quarta-feira, 28 de abril de 2010

Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império


Waldir José Rampinelli

Professor do Departamento de História da UFSC; doutor em Ciências Sociais – Política (PUCSP). Depto. de História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC. Cidade Universitária. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. rampinelli@globo.com


Davis, Mike. Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império. São Paulo: Boitempo, 2008. 351p.

O livro Apologia dos bárbaros, do historiador estadunidense Mike Davis, professor da Universidade da Califórnia, reúne escritos publicados entre 2001 e 2007 que analisam, sob diferentes perspectivas, a política interna e externa dos Estados Unidos, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001.

Davis divide o trabalho em cinco partes, tendo por critério temas afins. No entanto, a linha de continuidade que perpassa a estrutura do livro é uma crítica perspicaz e fundamentada à Casa Branca, ao Congresso, ao Poder Judiciário, ao Pentágono, aos partidos políticos e às organizações sindicais que estão a serviço do grande capital e não dos interesses da população dos Estados Unidos.

Davis não acredita na afirmação de que "os estadunidenses colheram o que semearam" com os atentados às Torres Gêmeas, já que as principais vítimas daquela tragédia foram as secretárias, os contadores, os entregadores de lojas de conveniências, os lavadores de janelas, os corretores da bolsa e os bombeiros, pessoas que "não conceberam ou implementaram nossas políticas secretas, antidemocráticas e criminosas no mundo muçulmano" (p.24). Responsáveis diretos pelos atentados, entre tantos, seriam, por exemplo, Madeleine Albright, secretária de Estado de Bill Clinton, que, ao responder a uma pergunta em rede nacional de TV sobre as 500 mil crianças mortas no Iraque como resultado das sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos, asquerosamente afirmou: "Acredito que o custo compensou". E o maior responsável de todos – George W. Bush – foi escolhido presidente por uma maioria na Suprema Corte e não pelos eleitores, tendo adotado poderes de guerra contra todos, em toda parte e para sempre, sem precedentes na história nacional dos Estados Unidos e, quiçá, mundial.

O autor de Apologia dos bárbaros não vê grandes diferenças entre o Partido Republicano e o Democrata, já que ambos estão ligados aos donos do poder econômico. Os socialistas estadunidenses, diz Davis, há anos vêm de monstrando que os democratas não passam de um partido capitalista com verniz social-democrata. No entanto, as elites formadas por sindicalistas e por militantes dos direitos civis encontram sempre um pretexto para o velho vício, qual seja, a opção pelo mal menor. A história mostra, por exemplo, que a maioria democrata no Senado 1) vendeu a Bill of Rights (a Constituição dos Estados Unidos aprovada em 1787); 2) endossou cortes marciais e campos de concentração; 3) acatou a não assinatura do Protocolo de Kyoto e do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos; 4) apoiou a militarização da fronteira mexicana e deu carta branca ao presidente George W. Bush para intervir na guerra suja da Colômbia; 5) aprovou, por meio do Comitê de Inteligência do Senado, a opção do uso de armas nucleares de 'pequeno alcance' contra o dito Eixo do Mal. Por fim, o democrata Joe Lieberman, ex-candidato à vice-presidência de Al Gore, defendeu com mais ênfase que os próprios republicanos o direito de invadir o Iraque, e Carl McCall promoveu sua campanha para governador de Nova York exibindo fotos em que aparecia disparando um fuzil M-16 em um campo de treinamento 'antiterrorismo' israelense.

Uma política externa intervencionista compromete a própria democracia interna dos Estados Unidos. John Hobson, em seu Estúdio del imperialismo, criticava, no início do século XX, a voracidade da classe dominante inglesa em suas colônias espalhadas pelo mundo, ao tempo em que mostrava que essa mesma elite, no afã de acumular sem limite, destruía a democracia interna londrina. O 'Ato Patriota', aprovado em 26 de outubro de 2001, 45 dias após os ataques do 11 de setembro, nada mais é que um conjunto de leis destinadas a aumentar a regulação, o controle e a fiscalização das atividades cotidianas dos cidadãos estadunidenses, exacerbando o poder de policiamento do governo. James Petras o denominou de "fascismo amistoso". Noam Chomsky vai mais longe, chegando a dizer que "não devemos nos esquecer que os próprios Estados Unidos são um Estado líder do terrorismo".

