LETRAS, OFÍCIOS E BONS COSTUMES: CIVILIDADE, ORDEM E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA.Thaís Nivia de Lima e Fonseca Belo Horizonte: Autêntica, 2009, 176 p.
Thaís Nivia de Lima e Fonseca é graduada em História e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Fez estudos de pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Lisboa. É professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na linha de pesquisa História da Educação. Coordena projeto de pesquisa sobre os processos e as práticas educativas na capitania de Minas Gerais no Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação - Gephe - da Faculdade de Educação - FAE - da UFMG. É também autora de História & ensino de história, e organizadora de Inaugurando a história e Construindo a nação: discursos e imagens no ensino de história e História e historiografia da educação no Brasil.
O livro em apreço traz uma análise de estratégias e práticas educativas que fizeram e fazem ainda parte da formação cultural brasileira, fruto de pesquisa focalizada na educação no período colonial do Brasil, que considera a diversidade e peculiaridade da sociedade de então. Resultado do exame da documentação disponível no Brasil e em Portugal abordada sob o ponto de vista de uma concepção mais ampla da educação, trata tanto das ações de natureza escolar quanto das práticas educativas não escolares, construídas no cotidiano do período colonial, ainda pouco explorado pelos historiadores da educação.
Na introdução, "A população 'deseducada' da América portuguesa", Fonseca faz um balanço da produção referente à historiografia da educação que trata especificamente do Brasil colonial, apontando a escassez de trabalhos e de obras inteiras dedicadas à educação no período. Entre as existentes, destaca sua concentração no exame da atuação educacional da Companhia de Jesus e das reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. A maioria, centrada nas ações do Estado e da Igreja, deixa em segundo plano outras dimensões dos processos educativos na América portuguesa, as quais serão apontadas ao longo do livro. A autora faz ainda uma breve revisão da literatura e do debate historiográfico sobre o tema e discute desde as visões mais tradicionais até os estudos recentes realizados no Brasil e em Portugal, apontando possíveis falhas, méritos e avanços dessa produção, e levantando questões relevantes para o avanço do conhecimento. São explicitados os processos de pesquisa, as fontes e as perspectivas teóricas adotadas, que trabalham com a ideia de práticas educativas, tributária do conceito de práticas culturais, desenvolvido por historiadores e sociólogos, como Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Roger Chartier, e utilizam também outros conceitos e ideias desses e outros autores.
Questões referentes a diversas capitanias aparecem nos dois primeiros capítulos, por meio da documentação utilizada para tratar seja dos discursos, seja das práticas em relação à civilização e à educação dos povos. Em decorrência do foco da pesquisa na Capitania de Minas Gerais, há ênfase na análise das manifestações das diversas formas de educação nessa região. É o que caracteriza as duas últimas partes do capítulo 2 e todo o capítulo 3.
No capítulo 1, "Civilização e educação nos setecentos", na seção "A civilidade moderna e a formação do 'novo' súdito", são analisados o pensamento da intelectualidade da idade moderna e sua produção nos séculos XVII e XVIII, bem como a perspectiva universalista que adquirem, ampliada com o iluminismo. Segundo a autora, duas dimensões da educação - promover a união dos indivíduos em sociedade e disseminar valores e normas de comportamento - integravam as funções atribuídas à ação civilizadora apregoada por esse pensamento. Na perspectiva de uma educação civilizadora, destaque é dado à formação moral, entendida em suas dimensões civil e religiosa, não necessariamente separadas uma da outra. É feita uma revisão do pensamento dos principais intelectuais da época, pensamento esse que influenciou o modelo de formação para a civilidade imposto pelo império português. É também registrado o processo de laicização em curso na idade moderna e acentuado no século XVIII, bem como o papel cada vez mais central da educação nas preocupações quanto à organização da vida social, evidente, por exemplo, nas reformas pombalinas marcadas, entre outros atos, pela expulsão dos jesuítas da América portuguesa.
Na seção seguinte do capítulo 1, "Discurso civilizador e práticas educativas na América portuguesa", a autora faz uso da análise do discurso presente na farta documentação produzida pelos europeus durante o período colonial, principalmente nos textos produzidos por diversas autoridades portuguesas, em que se evidencia a preocupação com o estado de "descontrole" e de "falta de civilidade" dos domínios americanos, especialmente da região das minas. Assinala que o sentido atribuído à ideia da educação para a população não era evidentemente próximo do que entendemos hoje como um sistema de educação pública, que apenas principiava sua trajetória, nos últimos anos do século XVIII, na Europa. Nesses documentos, a educação, fosse qual fosse sua natureza, surgia como solução possível. É também apontada a constante presença, no discurso das autoridades, da relação entre a barbárie da população, o estado de constante ameaça à ordem e a necessidade de se educar e civilizar os povos, para que se tornassem súditos obedientes às reais ordens. São apresentados, ainda, os modos pelos quais eram tratadas - em termos de educação - as classes mais baixas, os escravos e libertos, os órfãos e as demais crianças, sempre considerando o gênero e a posição social. É examinada ainda a educação pela ocupação e pelo exemplo, e a educação para o trabalho nas minas gerais, ligada diretamente aos problemas da produção, mineral e agrícola; são considerados ainda os ofícios que surgiam em uma sociedade com grande urbanização: alfaiates, artesãos, músicos etc.
