segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções.

Presença francesa no Brasil

Álvaro Faleiros
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil



PERRONE-MOYSÉS, L. Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções. São Paulo: Edusp, 2013.

O Ano 2009 foi oficialmente o Ano da França no Brasil. Dentre as centenas de atividades realizadas, uma das que mais bem sintetizaram as intensas relações entre Brasil e França foi o ciclo de conferências promovido pelo Núcleo de Pesquisas Brasil-França (Nupebraf) do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), realizado no Centro Universitário Maria Antonia, durante o qual especialistas brasileiros e franceses das áreas de História, Antropologia, Literatura, Artes plásticas, Música, Teatro, Fotografia e Arquitetura trataram das relações entre os dois países.

O período contemplado pelas conferências retomou cronologicamente a extensa e ininterrupta relação franco-brasileira, partindo de reflexões sobre a França Antártica (século XVI) e chegando aos dias de hoje. O livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções, organizado pela professora emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Leyla Perrone-Moisés, e publicado agora pela Edusp, reúne esse importante conjunto de trabalhos.

"O Brasil de Montaigne", que abre o volume, foi escrito por Frank Lestrignant e trata da importância do contato de Montaigne com índios brasileiros e com escritos de viajantes para a elaboração de suas reflexões sobre as noções de civilização e de barbárie. O Brasil lido por Montaigne o leva, por exemplo, a considerar que "cada qual chama de barbárie o que não é de seu costume". O modo como Montaigne lida com a alteridade, lembra Lestrignant, faz que Montaigne invente, em "Dos Canibais", a "heterologia", isto é, "um discurso do outro, que é ao mesmo tempo discurso sobre o outro e discurso em que fala o outro". E prossegue o autor: "a heterologia provê um espaço intermediário, um palco reversível, em que a última palavra não pertence necessariamente ao sujeito primeiro do discurso", podendo o enunciador ser também sujeito a crítica. A "declamação em eco" presente na retórica de Montaigne é também, e sobretudo, aquela do próprio ritual sacrificial a que se refere. Ao propor tal passagem, Lestrignant produz um espelhamento verbal altamente sugestivo, o que faz deste um dos mais instigantes textos do livro.

De grande interesse também é o segundo artigo, "Franceses no Maranhão: história de intérpretes", de Beatriz Perrone-Moisés. Nele, a autora retoma a trajetória de Charles des Vaux, jovem nobre responsável pela ideia da fundação da França Equinocial no século XVII, assim como a história de David Migan, jovem intérprete francês que viveu entre os índios tupi. O centro do argumento de Beatriz Perrone-Moisés é que "Des Vaux e Migan desempenham papéis tão ou mais vitais para a França equinocial quanto alguém como La Ravardière, personagem que a historiografia optou por reter". Ao colocar o que chama de "intérpretes-embaixadores" como protagonistas da história da França Equinocial, a antropóloga lança luz sobre estratégias fundamentais de contato e de conquista ainda pouco visíveis para a historiografia oficial.

O terceiro e o quarto ensaios não tratam mais da época das invasões e sim das ditas "missões" do século XIX. O que está em jogo, primeiramente, é o questionamento da própria noção de missão, pois, como aponta Leyla Perrone-Moisés em sua apresentação, "as últimas pesquisas sobre o assunto mostram que os artistas franceses acolhidos pela corte de dom João VI, para fundar a primeira Escola de Belas Artes do Brasil, foram missionários voluntários".

Em "A Arcádia francesa chega ao Brasil: as telas melancólicas de Nicolas-Antoine Taunay", Lilia Moritz Schwarcz reflete sobre o modo como a complexa relação entre os artistas franceses e a recém-chegada corte portuguesa foi sendo acordada. Destaca a pesquisadora que os artistas franceses logo perceberam que sua verdadeira função seria "construir cenários rápidos e dar grandiosidade a essa corte imigrada". Nesse contexto, coube a Nicolas-Antoine Taunay a difícil tarefa de tentar "traduzir" para os trópicos a experiência de uma pintura de representação do Estado de cunho neoclássico. É o choque de culturas expresso na pintura, por exemplo, pela dificuldade em retratar a escravidão, que faz da experiência de Taunay um retrato dos "mal entendidos" que envolvem a vinda dos artistas franceses ao Brasil.

O ensaio "Jean-Baptiste Debret: um filho da Revolução Francesa diante do Brasil nascente", do filósofo Jacques Leenhardt, aponta para esse outro importante artista do período, o pintor Jean-Baptiste Debret. Assim como Taunay, ele depara com o descompasso entre a realidade brasileira e a ética neoclássica, "inaplicável às circunstâncias brasileiras". Debret, entretanto, abandona a pompa monárquica e debruça-se sobre a vida da rua, o que faz dele, nas palavras de Leenhardt, uma das mais importantes "testemunhas das transformações mais dramáticas que afetam o país".

O texto seguinte, "O teatro francês no Brasil do século XIX", de João Roberto de Faria, trata da presença francesa nos meios teatrais, presença que se dá tanto pelo predomínio do repertório dramático em nossos palcos como pela vinda de companhias dramáticas e de grandes artistas franceses, sobretudo ao Rio de Janeiro. Roberto de Faria destaca a figura de João Caetano, responsável, a partir dos anos 1830, pela adoção do repertório dramático francês de modo hegemônico, tendência que, entre compreensões e incompreensões, atravessa todos os movimentos literários do período, desde o romantismo até o naturalismo, estando na base da formação de nosso repertório nacional também. A presença de artistas franceses em palcos brasileiros foi também avassaladora, sendo responsável por parte considerável do que se convencionou chamar de dramaturgia séria. Essa forte presença não parece ter levado, contudo, à produção de um teatro brasileiro inovador, o que leva o pesquisador a afirmar que, tanto na formação de repertório quanto de companhias, "surpreende e incomoda que não tenhamos tido no período uma dramaturgia mais rica, sintonizada pelo menos com aquela predominante nos palcos franceses".

O segundo texto dedicado à literatura do século XIX é "A França literária de Machado de Assis", de Gilberto Pinheiro Passos. Partindo do conceito de paródia, seja temática, seja estilística, Pinheiro Passos desenvolve acurada leitura do modo como Machado de Assis retoma o gênero das "Memórias", presente tanto na obra Memorial de Santa-Helena de Las Casas, como nas Mémoires d'outre tombe de Chateaubriand, renovando-o. Essa "criação de memórias póstumas à brasileira" surge para o pesquisador como uma brilhante "confissão da incapacidade ou desinteresse dessa parcela social [a classe dominante] de entender e modificar o país". Pinheiro Passos estabelece também importante paralelo entre as Illusions perdues de Balzac e Quincas Borba, além de apontar de modo preciso para as leituras de Pascal na elaboração da complexa Capitu. O vasto conhecimento da obra de Machado de Assis ainda leva o pesquisador a se debruçar sobre a presença de Racine em Esaú e Jacó. O raro poder de síntese de Pinheiro Passos permite, em pouco mais de uma dezena de páginas, retomar grandes linhas de força do romance machadiano.

A presença francesa no século XX, por sua vez, é analisada em três ensaios. Em "Darius Milhad e o Brasil: o olhar do viajante, através de seus textos (1917-1949)", Manoel Corrêa do Lago se debruça sobre a estada do compositor francês no Brasil entre 1917 e 1918. De forma bastante detalhada, retoma tanto as conferências de Milhaud que tem o Brasil como tema e as composições que realizou inspirado em seus estudos de ritmos brasileiros, assim como suas atividades concertísticas e sua circulação no meio carioca. Em sua conclusão, Lago destaca que os escritos de Milhaud em sua fase brasileira "constituem, no seu conjunto, um tesouro de informações, de caráter etnomusicológico, sociológico e musical, sobre o Brasil que emergia da Primeira Guerra Mundial".

O entre-guerras é também o período tratado em "Fascínio e rejeição: Blaise Cendrars e Benjamin Péret no Brasil", de Carlos Augusto Calil. Grande conhecedor da obra de Cendrars e de Péret, Calil apresenta as contradições e descobertas que envolvem a presença desses artistas franceses no Brasil. Se, por um lado, a presença de Cendrars foi "decisiva para a consolidação do movimento modernista no Brasil", por outro, o poeta não resiste à "idealização do Brasil". Em relação a Péret, o poeta surrealista acaba expulso do Brasil em 1930 e, quando volta ao país na década de 1950, acaba preso, levando Calil a falar em dupla rejeição do Brasil em relação ao "inconveniente poeta". Assim, em ambos os casos, "a irredutível experiência brasileira, cujo elemento irracional enseja um movimento de suspeita e fascínio, ganha identidade pelo mútuo estranhamento".

O fascínio exercido pelo Brasil também é analisado em "Pierre Verger e Marcel Gautherot, da França ao Brasil: experiências cruzadas e convenções de representação", de Heliana Angotti-Salgueiro. Como destaca o ensaio, se é possível identificar nas imagens dos fotógrafos franceses "convenções de representação do exotismo", os clichês de seus retratos etnográficos "não maquiavam ou estetizavam a pobreza, nem dignificavam ideologicamente seus modelos" e, sim, representavam um modo de olhar que, segundo Angotti-Salgueiro, pode ser compreendido como um "humanismo documentário".

Diferentemente dos textos anteriores, os quatro ensaios que encerram o volume apontam para possíveis futuros cruzamentos. Imagem do próprio Ano da França no Brasil, os textos "A literatura Francesa de hoje", de Gilles Lapouge; "A irrupção da arte contemporânea nos museus de arte antiga", de Jean Galard; "A arquitetura expressiva ou o pós-modernismo à francesa", de Françoise Gaillard; e "A crise da literatura francesa e da irradiação intelectual da França no mundo", de Pierre Rivas, permitem ao leitor entrar em contato com questões que alimentam hoje o debate de ideias na França, abrindo espaço para que, neste século que se inicia, o contato entre a cultura brasileira e a cultura francesa prossiga profícuo em seus choques, encontros e equívocos, como apontam os instigantes ensaios que compõem o livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções.

É doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (2003); professor de Literatura Francesa da FFLCH-USP. @ - faleiros@usp.br
 Revista Estudos Avançados - USP

Norberto Bobbio: trajetória e obra

Trajetória e obra de Norberto Bobbio

Tercio Sampaio Ferraz Junior
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil




LAFER, C. Norberto Bobbio: trajetória e obra. São Paulo: Perspectiva, 2013.

