sábado, 24 de novembro de 2018

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NAS MENSAGENS PRESIDENCIAIS DE VARGAS E JK

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REIS, Carlos Eduardo dos. Dimensões contextuais da educação brasileira: a educação nas mensagens presidenciais de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (1951-1960). Florianópolis: NUPED, 2011 (118p.)

Jéferson Dantas*
* Mestre em Educação e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na linha de investigação Trabalho e Educação. Eamil: clioinsone@gmail.com.

O historiador Carlos Eduardo dos Reis (1960-) que há muito anos se dedica a discutir as interfaces entre o conhecimento histórico e a História da Educação, traz à baila em seu mais recente livro – numa série de seis volumes – os projetos de educação para o Brasil a partir das mensagens presidenciais. Neste primeiro volume, Reis delimita temporalmente o seu debate nas mensagens proferidas por Getúlio Dornelles Vargas (1883-1954) e Juscelino Kubitschek (1902-1976) entre os anos de 1951 e 1960. Logo no início de seu exame analítico, o historiador abaliza que o ‘processo civilizatório’ em nosso país foi forjado à custa da violência do trabalho escravo e pela exploração incessante da força de trabalho das camadas sociais populares (tanto no meio rural como no meio urbano). A educação seria, pois, a condição essencial para a imposição da ‘ordem’ e do ‘progresso’ a um contingente populacional banido dos processos de escolarização até as primeiras décadas do regime republicano. Reis afirma ainda que o projeto de nação das elites dominantes para o Brasil não compreendia a educação e a instrução pública como elementos constituintes. Tais elites, educadas nas universidades europeias ou nos bancos das universidades de Direito do Brasil, fizeram da “educação a grande abstração histórica que daria conta de construir o país com um futuro brilhante, desde que fosse branco, civilizado e morigerado” (p. 9). As elites reiteravam a importância da educação, mas sempre postergando os desafios da mesma para as futuras gerações. A ‘cultura bacharelesca’ foi a tônica da formação em nível superior em nosso país durante muitas décadas, enquanto a educação básica sofria de intenso processo de indigência e inanição devido à ausência de investimentos ou recursos públicos. O fio condutor da narrativa do autor, contudo, não se baseia tão somente nas mensagens presidenciais, mas num importante debate político que se fazia no Brasil naquele período, ou seja, a tramitação no Congresso Nacional da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que seria aprovada no início da década de 1960 e ficaria conhecida como Lei 4.024/1961. As discussões relativas à LDB iniciaram-se logo após a segunda guerra mundial, em 1946, e somente 15 anos depois foi finalmente aprovada. A questão educacional em tal contexto estava alicerçada na polêmica ‘centralização’ versus ‘descentralização’, ou em outras palavras, o confronto político explícito entre ‘liberais’ e ‘autoritários’, onde então se conjugavam as defesas relativas à escola pública ou à escola privada. O udenista Carlos Lacerda, inimigo político declarado de Vargas, era o principal defensor da perspectiva privatista no campo educacional. Getúlio Vargas, em suas primeiras mensagens presidenciais ao assumir o governo em 1951, deixava claro que as suas apostas residiriam no desenvolvimento científico e tecnológico, cujo momento fulcral foi a criação da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), responsável pelo fomento da pesquisa acadêmica até os dias atuais, notadamente na Pós-Graduação. Ainda durante a década de 1950, Getúlio Vargas assinalava a importância da campanha nacional do Livro Didático, além de sua recorrente preocupação com o estado lamentável do ensino primário, que apresentava, praticamente, regime de terminalidade após quatro anos de estudos básicos para grande parcela da população que se escolarizava. Poucos eram os que conseguiam continuar seus estudos em nível secundário ou quiçá ingressar no ensino superior. Juscelino Kubitschek, por seu turno, indicava no início do seu mandato em 1956 que “propunha-se a assistir a todos os tipos de escolas necessárias à formação do homem e indicava os dois princípios que iriam nortear a ação transformadora de seu governo: a descentralização administrativa e a flexibilização dos currículos” (p. 59). Todavia, imerso que estava o país na ‘cultura bacharelesca’, o que se assistiu de fato foi a saturação do ensino superior e o crescimento desordenado das carreiras profissionais liberais em detrimento das profissões técnicas. Kubitschek lamentava que a escolarização básica e a sua terminalidade precoce depois de quatro anos representava um ‘hiato nocivo’, tendo em vista que eram necessários dois anos para que os/as estudantes se preparassem para ingressar no ensino secundário. Evidentemente, muitos destes estudantes não prosseguiam os seus estudos,  dirigindo-se precocemente ao mundo do trabalho. Em 1958 havia no Brasil mais de 50% de analfabetos absolutos. Nesta direção, o ensino primário e o combate ao analfabetismo eram considerados como ‘a prioridade das prioridades’ do governo JK, pois segundo o presidente os recursos públicos disponíveis seriam “mais bem aplicados naquele nível de ensino, dando resultados imediatos na formação de pessoal qualificado para a sua proposta de desenvolvimento” (p. 83). Logo, propunha-se para este setor (ensino primário) experiências em áreas limitadas do país. De fato, houve uma experiência piloto numa cidade do interior de Minas Gerais (estado natal do presidente), mas sem maiores consequências para os enormes desafios educacionais que o Brasil arrostava. Além disso, o ensino secundário continuava sendo o grande gargalo no processo educacional brasileiro, já que poucos estudantes conseguiam ascender a este nível de escolarização. O historiador conclui por meio da análise das mensagens presidenciais que havia, por certo, um projeto educacional para o Brasil, todavia, longe de merecer a atenção requerida para uma nação em franco desenvolvimento industrial. A lógica assistencialista e meramente reativa às demandas de novas escolas e formação adequada de professores constituiu-se numa cultura perversa e permanente de se encarar a problemática educacional em nosso país. Somase a isso a concupiscente relação do público com o privado, que permitiu até os dias de hoje o enriquecimento de grandes grupos privados educacionais, responsáveis por mais de 30% das publicações didáticas (livros, manuais, apostilas, sistemas de ensino, etc.), denotando uma nefanda instrumentalidade pedagógica e a desqualificação dos saberes dos/as professores/as. Se, por um lado, a perspectiva analítica de Reis pode parecer até certa altura pouco densa, devido à sua opção em escrever um livro dirigido, especialmente, à formação inicial de professores e professoras, por outro lado, o autor nos revela o ineditismo de compreender um projeto de educação nacional a partir das mensagens presidenciais. As fontes de pesquisa analisadas ganham, assim, caráter relevante. Há determinadas lacunas analíticas ou históricas que poderiam ser mais bem problematizadas, mas nada que desautorize o debate tão atual de nosso inventário histórico, político e pedagógico. É uma obra que merece ser lida e discutida nos bancos acadêmicos. 
Revista Percursos

ENSINO DE GEOGRAFIA: novos olhares e práticas

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Larissa Corrêa Firmino* 

“Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela.”. Albert Camus.

*Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: laracorreaf@gmail.com. 1 CANCLINI, Nestor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008. 96p. Em sua obra, Canclini faz uma reflexão de conceitos ligados à leitura, ao audiovisual e ao virtual, tratandoda analogia entre ser leitor, espectador e internauta, quando as três atividades são realizadas simultaneamente por uma mesma pessoa.


