Dois olhares sobre Canudos
Silvia Maria Azevedo
No dia 5 de outubro de 1897, o reduto de Canudos caía em poder do Exército, depois de quase um ano de guerrilhas. Para lembrar o centenário do trágico massacre ocorrido no sertão baiano, reedita-se um número significativo de obras produzidas na época. Duas delas são de 1899: "Descrição de uma Viagem a Canudos" e "O Rei dos Jagunços". Essas obras há muito estavam esgotadas, constituindo-se até agora em raridades bibliográficas.
A primeira é um relato da guerra pela ótica dos serviços de saúde. Em atendimento aos apelos das autoridades baianas, que convocavam os estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia para ajudar o corpo médico no campo de batalha, ao tempo da expedição Artur Oscar, uma primeira turma de acadêmicos saiu de Salvador no dia 27 de julho de 1897. Entre eles, seguia Alvim Martins Horcades, que na época tinha 37 anos. O que mais chama a atenção no livro não é propriamente a ótica do estudante de medicina sobre a guerra, mas o retórico e empolado estilo do relato, com períodos de quase meia página, como se as reportagens tivessem sido reescritas. Daí que "Descrição" careça daquilo que é fundamental em obras desse gênero: o cheiro da guerra. Não faltam referências aos incessantes tiroteios e bombardeios ao reduto dos conselheiristas, às mortes de soldados e jagunços, aos cadáveres que vão se amontoando, ao mau cheiro ou à fome. Nada disso, no entanto, tira a impressão do leitor de que a obra de Horcades é um texto passado a limpo.
Ainda assim, não deixa de ser um bom depoimento. Na primeira parte, "Da Bahia a Canudos", além da boa acolhida que os estudantes recebem pelas cidades por onde vão passando, Horcades também registra as primeiras amostras dos horrores que irá enfrentar em Canudos. Mais do que o conteúdo dessa parte do relato, o que merece reparo é o título escolhido, e que levaria o leitor a perguntar, meio irônico, sobre os conhecimentos de geografia do estudante: afinal, Canudos não fica na Bahia? Para Horcades, Canudos não fica na Bahia. Bahia é Salvador, da Faculdade de Medicina, do "Jornal de Notícias", símbolos da civilização, não "o hediondo e lúgubre Canudos".
A segunda parte, "Em Canudos", é a mais interessante. Seu ponto alto é a denúncia das degolas dos jagunços praticadas pelos soldados. Se esse foi um ato de inegável coragem de Horcades, que deveria saber os riscos que corria ao fazer semelhante acusação contra o Exército, é possível supor que o estudante também o fizesse porque contava com o apoio de nomes importantes da intelectualidade baiana, a exemplo dos professores da prestigiada Faculdade de Medicina.
Pode-se aventar a hipótese de que é com o propósito de deixar explícito esse apoio que, na terceira parte, "De Canudos à Bahia", o autor faz referências pormenorizadas às homenagens prestadas aos estudantes que voltavam de Canudos. Como se não bastasse a coragem de ter delatado o general Artur Oscar como responsável pela degola dos jagunços prisioneiros, Horcades ainda denuncia o próprio governo de quem os acadêmicos de medicina, os "apóstolos da caridade", como ele os chama, não receberam qualquer espécie de recompensa.
No adendo, "Canudos", a cidadela do Conselheiro não é mais um lugar "hediondo e lúgubre", tal como aparece na primeira parte, mas uma cidade como tantas outras, com moradores, ruas, casas, igrejas, praças e cemitério. A mudança de perspectiva coincide com a mudança de tratamento dispensada aos jagunços que, de "desviados da Lei", passaram a ser vistos como "homens dignos do nome de brasileiros".
A coragem em denunciar a degola dos jagunços é o aspecto que, com maior evidência, permite aproximar o trabalho de Horcades do de Manoel Benício. É, no entanto, o tosco desenho da capa da primeira edição de "O Rei dos Jagunços", que torna a denúncia, em Benício, ainda mais contundente. O desenho (reproduzido na edição fac-similar do Senado Federal) mostra um jagunço no ato de ser degolado: este tem as mãos atadas às costas, enquanto um soldado puxa-lhe pelo nariz a cabeça para trás e enfia a faca na garganta do prisioneiro. Ao lado, uma jagunça de longos cabelos, com um seio à mostra, espera a sua vez para ser sacrificada.
