Histórias do Brasil
MARIA VICTORIA BENEVIDES
lula, Marighella, Jânio, três brasileiros exemplares, são tema de livros recentes que, por vários motivos, merecem a atenção de todos os interessados em nossa história contemporânea. Mas de que serão ''exemplares''? Jânio Quadros é o exemplo do político que, com um estilo autoritário, moralista e mistificador, melhor ilustra o ''populismo de direita'' _militarista, antiparlamentar, associado ao grande capital_ e que, portanto, melhor serve aos interesses das classes dominantes. Carlos Marighella é o exemplo do líder revolucionário, intelectual e guerreiro, que deu a vida por seus ideais, levados às últimas consequências, na luta contra a ditadura e pela libertação dos oprimidos. Luis Inácio Lula da Silva é o exemplo de líder operário que se torna líder de massas e o mais importante político na esquerda nacional. Em comum eles têm a origem humilde, a liderança, o amor e o ódio que provocaram e um lugar garantido em nosso fértil imaginário político.
O depoimento de Carlos Castello Branco refere-se apenas aos momentos imediatos à renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961. De seu posto privilegiado, como secretário de imprensa da Presidência, acompanhou tudo e anotou as conversas. Não esclarece os motivos da renúncia, mas confirma o que sempre se soube: Jânio contava com a volta triunfal nos braços do povo e não teria escrúpulos em apelar para o golpe. Confiava, para tanto, no apoio explícito dos chefes militares, citados textualmente: ''O presidente que ordenasse as providências que seriam tomadas, intervenção na Guanabara, fechamento do Congresso... mas o governo não poderia passar às mãos de João Goulart''.
Mas contesto a afirmação de que Jânio não cultivava as Forças Armadas. O próprio autor relata como Jânio ''designava sempre militares para as comissões de inquérito''. Ora, como já escrevi em outra ocasião, um dos principais motivos para a hostilidade de parlamentares a Jânio foi a criação de subchefias militares do gabinete presidencial em várias regiões do país e a exclusividade dos oficiais na direção da ''cruzada moralizadora''. Da versão do jornalista resta um drama mesquinho, fruto de intrigas palacianas, nas quais avulta José Aparecido (que parece ter controlado a imprensa da época) e Pedroso Horta. É símbolo de nossa política elitista a frase atribuída ao ministro da Justiça: ''Esse país imenso está em nossas mãos. Somos três ou quatro os que têm as rédeas''.
O livro de Marighella começa com sua prisão, num cinema carioca, em maio de 1965, quando reage e leva um tiro no peito, gritando: ''abaixo a ditadura, viva a democracia''. O autor-personagem relata os interrogatórios (destaque para o caso da ''caderneta de Prestes'') e os métodos da polícia política, discutindo o uso da mentira e das torturas. Analisa o caráter fascista do regime militar desde o Estado Novo e defende a criação de uma frente única pelas liberdades democráticas, insistindo, porém, na necessidade da preparação para a ''luta de massas''. Acredita, ainda _o que explica sua luta futura_, que ''a realidade poderá levar ao aparecimento de guerrilhas'', tomando como exemplo a revolução cubana.
O livro sobre Lula acompanha, sob a forma de entrevistas com ele e seus irmãos, a trajetória de Garanhuns a Vila Euclides (1980). Temos uma história viva e comovente da experiência da seca e da fome, das enchentes e do trabalho pesado, de um pai cruel e de uma ''mãe coragem'' _e também da esperança, do amor e da solidariedade. Esboça-se o metalúrgico que vai adquirindo consciência política; a autora quer mostrar como a família Silva encarna as contradições e complexidades brasileiras e entender como Lula foi capaz de mudar sua vida e de parte da nação. É ele quem diz, aliás: ''Estou convencido de que com esse povo vai dar para mudar o Brasil''. A parte teórica do livro trata da passagem de uma ''cultura da pobreza'' para a ''cultura da transformação'' e ainda aborda, do ponto de vista psicológico, a relação difícil de Lula com o pai.
Como reunir, em um só comentário, livros tão díspares pelos objetivos, pela forma, pela origem dos autores e pela vida dos personagens?
Os objetivos diferem, mas partem de um elemento comum: os três autores estão empenhados, quiseram ''dar um recado''. Castello Branco, que exigiu a publicação somente após sua morte, quis apresentar a sua versão dos fatos. Denise precisava de um tema para sua tese e escolheu, a partir de evidente identidade ideológica, a trajetória de Lula (de quem foi assessora em outros tempos) e de sua família. Marighella quis explicar sua resistência, denunciar o caráter fascista da ditadura e conclamar as ''novas gerações'' para a luta.