Mike Davis, ao analisar a destruição de New Orleans pelo furacão Katrina, mostra que todos os aspectos da catástrofe foram moldados por desigualdades de classe e raça. Pesquisadores de várias universidades do sul dos Estados Unidos vinham chamando a atenção das autoridades para a possibilidade do rompimento dos diques por falta de manutenção. No entanto, nada se fez para sanar o problema, já que a cidade era povoada por 75% de afro-americanos e tinha altos índices de pobres, criminosos e desempregados. Foi a negligência federal, e não a fúria da natureza, a maior responsável pelo assassinato de New Orleans.

Utilizando-se do desastre natural, políticos inescrupulosos, especuladores imobiliários gananciosos e brancos racistas apostaram em uma higienização da metrópole do jazz. Um deles, Finis Shellnut, afirmou que "o furacão obrigou os pobres e os criminosos a saírem da cidade, e esperamos que eles não voltem. A festa dessa gente está quase no fim e agora eles terão de encontrar outro lugar para morar" (p.237). Outro, Joseph Canizaro, com laços pessoais que o ligam ao círculo interno da Casa Branca, disse que "essas pessoas pobres não têm condições de voltar para nossa cidade, assim como não tiveram condições de deixá-la. Então, não traremos todas de volta" (p.236).

O governo Bush também aproveitou o pretexto do Katrina para atacar os sindicatos independentes, sobretudo aqueles que defendiam os direitos dos trabalhadores e pressionavam pela contratação de moradores para recuperar New Orleans. Com isso, favoreceu as grandes corporações, como o Wal-Mart, que, combinando a tecnologia just in time com as características mais selvagens do capitalismo, tornou-se a empresa-símbolo da exploração. "Conhecida por pagar salários miseráveis e fraudar as horas extras de seu 1 milhão de empregados nos Estados Unidos", comenta Davis,

o Wal-Mart age de forma ainda mais sinistra no estrangeiro, pressionando incessantemente seus milhares de fornecedores em Bangladesh, na China e na América Central para que reduzam os custos do trabalho e suprimam direitos trabalhistas. O Wal-Mart é, sem dúvida, o maior empregador indireto de mão de obra semiescrava ou infantil do planeta. A 'walmartização' tornou-se, portanto, sinônimo de 'corrida ao fundo do poço', completa abolição dos direitos do trabalhador e da cidadania. (p.158)

O historiador Mike Davis critica os livros didáticos das escolas estadunidenses por sua ocultação da história. A "Operação Bagration", de junho de 1944, por exemplo, que leva esse nome em homenagem a um herói russo de 1812, foi um ataque soviético decisivo contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht de Hitler. Para Davis, foi a batalha decisiva pela libertação da Europa do nazifascismo. No entanto, não se encontra uma palavra sobre essa operação nos livros básicos de história nos Estados Unidos. E isso tudo, apesar de essa ofensiva de verão soviética – chamada pelo historiador Jon Erickson de "o grande terremoto militar" – ter sido muito mais grandiosa que o desembarque na Normandia, tanto em escala de forças envolvidas quanto em custo direto infligido aos alemães. "Na luta contra o nazismo, cerca de quarenta Ivans morreram para cada soldado Ryan". "De fato", diz Davis que

a maioria dos norte-americanos é espantosamente ignorante a respeito dos ônus dos combates e das baixas da Segunda Guerra Mundial. E mesmo a minoria que compreende algo da grandiosidade do sacrifício soviético tende a julgá-lo nos termos dos estereótipos crus do Exército Vermelho: uma horda bárbara conduzida por um sentimento cruel de vingança, um frenesi por estupros e um nacionalismo russo primitivo. (p.282)

