ausência, de caso clínico ou de quintal do mundo e assumir protagonismo em sua história. Suas reflexões representam o grito por um pensamento produtivo, igualitário e ousado, que seja capaz de se opor às margens de um sistema que comprime as águas volumosas que banham o continente.
Com exceção daquele que empresta título à obra, os textos reunidos foram pensados para participações em encontros e colóquios dentro e fora de Moçambique. Desses, três foram realizados no Brasil.
No artigo “E se Obama fosse africano?”, o autor moçambicano especula sobre as dificuldades que o presidente encontraria para chegar ao poder nesse continente e continuar a exercê-lo de maneira democrática.
A corrupção, as doenças, as queimadas, a ciência, o hip-hopmoçambicano, a solidariedade entre iguais, as formas de violência... São diversos os temas tratados nessa coletânea, e, ao abordar peculiaridades do país de onde escreve, o autor fala de temas universais, por se referir sempre a humanidades: desejos, angústias, injustiças, descobertas, alegrias, efemeridades.
Logo no início do volume é narrada a história do velho guarda de uma estação hidrológica de Moçambique, que cumpria com dedicação a missão de preencher formulários para o controle fluvial, embora tal programa federal houvesse sido extinto com a guerra. Quando seus formulários acabaram e não havia a quem os solicitar, o velho guarda começou a fazer registros na parede da estação. Mia nos faz lembrar que em todas as partes do mundo há gente “inscrevendo na pedra os minúsculos sinais da esperança”.


Telma Hoyler
Pesquisadora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Ceapg-FGV e Instituto Pólis.
Le Monde Diplomatique Brasil 

As políticas culturais e o governo Lula

As políticas culturais e o governo Lula
Albino Canelas Rubim, Ed. Perseu Abramo


Num momento de efervescências socioculturais no Brasil, após conquistas históricas para a cultura brasileira, o livro de Albino Rubim inspira o debate atual. Desenha os cenários históricos das políticas públicas de cultura, apontando para os avanços dos programas Cultura Viva e outros, que ampliaram a ação da sociedade nas decisões das políticas culturais na gestão Gil.
O texto aborda vários momentos e experiências culturais das políticas de governo. Repassa documentos e livros basilares, e relembra a gestão paradigmática de Mário de Andrade. O livro está ancorado no tripé autoritarismos, ausências e instabilidades − as “três tristes tradições” que devemos enfrentar.
A definição de política pública de cultura é fundamental para situar o livro: por meio dela os debates são incorporados na elaboração das políticas de Estado, e as formulações não seriam ofertadas como “prato feito” para a população e agentes culturais, artistas, coletivos e intelectuais. Romper com os autoritarismos, a primeira das tradições citadas, deve ser um dos enfrentamentos culturais.
A análise das ausências leva o leitor a rever as leis de incentivo de outra óptica. Desde o governo Sarney houve uma lacuna no investimento direto em cultura, priorizando-se o financiamento por meio da renúncia fiscal. Faz parte de uma das tradições tristes essa ausência do Estado e a presença dos critérios de mercado na produção cultural.
Já as instabilidades ocorrem em vários momentos: na transição de governos, de partidos diferentes, dentro de um mesmo governo e também de um mesmo partido. Essa é talvez a mais importante e triste tradição do momento, e devem-se buscar mecanismos para manter uma política cultural estável. A institucionalização dos pontos de cultura e de outros programas pode ser um aspecto a ser enfatizado contra as instabilidades. O livro não esgota o tema, mas ilumina as reflexões no campo da cultura. Mais que um aperitivo, é um banquete para os interessados em discutir as políticas socioculturais no Brasil.


Valmir de Souza
Doutor em Teoria Literária, pesquisador de políticas culturais do Instituto Pólis e diretor do Sinpro-Guarulhos
Le Monde Diplomatique Brasil

Pesquisas e terapias com células-tronco: governança, visões sociais e o debate no Brasil

Pesquisas e terapias com células-tronco: governança, visões sociais e o debate no Brasil
Liliana Acero , Ed. E-Papers


Um traço primordial da chamada revolução científica ocorrida no Ocidente entre os séculos XVI e XVII consistiu na superação da dicotomia que opunha a episteme (a ciência, o saber teórico) àtechne (a técnica, o saber prático). A ciência moderna, que então emerge, não convalida tal dissociação. Cada vez mais, o conhecimento teórico propiciará fundamentos para a ação prática, residindo nesse enlace o núcleo da noção, igualmente moderna, de políticas públicas. Mas, como se sabe, o enlace é, para não fugir à regra, ao mesmo tempo profícuo e conflituoso. Teoria e prática nem sempre convivem em harmonia, e os níveis de tensão do relacionamento que mantêm se revelam visíveis e intensos quando se trata da intervenção estatal sobre o cotidiano das pessoas.
O livro de Liliana Acero é altamente esclarecedor das disputas e contradições que rondam não só o progresso da ciência como, sobretudo, sua utilização para melhorar a vida humana em sociedade. Resultado de acurada investigação, a obra envereda pelos bastidores de um tema atual e polêmico, desvelando as inúmeras dimensões do debate em torno do assunto. Contudo, apesar de contemplar dimensões diversas, considerando as especificidades que guardam – as questões da bioética, por exemplo, pode ser enfocada em sua singularidade –, a autora não perde o fio da meada. O eixo de sua análise, respaldada pelo repertório conceitual das ciências sociais, reside justamente no caráter político que perpassa todas as manifestações da discussão, esteja ela no campo da genética, da ética, da saúde, da economia ou da justiça social.
Não há neutralidade na esfera da política. Intervenções governamentais, por mais que se apresentem como técnicas, exprimem correlações de interesses; os sofisticados saberes que lhes conferem aparência de solução também embutem antagonismos. A possibilidade de que a ciência moderna –epistememais techne– sirva à expansão da equidade, à inclusão social e à universalização do bem-estar se encontra no aprofundamento da democracia


Maria Lúcia Werneck Vianna
Decana do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ
Le Monde Diplomatique Brasil