As diferenças de forma decorrem, em parte, da origem dos autores e de seus objetivos. O jornalista produz um depoimento quase romanceado com o suspense dos bastidores, além de prudente análise sobre a subjetividade dos atores principais, sempre com o olhar de testemunha discreta e como que emocionalmente distante. Ao contrário de Denise, não demonstra admiração pelo seu personagem, visto como uma ''figura tensa, inexplicada e patética''. Marighella, ao mesmo tempo autor e personagem, escreve com indignação permeada de uma boa dose de humor e ironia; seu livro é um relato autobiográfico apaixonado e apaixonante, além de um manifesto revolucionário. A historiadora, por sua vez, apresenta o resultado de sua pesquisa, escapando do estilo tradicional dos acadêmicos, ao misturar longas entrevistas com a discussão teórica, em texto fluente e agradável. Os três livros têm excelente escolha de fotos.
Quanto à vida dos personagens: é evidente que existe uma distância abissal entre o presidente renunciante e os outros, mas entre estes dois também existem diferenças significativas.
Jânio Quadros foi, sem dúvida, um fenômeno eleitoral e político como nenhum outro no cenário do populismo brasileiro; jogando habilmente com o temor das elites diante da possível ascensão de uma liderança efetivamente popular, com a insegurança das classes médias diante de um suposto comunismo ''proletarizador'' e com a sedução das massas pelo chefe redentor, manteve-se durante um certo tempo no imaginário coletivo, graças ao mito do ''bom pai'' _autoritário, porém ''justo''. A essência de sua política era a manipulação demagógica e o apoio à manutenção, mesmo que sob o disfarce de um voluntarismo imperial, do regime oligárquico. Morreu sem provocar qualquer comoção pública e virou nome de túnel na gestão malufista, sem ter jamais explicado as razões da renúncia, apresentada como ''denúncia'', até hoje não se sabe de quê. Apesar da força inegável de sua imagem popular durante uma certa época, nada mais existe em comum entre ele e Lula ou Marighella.
Carlos Marighella, o personagem histórico, o constituinte de 46 e o revolucionário exemplar na coragem, na persistência e na integridade mesmo diante das prisões e das torturas, é reconhecido como ''herói do povo brasileiro'' por admiradores tão diferentes quanto Antonio Candido (socialista petista) e Jorge Amado (ex-comunista, amigo das oligarquias nordestinas), que escrevem, respectivamente, a apresentação e o prefácio do depoimento. Apesar de partilhar com Lula origens simples _pai operário, imigrante italiano e mãe negra, descendente dos haussás, escravos na Bahia_, dele difere por contar, desde cedo, com o estímulo familiar para estudar e envolver-se com a política. Enquanto Lula não perdoa a ignorância e a violência do pai, que espancava os filhos por qualquer veleidade de frequentar escola, o líder baiano só não conclui o curso de engenharia devido às exigências da militância, em plena efervescência de 1935.
Também ao contrário de Lula, Marighella cresceu politicamente como boa parte da esquerda brasileira, isto é, com uma sólida formação teórica no marxismo e nas fileiras de um partido organizado com rígidas disciplina e hierarquia, como o PCB. Lula surgiu na vida pública praticamente repudiando a política, ainda influenciado pelos valores conservadores do meio rural-popular, bem como pela imagem deletéria da política como ''politicagem'', o que o levava a se orgulhar de ser apenas um torneiro mecânico com liderança sindical... Segundo Denise, Lula nunca leu Marx e, apesar de sua excelente relação com os intelectuais do partido, tem sua militância centrada na riquíssima experiência de fábrica, de dirigente sindical e, posteriormente, já assumidamente ''político'', de dirigente partidário atento à legitimidade das divergências e à voz dos movimentos populares.
Marighella é claramente um exemplo da geração anterior, tributária do clima densamente ideológico dos anos 30. A análise teórica que empreende em seu depoimento revela o espírito da época: uma descrença ''na tão apregoada validez e respeitabilidade da democracia representativa'' e nos sistemas eleitorais nos quais persistiam o abuso e a farsa. Essa sua posição é ainda mais fácil de entender quando se examina a composição do Parlamento conhecido por Marighella, tomado pelos ''interesses mais escusos da classe dominante''. A experiência de Lula, 35 anos mais moço, será radicalmente diferente. É das lutas sindicais _nas quais havia também prisão e resistência, mas sobretudo nas quais grande parte das conquistas se davam num contexto de acordos e negociações_ que ele tira suas principais referências, acreditando que poderia conseguir o mesmo no plano político-partidário.