O Pentágono, diz Davis, deveria estudar a história das colônias conquistadas e perdidas, dos impérios erguidos e derrubados, evitando, assim, a atual carnificina iraquiana. Bastava ler as cartas de Gertrude Bell e os diários de Winston Churchill, os homens que transformaram três prósperas e etnicamente distintas províncias do Império Otomano em um infeliz território britânico. Churchill, então secretário de Estado de Guerra e da Aeronáutica (1920), utilizou a estratégia dos bombardeios com armas químicas, como as bombas de gás mostarda, para economizar dinheiro e soldados na dominação do Iraque. Graças ao gás venenoso e aos tanques, os britânicos recuperaram o controle da região, em setembro de 1920, sem deixar de lado as expedições punitivas pelos territórios rebeldes, queimando vilarejos, executando suspeitos, confiscando mantimentos e aplicando multas. Mais tarde, a força aérea britânica bombardeou regiões do Iraque, como o baixo Eufrates, já não para reprimir tumultos e sim para pressionar os vilarejos a pagar seus impostos. Em fins de 1921, Churchill observou com satisfação que seus aeroplanos haviam passado a ser temidos e continuou a defender o uso do gás venenoso no Iraque e em toda a região. Questionado por um coronel, subordinado seu, sobre os horrores causados pelos efeitos dos bombardeios, Churchill o repreendeu severamente dizendo que "não entendo essa aversão ao uso de gás. Sou totalmente a favor do uso de gás venenoso contra tribos incivilizadas" (p.114). Certamente, foi esse o mestre maior de Saddam Hussein. Apesar de tais métodos genocidas, a Grã-Bretanha saiu derrotada da região.

Algumas ausências sentidas no trabalho foram as de Noam Chomsky, James Petras, Michael Klare e Immanuel Wallerstein, que trabalham igualmente as relações dos Estados Unidos no mundo.

Apologia dos bárbaros mostra como a revolução revoluciona a contrarrevolução. Por isso, o livro é importante para entender a política interna e externa dos Estados Unidos. Enfim, um livro que ajuda a entender os meandros do império.

Revista Brasileira de História

A história escrita: teoria e história da historiografia


MALERBA, Jurandir (org.) A história escrita: teoria e história da historiografia.São Paulo: Contexto. 2006. 238pp

Paulo Pinheiro Machado
Doutor em História pela UNICAMP e professor do Departamento de História. UFSC Campus Universitário Trindade. SC. 88040-560. pmachado@mbox1.ufsc.br


Do texto viemos, ao texto iremos. Sem querer simplificar o atual debate acerca das diferentes abordagens teóricas sobre a história — seja a história do acontecido ou a escrita sobre o acontecido — é difícil encontrar, em língua portuguesa, livro com um balanço equilibrado e atualizado sobre este debate. A publicação de "A história escrita", obra de um diversificado grupo de historiadores coordenada por Jurandir Malerba chega para preencher este espaço importante para o debate e a reflexão historiográfica, sendo útil a profissionais, pesquisadores e estudantes. Além da atualidade dos temas e abordagens, os autores não deixam de fazer um abrangente balanço dos impasses, crises e contribuições de importantes historiadores do século XX. As trajetórias intelectuais de Benedetto Croce, Marc Bloch, Lucien Febvre, Le Goff, Arnaldo Momgliano e outros importantes historiadores, são analisadas em diferentes textos, o que dá uma interessante unidade ao conjunto do livro.1

Um dos pontos centrais da discussão é o balanço da contribuição do vendaval pós-estruturalista (ou pós-moderno) sobre a forma de se trabalhar a história. As intervenções dos herdeiros intelectuais de Nietzche, sem dúvida, advertiram a nova geração para as precariedades da ciência e deram sério golpe em noções de finalidade e de progresso da história. A contribuição de Hayden White adverte para a importância das formas narrativas, dos tropos e da grande dose de subjetividade presente na historiografia. No entanto, estas contribuições foram muito pouco férteis no sentido de enfrentar os problemas quotidianos dos historiadores. O debate final da obra, entre White e Ginzburg, sobre uma questão-limite, a "veracidade" do holocausto dos judeus na segunda guerra mundial, acaba por levantar importantes considerações políticas e morais das concepções mais analíticas dos textos e menos inquiridoras de "indícios" e "provas" do que pode ser considerado como "realidade".