Norberto Bobbio: trajetória e obra é, seguramente, o livro mais denso que se publicou no Brasil (e quiçá em língua portuguesa) sobre o grande pensador e jurista italiano. Nesse livro, Celso Lafer reúne a série de trabalhos, ora artigos, ora prefácios, ora conferências, ora pequenos ensaios que durante anos (na verdade, de 1980 a 2011), alguns de convivência com o próprio Bobbio, vem elaborado didaticamente e aperfeiçoando em sua sutileza teórica.

Não se trata simplesmente de uma coletânea de escritos, pois vai além. Há um notável esforço de trazer Bobbio - vida e obra - a uma espécie de convergência intelectiva sem ser propriamente uma síntese. Afinal, como reconhece Celso Lafer, Bobbio opera não só com uma diversidade de autores, mas com um abrangente e complexo repertório de temas e ideias, no que é "não um filósofo de sínteses impossíveis, mas um filósofo da análise", certamente de natureza mais heurística do que analítica.

Nesse contexto, aponta Celso Lafer, com Ruiz Miguel (1980), que o modo recorrente do trabalho intelectual de Bobbio é o artigo que tem um problema como ponto de partida, cujos termos são esmiuçados para um subsequente encaminhamento com base na análise crítica de diversas posições, sendo a qualidade e a pertinência das suas análises e considerações no trato dos problemas da vida do direito que o tornaram um excepcional ponto de referência para o mundo jurídico.

Ressalta, assim, com Riccardo Guastini (2005), um dos grandes estudiosos da obra jurídica de Bobbio, que o estilo analítico é uma das características mais notáveis de como foi elaborando a sua Teoria do Direito.

Contudo, um estilo analítico que opera com base no dividir, distinguir, seccionar para considerar as coisas nos seus elementos mais simples. Daí a atenção de Celso Lafer para a contraposição da análise à síntese, o que leva Bobbio (1972), na sua defesa da filosofia do direito de juristas em alternativa à dos filósofos, a considerar que é "sempre preferível uma análise sem síntese (do que com frequência se critica os juristas filósofos) a uma síntese sem análise (que é o vício comum dos filósofos juristas)".

O estilo analítico de Bobbio, mostra Celso Lafer, explica, assim, por que sua obra, em todos os campos do conhecimento a que se dedicou, é um contínuo work in progress por meio do qual, por aproximações sucessivas, vai, com base nesse estilo, aprofundando e refinando os temas recorrentes de suas inquietações intelectuais. É por isso que uma parte significativa dos seus livros são reuniões de ensaios em torno de matérias conexas, fugindo a essa regra aqueles livros que, na sua origem, foram cursos universitários provenientes da sua atividade de professor.

Essa característica do pensar heurístico torna, porém, o livro de Celso Lafer uma elaborada tentativa de busca de convergências, aliás muito bem empreendida, ainda que de difícil consecução. Apresentar Bobbio heurístico descritivamente seria, talvez, um empreendimento na forma de um espelho, como sói acontecer com obras-resumo ou conjunto de resumos de outras obras. Não é o que faz Celso Lafer. Com esteio numa leitura abrangente, meticulosamente anotada e refletida, traz ele à ponderação o Bobbio heurístico em convergência, na busca de um fio condutor, ele próprio heurístico, capaz de esclarecer, iluminar e dar consistência ao teórico do direito e da política, no plano interno e internacional, na ciência e na filosofia e até na sua trajetória de vida.

Tudo começa com o fim: De senectude, livro de Bobbio de grande reflexão sobre a velhice e sobre seu significado sobretudo como um registro de memória que se insere na memória do registro. Ou seja, um ponto na vida capaz de conferir referência ao passado na medida em que o projeta para o futuro.

Celso Lafer principia, heuristicamente, por uma dicotomia: Bobbio homem de ação e de contemplação. Essa dicotomia - vita activa/vita contemplativa - buscada em Hannah Arendt, conduz a uma interessante convergência. De um lado, a passagem de uma atividade que começara na clandestinidade em tempos do fascismo até a nomeação de Bobbio, em 1984, como senatore a vita; de outro, o intelectual, expoente da vertente inovadora de esquerda, cuja reflexão neocontratualista e republicana o conduz ao diálogo fecundo na resistência contra a opressão da direita. Daí a convergência apontada por Celso Lafer na constituição de uma autoridade pública como paradigma da relação entre o intelectual e o político.

Nessa convergência Celso Lafer faz menção ao estranho interesse de Bobbio por Carl Schmitt que considerava o político como a relação entre amigo/inimigo, nesse ponto, verdadeiro antípoda do jurista italiano. E arrisca: Schmitt teria sido para Bobbio como um "sombra", um Dr. Fausto de gênio que vendera sua alma ao diabo. O que me faz lembrar de um texto de Goethe (no Divã ocidental-oriental) em que a tragédia de Fausto é anunciada e que muito tem a ver com a dicotomia e a dramaticidade da convergência: "O sentido amplia, mas paralisa; a ação vivifica, mas bitola".

Bobbio, na velhice, relata as experiências penosas impostas pelas limitações físicas da idade. Fausto, que se entrega à ação vivificada e sem peias, perdendo o senso, olha para o futuro. Ao contrário de Bobbio que, laico em sede de crença numa outra vida, recorre à memória como meio de sobreviver. Ou seja, olha para o passado. E nisso, como bem aponta Celso Lafer, encontra paz e não angústia.

A paz é o tema da guerra, na reflexão de Bobbio. E vice-versa. Aí também encontra Celso Lafer seu fio condutor na coerência do teórico e do político. De um lado, política internacional é política do poder. Hobbes, um dos preferidos de Bobbio, estampa nisso uma realidade incontornável. Para enfrentá-la, sem desmerecê-la, recorre à mão de Grócio e Kant. Assim, de outro lado, política internacional é também política jurídica, igualmente uma realidade, um dado de sociabilidade e de razão, donde a ordem internacional.

Entre a guerra e a paz converge Bobbio para um realismo nem pacifista nem belicoso. Na linguagem metafórica da mosca dentro da garrafa, do peixe na rede e do homem no labirinto, Celso Lafer mostra a importância da terceira hipótese: viver num mundo de becos sem saída como reflexão sobre os caminhos da paz nos labirintos da guerra. Daí a convergência para uma insistência permanente na busca de uma luz fugidia, capaz de iluminar o espaço presente, ainda que se obscureça poucos passos depois. O que Celso Lafer chama de "a paixão pela luz e a perseverança da devoção", traços característicos da reflexão do grande jurista. Algo que particularmente desponta nos largos e percucientes textos de Celso Lafer dedicados ao delicado tema da guerra justa que, em Bobbio, passa pelas armadilhas proporcionadas pela guerra fria até o mundo recente da hegemonia norte-americana da guerra do Iraque. E desemboca na reflexão do próprio Celso Lafer, ele mesmo um diplomata e um pensador, sobre o papel da ONU não como um tertium super partes, mas como um tertium inter partes que enfrenta sempre o angustioso desafio de exercer, embora nem sempre, o papel de um tertium juxta partes.

Esse dilema convoca Celso Lafer a examinar a temática dos direitos humanos, desde sua positivação numa declaração constitucional, à sua generalização por progressivo reconhecimento, à sua internacionalização numa carta (caso da ONU) até sua especificação difícil e complicada em diversos destinatários particulares no seio da generalidade (a mulher, os idosos, o deficiente, a criança, os homossexuais).

A dicotomia libertas/potestas atravessa a reflexão de Bobbio numa heurística penosa a percorrer labirintos ardilosos: a prevalência dos interesses, público/privado, a armadilha da hegemonia individual/social, o papel da tecnologia hodierna intimidade/ transparência. Daí a convergência buscada na hegemonia das regras do jogo, o que significa uma democracia de tolerantes, própria dos sábios e dos serenos, numa democracia de preconceitos, própria dos contestadores e dos resistentes.

Bobbio, afinal, não deixa de ter sido um pensador inquieto. O que se espelha na revolução patente que sofre sua trajetória de teórico do direito, quando, para surpresa dos que acompanhavam seu caminhar pelas estruturas, abre-se para a perspectiva da função. "O Direito é uma ordem coativa que visa à obtenção da segurança coletiva", e isso basta. Já no enfoque funcionalista, a relação meio/fim ganha outros relevos, passa mesmo a constituir o cerne da análise, exigindo, do jurista, novas modalizações do fenômeno normativo. E essa sensibilidade para a mudança, sem perder de vista as exigências da racionalidade, é uma das mais importantes características de Norberto Bobbio e a lição mais profunda que se pode extrair de seu pensamento. Por isso ler, entender, interpretar e expor Bobbio é um desafio.

Na verdade, Bobbio foi um filósofo perguntador: quale? Quale socialismo? Quale democrazia? Quale positivismo? Quale teoria giuridica? Celso Lafer, em seu livro, não deixa de ser também, com genialidade levemente transparente, um perguntador: quale Bobbio?

Afinal, como ele bem mostra, há um Bobbio jurista, um Bobbio político, um Bobbio teórico do direito e da política, um Bobbio internacionalista, um Bobbio filósofo, um jovem Bobbio e um velho Bobbio. Na heurística dicotômica dos vários Bobbio, Celso Lafer resiste à "fúria dos extremos e aos riscos de seus desdobramentos". Nos vários Bobbio encontra, na serenidade intelectual, "a tarefa da inteligência humana de tirar o valor das coisas da obscuridade para a luz", como diz a epígrafe de San Tiago Dantes que usa em seu livro. E aí encontra também uma convergência consigo mesmo.

Referências
BOBBIO, N. Giusnaturalismo e positivismo giuridico. 2.ed. Milano: Ed. di Comunità, 1972. p.44.
GUASTINI, R. La Teoria Generale del Diritto. In: Norberto Bobbio, tra diritto e politica. A cura di Pietro Rossi. Roma; Bari: Laterza, 2005. p.51-79.
MIGUEL, A. R. Estudio Preliminar: Bobbio y el positivismo juridico italiano. In: BOB-BIO, N. Contribución a la Teoria del Derecho. Ed. Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Ed. Fernando Torres, 1980. p.16.

É professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP. @ - tercio@sampaioferraz.com.br
Revista Estudos Avançados - USP

Religiosidade no Brasil

Rodrigo Franklin de Sousa
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP, Brazil



PEREIRA, J. B. B. Religiosidade no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.

O Tópico da religiosidade no Brasil tem recebido atenção renovada com a participação cada vez maior de grupos religiosos, não poucas vezes de orientação fundamentalista, no cenário político e midiático brasileiro. A discussão é normalmente formatada em termos das questões quentes do momento e se mostra como um lugar de formação de estereótipos e visões superficiais, como a repetida afirmação do declínio do catolicismo laico no Brasil e do crescimento desenfreado de um evangelicalismo radical, proselitista e monolítico. A presente reedição de artigos originalmente publicados na Revista USP, em 2005 - e acrescida de algumas contribuições originais - é leitura fundamental para quem busca um entendimento mais nuançado do que é a religião e a religiosidade no Brasil. O livro editado por João Baptista Borges Pereira oferece um retrato do rico e intrincado mosaico que, na realidade, caracteriza a religiosidade brasileira. Os artigos da coletânea revelam um Brasil para além dos estereótipos consagrados, um quadro religioso onde figuram, dentre outros, grupos budistas no Rio Grande do Sul, muçulmanos no Rio de Janeiro, xamãs em São Paulo, espíritas messiânicos na Paraíba e judeus no Pará.

É bem verdade que o campo religioso brasileiro é dominado pela matriz do cristianismo, uma vez que notamos que catolicismo e protestantismo abarcam 90% dos brasileiros afiliados a alguma religião em nosso país. A essa ampla maioria somam-se ainda outras religiões e movimentos que têm alcançado penetração e expressividade cada vez maiores. Entretanto, mesmo dentro do contexto dessas manifestações cristãs majoritárias encontramos marcas de diversidade e pluralidade que correspondem a contingências históricas e a conjunturas sociais e culturais das mais diversas. A religiosidade brasileira possui uma identidade plástica e metamorfa, que trai os números censitários. É possível detectar alguns fatores históricos e sociais comuns que afetam, ainda que com suas especificidades, os diferentes grupos religiosos brasileiros. Esses fatores aparecem reiteradamente em diversos textos da coletânea.

A vinculação entre o cristianismo e a população brasileira tem raízes históricas profundas. Trazido pelos portugueses, o catolicismo sempre esteve intimamente vinculado à cultura e identidade brasileiras e passou por um processo de expansão e consolidação a partir da segunda metade do século XIX, com a revitalização do catolicismo na Europa, que influenciou o crescimento de novas práticas religiosas e devoções no Brasil, que matizaram definitivamente o catolicismo brasileiro (Augustin Wernet, "Congregações femininas no Brasil e o reavivamento religioso em fins do século XIX"). É principalmente no final do século XX que se pode reconhecer um franco declínio do catolicismo no Brasil (Faustino Teixeira, "Faces do catolicismo brasileiro"), o que aponta para um "processo de reconfiguração do campo religioso nacional" (Renata de Castro Menezes, "Uma visita ao catolicismo brasileiro contemporâneo: a bênção de Santo Antônio num convento carioca"). Nesse processo, é preciso problematizar a ideologia da identificação simples entre catolicismo e identidade brasileira, ou mesmo a própria conceituação do que seria uma identidade católica (Renata de Castro Menezes, "Uma visita ao catolicismo brasileiro contemporâneo: a bênção de Santo Antônio num convento carioca"). O catolicismo brasileiro é plural e diverso, amplo, sincrético, heterogêneo, plástico. As suas várias vertentes podem ser tidas como um verdadeiro mosaico de experiências e vivências de espiritualidade, que absorvem e moldam elementos próprios da tradição católica assim como de outras tradições (Faustino Teixeira, "Faces do catolicismo brasileiro").

Pluralidade e diversidade também caracterizam as diversas configurações que as igrejas protestantes e evangélicas assumem no país. Testemunhamos tanto o crescimento vertiginoso de igrejas que se inserem agressivamente na mídia quanto o lento e progressivo crescimento de grupos minoritários que se valem de métodos tradicionais de transmissão de sua fé (Paulo Barrera Rivera, "A reinvenção de uma tradição no protestantismo brasileiro: a Igreja Evangélica Brasileira entre a Bíblia e a palavra de Deus"), tanto a dinâmica da instalação de grupos originários de outros países quanto de novos movimentos surgidos no Brasil. O protestantismo brasileiro também tem uma história longa e complexa, relacionada, por um lado, à chegada de diferentes grupos de imigrantes e, por outro, à atividade de grupos missionários. A distinção consagrada entre protestantismo de imigração e protestantismo de missão norteia vários textos do volume. Em alguns casos a distinção pode ser aplicada de forma clara, como no exemplo do luteranismo, situado firmemente na primeira categoria (Lauri Emílio Wirth, "Protestantismo brasileiro de rito luterano"). Em outros, como no do anglicanismo, existem peculiaridades que não permitem uma aplicação simples dos conceitos (Carlos Eduardo B. Calvani, "Anglicanismo no Brasil"). Há também os casos em que grupos, que em sua configuração original estavam relacionados a imigrantes, passam por uma descaracterização progressiva de sua marca étnica e passam a se propagar por meio da atividade missionária e proselitista - como no caso do protestantismo originalmente italianizado da Congregação Cristã do Brasil (João Baptista Borges Pereira, "Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida pela história da imigração").

Para além da distinção, percebe-se ainda que permanece uma complexa dinâmica entre as raízes estrangeiras do protestantismo e as configurações específicas que suas vertentes assumem no Brasil. Nesse sentido se destaca a influência ainda marcante dos Estados Unidos sobre o protestantismo brasileiro e o fato de que a trajetória das igrejas protestantes tradicionais de origem americana acontece no conflito entre dependência e autonomia (Antônio Gouvêa Mendonça, "O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas"). Nota-se, também, que o caso particular do pentecostalismo brasileiro deve ser analisado a partir de suas origens norte-americanas em conjunção com suas especificidades no Brasil (Leonildo Silveira Campos, "As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro: observações sobre uma relação ainda pouco avaliada").

O choque entre os elementos tradicionais trazidos do pentecostalismo americano com a realidade do campo religioso brasileiro produz por vezes elementos sincréticos. É o caso de segmentos neopentecostais, em particular a Igreja Universal do Reino de Deus, promotores de uma cruzada ideológica contra os cultos e tradições religiosas afro-brasileiras que, embora destoe do discurso de sincretismo e tolerância prevalentes no Brasil, cria simultaneamente um espaço simbólico novo em que tradições afro-brasileiras são absorvidas, rebatizadas e transfiguradas em um contexto evangélico (Vagner Gonçalves da Silva, "Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica").

O conflito entre a manutenção dos valores identitários (sejam eles étnicos ou doutrinários) de cada grupo e as contingências da cultura em ele está inserido pode ser descrita em termos de um choque ou de uma negociação. E essa tensão entra em foco em diversos textos da coletânea, em particular os que tratam de religiões que, embora universais e majoritárias em outros contextos, no Brasil se caracterizam como minoritárias ou circunstancialmente étnicas (João Baptista Borges Pereira, "Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida pela história da imigração"). Um exemplo particular é o da Igreja Ortodoxa, parte ainda do contexto amplo do cristianismo, onde se percebe a luta contra a imigração e a aculturação, tentativa de manter a rigidez doutrinária e uma matriz étnica clara (Murício Loiacono, "A Igreja Ortodoxa no Brasil").

No caso do judaísmo, apresenta-se uma clara distinção entre a orientação haláchica e ortodoxa de uma vertente - predominante em São Paulo - que prima pela diferenciação e separação do grupo e a maioria dos judeus brasileiros, como no caso dos do Pará, que privilegiam a formação de identidades complexas, que valorizam mais prontamente elementos próprios das culturas locais em que estão inseridos (Marta F. Topel, "Judaísmo(s) brasileiro(s): uma incursão antropológica").

As comunidades islâmicas também deparam com a negociação entre identidade étnica, confissão doutrinária e inserção na cultura brasileira, questões que afetam o crescimento e as relações de poder no interior do grupo. Uma interessante solução encontrada nesse caso é a da doutrina da taqiya, que propõe o ocultamento de práticas e crenças com vistas à acomodação à tradição local e o benefício e segurança internos da comunidade. Entretanto, a resistência brasileira ao islamismo tem levado a comunidade xiita em locais como o Rio de Janeiro a um desencanto com relação a esforços nesse sentido (Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, "Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçul manas no Brasil").

O budismo chegou ao Brasil no final da década de 1950, e seu crescimento tem sido baseado no processo lento de pequenos grupos, de maneira que os resultados de sua inserção no Brasil só poderão ser percebidos em longo prazo (Ricardo Mário Gonçalves, "As flores do Dharma desabrocham sob o cruzeiro do sul: aspectos dos vários 'budismos' no Brasil"). Mas, novas religiões japonesas de matriz budista também têm, em maior ou menor escala, atraído o interesse dos brasileiros (Geraldo José de Paiva, "Novas religiões japonesas e sua inserção no Brasil: discussões a partir da psicologia"). Um caso de destaque é o da Sokka Gakkai no Rio Grande do Sul, que na tentativa de "otimizar" a propagação de sua fé no Brasil, tenta operar em torno de uma complexa dinâmica entre uma "face" pública simpática e acomodada à religiosidade brasileira e uma "face" interna que prima pelo reforço e não negociação de suas convicções e especificidades doutrinárias (Suzana Ramos Coutinho Bornholdt, "História, especificidades e inserção do budismo japonês da Sokka Gakkai no Sul do Brasil").

Outro ponto de enfoque da coletânea diz respeito à inserção de crenças e práticas originariamente minoritárias na sociedade brasileira contemporânea e às formas como estas se moldam segundo tendências atuais. Por exemplo, as manifestações religiosas indígenas permanecem à margem da sociedade (Roque de Barros Laraia, "As religiões indígenas: o caso tupi-guarani"), embora sirvam, ainda que de maneira transversa, de inspiração para o chamado xamanismo urbano. Esse fenômeno agrega cosmologias indígenas a outros elementos constitutivos próprios da vida nas cidades, como forma de cultivo e expressão da religiosidade no contexto urbano contemporâneo (José Guilherme Cantor Magnani, "Xamãs na cidade"). São precisamente essas contingências da vida urbana que reconfiguram a relação entre religiosidade e economia, como no caso do espiritismo, que apresenta hoje segmentos que se desviam da proposta original voltada para a caridade e o desapego material, adotando noções de prosperidade e afluência como valores espirituais (Sandra Jacqueline Stoll, "O espiritismo na encruzilhada: mediunidade com fins lucrativos?").