O espaço escolar se encontra atualmente configurado de modo onde o repasse excessivo de informações predomina em aulas tradicionais, que nada se difere da transmissão de conteúdos praticada há décadas nas escolas e tão criticada no meio acadêmico. Tal cenário faz o educador, de qualquer que seja a área, buscar novas ferramentas e modos de repensar sua prática pedagógica. Nós, professores e alunos, vivemos em uma sociedade onde nos portamos ao mesmo tempo como ‘leitores, espectadores e internautas’, tal nos ressalta Néstor García Canclini em sua obra1 . Assim, a importância de interligar e explorar novas práticas pedagógicas baseadas nestas três ações abordadas por Canclini e que são realizadas momentaneamente por nós e nossos alunos, devem e podem ser inseridas numa prática pedagógica do fazer em sala de aula. Afinal, “o que fazer com milhares de páginas novas por dia, com milhões de canções e chats indiscriminados?” (2008, p. 61). É neste cenário complexo e heterogêneo de informações múltiplas onde a prática pedagógica do ensinar-aprender está inserida. Eis o nosso pano de fundo: lidar com a carga excessiva de informação sobre o mundo. 
Deste modo, se quisermos nossos alunos dispostos e entregues à experiência de apreender, nada mais válido que ampliar nossa própria visão de mundo sobre práticas escolares que propõem outros olhares para a geografia escolar. Nesse sentido, o livro “Ensino de Geografia: Novos olhares e práticas” é um convite ao professor de geografia a repensar e reavaliar seus trajetos em sala de aula (e fora dela, claro!). Este livro é composto por seis artigos elaborados por oito pesquisadores que nos convidam a refletir sobre o ensino de geografia na atualidade com base nas pesquisas e práticas desenvolvidas por eles próprios com seus alunos, sejam estes acadêmicos do curso de geografia ou educandos do ensino regular em escolas públicas. A obra apresenta artigos resultantes de práticas oriundas da inquietude e da percepção de professores quanto à necessidade de aprimoramento do exercício do aprendizado, compreendido não apenas pela absorção por parte do aluno, mas também no sentido mais amplo da construção cotidiana e do registro de sua prática de ensino, onde o professor é com certeza um personagem interativo em constante desenvolvimento. O livro tem o valor de fornecer subsídios para a reflexão do leitor originandose da aplicação das práticas expostas no seu contexto. Não como um manual que deva ser seguido, um pacote a ser incorporado, exportado e aplicado, mas sim como forma de desenvolver um debate reflexivo, onde o profissional poderá dialogar e perceber a si mesmo aplicando novas práticas pedagógicas de acordo com seu contexto. Além da preocupação em problematizar o ensino de geografia no mundo contemporâneo, a obra organizada por Flaviana Gasparotti Nunes, nos apresenta saídas inventivas para tal realidade. Nos textos contidos neste livro, os pesquisadores narram suas experiências em sala de aula tal qual um diário de bordo que se configura como “um registro de práticas para discussão coletiva”, assim como prefacia o Professor Nestor André Kaercher. Flaviana Gasparotti Nunes, a organizadora do livro, é licenciada, mestre e doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP e pós-doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É professora do curso de graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Geografia da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e desenvolve pesquisas orientando trabalhos na área de ensino e formação de professores de Geografia. Desde 2009 Flaviana coordena o subprojeto de Geografia no Programa Institucional de Bolsa da Iniciação à Docência – PIBID/UFGD. O livro abre seus trabalhos com o instigante texto de Wenceslao Machado de Oliveira Jr, “Desenhos e Escutas”, que busca resgatar uma reflexão inventiva em suas experiências com graduandos de um curso de geografia. Os desenhos confeccionados por estes alunos tornam-se ferramentas de escuta ao professor, os quais são denominados de ‘saberesconhecimentoimagens’ pelo autor. O tema dos desenhos é o meio ambiente, porém convergindo para as múltiplas possibilidades na composição possível do currículo. O ensino de cartografia também aparece como pauta de discussão numa tentativa de estabelecer um diálogo entre a sociedade e o mundo dos mapas, com o texto “O ensino de Cartografia que não está no currículo: olhares cartográficos, “carto-fatos” e “cultura cartográfica”, de Jörn Seemann. Rodolfo Finatti e Cláudio Benito Oliveira Ferraz nos mostram uma das muitas saídas inventivas contidas neste livro. No artigo “Linguagem geográfica do jogo de xadrez: uma aproximação ao conceito de território e ao processo de ensino-aprendizagem”, os autores nos apresentam o jogo de xadrez como uma importante ferramenta para trabalhar o conceito de território dentro da sala de aula, evidenciando uma relação entre o jogo e a ciência geográfica tão presente nesta. Com o decorrer das páginas, encontramos o trabalho de Jonatas Rodrigues dos Santos e Flaviana Gasparotti Nunes, intitulado como “O aluno surdo na sala de aula de Geografia: alguns elementos para a reflexão sobre a inclusão”, que nos demonstra, sob a forma de análise, as dificuldades e possibilidades de trabalho com o educando surdo dentro do ensino regular de geografia. O registro dessas experiências é algo enaltecido já no prefácio pelo professor Nestor Kaercher, que ressalta a importância de passar adiante, grafar a vivência de forma a buscar a evolução da compreensão de algo tão prático e reflexivo como é a docência. Acredito ainda, ser interessante salientar que o conteúdo do livro se metainfluencia. Ou seja, apresenta-nos uma série de inquietudes e experiências indicando a necessidade de aplicação de diferentes métodos para cada realidade/contexto. Sendo assim, o livro é uma forma de apresentar as problemáticas pelas quais os conteúdos estão envolvidos, não sendo obviamente um meio exaustivo de esgotá-las, mas necessitando complementaridade e outras formas de apreensão como o próprio exercício prático das transformações pelas quais o leitor passou. Aos interessados em novos olhares sobre o ensino de geografia, recomendo a leitura deste livro como uma maneira de iniciar deslocamentos inventivos para fazeres em sala de aula. 
Revista Percursos

Em defesa da escola: uma questão pública

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Juliana de Favere Doutoranda em Educação na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Brasil julifavere@gmail.com 
Luiz Guilherme Augsburger Mestrando em Educação na UDESC. Brasil luizg.augs@gmail.com Danilo Stank Ribeiro Mestrando em Educação na UDESC. Brasil danilostankr@gmail.com 
Ana Maria Hoepers Preve Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professora da UDESC. Brasil anamariapreve@gmail.com

FAVERE, Juliana de; AUGSBURGER; Luiz Guilherme; RIBEIRO, Danilo Stank; PREVE, Ana Maria Hoepers. Resenha do livro “Em defesa da escola: uma questão pública”. Revista PerCursos. Florianópolis, v. 17, n. 35, p. 246 – 252, set./dez. 2016. 

2 Jan Masschelein é Professor de Filosofia da Educação da Universidade de Louvain (Bélgica). As áreas de seu maior interesse são: teoria educacional, teoria crítica e filosofia social. Atualmente, concentra seus estudos no papel público e no significado da educação, bem como no “mapear” e no “andar” como práticas críticas de pesquisa. Maarten Simons é Professor de Política e Teoria Educacional da Universidade de Louvain (Bélgica). Suas principais áreas de interesse são: política educacional, novos mecanismos de poder, novos regimes de governo e de aprendizagem. Sua pesquisa se concentra explicitamente nos desafios colocados para a educação, com o interesse principal de (re)pensar o papel público das escolas e das universidades. Juntos coordenam o Laboratório para Educação e Sociedade da Universidade de Louvain (Bélgica)

1 Trata-se aqui da segunda edição, publicada em 2014 pela editora Autêntica e tradução de Cristina Antunes. Esta edição faz parte da Coleção ‘Educação: Experiência e Sentido’ coordenada pelos autores Jorge Larrosa e Walter Kohan. A primeira edição foi publicada em 2013. O livro foi publicado originalmente em 2013, com o título ‘In Defence of the School’


