AMBIÇÃO E NOSTA LGIA
Flavio Moura
LIBERDADE, de Franzen, Jonathan. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Mesmo
antes de sair nos eua, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de
atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera
bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal
prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais
auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras
resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu‑o em seu clube de
leitura, o Guardian pespegou‑lhe o epíteto de “livro do século” e a
revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da
legenda: “O grande romancista americano”.
Parte do frisson em torno
de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É
um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da
literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o
romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada
da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike,
Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como
plasmaram a experiência dos eua num determinado recorte de sua obra. Em
As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê‑se
na primeira linha:
“Sou americano, nascido em Chicago…”. De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta: o que é ser americano?
Essa
é uma tradição francesa do século xix, a do homem de letras empenhado
em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos
eua em grande potência no século xx, a função se torna estratégica em
face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.
Franzen
disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também
reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem
nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição
ocorreram os atentados de 11 de Setembro.
Não é, portanto,
apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o
lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência
traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar
vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de
intérprete de seu tempo.
É uma ideia complicada. O que se pode
esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como
a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e
da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse
debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson
em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio
alcançado pelo romance no século xix e início do xx e da nostalgia em
relação à centralidade de que já desfrutou um dia.
É simples
identificar o que em Liberdade permite situá‑lo como herdeiro dessa
tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da
experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos
Reagan,
Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento
econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações,
a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o
sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é
tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.
O
que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar
esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e
evolui com naturalidade.
O fio é a transformação do casal Walter e
Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família
liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se
interessava por livros ou política: era jogadora de basquete e se
dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser
jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em
Minnesota, no início dos anos 1980.
Walter, seu colega na faculdade,
era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira
de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o
primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres
e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se
casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de
família burguesa em Minnesota.
O fator de tensão entre os dois, desde
a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao
mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por
outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento
do colega.
Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard
que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos.
Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por
falta de opção.
Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma
sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e
Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um
pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando
fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna
uma figura hype no mundo da música.
Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna‑se competitivo.
Ressentido
com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de
bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty,
depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.
Há ainda a
relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na
adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso
para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o
namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros,
armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais
empedernida. É essa figura que vira influência para Joey:
depois de
dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar
em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano
envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.
O que prende a
atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da
relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se
transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue
construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de
modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro
da linhagem mais nobre da tradição literária americana.
A parte mais
substancial é dedicada à er a Bush: são os dilemas pós‑11 de Setembro
que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo
detido. A trajetória de Joey é exemplar disso:
a descoberta do
judaísmo e a vontade de explor ar essa identidade vêm num contexto de
reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento
da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista,
frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos
quadros que a causa republicana é capaz de cativar.
Vale o mesmo para
a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa
boa parte da trajetória de Walter Berglund.
Desafiado pelo sucesso de
Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em
Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo
de Conservação da Mariquita‑Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é
invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney,
interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de
carvão, nocivas e poluentes.
O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma
licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie.
Ingênuo e bem‑intencionado, Walter cai na arapuca — e é o nome dele que
vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do
fundo da mariquita‑azul.
Franzen é ornitólogo e adora observar
pássaros, mas o ambientalismo do século xxi aparece em seu livro como
tolice de gente bem‑intencionada. Há acidez no modo como ele trata o
discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e
o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é
evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de
sarcasmo.
A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele
retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão
todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as
novidades
do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”.
O
personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao
intelectualismo bem‑intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados
nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A
decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do
sucesso de seu disco aponta nessa direção.
Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família.
Democratas,
judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no
início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi
estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de
doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os
pais se reconciliam com a família do agressor.
Liberdade ganhou pecha
de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um
autor a serviço do bom‑mocismo da era Obama. O livro não pende para um
lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou
outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público
de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata
para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de
esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.
O ponto
em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma
obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em
nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século xix, também do
ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele
dialoga pouco com a tradição do romance do século xx. Esse é um
repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como
fr aqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não
teria obtido
essa ressonância se f osse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.
Há
dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de
visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase
imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a
estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o
seguinte:
A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente —
ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não
significavam nada mais para St. Paul —, mas o povo de Ramsey Hill não
era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […]
Seus ex‑vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o
Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente
comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam
pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre
tinha havido algo estranho na família Berglund.
Esse primeiro
parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são
dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar
até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do
livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na
extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais
convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para
as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa
isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.
Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:
Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
Na
segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas
seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso: uma desgraça
particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.
Não é
casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são
dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na
casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é
também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma
capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece
suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse
de forma espontânea diante de nossos olhos.
As variações da voz
narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o
romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a
forma de narrar. Compõe seu livro,
assim, a partir de dois
narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do
romance do xix. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty
Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia,
que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.
É
de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador
convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em
terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com
brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento
como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é
de uma dona de casa deprimida e ex‑jogadora de basquete.
Franzen
tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram
parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas
são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam
essa incompletude no ar.
Franzen não é um romancista acabado e é
saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o
mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande
intérprete literário da alma americana pós‑11 de Setembro. O escritor
que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família
Berglund terá decerto destaque merecido.
É cedo para dizer se Franzen
é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a
essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século xxi podem
suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e
também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o
papel que cabe hoje à ficção literária.
Mas a intensidade com que
essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E
elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é
decretada a cada dia.
Flavio Moura é sociólogo.