Por vezes, a distopia entre ideário religioso e realidade concreta leva ao surgimento de movimentos radicais, milenaristas e messiânicos. Esses movimentos no Brasil surgiram em contextos predominantemente rurais, mas também em centros urbanos e comunidades indígenas e são apresentados como efetivados por atores intencionais, cujas ações se originam de uma cosmovisão particular e articulada (Renato da Silva Queiroz, "Mobilizações sociorreligiosas no Brasil: os surtos messiânico-milenaristas").

Os textos aqui reunidos variam desde aqueles que praticamente se limitam a uma descrição histórica ou circunstancial dos grupos abordados a releituras e propostas inovadoras. O conjunto permite uma visualização significativa dos matizes e processos de transformação constante da religiosidade no Brasil.

É professor e coordenador do Programa de Pós-Gra-duação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. @- rodrigo.sousa@mackenzie.br
Revista Estudos Avançados - USP

Belas artes: estudos e apreciações

O lado de lá das artes

Fábio D'Almeida
Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil.



FERREIRA, F. Belas artes: estudos e apreciações. São Paulo: Zouk, 2012.

A Republicação do livro Belas artes: estudos e apreciações (1885), de Félix Ferreira (1841-1898), vem jogar nova luz aos estudos sobre a arte brasileira do século XIX, atualizando um panorama de avaliação crítica para o qual as produções desse período têm sido conduzidas desde os anos 1980. Empreendida pelo professor Tadeu Chiarelli e editada pela Zouk, a publicação segue algumas orientações de pesquisa e formação desse estudioso que, a partir de 1995, inaugurou, com o hoje bem conhecido A arte brasileira (1888), de Gonzaga Duque (1863-1911), a sua participação na reedição de fontes originais sobre a arte nacional, a fim de serem mais facilmente acessadas pelo público geral e especializado.

Conquanto um holofote centrado em uma mesma área, a luz que o livro de Ferreira empresta aos estudos sobre arte brasileira do oitocentos é, no entanto, uma de outra sorte cromática, que faz notar alguns elementos que pouco interessaram a outros críticos brasileiros do mesmo período, incluindo-se aí o seu colega de pena no Arte brasileira.

Enquanto Gonzaga Duque tornar-se-ia, no Rio de Janeiro, expoente da crítica de arte produzida entre as últimas duas décadas do século XIX e início do XX (sobretudo pintura e escultura), Ferreira esteve longe de se converter em um crítico especializado da área. Isso ele próprio o reconheceu, não apenas no Belas artes, mas em outros textos que imprimiu em sua longa carreira como jornalista. Ferreira era, de outro modo, na avaliação certeira de Chiarelli, um "publicista" (p.11); e a essa qualificação se poderia ainda somar outra: a de militante.

Desde a década de 1860, quando ligado à Biblioteca Nacional, seus planos se atualizam na participação contínua de projetos culturais e educacionais para a sociedade brasileira, cujos principais prismas irradiadores, segundo defendia, seriam a palavra impressa e a imagem gravada, ativadas em folhetos, jornais e, principalmente, em livros.

Não poucas vezes contestou a falta de "livros instrutivos e ilustrados" no país, "postos ao alcance dos menos favorecidos de fortuna" (Ferreira, 1881, p.7). Sua aspiração não era a de produzi-los como perpétuos, mas como objetos portáteis correntes, difusores importantes de ideias para o "progresso" de um povo - mormente o de um ainda preso às amarras escravistas, mesmo que testemunhasse leis graduais para o seu afrouxamento. Em fomento a essa empreitada, escreveu sobre quase todo tipo possível de assunto: saúde, economia, política, ciências, educação, turismo, história, artes.

Belas artes: estudos e apreciações é o primeiro fruto desse último ramo, no qual o autor anunciava já concluir outra publicação de mesma natureza, mas que parece não ter sido concretizada. Coletânea de textos originalmente entregues esparsamente à imprensa ao longo de vários anos, esses escritos foram formatados em livro num importante período de expansão do mercado livreiro no Brasil, para o qual Ferreira, sintomaticamente, deu incessante contribuição não apenas como escritor, mas também como editor de autores novos e clássicos e mesmo como dono de uma empresa tipográfica.1 Conhecia, portanto, todos os percursos e percalços da prática editorial, tal como os profissionais mais ilustres do período, Louis Garnier e os irmãos Laemmert, vizinhos do brasileiro nos arredores da efervescente Rua do Ouvidor, além de eventuais parceiros comerciais e colegas de soirées literárias.

O esforço de Ferreira, ao menos no campo editorial das artes, foi exemplar, conforme também notado por Chiarelli. Belas artes parece ter sido "o primeiro livro dedicado à história da arte publicado no Brasil" (p.9) por um autor nativo. Participante do mercado editorial, Ferreira o sabe e estrutura seu impresso em duas partes que, se desviadas do importante dado de sua primazia, poderiam fazê-las parecer a princípio incoesas.

Na primeira parte, Ferreira apresenta um "Estudo histórico", bloco no qual empreende uma leitura da história da arte universal, essa por sua vez seguida pelo que compreendia serem os estágios irrefutáveis da arte - e mesmo de toda atividade humana. Origem, gênese, infância, formação, desenvolvimento, progresso, transformação, florescimento, grandeza, apogeu, maturidade, decadência, renascimento são conceitos recorrentes nessa primeira parte do livro, e retomados com mesmo fôlego durante a segunda parte. Eles sugerem a aproximação de Ferreira com uma abordagem de muitas "histórias culturais" do oitocentos, que supunham ser possível perceber e reconstruir, pela análise dos diversos produtos do homem, as características sociais distintivas do povo e do período em que teriam sido formatados.

Expondo vários de seus interlocutores - a grande maioria franceses, cujos livros eram publicados havia pouquíssimo tempo -, Ferreira não esconde que não deseja divulgar toda a arte universal então conhecida, mas construir uma filiação interessada em algumas produções consagradas na história, essas que seriam "naturalmente" mais afeitas aos brasileiros, em razão de sua "latinidade" e do seu evidente lastro europeu. Se Belas artes é publicado num mesmo período em que se discutem, à luz da incipiente arqueologia nacional, as "produções artísticas" e o legado da cultura indígena no Brasil, não deve restar dúvidas de que Ferreira, tendo também participado desse debate,2 conclui que não é para com os gentios, com sua civilização "infantil" e arte "imperfeita", que o brasileiro mantinha dívidas. A última expressão verdadeira da sua herança artística seria o ainda vigente (e bem quisto) predomínio internacional da arte francesa; e a primeira, a da Grécia clássica.

Com vistas nessas duas balizas - a de uma Antiguidade perene com que inicia o livro, e a de uma Modernidade francesa inspiradora, com a qual termina a primeira parte -, Ferreira prepara a segunda parte do seu livro, pois advoga perceber o Brasil no desdobrar de um mesmo percurso histórico de grandes nações, submetido, do mesmo modo, às variações contínuas dos seus estágios cívicos e artísticos.3

"Nação nova", mas não mais infantil, a sociedade brasileira e, por conseguinte, as suas artes estariam na fase de "formação", na qual as promessas do presente, se ancoradas nas experiências do legado europeu, eram ansiadas como certezas de um futuro próximo: vislumbre positivo de um autor quadragenário, que contrastaria bastante com o pessimismo expresso três anos depois pelo ainda vintaneiro Gonzaga Duque.4 De todo modo, a periodização de Ferreira antecipava, curiosamente, a mesma estratégia que seria adotada por Duque no A arte brasileira, quando também conduzia seu livro - contudo com maior rigor esquemático - entre estágios progressistas da arte nacional.5 A afinidade pode não ser casual, posto que os dois escreveram para os mesmos periódicos, e é improvável que não tenham travado algum contato, ou que, ao menos, não tenham se aproximado de um mesmo arcabouço teórico derivado de uma bibliografia estrangeira comum, tão acessada por intelectuais de áreas afins.

Maiores semelhanças entre os livros desses dois autores acabam, todavia, aí. No exato ponto onde os seus estudos acordam se situa, justamente, a outra sorte cromática que Ferreira empresta a seu texto, em especial à segunda parte, dedicada unicamente à arte brasileira. Se Duque, e mesmo outros críticos brasileiros, mantém foco regular no primeiro escalão das artes e dos artistas do século XIX, o engajamento com a instrução pública assumido por Ferreira, e a crença na força que os artistas teriam nesse âmbito e no da indústria, deve ter influído para que o tom e os objetos de suas apreciações se concentrassem no que se pode compreender por um "lado B" das artes no Brasil.

Pintura e escultura merecem espaço em seus estudos, mas não menos quanto o merecem outras artes e "gêneros" menores. Parcela significativa do texto é dedicada à arquitetura brasileira do oitocentos, alternada pari passu por apreciações sobre xilogravura, litografia, fotografia, tipografia, guache, pastel, desenho, moldagem em ferro e trabalhos em seda - algumas práticas que, ainda hoje, poderiam ser questionadas se merecedoras de figurar em um livro sobre "belas artes". Ferreira abre ainda terreno para um "gênero" dito amador, pouco explorado no Brasil do século XIX, incluindo críticas a trabalhos de mulheres.6

À exceção de algumas cartas marcadas incontornáveis (como Victor Meirelles e Pedro Américo), a grande maioria dos artistas abordados pelo autor também permanece sem maior representação nos estudos da história da arte brasileira e, talvez por isso, seja possível que também não se percebam a coerência e o interesse por ele empregados quando os torna chaves de sua atenção. São quase todos artistas que integram um circuito profissional e expositivo paralelo ao da Academia Imperial de Belas Artes (instituição central das artes no século XIX) e, mais do que isso, muitos deles ligados (enquanto professores ou alunos) ao Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro: escola fundada pelo arquiteto Bethencourt da Silva,7 voltada sobretudo para o ensino artístico de artesãos e gráficos, e não especificamente para o de artistas plásticos.