Discutir sobre a escola. Uma questão vencida e esgotada... Talvez não. Talvez uma questão pública, uma questão de bem comum. Skholé, em grego, designava tempo livre e a escola, distanciada do trabalho e da ocupação adulta, era a espacialização deste tempo livre. Sua forma, desde sua invenção histórica, apresenta características comuns, porém a partir do início do século XX, entra no campo de discussão entre as comunidades epistêmicas. Iniciam-se, assim, inúmeras discursividades. A escrita do livro Em defesa da escola: uma questão pública1 , tem o foco na experiência, “transformando” o que sabemos e liberando-nos de certas verdades. Assim, não se contamina pelos discursos das reformas propondo mais uma; pretende, antes, “absolver” a escola dos ódios, críticas e crises a ela dirigidos. Discorre sobre o que há na escola de público e comum e o que a torna uma potência para pensar o mundo. Reinventá-lo, como quem revê o já visto, já criado, já escolarizado. No caminho da escola como uma questão pública, a reinvenção passa por “encontrar formas concretas no mundo de hoje para fornecer ‘tempo livre’ e para reunir os jovens em torno de uma ‘coisa’ comum [...]” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 11). Acusar. Demarcar posições. Indicar demandas. Recorrências sobre a escola que ecoam e enunciam discursividades no campo educativo que dizem muito e ao mesmo tempo não dizem nada. Dizem muito de “nós” – precisamos, necessitamos, inovamos –, classificando e incluindo cada um em cada lugar. No banco dos réus, a escola é acusada: há na escola temas artificiais, ausência do mundo real e das necessidades do mercado de trabalho! Preocupações que corroboram para acusar a escola de alienante e distante da sociedade. Ela é culpada! Abusa, reproduz e trabalha a favor da desigualdade social e a serviço do capital econômico. Opera na ordem da manutenção da elite cultural, protegendo a propriedade. Ela desmotiva nossos jovens! Em defesa da aprendizagem lúdica, os acusadores priorizam o valor de entretenimento, informação, a utilidade do que se aprende e a capacidade de se fazer escolhas, de modo que satisfaçam as necessidades da sociedade. Falta eficácia, falta eficiência, falta desempenho! Para manter sua estrutura, as necessidades indicam a escola como um negócio, condizentes com este tempo, e solicitam o cumprimento de metas e objetivos de modo rápido e ainda com baixo custo e o alcance de bom desempenho de cada escolar. Ela precisa ser reparada! As reformas trazem a ideia de otimizar o desempenho de aprendizagem (individual). A escola, numa atitude reparadora, é funcional, funciona para algo e tem um propósito específico. Aprender a aprender! A escola, em sua redundância, reduz a aprendizagem em produção de resultados, como uma instituição de reconhecimento e validação de aprendizagens e oferece diplomas válidos, com o “selo de qualidade”. A escola é obsoleta! Ainda, a aprendizagem na era digital, ligada ao tempo e ao espaço, não necessita mais de um espaço físico, pois as tecnologias digitais permitem direcionar a aprendizagem sobre o aluno individual, personalizar. O ato de aprender se resume ao divertido e à personalização, em que a aprendizagem acontece em qualquer lugar e momento. Bye-bye, Escola! Diante das acusações, a absolvição, que frui pela questão da skholé enquanto “tempo livre”. Após expor as acusações, é proposta no livro uma série de questões em torno do que é o escolar, daquilo que constituiria a forma escola. Deste modo, é posta a questão da suspensão, ou de como colocar aquilo que está na escola, no espaço escolar, de colocar aquilo que é estudado entre parênteses, liberando ou destacando essas materialidades de seu lugar habitual. Esta suspensão implica uma questão de profanação, i.e., sacar as coisas de sua sacralidade (o não humano) para torná-las disponíveis (ao estudo), torná-las um bem público ou comum – devolvê-las ao humano, ao mundo. A questão de atenção e de mundo se coloca, então, como necessidade da profanação de abrir o mundo, criar no estudante interesse, trazendo-se à vida e dando-se forma à matéria de estudo. Apresenta-se, para tanto, a questão de tecnologia, das tecnologias implicadas nesse escolar; segundo os autores, as tecnologias escolares fundamentais são praticar (o exercício), estudar e disciplinar. Entretanto, para que a escola ou o escolar possam acontecer é preciso “ser capaz de começar”, “desativando” temporariamente as particularidades e desigualdades de cada estudante com seu mundo/realidade, como um princípio escolar, uma questão de igualdade. Se a escola é uma espacialização do tempo livre, ela não está dada, ela precisa ser feita; é o professor, com seu amor (respeito, atenção, dedicação e paixão) pela matéria, que a faz ganhar vida própria; a questão de amor implica esse amadorismo e paixão do professor capaz assim de, em sua maestria, tornar presente a matéria de estudo. Para tanto, põe-se uma questão de preparação, o professor precisa estar em forma, ser bem treinado – menos como um “profissional” e mais como um atleta –, mas também bem-educar os estudantes e testar seus limites, dando-lhes uma forma na qual eles sejam “capazes de...”, em que eles experimentem “um tempo sem destinação” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 92). Neste ínterim, há uma questão de responsabilidade do professor em exercer sua autoridade como quem traz algo à vida, traz ao estudante um mundo, que não é aquele da família nem do mercado. Segundo os autores2 , desde sua origem na polis grega, a escola foi um ataque aos privilégios das elites e um espaço que possibilitou outro começo. Não surpreende, então, que a escola, ao longo de sua história, tenha sofrido várias tentativas de domá-la. Na atualidade, estas tentativas podem ser sistematizadas em seis pontos: (1) a politização da escola, na qual ela é incumbida de responsabilidades políticas (concernentes à sociedade) que não podem ser cumpridas senão com o abandono de certa responsabilidade educacional; assim, se a política está na escola não é senão como matéria de estudo, ou como aquilo que não pertence ao escolar. (2) A pedagogização, cujo efeito é imputar à escola funções que concernem à família; não que à escola não caibam questões pedagógicas, mas isso se faz de modo que se suspenda temporariamente o familiar. (3) A naturalização, por sua vez, são as tentativas de fazer da escola um meio para produzir uma elite social, reproduzindo nela determinações “naturais” – da ordem da necessidade das coisas –, como, por exemplo, se faz por meio dos talentos e aptidões físicas e intelectuais. (4) A tecnologização, a despeito das tecnologias, trata-se da tentativa de domar a escola por meio da transferência da tônica escolar à própria técnica, a tecnologias; ainda que composta de tecnologias que não fazem parte do escolar. (5) A psicologização, outra estratégia de condicionamento de professores e alunos, trata-se, em suma, de “substituir o ensino por uma forma de orientação psicológica” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 126), impingindo ao professor funções que não lhe dizem respeito e reduzindo o aluno ao espectro motivacional. (6) A popularização, por fim, implica uma manutenção do aluno numa infantilidade por meio do entretenimento e relaxamento, assim, a escola e o professor sujeitam-se à tarefa de aliviar as tensões e tédios do mundo do aluno. Se, por um lado, se tenta domar a escola, por outro, o alvo é o professor, e de dois modos: através da profissionalização, que, em uma primeira variante, substitui a “sabedoria da experiência do professor pela especialização ou competência” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 137), cujo conhecimento é considerado válido e confiável – afastando o professor do tempo livre e da autoformação; em uma segunda variante, reduz o ofício professoral a fundamentos “reais” através do acúmulo de competências, que ao cabo dizem respeito a demandas práticas do mercado; e, em uma terceira variante, profissionaliza por meio da pressão da responsabilidade; o professor é domado pela demanda, pela qualidade e outras linguagens mercadológicas. Mas se doma o professor também por meio da flexibilização, expressão de uma cultura corporativa moderna, ela exige que o professor se torne disponível e empregável em todos os momentos e em qualquer lugar; competente, o professor está inserido no padrão multitask/omnivalente. Então, repetimos a questão: discutir sobre a escola, uma questão vencida e esgotada...? Não. Uma questão pública, uma questão de bem comum... Uma questão de igualdade. Igualdade como/de princípio. Frente às diversas acusações que põem a escola e o escolar como ultrapassados/ obsoletos enquanto lugar/modo de aprendizagem, que tentam domá-la, pregam sua reforma ou o seu fim, frente a tudo isto a escola ainda está, ainda permanece. E permanece, pois, ainda em sua forma, mesmo que cada vez menos, um lugar de amor pelo mundo e pela nova geração, um lugar de “ser capaz de”, de transformar as coisas em “bens comuns”, lugar de um “tempo livre” (liberado da família, da economia, da política) ainda não preenchido, capturado, produtivo, onde ainda é possível começar, fazer novamente e, portanto, onde uma sociedade dá à nova geração a oportunidade de olhar para o mundo que partilham em comum e renová-lo. Por isso, o foco da escola não é a aprendizagem, seus resultados, sua utilidade, as competências, o gerenciamento, o empreender, os ambientes, a eficácia, a produtibilidade, aquilo que gira em torno do aprender, da verificação do aprender, da adequação do aprender, das formas de se aprender mais e melhor em menos tempo ou de regular, averiguar, inspecionar e motivar. Sem o objetivo na aprendizagem, como um fim, mas a escola como um lugar com possibilidade de atenção em um estudo e prática de interesse. Portanto, a escola, como lugar de igualdade, faz colocar algumas coisas em suspensão, “entre parênteses”, como a economia, a sociedade, a política, a empregabilidade... Para assim tentar apresentar o mundo mais uma vez, liberar algumas coisas do mundo, começar novamente, dar atenção a certas coisas (e nisso se enquadram as diversas técnicas escolares que tornam isso possível: ditado, cópia, quadro-negro ou as telas das TIC´s). Um lugar de igualdade que tem que ser inventado, pois personifica fisicamente uma crença: “a crença que não existe uma ordem natural de proprietários privilegiados; de que somo iguais; de que o mundo pertence a todos, e portanto, a ninguém em particular; de que a escola é uma aventureira terra de ninguém, onde todos podem se elevar acima de si mesmos” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 167-8). Assim, na sempre iminência de seu desfazimento, apesar da anunciação constante de seu possível fim, a despeito das tentativas de domá-la, de transformá-la, de renová-la, de adequá-la, apesar das quinquilharias, das inovações, das concepções teórico-pedagógicas que, geração após geração, se depositam em seu interior, a escola tenta preservar sua forma. Resta saber se, apesar de tudo que se incorpora/inclui/comunica na escola, ainda é possível encontrar no meio deste turbilhão o que ainda há de escola.
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
 Centro de Ciências Humanas e da Educação - FAED 
Revista PerCursos 

A mais bela história da felicidade


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A mais bela história da felicidade, de André Comte-Sponville; Jean Delumeau; Arlette Farge. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco Difel: Rio de Janeiro, 2006. 169 p.