O ponto mais inovador da coletânea é a necessidade de avaliação, comparação e crítica historiográfica. Estamos acostumados a fazer balanços historiográficos sem critérios muito precisos do que deva ser considerado. Além de considerações aleatórias do "gostar" e do "não gostar" de determinados textos, os autores nos chamam a atenção para a avaliação da excelência de nosso ofício. Deverá o historiador, como Heródoto, ser um hábil escritor para cativar seus leitores com a beleza de sua narrativa? Ou devemos, como Tucídides, despreocuparmos com a beleza e atentarmos para a precisão e utilidade de nosso labor? A eleição de critérios para a avaliação e debate historiográfico depende de escolhas teóricas dos autores. Jurandir Malerba, recuperando Benedetto Croce, lembra que, como a crítica poética critica a "poeticidade", na crítica historiográfica se avalia a "historicidade", o que abre caminho para considerar a crítica historiográfica como parte integrante da pesquisa histórica. Uma boa discussão sobre termos comparativos na relação entre historiografia ocidental e oriental encontramos no texto do professor Masayuki Sato, da Universidade de Yamanashi, no Japão. Com ele aprendemos que além de considerações teórico-metodológicas este debate precisa incorporar diferenças culturais, já que a história tem especificidades como ofício em diferentes culturas, além de distintos estatutos públicos. Importante discussão neste sentido é levantada por Jörn Rüsen, da Universidade de Bielefeld, Alemanha, no entanto, seu quadro de periodização do pensamento histórico parece algo excessivamente esquemático e contraditório com a proposta original. Angelika Epple, da Universidade de Hamburgo, em texto muito inteligente, propõe um alargamento das fontes para considerar uma história e historiografia das mulheres, além dos limites acadêmicos, ou seja, abrir para admissão de narrativa histórica textos literários, onde sempre houve forte presença feminina.

Enfim, temos a disposição do público uma coletânea com diferentes aspectos das teorias, das metodologias e das fontes historiográficas que procuram criar pontes de discussão e interlocução entre diferentes tradições historiográficas nacionais.

1 Além de Jurandir Malerba, publicam nesta obra Angelika Epple, Arno Wehling, Carlo Ginzburg, Frank Ankersmit, Hayden White, Horst Walter Blanke, Jörn Rüsen, Masayuki Sato e Massimo Mastrogregori

Revista Varia História

Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica


MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Prefácio de Drauzio Varella; tradução de Marcelo Leite. (Título original: What makes biology unique?: considerations on the autonomy of a scientific discipline, 2004).


Alexandre Torres Fonseca
Doutorando em Ciência e Cultura na História. UFMG Av. Antônio Carlos, 6627, Caixa Postal 253, B.Hte, MG, 31270-901. atfonseca11@gmail.com


As contribuições feitas por Ernst Mayr à biologia evolucionária o colocariam certamente em qualquer lista dos maiores biólogos evolucionários do século XX. Edward Wilson e Stephen Jay Gould, colegas de Mayr em Harward, chegam a colocá-lo como o maior biólogo de todos os tempos. Mas as realizações de Mayr se estenderam para além da biologia. Além de seus trabalhos de divulgação da história natural e da evolução, ele também escreveu sobre a história e a filosofia da ciência, especialmente da biologia.

Se levarmos em consideração o volume, a abrangência e a profundidade do trabalho de Ernst Mayr, ele ocupa um lugar único no desenvolvimento da biologia evolucionária no século XX. E, para entendermos adequadamente este desenvolvimento, nós precisamos entender seu trabalho. E é exatamente isso que Biologia, ciência única nos permite. A cuidadosa edição da Companhia das Letras, com tradução de Marcelo Leite, transforma Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica (2005) em um livro indispensável tanto para historiadores da ciência quanto para os historiadores ambientais, e, naturalmente, também para os biólogos.