O interesse de Ferreira nesses "operários" (tanto, ao ponto de afirmar: "artistas industriais como esses é que são os verdadeiros operários do progresso" (p.185)) parece reiterar a sua atuação naquele projeto de desenvolvimento social e material do Brasil, chamando a atenção para a importância desses profissionais nesse sentido. O livro de Ferreira mesmo, enquanto exemplar de um instrumento básico, obrigatório à educação, necessitaria dos serviços de tipógrafos e ilustradores bem instruídos.8

Em suas escolhas, o autor demonstra dificilmente perceber as artes em um domínio isolado. E nem as queria assim, pois se eram a expressão do "progresso" de um povo, quanto mais cedo fossem por ele abraçadas, tão logo ao corrente estágio de "formação" da nação brasileira sucederia o do "desenvolvimento"; e a esse, o do "brilhantismo".



É nessa postura assumida que parece estar a imediata contribuição do Belas artes para a história da arte brasileira, porquanto nele o autor esboça uma visão dessa história como uma disciplina que se constrói de relações sociais e práticas artísticas amalgamadas, na qual cada uma, "maior" ou "menor",9 possui importância indelével para um fim moralmente elevado.

Recebido hoje, o livro talvez torne-se desde já mais importante pelas perguntas que abre para um campo ainda pouco explorado das artes brasileiras, do que por qualquer resposta oferecida por mãos fáceis: perguntas sobre um "lado B" que, até que se atravesse a brecha do muro aberta por Félix Ferreira, permanecerá sendo o lado de lá das artes no século XIX.



Referências

FERREIRA, F. (Ed.) Sciência para o povo: Serões Instrutivos. Ano I, vol.1. Rio de Janeiro: Lombaerts & C., 1881. [ Links ]

HALLEWELL, L. O livro no Brasil. São Paulo: Edusp, 2005. [ Links ]



Notas

1 É bastante possível que a Tipografia Imparcial de Ferreira tenha sido comprada da viúva ou de parentes de Paula Brito (um dos primeiros e maiores editores-impressores de livros do Brasil durante primeira metade do século XIX), que possuiu, anos antes, tipografia com o mesmo nome (cf. Hallewell, 2005).

2 Para a I Exposição Antropológica Brasileira, em 1882, Ferreira escreveu, a convite de Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional, um texto sobre as artes dos indígenas, publicado na revista da mostra, em 1883.

3 O seguinte trecho do Belas artes é, nesse sentido, especialmente revelador: "Cumpre não esquecer que as artes em todos os tempos e países têm tido sucessivamente períodos de infância, desenvolvimento e brilhantismo, e não poucas vezes até de decadência e renascimento. Não estamos, é certo, no primeiro período, o da infância, mas também ainda não chegamos ao do desenvolvimento: achamo-nos, sim, no da formação, que coincide com o período da ebulição social que atravessamos.." (p.181).

4 Foi esse pessimismo, alternado por momentos mais brandos, o dado que levou Tadeu Chiarelli a perceber uma "moldura" e um "quadro" nas críticas do A arte brasileira, quando concluía a introdução para a nova edição do livro de Duque, em 1995.

5 São eles: "causas", "manifestação", "movimento" e "progresso".

6 As produções femininas são um interesse caro a Ferreira, que defendeu e festejou, mesmo em outros livros, a instalação do ensino artístico para o sexo feminino no Liceu de Artes e Ofícios - RJ, em 1881.

7 Bethencourt é uma figura por quem Fer-reira, por amizade e proximidade de interesses, nutre grande admiração, ao ponto de dedicar, ainda no Belas Artes, um perfil artístico.

8 Em trágica ironia, Ferreira foi, no Belas artes, vítima de sua própria causa. A defesa que fez em favor do ensino artístico encontrou como limitação o próprio fato de não poder imprimir em seu livro as imagens que desejava, reclamando nele, em nota, a carência de profissionais e estruturas mais acessíveis no Brasil. Redenção belamente feita por Chiarelli e pela Zouk, na nova edição, que dispõe das desejadas ilustrações.

9 A distinção parece válida porque Ferreira, apesar de várias concessões, não consegue abandonar uma tradicional escala de valores ainda vigente entre as diferentes artes manuais, na qual pintura e escultura ainda permaneciam como exemplos máximos.

É doutorando em História, Crítica e Teoria da Arte no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Membro do Grupo de Estudos Arte & Fotografia do mesmo Departamento. Editor e colaborador da Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural. @ - fabioufes@gmail.com
Revista Estudos Avançados - USP

Belas artes: estudos e apreciações

O lado de lá das artes

Fábio D'Almeida
Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil.



FERREIRA, F. Belas artes: estudos e apreciações. São Paulo: Zouk, 2012.

A Republicação do livro Belas artes: estudos e apreciações (1885), de Félix Ferreira (1841-1898), vem jogar nova luz aos estudos sobre a arte brasileira do século XIX, atualizando um panorama de avaliação crítica para o qual as produções desse período têm sido conduzidas desde os anos 1980. Empreendida pelo professor Tadeu Chiarelli e editada pela Zouk, a publicação segue algumas orientações de pesquisa e formação desse estudioso que, a partir de 1995, inaugurou, com o hoje bem conhecido A arte brasileira (1888), de Gonzaga Duque (1863-1911), a sua participação na reedição de fontes originais sobre a arte nacional, a fim de serem mais facilmente acessadas pelo público geral e especializado.

Conquanto um holofote centrado em uma mesma área, a luz que o livro de Ferreira empresta aos estudos sobre arte brasileira do oitocentos é, no entanto, uma de outra sorte cromática, que faz notar alguns elementos que pouco interessaram a outros críticos brasileiros do mesmo período, incluindo-se aí o seu colega de pena no Arte brasileira.

Enquanto Gonzaga Duque tornar-se-ia, no Rio de Janeiro, expoente da crítica de arte produzida entre as últimas duas décadas do século XIX e início do XX (sobretudo pintura e escultura), Ferreira esteve longe de se converter em um crítico especializado da área. Isso ele próprio o reconheceu, não apenas no Belas artes, mas em outros textos que imprimiu em sua longa carreira como jornalista. Ferreira era, de outro modo, na avaliação certeira de Chiarelli, um "publicista" (p.11); e a essa qualificação se poderia ainda somar outra: a de militante.

Desde a década de 1860, quando ligado à Biblioteca Nacional, seus planos se atualizam na participação contínua de projetos culturais e educacionais para a sociedade brasileira, cujos principais prismas irradiadores, segundo defendia, seriam a palavra impressa e a imagem gravada, ativadas em folhetos, jornais e, principalmente, em livros.

Não poucas vezes contestou a falta de "livros instrutivos e ilustrados" no país, "postos ao alcance dos menos favorecidos de fortuna" (Ferreira, 1881, p.7). Sua aspiração não era a de produzi-los como perpétuos, mas como objetos portáteis correntes, difusores importantes de ideias para o "progresso" de um povo - mormente o de um ainda preso às amarras escravistas, mesmo que testemunhasse leis graduais para o seu afrouxamento. Em fomento a essa empreitada, escreveu sobre quase todo tipo possível de assunto: saúde, economia, política, ciências, educação, turismo, história, artes.

Belas artes: estudos e apreciações é o primeiro fruto desse último ramo, no qual o autor anunciava já concluir outra publicação de mesma natureza, mas que parece não ter sido concretizada. Coletânea de textos originalmente entregues esparsamente à imprensa ao longo de vários anos, esses escritos foram formatados em livro num importante período de expansão do mercado livreiro no Brasil, para o qual Ferreira, sintomaticamente, deu incessante contribuição não apenas como escritor, mas também como editor de autores novos e clássicos e mesmo como dono de uma empresa tipográfica.1 Conhecia, portanto, todos os percursos e percalços da prática editorial, tal como os profissionais mais ilustres do período, Louis Garnier e os irmãos Laemmert, vizinhos do brasileiro nos arredores da efervescente Rua do Ouvidor, além de eventuais parceiros comerciais e colegas de soirées literárias.

O esforço de Ferreira, ao menos no campo editorial das artes, foi exemplar, conforme também notado por Chiarelli. Belas artes parece ter sido "o primeiro livro dedicado à história da arte publicado no Brasil" (p.9) por um autor nativo. Participante do mercado editorial, Ferreira o sabe e estrutura seu impresso em duas partes que, se desviadas do importante dado de sua primazia, poderiam fazê-las parecer a princípio incoesas.

Na primeira parte, Ferreira apresenta um "Estudo histórico", bloco no qual empreende uma leitura da história da arte universal, essa por sua vez seguida pelo que compreendia serem os estágios irrefutáveis da arte - e mesmo de toda atividade humana. Origem, gênese, infância, formação, desenvolvimento, progresso, transformação, florescimento, grandeza, apogeu, maturidade, decadência, renascimento são conceitos recorrentes nessa primeira parte do livro, e retomados com mesmo fôlego durante a segunda parte. Eles sugerem a aproximação de Ferreira com uma abordagem de muitas "histórias culturais" do oitocentos, que supunham ser possível perceber e reconstruir, pela análise dos diversos produtos do homem, as características sociais distintivas do povo e do período em que teriam sido formatados.

Expondo vários de seus interlocutores - a grande maioria franceses, cujos livros eram publicados havia pouquíssimo tempo -, Ferreira não esconde que não deseja divulgar toda a arte universal então conhecida, mas construir uma filiação interessada em algumas produções consagradas na história, essas que seriam "naturalmente" mais afeitas aos brasileiros, em razão de sua "latinidade" e do seu evidente lastro europeu. Se Belas artes é publicado num mesmo período em que se discutem, à luz da incipiente arqueologia nacional, as "produções artísticas" e o legado da cultura indígena no Brasil, não deve restar dúvidas de que Ferreira, tendo também participado desse debate,2 conclui que não é para com os gentios, com sua civilização "infantil" e arte "imperfeita", que o brasileiro mantinha dívidas. A última expressão verdadeira da sua herança artística seria o ainda vigente (e bem quisto) predomínio internacional da arte francesa; e a primeira, a da Grécia clássica.