Rogério Bianchi de Araújo
Doutorando em Ciências Sociais – PUC-SP; Mestre em Filosofia Social – PUC-Camp; Professor de filosofia e sociologia na Unip; Imes e Uninove. São Paulo – SP [Brasil] rogerbianchi@uol.com.br

A mais bela história da felicidade, de André Comte-Sponville; Jean Delumeau; Arlette Farge. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco Difel: Rio de Janeiro, 2006. 169 p. Rogério Bianchi de Araújo Afinal, o que é a felicidade? Vivemos em função dela? Pode a filosofia contribuir na busca do homem pela felicidade? A felicidade é intrínseca à condição humana? Existem formas particulares de felicidade? Há certezas na felicidade? A felicidade é algo impossível de alcançar? Ser feliz é um imperativo? É possível descrever uma história da felicidade? Qual o lugar da felicidade hoje? Essas são questões fundamentais que o livro tenta responder. Para tanto, utiliza-se um diálogo a três vozes: André Comte-Sponville, filósofo e autor de numerosas obras sobre a ética e a questão da felicidade; Jean Delumeau, professor do College de France e especialista em história das mentalidades religiosas e Arlette Farge, historiadora especializada no século XVIII. O livro está estruturado em três partes, chamadas de atos em vez de capítulos, assim como numa peça de teatro. São três atos divididos em três cenas cada um, composto de uma espécie de entrevista com perguntas e respostas num envolvente diálogo rico e questionador. No primeiro ato chamado “Retorno às origens da sabedoria”, as perguntas são direcionadas ao filósofo André Comte-Sponville. Comte-Sponville diz que a filosofia instaura uma nova maneira de pensar a felicidade, principalmente a partir da revolução socrática, período antropológico da filosofia, quando a preocupação fundamental é entender o que é o homem. Sócrates seria o pensador fundante da filosofia da felicidade, pois pensar melhor ajuda a viver melhor. Ser feliz e ser virtuoso, segundo o pensamento grego clássico, são necessidades básicas para estabelecer o significado da “vida boa”. O autor primeiro discute o surgimento da filosofia da felicidade, tendo como base os pensadores gregos clássicos. Faz um paralelo com a posição aristotélica e entre os estóicos e epicuristas. Depois, em Kant, entende que a felicidade é algo inatingível, pois sempre teremos desejos insatisfeitos e por isso jamais seremos plenamente felizes. Agir sem esperar nenhuma recompensa, segundo Kant, é o significado da boa ação. Esse é o dever do indivíduo, cujo objetivo é cumprir com o dever. Essa é a revolução kantiana, segundo Comte-Sponville. Considera a antropologia de Hobbes mais verdadeira, e a ética de Epicuro, mais justa. Já na abordagem pascalina, fingimos ser felizes para esquecer que não o somos. A única felicidade que poderíamos alcançar está em outra vida, porque a única coisa que desejamos é o futuro, e este não existe. Comte-Sponville discorda de Pascal no que concerne à desesperança, pois esta não pode ser tratada necessariamente como uma infelicidade. Toma, como exemplo, Espinosa, que acreditava ser a felicidade desesperança, porque ela não espera por nada, pois o real já lhe basta. Comte-Sponville conclui que a felicidade vem e vai, é momentânea e relativa e não existe no real, num ideal que é intrínseco ao ser humano e que nos mantém vivos. Propõe uma concepção modesta de felicidade, atrelada às nossas experiências da vida. A partir do momento que não nos perguntarmos mais sobre o sentido da vida, poderemos reconhecer a felicidade. O segundo ato leva o nome de “A invenção do paraíso”, em que as perguntas são destinadas ao professor Jean Delumeau que inicia a primeira cena discutindo o significado do paraíso ao longo de alguns momentos históricos, até chegar a concepção moderna de paraíso, uma morada eterna ao lado de Deus. A esperança aparece fundada sobre um ato de fé, ou seja, a crença na existência do reino dos céus e de um lugar postado ao lado de Deus. Jesus é o elo da nossa realidade com a felicidade do outro mundo. O autor aponta duas revoluções que abalam a concepção de paraíso: a científica que mudou a representação do mundo e do universo. Sob esse ponto de vista, não poderiam mais ser localizadas a morada de Deus e a dos sentimentos, na qual o paraíso seria um lugar de reencontro com os entes queridos. Encontrar os seres amados do outro lado é a representação mais fiel da felicidade. No céu e nesse reencontro de bem-aventurados reina a felicidade eterna, cercada por uma aura de amor eterno e infinito. Reina o amor entre todos, a Deus, ao próximo e a toda a humanidade. Delumeau não acredita que o paraíso seja algo perdido e também não crê na existência de um “pecado original”. Defende a idéia de um inferno minimizado. As pessoas que têm acesso à felicidade eterna recusada serão testemunhas da felicidade dos outros para, em seguida, serem reduzidas a nada, pois pressupor que existe um lugar de sofrimento eterno denotaria a idéia de que Deus não venceu o mal. Não ter acesso à felicidade de viver ao lado de Deus é a punição eterna. O terceiro ato é chamado de “O sonho dos modernos”. As perguntas são agora para a historiadora Arlette Farge. Na cena um, a discussão volta-se para o Século das Luzes. O século XVIII é marcado pela ascensão da burguesia e pelo predomínio da estética e das aparências. Os eruditos e as elites representam estilos de vida que passam a ser considerados os mais apropriados. O povo em si não teria tempo e seria considerado incapaz de ter discernimento suficiente para pensar na verdadeira felicidade. A idéia corrente é que o povo pensa pouco, é um corpo sem consciência. Aos poucos, as desigualdades sociais vão sendo desnudadas e as idéias de injustiça social tornam-se flagrantes. Paralelamente, começa-se a atribuir honradez cada vez maior ao trabalho. Para os trabalhadores do campo, vigora a idéia de que sua união e contato com a natureza lhes darão garantia da felicidade. Nas cidades, a pobreza começa a incomodar. A partir do século XVIII, associa-se a felicidade aos prazeres dos sentidos e da descoberta, reside em aprender o que é novo. O poder absoluto do rei passa a ser questionado. O povo quer reconstruir a felicidade independentemente da vontade do rei, abolindo os privilégios. No epílogo, os três autores dialogam e respondem a algumas perguntas pertinentes à sociedade contemporânea. Esta sociedade parece não acreditar mais na felicidade eterna. Atualmente, a maior aspiração é a felicidade imediata. O lema é viver o aqui e agora, e o importante é ter saúde. Comte-Sponville me parece apontar a melhor saída para repensarmos a felicidade nos dias de hoje. Sugere seguir Espinosa em vez de Platão. Para Platão, desejo é falta, já para Espinosa, é potência. A felicidade é o próprio caminho, cheio de obstáculos e incertezas, é a própria vida. No mundo contemporâneo, em que as futilidades estão na ordem do dia, alimentadas por uma sociedade de consumo desenfreado, teremos de aprender a desejar para afastar a pseudofelicidade e nossas ações devem resultar em momentos felizes cada vez mais freqüentes. Isso, em absoluto, deve significar comodismo e alienação, e sim coerência e realização, num processo de valorização contínuo, mais condigno com a nossa condição e existência humana.
EccoS Revista Científica 

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Austeridade: a história de uma ideia perigosa

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“AUSTERIDADE” PERMANENTE COMO GESTÃO DO CONFLITO SOCIODISTRIBUTIVO

PERMANENT “AUSTERITY” AS MANAGEMENT OF THE SOCIO-DISTRIBUTIVE CONFLICT

Edemilson Paraná1
1(pseudônimo de Edemilson Cruz Santana Junior) é doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche na Soas – University of London. E-mail: edemilsonparana@gmail.com.

BLYTH, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Freitas e Silva, José Antônio. São Paulo: Autonomia Literária, 2008. 375p.

BLYTH, Mark. (2017), Austeridade: a história de uma ideia perigosa . Trad. José Antônio Freitas e Silva. São Paulo, Autonomia Literária. 375 pp.


[...] as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais. Homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.

John Maynard Keynes

Depois de enorme sucesso de público e crítica, chega ao Brasil a tradução de Austeridade: a história de uma ideia perigosa , em momento que não poderia ser mais oportuno. Cientista político escocês e professor de economia política internacional, na Universidade de Brown, Mark Blyth enfrenta com o bom humor de um enérgico polemista, mas sem perder em profundidade, um assunto extremamente sério: as políticas de austeridade que se espalharam pelo mundo, no contexto do pós-crise de 2008.