Os três foram, de fato, líderes populares. Mas foram líderes de quê? Jânio Quadros representou mais um exemplo da vitória das elites plutocráticas por meio de uma liderança boa de voto, no pior estilo do velho populismo. O cerne do projeto oligárquico consiste justamente em permitir a projeção de um demagogo que defenderá aqueles interesses: nada melhor do que um ator histriônico como Jânio, o homem da vassoura e do ''tostão contra o milhão'', (campanhas de 1953, 1954 e 1960), mas que se compõe, atrás da cena, com o milhão contra o tostão.
Há muito tempo a direita se deu conta de que, com a imensa maioria do eleitorado nas chamadas classes C e D (cortejadas e manipuladas por gente como Jânio, Maluf e Collor, mas também por intelectuais sofisticados como Fernando Henrique Cardoso), ela só terá chances apoiada no disfarce do discurso e da prática populistas. Jânio foi ótimo nessa liderança falsamente carismática. Mas, quando quis ''ser independente'' e dispensar o apoio das oligarquias, repudiando o Congresso e ''os ricos'', perdeu. Ao renunciar, não teve o clamor do povo que, supostamente, o endeusava. Com Fernando Collor aconteceria o mesmo, ao desafiar o poder oligárquico; ambos foram Fujimori ''avant la lettre'' e perderam.
Jânio, embora perdedor no segundo round, foi útil para as elites enquanto estas dele precisaram; o provinciano professor de ginásio é tolerado no seleto clube da política brasileira com sua caspa, seu desalinho e seu histrionismo, sobretudo por seu fantástico ''timing'' dos amores e rancores do povão. Marighella e Lula, por sua vez, continuam ''outsiders''; não podem ser aceitos pelo regime oligárquico que sistematicamente teme e exclui as lideranças autenticamente populares. Lula é excluído pela formidável conjugação de forças, naquele arco triunfante que abrange da ''social-democracia'' ao conservadorismo mais arcaico, e que prefere qualquer um _mas ''qualquer um'' mesmo_ que possa derrotar os legítimos interesses populares. Marighella acaba excluído pela violência mais brutal, assassinado ''pelas forças da ordem'' a serviço daqueles mesmos grupos que estão dispostos a pagar qualquer preço _mesmo o de sua dignidade_ para excluir aqueles que podem estragar a festa oligárquico-populista.
Talvez não seja exagero apontar mais uma peculiaridade nas diferenças entre eles. Marighella teria sido um líder ideológico, isto é, mais importante no plano das idéias do que efetivamente na conquista de seguidores pela prática política, apesar de sua intensa atividade como dirigente comunista e como líder de movimento revolucionário, como a ALN (Aliança Libertadora Nacional). Sua preocupação em estudar e discutir o marxismo-leninismo e publicar livros e artigos sobre questões teóricas e a realidade brasileira não encontra paralelo na atuação do torneiro mecânico que disputa a Presidência da República.
Lula foi e continua sendo um líder de massas, de uma expressiva parcela do povo que inclui o velho proletariado _hoje bem mais diversificado, visto como o conjunto dos ''trabalhadores''_ e, também, e isso é o mais importante, as forças progressistas, os movimentos populares e todos os comprometidos com uma efetiva transformação social. Sua sincera e sempre repetida convicção sobre a superioridade do socialismo democrático apóia-se em valores éticos (e até cristãos) e, portanto, nos ideais de justiça e fraternidade, independentemente de uma possível adesão intelectual aos pressupostos marxistas. Aliás, sempre foi um crítico do chamado socialismo real, em defesa da liberdade associada à igualdade. Tenho certeza de que Marighella mantém legião de admiradores (entre os quais me incluo) em todo o país; mas não creio que tenha um número significativo de seguidores. O que, sem dúvida, se justifica no contexto de mudanças radicais nas esquerdas em relação ao marxismo e à revolução.
Finalmente, nunca será demais enfatizar que tanto Marighella quanto Lula encarnam um profundo amor por suas raízes, pelo país, pelo povo brasileiro. Para Jânio Quadros o Brasil terá sido, apenas, o cenário descartável de sua evolução tragicômica.
Maria Victoria de Mesquita Benevides é socióloga, professora titular da Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo.
Folha de São Paulo