Com vistas nessas duas balizas - a de uma Antiguidade perene com que inicia o livro, e a de uma Modernidade francesa inspiradora, com a qual termina a primeira parte -, Ferreira prepara a segunda parte do seu livro, pois advoga perceber o Brasil no desdobrar de um mesmo percurso histórico de grandes nações, submetido, do mesmo modo, às variações contínuas dos seus estágios cívicos e artísticos.3

"Nação nova", mas não mais infantil, a sociedade brasileira e, por conseguinte, as suas artes estariam na fase de "formação", na qual as promessas do presente, se ancoradas nas experiências do legado europeu, eram ansiadas como certezas de um futuro próximo: vislumbre positivo de um autor quadragenário, que contrastaria bastante com o pessimismo expresso três anos depois pelo ainda vintaneiro Gonzaga Duque.4 De todo modo, a periodização de Ferreira antecipava, curiosamente, a mesma estratégia que seria adotada por Duque no A arte brasileira, quando também conduzia seu livro - contudo com maior rigor esquemático - entre estágios progressistas da arte nacional.5 A afinidade pode não ser casual, posto que os dois escreveram para os mesmos periódicos, e é improvável que não tenham travado algum contato, ou que, ao menos, não tenham se aproximado de um mesmo arcabouço teórico derivado de uma bibliografia estrangeira comum, tão acessada por intelectuais de áreas afins.

Maiores semelhanças entre os livros desses dois autores acabam, todavia, aí. No exato ponto onde os seus estudos acordam se situa, justamente, a outra sorte cromática que Ferreira empresta a seu texto, em especial à segunda parte, dedicada unicamente à arte brasileira. Se Duque, e mesmo outros críticos brasileiros, mantém foco regular no primeiro escalão das artes e dos artistas do século XIX, o engajamento com a instrução pública assumido por Ferreira, e a crença na força que os artistas teriam nesse âmbito e no da indústria, deve ter influído para que o tom e os objetos de suas apreciações se concentrassem no que se pode compreender por um "lado B" das artes no Brasil.

Pintura e escultura merecem espaço em seus estudos, mas não menos quanto o merecem outras artes e "gêneros" menores. Parcela significativa do texto é dedicada à arquitetura brasileira do oitocentos, alternada pari passu por apreciações sobre xilogravura, litografia, fotografia, tipografia, guache, pastel, desenho, moldagem em ferro e trabalhos em seda - algumas práticas que, ainda hoje, poderiam ser questionadas se merecedoras de figurar em um livro sobre "belas artes". Ferreira abre ainda terreno para um "gênero" dito amador, pouco explorado no Brasil do século XIX, incluindo críticas a trabalhos de mulheres.6

À exceção de algumas cartas marcadas incontornáveis (como Victor Meirelles e Pedro Américo), a grande maioria dos artistas abordados pelo autor também permanece sem maior representação nos estudos da história da arte brasileira e, talvez por isso, seja possível que também não se percebam a coerência e o interesse por ele empregados quando os torna chaves de sua atenção. São quase todos artistas que integram um circuito profissional e expositivo paralelo ao da Academia Imperial de Belas Artes (instituição central das artes no século XIX) e, mais do que isso, muitos deles ligados (enquanto professores ou alunos) ao Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro: escola fundada pelo arquiteto Bethencourt da Silva,7 voltada sobretudo para o ensino artístico de artesãos e gráficos, e não especificamente para o de artistas plásticos.

O interesse de Ferreira nesses "operários" (tanto, ao ponto de afirmar: "artistas industriais como esses é que são os verdadeiros operários do progresso" (p.185)) parece reiterar a sua atuação naquele projeto de desenvolvimento social e material do Brasil, chamando a atenção para a importância desses profissionais nesse sentido. O livro de Ferreira mesmo, enquanto exemplar de um instrumento básico, obrigatório à educação, necessitaria dos serviços de tipógrafos e ilustradores bem instruídos.8

Em suas escolhas, o autor demonstra dificilmente perceber as artes em um domínio isolado. E nem as queria assim, pois se eram a expressão do "progresso" de um povo, quanto mais cedo fossem por ele abraçadas, tão logo ao corrente estágio de "formação" da nação brasileira sucederia o do "desenvolvimento"; e a esse, o do "brilhantismo".



É nessa postura assumida que parece estar a imediata contribuição do Belas artes para a história da arte brasileira, porquanto nele o autor esboça uma visão dessa história como uma disciplina que se constrói de relações sociais e práticas artísticas amalgamadas, na qual cada uma, "maior" ou "menor",9 possui importância indelével para um fim moralmente elevado.

Recebido hoje, o livro talvez torne-se desde já mais importante pelas perguntas que abre para um campo ainda pouco explorado das artes brasileiras, do que por qualquer resposta oferecida por mãos fáceis: perguntas sobre um "lado B" que, até que se atravesse a brecha do muro aberta por Félix Ferreira, permanecerá sendo o lado de lá das artes no século XIX.



Referências

FERREIRA, F. (Ed.) Sciência para o povo: Serões Instrutivos. Ano I, vol.1. Rio de Janeiro: Lombaerts & C., 1881. [ Links ]

HALLEWELL, L. O livro no Brasil. São Paulo: Edusp, 2005. [ Links ]



Notas

1 É bastante possível que a Tipografia Imparcial de Ferreira tenha sido comprada da viúva ou de parentes de Paula Brito (um dos primeiros e maiores editores-impressores de livros do Brasil durante primeira metade do século XIX), que possuiu, anos antes, tipografia com o mesmo nome (cf. Hallewell, 2005).

2 Para a I Exposição Antropológica Brasileira, em 1882, Ferreira escreveu, a convite de Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional, um texto sobre as artes dos indígenas, publicado na revista da mostra, em 1883.

3 O seguinte trecho do Belas artes é, nesse sentido, especialmente revelador: "Cumpre não esquecer que as artes em todos os tempos e países têm tido sucessivamente períodos de infância, desenvolvimento e brilhantismo, e não poucas vezes até de decadência e renascimento. Não estamos, é certo, no primeiro período, o da infância, mas também ainda não chegamos ao do desenvolvimento: achamo-nos, sim, no da formação, que coincide com o período da ebulição social que atravessamos.." (p.181).

4 Foi esse pessimismo, alternado por momentos mais brandos, o dado que levou Tadeu Chiarelli a perceber uma "moldura" e um "quadro" nas críticas do A arte brasileira, quando concluía a introdução para a nova edição do livro de Duque, em 1995.

5 São eles: "causas", "manifestação", "movimento" e "progresso".

6 As produções femininas são um interesse caro a Ferreira, que defendeu e festejou, mesmo em outros livros, a instalação do ensino artístico para o sexo feminino no Liceu de Artes e Ofícios - RJ, em 1881.

7 Bethencourt é uma figura por quem Fer-reira, por amizade e proximidade de interesses, nutre grande admiração, ao ponto de dedicar, ainda no Belas Artes, um perfil artístico.

8 Em trágica ironia, Ferreira foi, no Belas artes, vítima de sua própria causa. A defesa que fez em favor do ensino artístico encontrou como limitação o próprio fato de não poder imprimir em seu livro as imagens que desejava, reclamando nele, em nota, a carência de profissionais e estruturas mais acessíveis no Brasil. Redenção belamente feita por Chiarelli e pela Zouk, na nova edição, que dispõe das desejadas ilustrações.

9 A distinção parece válida porque Ferreira, apesar de várias concessões, não consegue abandonar uma tradicional escala de valores ainda vigente entre as diferentes artes manuais, na qual pintura e escultura ainda permaneciam como exemplos máximos.

É doutorando em História, Crítica e Teoria da Arte no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Membro do Grupo de Estudos Arte & Fotografia do mesmo Departamento. Editor e colaborador da Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural. @ - fabioufes@gmail.com
Revista Estudos Avançados - USP

un pianiste brésilien

Uma lição de música e de vida

Ricardo Tacuchian
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Academia Brasileira de Música, Rio de Janeiro/ RJ, Brazil



MARTINS, J. E. José Eduardo Martins, un pianiste brésilien (Entretiens avec José Francisco Bannwart e François Servenière). Paris: Observatoire Musical Français, Université Paris-Sorbonne, 2012.



Um artista e um pesquisador de primeira linha, quando chega aos 74 anos de idade, reúne um patrimônio cultural que não se adquire apenas nos bancos universitários. José Eduardo Martins possui uma trajetória de vida que lhe dá autoridade para mostrar às gerações mais novas o que significa a existência plena de um músico, de um educador, de um investigador, enfim, de um cidadão que aprimorou (e aprimora até hoje) sua visão de mundo, através da prática diária do fazer artístico, da convivência acadêmica e do cultivo da espiritualidade humanística.

A série "Témoignages" do Observatoire Musical Français, sob a direção da ilustre musicóloga Danièle Pistone, visa registrar o pensamento e as reflexões das grandes personalidades musicais francesas ou estrangeiras de nossos tempos e que, de algum modo, tangenciaram a cultura francesa. A par de sua carreira internacional, de sua rica produção bibliográfica e discográfica, José Eduardo Martins é um intelectual que, desde cedo, tornou-se íntimo da literatura e da cultura francesas. Depois de receber orientação do pedagogo e pianista russo José Kliass, Martins, aos vinte anos de idade, viveu quatro anos em Paris, quando recebeu a orientação de vários mestres, entre eles Marguerite Long, no piano, e Louis Saguer, nas matérias teóricas. Martins tornou-se mais tarde um especialista em Debussy, com vários trabalhos publicados na França e no Brasil sobre o eminente compositor. Sua gravação dos Douze études pour piano é antológica. Para Martins, "estes magníficos Estudos são o cume da escrita pianística de Debussy". Antes, ele já havia gravado a integral de outro compositor francês, Jean Philippe Rameau, l'oeuvre de clavier.

Martins, portanto, de modo muito adequado, foi escolhido para participar da série "Témoignages". Dois musicólogos, um brasileiro, José Francisco Bannwart, outro francês, François Servenière, propuseram várias questões ao pianista, algumas polêmicas, sobre os mais variados temas, tais como sua carreira em Paris, as personalidades com quem conviveu, a questão da cultura erudita versus o mass media, o desaparecimento da crítica musical, a crise atual da música de concerto, a escolha do repertório, a relação com empresários, o papel do artista moderno dentro da Universidade, a comunicabilidade da música contemporânea e a relação entre técnica e cultura, entre competência inata e adquirida e entre talento e trabalho.