Apresentando um instigante diálogo interdisciplinar, o livro está construído sob as fundações de um bem-sucedido casamento entre a história e a crítica das ideias econômicas, que desaguam em um potente ensaio em torno da (não) eficácia da aplicação dessas ideias – mesmo quando testadas de várias maneiras, em distintos lugares, contextos e épocas. A ideia em questão é a “austeridade”, ou seja,


[…] uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, que (supostamente) se consegue melhor cortando o orçamento do Estado, as dívidas e os déficits. Fazê-lo, acham os seus defensores, inspirará a “confiança empresarial” uma vez que o governo não estará “esvaziando” o mercado de investimento ao sugar todo o capital disponível através da emissão de dívida, nem aumentando a já “demasiado grande” dívida da nação (Blyth, 2017, p. 22).

Seguindo John Maynard Keynes (1964) , Blyth está empenhado em demonstrar como e por que os nossos “homens práticos” de hoje “são escravos de algum economista defunto” (1996, p. 349). Quem são esses homens e esses defuntos e quais são essas ideias é de que trata a obra.

O livro não é dirigido apenas, nem centralmente, a economistas – ainda que, em face da corrente de pensamento tornada dominante na Economia, a leitura da obra possa servir como uma verdadeira lufada de ar fresco no ambiente intelectualmente sufocante da disciplina –, mas é voltado, sobretudo, ao público diretamente afetado pelas ideias econômicas, como diria Joan Robinson, para que não se deixe enganar pelos economistas. Estão equivocados, então, os que pensam ser a austeridade econômica um problema restrito a técnicos e especialistas. Fosse apenas um atentado à inteligência, essa “ideia zumbi” ( Quiggin, 2010 ) – morta diante dos fatos, mas tornada viva pelos perniciosos interesses políticos que a patrocinam – já seria, em si, problemática. No entanto, o que a torna perigosa, conforme o livro sustenta, são os estragos produzidos nas economias e, junto a esses, a erosão da coesão social, os danos traumáticos e os sofrimentos, em suma, a que têm sido submetidas as maiorias sociais em todo o mundo. Por onde passa, a política da austeridade deixa um enorme rastro de destruição. Mark Blyth, como poucos, persegue esse rastro para nos demonstrar, a partir de suas origens e causas, porque a austeridade é, em primeiro lugar e acima de tudo, um problema sociopolítico de distribuição e não apenas um problema estritamente econômico de contabilidade social.

A didática e divertida (mas não por isso menos rigorosa) cruzada do autor contra as argumentações anticientíficas acaba municiando a todos nós, leigos ou estudiosos, de instrumentos para realizarmos por nossa conta o “teste do olfato”, nas palavras do próprio autor, frente à retórica apodrecida da austeridade nos mais diversos ambientes de produção e circulação de ideias. O mérito de Blyth é, por isso, notável. Ao final de sua “arqueologia”, além de entendermos as razões pelas quais as finanças do Estado são bastante diferentes das familiares e empresariais, saímos aptos a detectar e desmontar as muitas premissas irreais e as conclusões empiricamente falsas que sustentam o débil discurso mainstream em defesa das políticas de austeridade.

O livro está dividido em três partes. Na primeira seção, o autor aborda as origens e as consequências da atual crise econômica global. Os capítulos dessa seção tratam centralmente das experiências dos Estados Unidos e da Europa, além de conter uma explicação de como se chegou à confusão atual, dando espaço ainda para os elementos financeiros e bancários mais complexos que resultaram na “tempestade perfeita” vivenciada por essas economias.

Blyth argumenta que, desde a crise, assistimos à maior operação de “propaganda enganosa” da história moderna, na medida em que as elites econômicas e políticas têm vendido aos cidadãos a ideia de que se trata de uma crise de dívida soberana, quando, em verdade, trata-se inicialmente de uma crise dos bancos privados. Especialmente no caso europeu, explica o autor, uma história inventada, de cunho moral, tem sido martelada para renomear a crise bancária da Zona Euro como uma crise de dívidas soberanas. Com efeito, os governos “gastadores” de países da periferia são culpados, a despeito do fato de nenhum deles, com a exceção da Grécia, ter sustentado grandes déficits orçamentários antes da crise – a Irlanda e a Espanha, por exemplo, contabilizavam superávits 1 .

De acordo com a explicação do autor para a crise, as inovações financeiras combinadas com um conjunto de ideias a respeito do funcionamento das economias e, em particular, da avaliação do risco, contribuíram para o acúmulo insustentável de problemas no sistema financeiro global, que acabaram por explodir em 2008. Essas ideias facilitaram ainda a transferência da crise dos Estados Unidos para a Europa. Seguindo, nesse aspecto, inúmeras outras explicações da crise recente, Blyth afasta a noção tornada popular, segundo a qual a crise é de alguma forma produto da falência moral de indivíduos e grupos particulares. Ao contrário, trata-se de uma grave insuficiência do setor privado como um todo. Que isso venha sendo arcado centralmente pelo orçamento público apenas pode ser explicado pelo conjunto contraditório de ideias atualmente dominantes sobre a intervenção estatal, a “austeridade”.

Na segunda parte da obra, Blyth passa a examinar a “história intelectual” da austeridade. Nesse, que certamente é o ponto alto do livro, o autor nos mostra como certos pensadores, sejam eles, John Locke, David Hume, Adam Smith e David Ricardo, criaram uma espécie de sistema de pensamento em que os governos não devem fazer muito mais do que proteger a propriedade privada e, ademais, serem constrangidos a não acumular dívida pública. Apesar dessas primeiras formulações serem ainda vagas, o argumento específico em torno da austeridade emerge, finalmente, na década de 1920, quando o Estado moderno passa a ser, de fato, uma questão saliente do ponto de vista econômico. Segundo o autor, isso ocorre pelas mãos do “liquidacionismo” estadunidense e da “visão do tesouro”, na Inglaterra.

Essa base inicial de argumentos em defesa da austeridade foi praticamente desacreditada pela Grande Depressão, na década de 1930. No entanto, conforme Blyth documenta com maestria, seus remanescentes e herdeiros – o “ordoliberalismo”, na Alemanha, e a “Escola Austríaca”, nos Estados Unidos – acabaram voltando ao mainstream intelectual novamente na década de 1980, com a ascensão do neoliberalismo.

A versão corrente do argumento em defesa da austeridade, nos apresenta Blyth, foi criada por um grupo de economistas italianos da Universidade de Bocconi 2 , em Milão. O autor examina criticamente uma série de modelos econômicos desenvolvidos por tais economistas 3 , nos quais sustentam que as dívidas governamentais são produtos praticamente inevitáveis da democracia, e que a melhor forma de combatê-las é mediante o corte das despesas, ao invés do aumento de impostos. Tais economistas foram responsáveis pelo termo orwelliano “contração fiscal expansionista”, sintetizando o argumento segundo o qual cortar as despesas pode, sim, levar ao crescimento – inclusive, em meio a uma desaceleração econômica – de modo diverso ao que o bom-senso da disciplina costumava sustentar. Essa inusitada “lógica” é habilmente desmontada no livro, em cada um dos seus aspectos e supostas evidências.

A jornada do autor pelos caminhos e descaminhos dessa ideia perigosa termina com um capítulo em torno da implementação da austeridade. Nessa “história natural” da ideia, Blyth examina cuidadosamente dezenas de experiências de implementação da tal política econômica, ao longo do século XX. Trata-se de um relato devastador sobre cada uma das tentativas de colocar a ideia de austeridade em prática, da luta dos governos com padrão-ouro nas décadas de 1920 e 1930, até sobre os problemas e as dificuldades dos casos mais recentes de “sucessos” de austeridade, como a Suécia e a Irlanda. Essas tentativas de implementação parecem, de fato, nunca funcionar e acabam por levar, na maioria das vezes, a consequências trágicas.

Tendo mostrado que a austeridade nunca funcionou na prática, Blyth conclui a obra propondo que exploremos uma nova estratégia de enfrentamento da crise, baseada em algumas políticas consideradas tabus nos últimos anos, tais como: a “repressão financeira”, a limitação dos movimentos transfronteiriços de capitais, uma nova forma de administração das taxas de juros e o aumento de impostos para a faixa superior da distribuição de renda. Sugere ainda – de modo polêmico, talvez, contraditório, e com uma fundamentação que deixa a desejar, é preciso dizer – que o governo dos Estados Unidos deveria ter deixado seus bancos irem à falência, como se fez na Islândia, em vez de resgatá-los.