No capítulo 2, "Civilizar e educar os súditos na América portuguesa: reformas, impactos, cotidiano", na seção "Historiografia das reformas pombalinas da educação", Fonseca aponta a possibilidade de várias abordagens dessas reformas, em vista dos diferentes desdobramentos que tiveram. No tocante à educação, a autora apresenta a visão de conjunto que as coloca no movimento de oposição do Estado à Companhia de Jesus, não deixando dúvidas quanto ao impacto provocado por elas nas regiões em que a educação era monopólio da ordem religiosa. Todavia levanta diversas questões acerca da análise do impacto das reformas, como a necessidade de estudá-lo em regiões nas quais os jesuítas não atuavam ou não havia nenhuma instituição educacional ligada à ordem religiosa, como era o caso da Capitania de Minas Gerais, entre outras. Uma apreciação do debate historiográfico acerca dos impactos das reformas pombalinas, desde o final século XIX e início do XX, passa pelas perspectivas de Fernando de Azevedo, apontando a polarização do debate entre os autores portugueses que viam o Marquês de Pombal como um expoente do pensamento progressista português e os que consideravam seu governo despótico e destruidor das tradições. São evidenciados avanços na recente historiografia portuguesa que trata da educação e a minoritária produção da historiografia da educação brasileira sobre o período colonial, com exemplos de abordagens verticalizadas sobre alguns casos específicos de capitanias que sofreram significativo impacto das reformas. Certo consenso entre os trabalhos sobre educação no Brasil colonial no âmbito das reformas pombalinas é demonstrado no que diz respeito às formas de arrecadação do subsídio literário e aos desvios e fraudes na contabilidade. Também é apontado como situação comum a diferentes regiões do Império português, o maior ou menor jogo de influências quando havia a presença de bispados.
Na seção "As reformas e seus impactos: aulas régias e professores na América portuguesa", Fonseca mostra as dificuldades da administração dos estudos na colônia, algumas comuns às diversas capitanias, outras mais específicas conforme as condições locais, desde a primeira etapa das reformas, como decorrência da expulsão dos jesuítas, bem como a sequência de instrumentos legais impostos a partir de 1759. Deixando claras as desconfianças em relação à docência dos religiosos, mesmo dos não jesuítas, principalmente nas capitanias em que as ordens possuíam conventos e colégios, a autora associa essas atitudes ao "espírito" formulador das reformas, que visava colocar sob o controle do Estado várias atividades importantes da sociedade portuguesa da época, entre elas a educação, responsável pela formação dos melhores súditos. Com o início da segunda fase das reformas, mediante as leis de novembro de 1772 que reformaram os estudos menores e criaram o subsídio literário, intensificou-se o processo de escolarização pela criação de maior número de aulas régias, realização dos exames para provimento de cadeiras, pelo estabelecimento mais nítido dos valores dos ordenados dos professores, e de algumas normas gerais de administração e controle do trabalho docente. É defendida a tese de que as reformas pombalinas da educação propiciaram relativa expansão da escolarização, se considerada sua concentração institucional anterior, nas mãos da Companhia de Jesus e de algumas outras ordens religiosas, assim como se advoga que a criação das aulas régias e de todo o aparato relacionado ajudou a iniciar o processo de formalização do ensino e da profissão docente na América portuguesa.
Na seção "Professores régios e os modelos de bons costumes", a autora lança luz sobre esses professores na Capitania de Minas Gerais, sua participação na vida social e cultural, suas diferentes origens e trajetórias pessoais, reconstituindo algumas delas a fim de esclarecer questões sobre o funcionamento da estrutura do ensino régio na América portuguesa. Para tanto, faz uso de uma perspectiva micro-histórica. Trata de temas diversos do universo dos professores régios mencionando alguns como exemplos, aponta as perspectivas de civilização oriundas do iluminismo português, as qualidades esperadas dos mestres, que incluíam aspectos físicos e médicos, além de morais (como ser casado), e os exames de admissão a que eram submetidos. Refere-se ao tipo de educação destinado às elites - cuja essência eram a moral, o direito natural e o direito civil; a cuidados com os costumes dos alunos, incluindo a prática da religião, a fim de formar, além de um bom cidadão, um bom cristão, e menciona casos de denúncias contra professores feitas pelos pais às autoridades civis e religiosas da inquisição no Tribunal do Santo Ofício.