Martins fez uma opção, digamos, política sobre a escolha de seu repertório: "quase todo meu percurso, desde os anos 70, tem sido estruturado sobre a apresentação das grandes obras-primas esquecidas ou sobre a interpretação da música contemporânea". Daí se compreende o repertório que Martins nos lega, através de gravações surpreendentes, como a integral dos estudos de Scriabine, a obra de Francisco de Lacerda, Carlos Seixas, Lopes-Graça, Kuhnau, e dos contemporâneos, onde se destacam os brasileiros e os belgas. Além disso, Martins trouxe-nos de volta as preciosidades da obra de Henrique Oswald, esquecida desde os arroubos modernistas da Semana de Arte Moderna.

Quantos conselhos Martins nos oferece no que se refere ao desafio da interpretação dos compositores do passado! Ele mostra que, enquanto a interpretação dos mestres do classicismo e do romantismo se baseia na "tradição interpretativa", a execução, ao piano, do repertório originalmente cravístico possui outra tradição. Martins chama a atenção que pretender realizar um som de cravo no piano "é um simulacro". A partir daí, Martins faz interessantes reflexões sobre a velha discussão da execução de obras antigas por instrumentos de época ou por instrumentos modernos. Segundo o ilustre musicólogo François Lesure, por ele citado, "não é o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas sim o estilo do intérprete". Sem dúvida, trata-se de um texto que merece ser discutido em todas as classes de "Práticas Interpretativas" dos programas universitários de pós-graduação.

Em outro ponto, Martins responde quais são as identidades e as distinções na interpretação de Scriabine, Mussorgski, Debussy e Fauré, autores que ele conhece profundamente. Segundo Martins,
Conhecer, pelo menos, um conjunto das composições representativas de um criador, é importante. Todavia, o estilo representativo deveria sempre ser alimentado pelos dados da vida de um compositor, seu pensamento, sua correspondência essencial, aspectos concernentes ao meio onde o criador viveu, seu círculo de amizades, bem como seus músicos favoritos. A curiosidade ou o espírito de pesquisa nos conduzem, às vezes, a resultados surpreendentes. No entanto, a análise de uma obra sob diferentes aspectos se torna absolutamente necessária.

Quanto ao futuro incerto da música de concerto, Martins incute em seus discípulos uma única preocupação: a rigorosa formação do músico.

No meio de toda essa profusão de ideias e luzes, caminhos e sábias provocações, Martins afirma: "eu acredito no talento e na competência". As entrevistas de José Eduardo Martins compõem um pequeno grande livro. Memorável!

É professor titular da UFRJ e UniRio. Maestro e compositor. Membro da Academia Brasileira de Música. @ - rtacuchian@terra.com.br
Revista Estudos Avançados - USP

domingo, 8 de dezembro de 2013

Barba ensopada de sangue

Barbas de molho

Leia resenha sobre "Barba ensopada de sangue", quarto romance de Daniel Galera


Karl Erik Schøllhammer
Não há grande novidade em dizer que o escritor Daniel Galera (1979) é uma das grandes esperanças jovens na literatura brasileira contemporânea. Seus romances e contos foram todos promissores, no sentido pleno da palavra. Exemplos competentes de uma narrativa em formação e indicadores de uma força ficcional cuja maturidade ainda era difícil de determinar. De certa maneira, Galera foi vítima do próprio talento, pois escreve tão bem que aquilo que em outros escritores seria um resultado altamente satisfatório em seu caso parecia aquém de suas reais possibilidades. Seu surgimento na cena literária é parte da estória de um grupo de escritores de Porto Alegre que começou a publicar na rede em revistas virtuais. Fundou e participou do projeto editorial Livros do Mal, em colaboração com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla, onde publicou seus primeiros livros Dentes guardados (2001) e Até o dia em que o cão morreu (2003), romance adaptado pro cinema por Beto Brant com o título Cão sem dono (2007). Estreou na Companhia das Letras, em 2006, com Mãos de Cavalo, que teve uma excelente recepção crítica, e participou do polêmico projeto Amores Expressos com o romance premiado Cordilheira (2008) situado em Buenos Aires.
Desde os primeiros livros se percebia que Galera era dotado de uma capacidade artesanal na ficção com bons enredos e um estilo fluente, ainda que fechado num universo demasiado juvenil e numa cultura pop tratada sem muita distância. Por todos esses motivos foi com muita curiosidade e expectativa que iniciei a leitura do romance Barba ensopada de sangue (Cia das Letras), lançado com a promessa de ser um salto qualitativo na carreira de Galera – talvez seu primeiro grande romance e pelo menos, a julgar pelo tamanho de 422 páginas, a realização mais ambiciosa até agora. No blog da editora não faltam comentários sobre a importância desse livro que Galera levou quatro anos para escrever e a nova exposição internacional que seu lançamento garantirá ao autor e à editora, obviamente.
Vamos ao livro. Desde as primeiras páginas o enredo cativa. Já conhecia o início do romance pelo trecho publicado recentemente na seleção da revista Granta dos 20 melhores escritores jovens brasileiros, e na segunda leitura continua instigante. O jovem protagonista da história, um triatleta formado em Educação Física e professor de natação de Porto Alegre, tem um encontro revelador com o pai na véspera do suicídio deste. Contrariado, promete matar seu cachorro Beta, e escuta com interesse o relato do pai sobre o avô, um homem intenso, de paixões violentas e contraditórias, que ao ficar viúvo foge para uma aldeia de pescadores em Santa Catarina onde desaparece aparentemente assassinado pela comunidade num ato primitivo de sacrifício coletivo. A história do protagonista então se desenvolve em paralelo com a história do avô. Ele adota o cão do pai e viaja para Garopaba, no litoral de Santa Catarina, onde se estabelece num apartamento à beira-mar e consegue um emprego na academia local enquanto busca informações sobre o desaparecimento misterioso do avô — assunto ainda sensível e perigoso na pequena cidade. Há neste sentido um enredo forte na narrativa que segura o leitor habilmente e que se desenvolve sem obviedades para um desenlace bastante surpreendente que foge ao imperativo do gran finale e que obviamente não pretendo contar aqui.
Essa capacidade narrativa também era patente nos romances anteriores, como em Mãos de Cavalo em que uma viagem do narrador para escalar o Cerro Bonete na Bolívia numa espécie de fuga da banalidade cotidiana de repente se desdobra numa revisitação do passado à procura de um evento de violência que determinou sua vida adulta. Homens introspectivos, calados, fortes e enigmáticos “à gaúcha”, com dificuldades afetivas apesar de grande popularidade entre as mulheres, são os heróis prediletos de Galera. Mesmo em Cordilheira em que a personagem principal é Anita, jovem escritora brasileira em Buenos Aires, o eixo da história está no personagem portenho por quem se apaixona e que a introduz numa seita oculta de escritores.
Mas o leitor dificilmente deixa de simpatizar com o personagem, que, levado por princípios intransigentes, beirando a psicopatologia, vai em direção aos extremos prometidos pela escalação gradativa da história com agilidade de trama policial. No início de Cordilheira o autor deixa uma referencia metaliterária ao conto “O Sul” de Jorge Luis Borges, sobre um homem da capital que numa viagem às pampas se envolve num duelo de facas fatal, aparentemente preso por uma chamada enigmática do destino. A narrativa de Galera consegue resguardar seu próprio segredo, não cai na tentação de desatar todos os nós ou de arrematar todas as pontas soltas, e assim se salva da banalidade escamoteada pelos enredos detetivescos. Mas sua qualidade não se reduz a isso.

Realismo íntimo
Barba Ensopada de Sangue não é propriamente um “page-turner” cheio de ação que garante a progressão através de capítulos curtos com ganchos apelativos. A história progride num ritmo gostosamente tranquilo, sem abrir mão de uma densidade particular no estofo da história que seduz sobretudo pela motivação convincente dos pormenores na construção narrativa dos ambientes. Galera cria um realismo peculiar e sensível pela densidade que consegue dar ao cotidiano sem excessos de gordura descritiva. É uma espécie de “realismo íntimo” em que a intimidade não provém dos sentimentos nem das meditações psíquicas e diálogos interiores do protagonista senão da precisão descritiva dos cenários escolhidos e da empatia que sempre expressa com os humores do personagem. Galera lança mão aqui de um dispositivo muito feliz ao inventar uma doença neurológica — prosopagnosia — para o protagonista, moléstia que o impede de reconhecer os traços faciais de outras pessoas e até de si mesmo. Assim cria-se certa elipse na narrativa em que a cegueira relativa do personagem contrasta com a clareza dos ambientes descritos. Não sabemos bem com quem ele interage e uma provável ameaça se instala pela dificuldade de interpretar os gestos alheios. O invisível se introduz no visível sem abrir mão da transparência descritiva e introduz nela uma ambiguidade que corrobora com o clima de tensão no desenrolar da história.
Percebe-se com facilidade a vizinhança literária de Galera com a narrativa contemporânea de língua inglesa, uma indubitável referência para o autor. Como tradutor, Galera trabalhou com clássicos modernos como John Cheever, Hunter S. Thompson e Robert Crumb além de ter vertido as vozes atuais de Zadie Smith, Jonathan Safran Foer e Irvine Welsh em português. É nessa paisagem, por exemplo nos romances de Paul Auster e de Haruki Murakami, que encontraremos personagens como o deste livro: um homem do nosso tempo, catapultado por um evento de crise — o suicídio do pai, a traição do irmão, a separação da mulher amada — e então levado a procurar explicações num labirinto de acontecimentos não sempre decifráveis.
O que é interessante na narrativa de Galera é sua capacidade de criar uma visão convincente da realidade brasileira sem nenhum resquício dos eternos resgates de uma identidade histórica ou cultural e sem as tentações pitorescas e exóticas. Estamos no sul, em Santa Catarina e sem dúvida no contexto contemporâneo com características históricas claras e conflitos socioculturais rapidamente identificados. Criar personagens vivos em ambientes e enredos convincentes é a força fabuladora de Galera. Se estamos diante um romance à altura de seu tempo capaz de refletir a complexidade de seu momento talvez nem seja uma pergunta pertinente. É uma boa história e um romance excelente? Com certeza! Se vai ser o romance da década e de sua geração? Ainda não.
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Karl Erick Shollhammer é professor de literatura na PUC/Rio e autor de Ficção brasileira contemporânea (Civilização Brasileira, 2001)
Barba Ensopada de Sangue
Daniel Galera
Companhia das Letras
422 págs.
R$ 39
 Revista Cult

Confissões de um jovem romancista

Umberto Eco

Em "Confissões de um jovem romancista", autor escreve sobre a construção de seus próprios romances