Tudo somado, seguindo a vastidão de dados apresentados no livro, fica o balanço de que a austeridade, mesmo ignorando deliberadamente as incontornáveis necessidades da vida social e política, é contraproducente inclusive em alcançar o objetivo restrito a que supostamente se presta: o de sanar as finanças públicas.

O raciocínio aqui é simples e bastante conhecido: (1) se para todo comprador há um vendedor, e para todo poupador há um devedor; (2) se, nos desdobramentos de uma crise, cada indivíduo economiza, buscando melhorar a sua própria situação, como resultado de (1) e (2) a situação coletiva de todos deteriora. Dito de outro modo, tendo como premissa que o gasto de um agente é igual à renda de outro, se todos os agentes resolvem simultaneamente cortar os gastos, o único resultado lógico é a contração da renda geral.

Longe de resolver o problema, portanto, a política de austeridade – os cortes na previdência e na assistência social, nos direitos trabalhistas e no alcance dos bens públicos – apenas faz aprofundar essa situação, mantendo o desemprego e as dívidas em alta, o salário (indiretamente, pela pressão do desemprego sobre a capacidade de negociação de quem ainda está empregado) e a capacidade de con- sumo em baixa, e, com isso, a atividade econômica deprimida. Tal quadro pode levar a uma piora da situação fiscal do Estado, ao diminuir ainda mais a arrecadação de impostos. Quando o corte dos gastos consegue ser maior do que a queda na arrecadação, produzindo o esperado superávit, isso se dá às custas da poupança do setor privado, que decai na exata medida em que aumenta a poupança pública. Desse modo, com a queda vertiginosa do Produto Interno Bruto (PIB), cresce a razão dívida/PIB, uma vez que a poupança pública não é suficiente para estabilizar essa razão.

Eis o grande paradoxo das políticas de austeridade: ao prometer equilibrar as contas do Estado, elas aprofundam a sua degradação, produzindo um resultado ainda pior do que o cenário fiscal que se dispuseram a melhorar. Portanto, nesses casos, a despeito das projeções entusiasmadas de economistas “oficiosos” em governos e em órgãos de imprensa, não chega a surpreender que a atividade econômica continue a oferecer resultados diminutos e decadentes (se o Brasil, nos anos de 2015 a 2017, serve como exemplo, os dados a esse respeito são eloquentes).

Diz-se, em geral, que os cortes se fazem necessários, ademais, como forma de recuperar a “confiança do investidor”, o que traria de volta os investimentos e, assim, o tão esperado crescimento econômico. Esquece-se, no entanto, que capitalistas não tomam as suas decisões sobre investimentos baseados unicamente em certo subjetivismo obscuro, de ordem político-moral. As decisões de tais agentes são tomadas, antes de tudo, a partir dos sinais que eles recebem das próprias vendas, da taxa e do volume de sua lucratividade imediatamente anterior vis a vis àquela projetada para a rodada seguinte (algo também relacionado, sabemos, aos movimentos dos gastos públicos). Esse lucro (produtivo) continuará tão pressionado quanto mais deprimida estiver a demanda por seus produtos – realidade aqui aprofundada, adicionalmente, pelas medidas de austeridade, que ampliam o desemprego e o desamparo social. Dessa forma, e independente do tamanho dos cortes na despesa pública, ou dos “sinais” que o governo mande ao mercado a respeito de sua espartana disciplina orçamentária, quanto mais incerto os agentes estiverem a respeito do futuro dessa economia em recessão, menos se sentirão “confiantes” para investir e gastar, e mais tenderão a reter os seus recursos por tempo indeterminado. Isso constitui uma espécie de círculo vicioso, do qual se espera apenas a piora da situação.

De outro modo, ainda que as expectativas empresariais venham a reagir positivamente às políticas de austeridade, dado que as empresas notam, neste quadro, o aumento dos próprios estoques e da capacidade produtiva ociosa, o investimento privado se mantém em baixa – tornando irrelevante, em última instância, os efeitos de tais expectativas subjetivas.

No rescaldo dessa eterna espera pela “fada da confiança” ( Krugman, 2012 ), segue, lamentavelmente, um trágico pacote de consequências não pretendidas (ou pretendidas apenas por alguns) da ação: além da possível deterioração das contas públicas, o previsível aumento da pobreza e da desigualdade, da insegurança e da revolta social. Por isso, demonstra o livro, essa agenda fracassou retumbantemente onde quer que tenha sido aplicada, agravando ainda mais os problemas que buscava resolver. Lamentavelmente, esta é a história que vemos se repetir no Brasil atual.

Entretanto, por que os governos, os economistas e os gestores seguem sacrificando as fartas evidências empíricas da realidade no altar das crenças ideológicas? Por que essa ideia perigosa insiste em pairar e produzir brutais consequências sobre nós? Há, pelo menos, duas razões, afirma o autor: uma é de ordem psicológica; outra, de ordem política.

A primeira razão pode ser rapidamente explicada. De amplo conhecimento, trata-se de um lugar-comum tornado corrente – de manchetes e destaques de jornais a comentaristas de noticiários; de discursos políticos a acalorados debates em mesas de família: toda gastança é um pecado; após a festa exagerada, vem a ressaca; gastar é ruim, poupar é bom (o autor nos lembra, por exemplo, que as palavras “dívida” e “culpa” são homônimos na língua alemã). É que, como nos mostra Blyth, a austeridade, como conjunto frouxo de ideias, é mais uma “sensibilidade” do que um pacote robusto e coerente de políticas.

Tal ética da fruição virtuosa das dádivas se desdobra na intuitiva conclusão, segundo a qual as finanças governamentais equivalem às finanças domésticas, e que dívida pública equivale à dívida privada. Quando as famílias acumulam dívidas que não podem mais sustentar, devem reduzi-las a um nível sustentável – manda o bom-senso; os governos devem fazer o mesmo. Ignora-se neste raciocínio que, para além de qualquer moralidade individual, a Economia trata, antes de tudo, de dimensões sistêmicas, agregados e, no limite, do que funciona ou não em face de determinados objetivos sociais. Não consta, por exemplo, que as famílias emitam a moeda em que pagam as suas dívidas; que elas regulem a intensidade do crédito emitido e a sua taxa de juros; que instituam e arrecadem, por elas mesmas, impostos de diferentes fontes; que elas realizem grandes obras nacionais ou ofereçam serviços essenciais a uma população ampla e diversa. Vale, aqui, novamente nos lembrarmos da chamada falácia da composição: o todo não é a mera soma quantitativa ou a junção das partes individuais, mas algo qualitativa e constitutivamente distinto dessas.

No entanto, longe de ser apenas um problema psicológico, fruto da confusão de uma moralidade mal ajustada, o que sustenta centralmente o impulso de austeridade é o bom e velho interesse econômico e político. Ao fim e ao cabo, a austeridade é uma forma de política voltada centralmente para alguns poucos setores de interesse econômico, especialmente o financeiro, em detrimento do bem-estar coletivo.

Isso ocorre, em primeiro lugar, porque a manutenção do desemprego em patamar expressivo possibilita a gestão do chamado “exército industrial de reserva” ( Marx, 2013 , p. 704), favorável ao capital e desfavorável ao trabalho, pendendo a balança em favor do primeiro. Em segundo lugar, porque a negação de estímulos fiscais e monetários é uma forma de dar prioridade aos credores, geralmente grandes detentores de riqueza, em detrimento de trabalhadores e maiorias sociais, com menor disponibilidade de renda para poupar. A inflação e as baixas taxas de juros são ruins para os credores, mesmo quando promovem a criação de empregos e o aquecimento da atividade econômica, ao passo que reduzir os déficits governamentais, ainda que aprofunde uma depressão em face do desemprego maciço, garante aos detentores de títulos que estes serão sempre pagos em sua totalidade, aconteça o que acontecer. Vinculado a isso, os momentos de intensificação de déficits públicos, independente de razões e trajetórias, são aproveitados como uma oportunidade para os argumentos e as ações – sempre à espreita – contra o Estado de bem-estar social. Em vez de apresentarem a destruição do Estado de bem-estar como apenas uma alternativa política, entre as demais, os conservadores a justificam de pronto como uma imperiosidade técnica incontornável ou algo para o qual “não há alternativa”.

Não é mero acaso, então, apesar de se mostrarem um grande fracasso, o fato de, sob inúmeros aspectos, as políticas econômicas aplicadas desde a crise financeira de 2008 não terem sido tão desfavoráveis para os mais ricos. Pelo contrário. Os lucros financeiros se recuperaram rapidamente, mesmo diante da persistência de um nível de desemprego sem precedentes, e os distintos ativos e índices nos mais variados mercados, inclusive nos Estados Unidos e na Europa, retornaram aos níveis anteriores ao da crise, mesmo quando a renda média da população vem caindo sem interrupção.