No capítulo 3, "Pobres ou abastados, os súditos se instruem e se educam na Capitania de Minas Gerais", Fonseca demonstra, na seção "Civilizar e educar os órfãos e os pobres", como ocorre a educação das camadas mais baixas da população mineira, associada à difusão da doutrina cristã e à formação profissional como meios de controle e realizada predominantemente em instituições de natureza caritativa, ligadas a ordens religiosas ou particulares. Desse modo, o ensino das primeiras letras visava fundamentalmente facilitar o aprendizado da doutrina, sem implicar a criação de possibilidades de ascensão social pela educação. De acordo com a autora, se em muitas capitanias foram abertos estabelecimentos que podiam abrigar órfãos e expostos pobres, dar-lhes sustento e educação, nas Minas Gerais sua existência foi tardia e menos vinculada diretamente à Igreja. Isso porque a presença das ordens religiosas foi proibida ali no início do século XVIII, e a assistência associada à instrução limitou-se à dimensão leiga. O espaço religioso foi ocupado pelas associações leigas - irmandades e ordens terceiras - que proporcionavam certa inserção social e proteção, principalmente aos seguimentos menos favorecidos da população, sendo que suas ações possuem mais um caráter assistencial do que educacional propriamente dito. Fonseca aponta ainda outras instituições voltadas para o atendimento às necessidades sociais e religiosas da Capitania de Minas Gerais, como dois recolhimentos femininos, importantes para a educação das mulheres abastadas ou pobres, e o Seminário de Mariana, interferência mais direta da Igreja na educação, criado em 1750 pelo bispado local. A autora lembra que, para os pobres, a educação voltava-se prioritariamente para o aprendizado de ofícios mecânicos, embora eventualmente eles também fossem levados a aprender a ler, escrever e contar. Foi relevante ainda a atuação de professores particulares, principalmente de primeiras letras, mesmo depois da instituição das aulas régias, bem como dos mestres de ofícios mecânicos.
Na seção "Letras, ofícios e bons costumes longe da educação estatal", Fonseca concentra a análise na Comarca do Rio das Velhas, mais particularmente na Vila de Sabará e seu termo, sobre a qual vem sendo realizada a pesquisa mais verticalizada acerca da educação fora do âmbito do Estado. Aqui é defendida a tese de que, muito antes das reformas pombalinas da educação e da criação das aulas régias, a população da Capitania de Minas Gerais já construía importantes relações com as práticas educativas que poderiam quer resultar no aprendizado da leitura e da escrita ou gramática, quer no de ofícios mecânicos, todos associados, de alguma forma, à doutrina cristã, por meio dos mestres particulares. São destacados aspectos da educação de meninos e meninas e as funções pedagógicas das irmandades e ordens terceiras.
A obra fornece subsídios importantes ao campo da História da Educação brasileira. Oferece contribuição no tocante à educação em diversas regiões da América portuguesa, antes e depois das reformas pombalinas e, principalmente, na Capitania de Minas Gerais, caso muito particular, haja vista leis específicas impostas à região para o maior controle do destino de suas riquezas minerais. Entre outras ações, essas leis proibiam a instalação nessa capitania de ordens religiosas responsáveis pela educação, como o caso emblemático da Companhia de Jesus.
Aporte relevante é dado à esfera da educação desvinculada do Estado e da Igreja, com apontamentos sobre as práticas informais, de iniciativa privada, de indivíduos ou grupos organizados, como as irmandades e ordens terceiras leigas. Igualmente importante é o trato dado à educação não escolar, não necessariamente visando ao aprendizado de leitura, escrita e cálculos, mas voltada ao trabalho, à formação moral e religiosa, à civilização e controle social, muitas vezes de caráter assistencialista, baseados em princípios como a caridade, próprios do bom súdito cristão.
Uma observação deve porém ser feita, sobre a falta de apontamentos relativos à população indígena na obra, principalmente quando trata do caso de Minas Gerais. Essa omissão, diga-se de passagem, é comum à maioria dos trabalhos sobre o período e a região. Não obstante a participação dos indígenas na sociedade mineira era, desde o início da chegada de europeus e africanos à região, relevante a ponto de, mesmo em períodos posteriores à independência do Brasil, surgirem projetos de cunho estatal para a civilização e educação desses povos nas Minas Gerais, o que mereceria maior atenção por parte dos pesquisadores.
Finalmente, há de se considerar a obra uma referência valiosa, tanto pelas qualidades metodológicas do trabalho, quanto pelas contribuições ao conhecimento de um período histórico ainda carente de estudos concernentes à educação.
Ageu Quintino Mazilão Filho
Graduado em História (licenciatura e bacharelado) e mestrando
em Educação pela Universidade Federal de
São João del-Rei-MG
ageumazilao@yahoo.com.br
Fundação Carlos Chagas