Mayr, que morreu em fevereiro de 2005 com cem anos, começou seus estudos em medicina, mudando depois para a biologia. Publicou seu primeiro paper aos dezenove anos, em 1923; tornou-se Ph.D. com 22 anos pela Universidade Humboldt em Berlim. Publicou quase 700 papers e 25 livros, dos quais o último é Biologia, ciência única, que é, segundo ele, uma versão revisada e mais madura de seus pensamentos.

Mayr, ao mudar-se para os Estados Unidos em 1931, considerava-se um ornitologista. Durante sua vida deu nome a 26 espécies e a 473 subespécies novas de pássaros, publicou cerca de 300 artigos discutindo e descrevendo a variação geográfica e a distribuição dos pássaros. Como muitos de seus contemporâneos acreditava na herança lamarkiana até se tornar amigo e interlocutor de Theodosius Dobzhansky, o qual vai exercer grande influência no pensamento de Mayr. Desse encontro surgirá a Moderna Síntese evolucionária.

A teoria evolutiva moderna surgiu entre 1936 e 1947, com a Síntese Evolucionária ou Síntese moderna. Este termo foi introduzido por Julian Huxley no livro Evolution: The Modern Synthesis, em 1942. Esta síntese é reunião da teoria de Darwin com a genética e as contribuições da sistemática e da paleontologia. Este processo começou com R. A. Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright. Alguns anos mais tarde, o paleontólogo George Gaylord Simpson, o biólogo Ernst Mayr e o geneticista Theodosius Dobzhansky irão alargar o paradigma neodarwinista. E da união entre o darwinismo e a genética nascerá o neodarwinismo.

O termo neodarwinismo ou teoria neodarwinista é usado correntemente como sinônimo de Síntese Moderna por quase todos os biólogos evolucionários, como por exemplo, Dennett, Gould, Futuyma e Dawkins. É neste sentido que este termo é usado neste artigo. Ernst Mayr, embora tenha usado neodarwinismo com esse sentido, mudou de idéia em Biologia, ciência única (2005). Por isso, a importância deste livro. Fica claro que a promessa feita na introdução do livro, de apresentar uma versão revisada e mais madura de seu pensamento, é realizada.

Neste livro (capítulo 7, Maturação do darwinsimo), ele diz que é um equívoco chamar de neodarwinismo à versão do darwinismo desenvolvida nos anos 1940, porque Romanes já havia usado este termo, em 1894, para qualificar o "paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [soft inheritance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiridas)" (2005, p. 147). Na sua nova maneira de pensar, a teoria sintética da evolução, o "produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese" (p. 147), deveria ser chamada simplesmente de darwinismo, pois se trata

em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo "darwinismo", porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo (p. 147).

Outro exemplo é a discussão sobre o que constitui uma espécie (capítulo 10, Um outro olhar sobre o problema da espécie). O conceito de espécie defendido por Mayr é ao mesmo tempo sua mais conhecida contribuição para o estudo da biologia, e o motivo pelo qual a maioria dos biólogos, hoje em dia, discordam da visão de espécie de Darwin. Neste capítulo ele critica o conceito de espécie dos "taxonomistas de poltrona".

Mayr também descreve as causas que o levam a considerar a biologia uma ciência única, autônoma, com vários conceitos ou princípios específicos, necessitando, por isso, de uma filosofia da biologia específica, que difere de filosofia da ciência, segundo ele, mais ligada à física. No capítulo 9, As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?, discute as idéias de Kuhn sobre revolução científica e paradigma, chegando à conclusão que esta não é uma boa teoria para a biologia. Mayr considera que "as descrições da epistemologia evolucionista darwiniana parecem captar melhor a mudança em teoria em biologia" (p. 184), fazendo uma clara opção por esta última.