Quando se trata de austeridade, a moralidade econômica, acima apresentada, cai como uma luva sob a prioridade dos grandes credores: os “vencedores” da austeridade foram capazes de ver a sua riqueza crescer vertiginosamente com a aplicação do manual de instruções neoclássico e a financeirização crescente das economias. Quando não são os diretamente beneficiados pela austeridade, o topo 1% da distribuição de renda vem sendo muito menos afetado do que os trabalhadores e as maiorias sociais. E isso certamente está relacionado, defende nosso autor, com a disposição de políticos e gestores para seguirem forçando os eleitores deles e os cidadãos a aceitarem doses continuadas desse “remédio amargo”. Algo que explica, a despeito de amplas evidências em contrário, por que, no campo acadêmico, autores e trabalhos que dizem o que a elite credora gosta de ouvir são tão celebrados, enquanto críticos competentes são retumbantemente ignorados, não importando o quão correto estejam.

No fim, é isso que está em jogo: quem paga a necessária conta da reprodução da vida social, sobretudo, em tempos de aperto econômico, quando se intensifica o conflito distributivo? De um lado, o lucro dos empresários e rentistas – lucro obtido também graças ao trabalho de seus funcionários; de outro, os salários (diretos ou indiretos) dos próprios trabalhadores, já sub-remunerados, e expostos a inseguranças de todo o tipo nas economias centrais ou periféricas do século XXI.

Na esteira de crises, por vezes transformadas em recessões permanentes, e, assim, da continuada queda de arrecadação do Estado, a disputa pelo butim do excedente social torna-se ainda mais acirrada. Mas, conforme Blyth argumenta com competência, em Austeridade: a história de uma ideia perigosa , cortar a proteção social e os direitos trabalhistas é “tomar o veneno como se fosse o remédio”, isto é, apenas piora ainda mais a situação econômica, social e política de um país. A verdadeira forma de sair da crise, demonstra a história, é distribuindo a renda e combatendo energicamente a desigualdade; ampliando, e não diminuindo, os direitos dos trabalhadores e das maiorias sociais.

BIBLIOGRAFIA

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MARX, Karl. (2013), O Capital . São Paulo, Boitempo, vol. 1.
QUIGGIN, John. (2010), Zombie economics: how dead ideas still walk among us. Princeton, NJ, Princeton University Press.
SANTAGOSTINO, Angelo. (2012), “The contribution of Italian liberal thought to the European Union: Einaudi and his heritage from Leon to Alesina”. Atlantic Economic Journal, 40 (4): 367-384. Disponível em http://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2Fs11293-012-9336-0, consultado em 8/11/2017. 

1Cabe mencionar, de passagem, que o déficit público é resultado da crise, e não a sua causa. Isso, pois a queda da arrecadação oriunda da contração do nível de atividade do setor privado não depende do volume dos gastos públicos. O caso da crise financeira internacional é apenas um exemplo, ainda que os canais de transmissão financeiros sejam importantes, nesse caso, para explicar a evolução de parte dos gastos.

2Para panoramas dessa corrente de pensamento, ver Buchanan (1960) , Forte e Marchionatti (2010) , Santagostino (2012) .

3Para alguns dentre os mais celebrados trabalhos a esse respeito, ver Alesina e Tabbellini (1990) , Giavazzi e Pagano (1990) .
Revista Brasileira de Ciências Sociais

¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura

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Um acerto de contas com o judiciário argentino

Carlos Artur Gallo1
1Professor-adjunto do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: galloadv@gmail.com.

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo. ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2015. 448p.

A agenda de pesquisas sobre as ditaduras de Segurança Nacional1 no Cone Sul tem ganhado, sobretudo na última década, grande fôlego, sendo facilmente identificadas não só maior quantidade de boas análises que tratam do tema, mas também uma visível ampliação dos recortes temáticos que estão sendo realizados por pesquisadores das ciências humanas, em geral, na região.2 Algo que talvez ajude a explicar o aumento do interesse acadêmico da história, sociologia, e ciência política, entre outras áreas, pelo tema, pode ser a quantidade de novidades referentes ao contexto das ditaduras que foram surgindo a partir dos anos 2000, por exemplo: as novas condenações de agentes de repressão na Argentina, no Chile e, em menor grau, no Uruguai; o julgamento, em abril de 2010, da ADPF n. 153 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (que tratava da interpretação da Lei da Anistia que beneficiava agentes da repressão); as frequentes notícias sobre o encontro de crianças roubadas por agentes da repressão na Argentina; além, é claro, e pensando-se especificamente no caso do Brasil, da criação da Comissão Nacional da Verdade, que funcionou entre 2012 e 2014.

Se é fato que há mais estudos sendo elaborados e publicados recentemente sobre a temática, é perceptível, igualmente, que a referida agenda de pesquisas focada na análise do impacto das ditaduras não se desenvolveu da mesma maneira em cada um dos países que passou por regimes autoritários comprometidos com a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), no contexto da Guerra Fria. Assim, ao comparar as análises elaboradas no Brasil com as que foram e vêm sendo feitas pelos argentinos, por exemplo, pode-se verificar que, talvez devido ao modo como a memória da ditadura foi sendo construída em cada caso, alguns recortes temáticos que ganham profundidade no país vizinho ainda não chegaram a ser explorados com igual ênfase por acadêmicos brasileiros.

Demonstrando isso, encontra-se a coletânea ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura (em tradução livre: “Você também, doutor? Cumplicidade de juízes, promotores e advogados durante a ditadura”), organizada por Juan Pablo Bohoslavsky.

Estruturada em sete seções, e contando com mais de vinte capítulos, a obra analisa, com variações de foco interessantes, um conjunto de questões específicas relacionadas ao aprofundamento da busca por justiça na Argentina, tais como: Qual o papel do Poder Judiciário e seus agentes durante a ditadura? Quem e como colaborou com o regime civil-militar a partir das instituições judiciais? O que aconteceu com essas pessoas após o fim da ditadura? É possível identificá-las e, eventualmente, puni-las na atualidade? Como fazer para levá-las ao banco dos réus?

Entre os capítulos que compõem a obra, uma primeira referência que merece destaque é o texto “El derecho durante el ‘Proceso’: una relación ambígua”, escrito por Enrique I. Groisman. Abrindo a seção intitulada “Direito e ideias jurídicas”, o estudo de Groisman observa as formas como a ditadura argentina tentou se apropriar do campo jurídico, visando legitimar alguns dos seus atos. Estabelecendo uma relação ambígua com o Direito, contudo, a coalizão civil-militar que comandou o país a partir de 1976 não se preocupou, de fato, com o cumprimento das normas de exceção editadas com base na DSN. Assim, e lembrando aqui da análise de Anthony W. Pereira (2010) sobre a legalidade autoritária argentina, Groisman converge com o autor mencionado ao observar que o Direito e as instituições judiciais foram apropriadas pela ditadura, como costuma ocorrer na vigência de regimes autoritários, mas gerando um padrão de “comportamento jurídico” com igual ou maior disposição para transgredir as próprias regras criadas pelo regime do que para aplicá-las.

Com foco na conexão entre Corte Suprema e ditadura, entre os capítulos que têm por objetivo analisar esse aspecto específico, vale mencionar tanto o texto escrito em coautoria por Juan Pablo Bohoslavsky e Roberto Gargarella, como o estudo de Juan Francisco González Bertomeu. Mas, enquanto Bohoslavsky e Gargarella se detêm no resultado mais evidente da Corte Suprema enquanto instituição que irá respaldar os atos de exceção do regime autoritário, González Bertomeu foca nos agentes designados para compô-la em nome da “segurança nacional”. Assim, ao focar na composição da Corte a partir de 1976, González Bertomeu chama a atenção para o fato de que a Junta Militar, que governou o país, destituiu, nos primeiros dias após tomar o poder, todos os membros que a compunham antes do golpe, estabelecendo critérios altamente discricionários para a escolha dos novos ministros, de modo que todos os seus integrantes seriam escolhidos por serem, no mínimo, conservadores. Há nuances nos comportamentos que os ministros teriam ao longo da ditadura, é claro, e, em alguns casos, houve decisões que tornaram visível o fato de que a coesão interna era relativa. Em geral, entretanto, a composição da Corte foi pouco ou nada protagônica no período, sendo altamente submissa e colaborativa, respaldando atos de exceção da Junta Militar.