 
MAURÍCIO SANTANA DIAS

Que não se esperem grandes novidades do novo livro de Umberto Eco. A despeito do título sugestivo, Confissões de um jovem romancista não é uma autobiografia do “bruxo de Bolonha” nem uma reescritura paródica de Agostinho, Rousseau, Musset ou De Quincey – muito menos de Joyce. De fato, o pequeno volume reúne quatro conferências proferidas na Universidade Harvard em 2009, nas quais o autor comenta a própria obra – sobretudo a de ficção – e em parte retoma o que seus leitores já conheciam de livros como Seis passeios pelos bosques da ficção, Pós-escrito a  “O nome da rosa” ou Sobre a literatura.
Raramente um escritor é um bom analista da própria obra. Quase sempre há uma espécie de miopia ou de névoa que se interpõe entre o criador e a criatura, precisamente porque o autor quer fazer seu objeto coincidir com sua própria imagem. Felizmente não é este o caso de Umberto Eco, que a todo o momento faz questão de afirmar que ele, como “autor empírico”, tem pouco a dizer sobre sua obra: “os chamados escritores ‘criativos’ [...] nunca devem oferecer interpretações à própria obra”, diz numa de suas formulações categóricas. Isso porque, da perspectiva do semiólogo Eco, é sobretudo ao leitor – não o “leitor empírico” (eu, você, os clientes de uma livraria), mas o “leitor modelo”, capaz de decodificar a “intenção do texto” – que cabe a palavra final sobre uma obra literária. Mas há o reverso da medalha: Eco não se faz ilusões sobre seus textos porque está convencido de que eles são apenas “um mecanismo concebido para suscitar interpretações”, ou melhor, um “mecanismo concebido a fim de produzir seu leitor-modelo”.
Pode parecer complicado, mas no fim das contas essas afirmações podem ser resumidas numa palavra: truísmo, também conhecido por tautologia. Isso quer dizer que a leitura de Confissões é enfadonha ou pouco proveitosa? Longe disso. O gosto de Eco pelos jogos de raciocínio e pela enciclopédia infinita é capaz de levar seus leitores a vertigens ilimitadas – e, a propósito, o livro se encerra com uma brilhante reflexão sobre a vertigem das listas.

Pesquisador e romancista
Mas comecemos, ou continuemos, pelo início. Logo nas primeiras páginas da apresentação, Eco relata um episódio que remete a meados dos anos 1950, quando defendeu sua tese sobre a estética de Tomás de Aquino (1957). Um dos arguidores o recriminou em tom amistoso de que sua tese se apresentava como uma espécie de “romance policial”. Eco não nos diz qual foi sua resposta naquela ocasião, mas o senhor de hoje sentencia: “Toda obra científica deve ser uma espécie de thriller – o relato de uma busca por algum Santo Graal”.
A partir de então, ele rememora como escreveu ou construiu seu primeiro e mais famoso romance, O nome da rosa: “Quando decidi escrever o romance, foi como se abrisse um grande armário no qual, durante décadas, vinha depositando meus arquivos medievais. Todo aquele material estava ali aos meus pés e eu só tive de selecionar o que precisava”. Alguém poderia objetar que essa metáfora seria mais adequada para definir o “instinto de almoxarife”, como já o acusou um de seus críticos mais contumazes, do que o bom romancista, cujo trabalho costuma implicar procedimentos mais criativos. Mas o fato é que Umberto Eco, autor empírico, não vê tanta distinção – pelo menos no plano do método – entre o trabalho do pesquisador acadêmico (que, como já vimos, deve sempre compor um thriller) e o do romancista, que antes de escrever sempre faz pesquisas minuciosas, a fim de ter o maior controle possível sobre seu objeto. Afinal “a genialidade é composta de 10% de inspiração e 90% de transpiração”, diz Eco citando Thomas Edison (no caso de Edison, a proporção era de 1% para 99%).
Não sem deixar transparecer um certo orgulho, Eco confessa que, para cada um de seus romances – com O cemitério de Praga já são seis, escritos em média a cada seis anos –, ele se prepara longamente: “Coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas; tomo nota de plantas de edifícios, ou às vezes de um navio [...] e esboço o rosto dos personagens” etc. Estaria Eco reeditando os procedimentos experimentais defendidos por Zola há quase um século e meio? Consciente dessa possível associação, ele se antecipa e retruca antes que o acusem de naturalista plagiário: “Fiz o que fiz não porque queria imitar o realismo de Émile Zola, mas (conforme afirmei) porque, ao narrar, gosto de ter em minha frente a cena sobre a qual escrevo”.
Pensando bem, talvez essa paixão pelo excesso descritivo, pela minúcia, pela enumeração e, ao mesmo tempo, a necessidade de manter sob controle permanente uma massa gigantesca de informações sejam a principal marca de Umberto Eco, para o bem e para o mal. Nele há sempre o flerte com o absoluto, uma tensão para o infinito, mas a partir de uma perspectiva cética – e não há nada mais pós-moderno que isso.
A propósito do “pós-moderno”, em Confissões o autor de Baudolino aproveita para mais uma vez acertar contas com esse já desgastado conceito. Admite ser um praticante do “duplo código”, ou seja, escrever ao mesmo tempo para o mais sofisticado e o mais naïf dos leitores com igual proveito (os “leitores ingênuos”, no máximo, “perderam uma piscadela adicional”), recorrendo abundantemente à “ironia intertextual” e à “metanarratividade”. Mas alto lá, diz Eco: “Não sou o que certos departamentos acadêmicos americanos depreciativamente denominam um ‘textualista’ – alguém que acredita (como alguns desconstrutivistas) que não há fatos, apenas interpretações, isto é, textos”. E, neste ponto, não há o que objetar. Um de seus cavalos de batalha desde A obra aberta (1962) sempre foi explorar a tensão dialética entre os direitos do texto e os direitos do leitor. Daí as recorrentes postulações de que “a coerência interna de um texto controla os incontroláveis impulsos do leitor”, ou que “entre a história misteriosa de uma criação textual e a deriva incontrolável de suas leituras futuras, o texto enquanto tal ainda representa uma presença reconfortante, um ponto ao qual podemos nos agarrar”.
No entanto a capacidade de distinguir entre fato e ficção, entre “OFEs” (Objetos Fisicamente Existentes) e construtos puramente ficcionais, já dá sinais de vacilar. “Recentemente li que, segundo uma pesquisa, um quinto dos adolescentes britânicos crê que Winston Churchill, Gandhi e Dickens são personagens de ficção, enquanto Sherlock Holmes e Eleanor Rigby seriam reais”, diz Eco perplexo e quase resignado.

Umberto Eco e sua preciosa biblioteca: “coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas”
Enumeração caótica
Em meio a tanta vertigem, não se pode negar que há nele essa obsessão pelo ponto fixo (o “pêndulo”), o ponto arquimediano. Por isso o “texto” não subsiste no ar ou nas nuvens, mas está solidamente enraizado no mundo, submetido a leis internas de verossimilhança, balizado por “restrições” (contraintes, diriam os teóricos do Oulipo) que tanto o autor quanto o leitor devem respeitar, a menos que se trate de uma peça deliberada e absolutamente nonsense. Mesmo que um romance nasça de duas imagens incongruentes – como o “pêndulo” e a “trombeta” –, o trabalho do escritor deverá se concentrar na construção de uma ponte que leve de um para o outro: e o resultado dessa complicada operação é O pêndulo de Foucault, diz o escritor.
Defendendo com agudeza e engenho seus pontos de vista, polemizando com bom humor, revelando alguns segredos (como o de que Cesare Pavese foi uma espécie de modelo para o personagem Jacopo Belbo), ao final do livro Umberto Eco chega finalmente a questionar os limites de sua própria criatividade, ao evocar dois autores para ele paradigmáticos: Borges e Calvino. A confissão se dá quando ele aborda um dos procedimentos centrais da poesia moderna, a “enumeração caótica”. Após ter distinguido o que para ele seriam as diferenças fundamentais entre o poeta e o romancista, Eco diz: “Pergunto-me se já elaborei uma lista verdadeiramente caótica. Como resposta, devo dizer que só os poetas criam listas caóticas genuínas. Romancistas são obrigados a representar algo que ocorre num determinado espaço e tempo, e, quando fazem isso, sempre projetam um tipo de moldura dentro da qual qualquer elemento incongruente é de certa forma ‘colado’ a todos os outros”.
Em outras palavras, é como se o romancista, ao contrário do poeta, estivesse submetido a uma racionalidade que de algum modo limitasse sua capacidade criativa. Aí está um ponto polêmico e questionável, que mereceria novos desdobramentos.
Surpreendentemente, nas últimas páginas do livro, Eco faz algumas digressões que recuperam Marx e indiretamente o associam à WWW, tingindo sua fala de um certo pessimismo. Ele lembra que, no início do Capital, Marx afirma que “a riqueza das sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista se apresenta como um imenso acúmulo de mercadorias”; e, na outra ponta, chega à conclusão de que “a WWW é de fato a mãe de todas as listas [...] o único empecilho é que não sabemos que elementos se referem a dados do mundo real e quais, não. Não há mais distinção entre verdade e erro” (grifo meu).
E assim voltamos aos adolescentes britânicos.
Maurício Santana Dias
é professor de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo, tradutor e ensaísta

Revista Cult

domingo, 17 de novembro de 2013

Noel Rosa: o humor na canção



Filósofo do samba

Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor e da ironia na obra de Noel Rosa.

Gabriela Reznik

Publicado em 06/08/2012 | Atualizado em 06/08/2012


Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0 sobre caricatura de Guilherme Bandeira)

"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo". Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.

 
A análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.

Para quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até sua morte prematura por tuberculose aos 26.

Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto, o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos empregados na análise musical e literária.

Com base nos conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana

A autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio, cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva (1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).

Mayra Pinto avalia que o período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura única.

No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da canção ‘Gago apaixonado’. Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.


O riso que denuncia


Noel Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”

“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e com o orgulho de produzi-la apesar disso.”

Se os versos de Noel provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal. Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente presente naquele período. 


 

Na cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)

No fim das contas, o livro é uma homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados / Tinham bela entoação”.

Noel Rosa: o humor na canção
Mayra Pinto
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial
216 páginas
 REVISTA CIÊNCIA HOJE