Ernst Mayr é importante para a história da biologia e para o pensamento biológico por ter sido tanto um participante ativo da história na criação da Moderna Síntese quanto por sua significativa obra reflexiva sobre a filosofia da biologia. Nos últimos vinte anos de sua vida, ele se dedicou mais à história e à filosofia da biologia. Seu grande trabalho nesta área é The growth of Biological thought, de 1982, um tour de force de 974 páginas, que demorou dez anos para ser concluído. Havia a promessa de um segundo volume que não se realizou. Além disso, ele influenciou consideravelmente três ou quatro gerações de biólogos. Mayr diz que "por toda a biologia há numerosas controvérsias não resolvidas, e que ele não era otimista a ponto de acreditar que [ele tivesse] resolvido todas (ou mesmo a maioria)" (p. 13-14) delas. E o desafio que ele propõe aos jovens pesquisadores evolucionistas é ir em busca tanto das questões não respondidas quanto, e isso é o mais importante, de questões não formuladas. Com certeza, Biologia, ciência única é um bom começo.

Varia História

Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais


SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

Adriana Romeiro
Professora do Programa de Pós-graduação da UFMG. Adriana.romeiro@uol.com.br


Originalmente escrita como tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro Territórios de mando - banditismo em Minas Gerais, século XVIII debruça-se sobre um campo raramente explorado pela historiografia mineira: a vasta região rural da capitania, dominada por potentados e poderosos locais, perdidos em meio às lonjuras de um sertão inóspito e distante. Poucos foram os estudiosos que se aventuraram por esse verdadeiro continente indevassado, a exemplo de Bernardo da Mata-Machado1 e, mais recentemente Carla M. J. Anastasia, num trabalho pioneiro sobre as turbulentas zonas de fronteira, intitulado A geografia do crime.2 Ao contrário do enfoque predominante na historiografia sobre o Setecentos mineiro, voltada para o universo das vilas e arraiais, a urbanização restringia-se a uns poucos núcleos populacionais, para além dos quais abria-se, imenso e inquietante, o sertão.

Filiada às novas tendências historiográficas, a autora se propõe a examinar a configuração política peculiar que floresceu à roda dos grandes potentados sertanejos, responsáveis pela constituição de vigorosos pólos de poder privado, que, ao longo de todo o século XVIII, minou insidiosamente as sucessivas tentativas da Coroa portuguesa no sentido de estender os seus tentáculos por toda a capitania. Afinal, como se dava o exercício do poder e do mando entre esses homens, tidos freqüentemente por facinorosos e rebeldes? Que valores pautavam o imaginário político deles? Ao longo da pesquisa, Célia Nonata da Silva descobre uma cultura política singular, profundamente marcada pelas concepções barrocas do Portugal restaurado, reinventadas no contato com as tradições locais. Mestiça, essa cultura política estruturava-se em formas de mando complexas, que estavam longe do estereotipo fixado pelos contemporâneos, que viram nelas tão-somente a expressão de uma violência irracional, típica do cenário bárbaro em que supostamente viviam os sertanejos.

Encarnando um poder que fustigava a Coroa, contra a qual empreenderam uma tenaz e bem-sucedida resistência, os potentados dominavam vastas extensões de terra – os chamados territórios de mando -, nos quais eram reconhecidos como chefes políticos legítimos, e por essa razão, obedecidos e respeitados por um número expressivo de moradores. Um exemplo disso é a situação inusitada em que se viu o Conde de Assumar, por ocasião do motim de Barra do Rio das Velhas, obrigado a enviar bandos para informar a população local de que ela devia obediência e vassalagem ao rei de Portugal e não a Manuel Nunes Viana. Apesar disso, este último continuou a reinar soberano e absoluto na região, desafiando acintosamente os esforços desesperados do governador para estabelecer ali o poder público.