Avançando para a análise de outros atores do campo jurídico e suas eventuais conexões com a ditadura, encontra-se o capítulo escrito por Lucía Castro Feijóo e Sofía I. Lanzilotta, no qual são discutidas as diferentes formas de colaborar com a ditadura a partir do âmbito jurídico, mas também as estratégias de resistência que foram possíveis naquele contexto. Colaborando com a ditadura, Castro Feijóo e Lanzilotta identificam que ações e omissões cometidas por juízes, promotores e outros funcionários públicos foram constantes, seja acobertando torturas, simulando a legalidade de atos e facilitando a adoção de crianças roubadas, bem como dificultando o acesso à justiça de vítimas da repressão. No plano da resistência, as autoras comentam casos como o do juiz da Província de Córdoba, que foi perseguido por decretar a prisão de policiais envolvidos com a morte de cinco funcionários de uma associação de cooperativas.

Outra abordagem centrada nos operadores do Direito recai, justamente, na complexa relação entre os advogados e a ditadura. Além de análises sobre os advogados que resistiram contribuindo com o incremento da luta pelos direitos humanos na Argentina (caso dos capítulos escritos por Laura Saldivia Menajovsky e Claudia Bacci et al.), uma leitura interessante pode ser feita no capítulo de Virginia Vecchioli, que apresenta dados sobre o papel desempenhado por associações profissionais durante o “Proceso de Reorganización Nacional” implementado pela ditadura. Em seu texto, Vecchioli observa e evidencia as conexões entre associações de advogados e o regime, demonstrando as formas como esses grupos buscaram, ao reforçar os “valores” que seriam a base de uma “comunidade moral” de profissionais do Direito, legitimar a intervenção civil-militar de março de 1976. Compartilhando elementos de um discurso religioso (católico) com uma visão política conservadora e anticomunista, o Colegio de Abogados de la Ciudad de Buenos Aires, a Corporación de Abogados Católicos San Alfonso María de Ligorio e o Foro de Estudios sobre la Administración de Justicia se empenharam em fortalecer o Estado de exceção e garantir, com o fortalecimento da Junta Militar, seu próprio fortalecimento moral na luta contra a subversão.

Pensando nas possibilidades de ruptura bem como na continuidade de práticas, regras e pessoas comprometidas com o autoritarismo após o retorno à democracia, nos capítulos de María José Sarrabayrouse Oliveira e Leticia Barrera encontram-se dados e reflexões interessantes, que contribuem para a formulação de hipóteses que ajudem a explicar as razões pelas quais o Judiciário argentino estabeleceu uma trajetória de avanços e recuos no tocante à realização da justiça. Sarrabayrouse Oliveira e Barrera convergem em suas interpretações, observando a permanência, após a saída das Forças Armadas do poder em 1983, de estruturas e pessoas comprometidas com a ditadura na arena judicial como uma das causas para que a luta por justiça no país fosse limitada em diversas oportunidades ao longo das décadas de 1980 e 1990. Embora, como analisa Barrera, nenhum dos integrantes da Corte Suprema nomeados durante a ditadura tenha permanecido no cargo com o retorno à democracia, a falta de um amplo debate público em torno do tema pode ser considerada problemática, visto que o interesse pela nova composição da instituição ficou restrito a políticos e membros do campo jurídico.

Por fim, parece interessante destacar, ainda, dois capítulos que abordam o tema da apuração de responsabilidades dos envolvidos com os crimes cometidos pela ditadura. Nesse sentido, tanto o estudo de Pablo Gabriel Salinas como o de autoria de Leonardo Filippini e Agustín Cavana aportam interpretações importantes sobre limites e possibilidades relacionadas à realização das demandas por justiça no país. Enquanto Salinas foca nos julgamentos nos quais foram condenados, em 2014, juízes e procuradores de justiça da província de Mendoza, mostrando as contínuas tentativas de processar e punir essas pessoas desde a década de 1980, Filippini e Cavana apresentam um panorama sobre as possibilidades, na atualidade, de levar a julgamento civis que, vinculados ao Judiciário argentino, colaboraram com a ditadura e/ou, com o retorno à democracia, dificultavam ou bloqueavam o acesso à justiça por parte das vítimas do terrorismo de Estado.

Em linhas gerais, pode-se observar que o aprofundamento das análises realizadas na coletânea é possível, de algum modo, devido à própria expansão da realização das demandas por justiça ocorrida na Argentina após a chegada de Néstor Kirchner à presidência, em 2003, e, sobretudo, a partir de 2005 (Calado, 2014). Quando ocorreu, em 2005, o julgamento do “Caso Simón” pela Corte Suprema de Justicia de la Nación, foram declaradas nulas as “leis de impunidade” (Norris, 1992) editadas ao longo da década de 1980, para barrar a continuidade dos julgamentos dos envolvidos com as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura, podendo ser iniciados novos processos e serem apuradas outras responsabilidades além das pessoas vinculadas às Forças Armadas.3

São interpretações que aprofundam perspectivas surgidas e, de certo modo, até mesmo negligenciadas no rastro dos estudos sobre as transições à democracia ocorridas no âmbito daquela que, conforme o estudo de Samuel P. Huntington (1994), seria a terceira onda de democratizações. Não respondem a todos os problemas levantados pelos autores que fazem parte do projeto, mas apresentam análises, dados e hipóteses a serem exploradas, visto que lançam luz nas conexões entre direito e justiça antes, durante e depois de períodos de exceção. Dessa forma, ao fazê-lo, abrem possibilidades analíticas interessantes, talvez necessárias, para a comparação com contextos como o brasileiro, no qual agentes da repressão, mesmo passadas mais de três décadas desde o fim da ditadura, sequer sentaram no banco dos réus. Reforçam, por um lado, a necessidade de que sejam verificadas, além das novidades estabelecidas pelos novos arranjos institucionais democráticos, rupturas e continuidades de comportamentos e instituições criadas ou fortalecidas durante períodos de exceção. Por outro, contribuem para a comparação do caso argentino com outros países, sugerindo caminhos para o estabelecimento de semelhanças e diferenças que ajudem a explicar, a partir do estudo do impacto da ditadura no campo jurídico, seus agentes e sua estrutura organizacional, os principais avanços, recuos e desafios na trajetória das demandas por memória, verdade e justiça na região.

BIBLIOGRAFIA

CALADO, Rui. (2014), “Políticas de memória na Argentina (1983-2010). Transição política, justiça e democracia”. História – Revista da FLUP, IV (4): 51-64.
HUNTINGTON, Samuel P. (1994), A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo, Ática.
NORRIS, Robert E. (1992), “Leyes de impunidad y los derechos humanos en las Américas: una respuesta legal”. Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 8 (15): 47-121. 
PADRÓS, Enrique Serra. (2009), “História do tempo presente, ditaduras de Segurança Nacional e arquivos repressivos”. Tempo & Argumento, 1 (1): 30-45.
PEREIRA, Anthony W. (2010), Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
PINTO, António Costa & MARTINHO, Francisco Carlos P. (orgs.) (2013), O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 

1 Seguindo o exemplo de historiadores como Enrique Serra Padrós (2009), utiliza-se a denominação “ditaduras de Segurança Nacional” para fazer referência aos regimes autoritários que, iniciados nos países do Cone Sul a partir da década de 1960 e finalizados até o ano 1990, estiveram ideologicamente alinhados aos preceitos básicos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), tais como: (a) o combate ao suposto avanço do comunismo na região; (b) o deslocamento da lógica de combate aos “inimigos externos” para o de identificação e combate dos “inimigos internos” do Estado, que poderiam ser qualquer pessoa que fosse considerada subversiva pelo aparato repressivo; e (c) o endurecimento das políticas estatais com vistas ao realinhamento da economia a novos padrões de desenvolvimento.


2 Exemplos de estudos recentes sobre legados autoritários na região são: a coletânea O passado que não passa..., organizada por António Costa Pinto e Francisco Carlos P. Martinho (2013), e o livro Ditadura e repressão..., no qual Anthony W. Pereira (2010) analisa o modo como o campo jurídico foi apropriado pelas ditaduras argentina, brasileira e chilena.

3 A nulidade das leis de “Obediencia Debida” e “Punto Final”, declarada pela CSJN em 2005, permitiu a reabertura e a proposição de ações buscando o julgamento e a punição de um conjunto significativo e variado de pessoas vinculadas à repressão. Conforme dados atualizados pelo Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), entre 2005 e 2017 foram proferidas 176 sentenças, nas quais 695 pessoas foram condenadas por violações aos direitos humanos (entre as quais: militares, civis, funcionários do Judiciário, advogados, empresários, sacerdotes, entre outros). Os dados compilados pelo CELS podem ser consultados em: <http://www.cels.org.ar/web/estadisticas-delitos-de-lesa-humanidad>.
Revista Brasileira de Ciências Sociais