Manoel Benício participou da guerra de Canudos como correspondente do "Jornal do Comércio", do Rio de Janeiro. Desde o início, os informes do repórter se pautaram pela denúncia implacável da inabilidade do comandante da Quarta Expedição na luta contra os jagunços. Um assunto prudentemente evitado (se não omitido) nas ordens do dia expedidas pelos comandantes eram as degolas. Por algum tempo, Benício não fez menção dos métodos bárbaros empregados pelo Exército. Mas, na carta de 24 de julho, revela que os prisioneiros eram degolados, não sendo poupadas nem mesmo mulheres e crianças. Não admira que o correspondente do "Jornal do Comércio" não tenha resistido por muito tempo em Canudos. A se fiar nas cartas, Benício teria vindo embora porque, além de doente, estava impedido de exercer as suas funções de repórter. Na verdade, corria risco de vida, e quem o revela é Horcades: se o correspondente do jornal carioca não tivesse saído de Canudos três horas antes do que pretendia fazer, um capanga contratado teria ido até lá para chicoteá-lo "e talvez transformá-lo em nada, pelas mentiras que tinha mandado em correspondência para o "Jornal do Comércio'±".
Chegando a Salvador, o repórter dá a conhecer sua versão da guerra. Nesse relato, provavelmente pela primeira vez, Antônio Conselheiro aparece como uma pessoa de carne e osso e não como o ser fantástico que passou a povoar o imaginário das pessoas. A oportunidade de delinear o perfil desse ser real se oferece, quando o autor parte em busca das causas remotas do conflito. Segundo informações que Benício colhe junto a João Brígido (a principal fonte da primeira parte da obra), tudo começou em 1833, quando um tio do Conselheiro, Miguel Carlos Maciel, "destemido cangaceiro dos sertões do Ceará", foi acusado de um furto que não cometeu e a partir daí "desenrolou-se uma série tremenda de episódios sangrentos, que vieram terminar com a morte do sobrinho (Conselheiro) em 1897". Nem por tentar explicar o surgimento da figura deste dentro de uma certa conjuntura do Nordeste brasileiro (a relação entre cangaço e lutas de famílias), Benício conseguiu defini-lo fora dos quadros da loucura e morbidez, como era frequente interpretar a personalidade do Messias canudense. Mas, se Benício e Horcades foram ambíguos em relação ao Conselheiro, eles, ao menos, não estavam sozinhos em seus julgamentos.
No momento em que o profeta do arraial de Canudos surge, em "O Rei dos Jagunços", como uma figura humana e real, outro tanto acontece com os seus seguidores, tratados como pessoas cujas vidas estão ligadas às peculiaridades da região em que vivem. Então, o jagunço vira sertanejo. Não por um acaso, o subtítulo da obra é "Crônica Histórica e de Costumes Sertanejos". No propósito de caracterizar o modo de vida do homem que vive no sertão -sua religiosidade, superstições, códigos de honra e valentia, entre outros aspectos-, o autor usa, no capítulo "Vida Sertaneja", de um contorno ficcional que toma emprestado da "novela sertaneja" de Afonso Arinos.
É possível supor que, ao se valer da história, Benício pretendesse oferecer a versão mais "verdadeira" dos acontecimentos. A prova está no cuidado com que retoma documentos e notas oficiais que são incorporados à segunda parte da obra. Além disso, a técnica da transcrição de documentos faz com que o relato de Benício, em vez de centralizado num único ponto de vista, incorpore outros enfoques sobre a guerra, representados pelas figuras que falam por meio dos ofícios e notas. A polifonia povoa o universo de "O Rei dos Jagunços", o que significa que outras vozes, além da do narrador, contam as suas versões sobre a guerra de Canudos.
Silvia Maria Azevedo é professora de estética na Universidade Estadual Paulista (Unesp-Marília).
Folha de São Paulo
2 comentários:
Muito bom este blog,muito interessante,achei aqui justamente o que eu procurava!!
Valew's!!
;D
muito bom esse site
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