Ao carisma destes potentados, somavam-se práticas de dominação que se traduziam sob a forma de ritos de violência específicos, como o recurso à vingança, a valorização da honra, a exibição de signos de virilidade, como a valentia, a bravura e o desafio, dos quais resultou um exercício de poder marcadamente privado, refratário, em alguns casos, à negociação, em outros, abertos à transação. Em torno deles, gravitava uma complexa rede de solidariedades, de que faziam parte escravos, forros, homens livres e pobres – e por vezes, as próprias autoridades locais – organizados em bandos armados, dispostos a executar os desígnios dos chefes locais, engalfinhados na luta pela expansão de seus territórios de mando e nas contendas entre famílias.

O principal mérito do livro reside no estudo sistemático da lógica e racionalidade do poder privado, buscando apreendê-lo como uma outra forma de exercício de poder, e não como mera negação da ordem pública. Dele emergem potentados a um só tempo fascinantes e perturbadores, como o contrabandista Mão de Luva, líder de uma quadrilha que aterrorizou por anos a Mantiqueira, ou o já mencionado Manuel Nunes Viana, que se valia de crenças mágicas africanas – como o ritual do corpo fechado – para controlar as populações da Barra do Rio das Velhas. Situados numa zona cinzenta, nos tênues limites entre a ordem e a desordem, os poderosos do sertão resistem à tipologia simplificadora proposta por Eric Hobsbawm em seu clássico Bandidos, cujo objeto são os indivíduos considerados criminosos pelo Estado. O caso dos potentados mineiros é muito mais complexo: se desafiavam as leis de Sua Majestade, perpetrando toda sorte de crimes e violências, ainda assim era os seus mais valiosos aliados, os únicos capazes de impor alguma ordem em meio às lonjuras da América. A este respeito, é bem reveladora a trajetória de Manuel Nunes Viana - que nada tinha de extraordinária ou excepcional, se comparada à de outros potentados. Tido pelos contemporâneos por um dos mais homens mais experientes nas matérias relativas ao sertão, investido de uma autoridade reconhecida pelos sertanejos, o chefe emboaba era, na opinião de um ouvidor do Rio das Velhas, o único indivíduo capaz de levar alguma ordem àquele "receptáculo para criminosos de toda a América". Endossando esta idéia, o marquês de Angeja tecia-lhe elogios em carta ao rei, observando que "é certo que o dito Manuel Nunes Viana não só é o homem mais capaz que tem aqueles distritos, tanto para fazer o cabal informe que se lhe manda, e executar as ordens de V. Majestade fazendo-as observar e respeitar como devem ser; mas é o único que atualmente dá cumprimento ao que se lhe mandam, e faz ter em sossego e respeito o distrito, que se lhe tem assinado como sua capitania mor, sossegando-a e limpando-a dos ladrões todas as vezes que aparecem alguns por aqueles distritos...".3 Existia mesmo, no início da década de 1710, um consenso generalizado entre os funcionários régios sobre o seu papel estratégico nos sertões distantes e, mesmo os inimigos, a exemplo do conde de Assumar, reconheciam que, não obstante seus excessos e tiranias, ele era uma figura respeitada e obedecida nos territórios distantes do controle da Coroa. Sensíveis à importância do conhecimento acumulado por estes potentados, verdadeiros depositários de um saber essencialmente sertanejo, que abrangia desde as condições ecológicas até a índole dos moradores, os sucessivos governadores-gerais sempre os tiveram em altíssima conta, encarregando-os de uma série de diligências relevantes nos confins da capitania.

O caráter ambíguo das relações entre os poderes público e privado é refutado veementemente pela autora, que vê nos potentados e poderosos do sertão o foco de um poder privado, a serviço de interesses particulares – e por essa razão, incompatível com as exigências das autoridades. Aliás, mesmo essas, como a própria autora admite, submeteram-se ao processo de privatização do poder, transformando-se também em pólos de poder concorrente, capazes de prejudicar – e mesmo subverter – a soberania portuguesa em terras mineiras.

Atenta às formas de expressão e consolidação da ordem privada, a autora opta por não esmiuçar o outro pólo do exercício político dos chefes sertanejos: a comunidade que a eles devotava respeito e admiração. Para além do nível mais imediato de capangas, caboclos e escravos, configurando os bandos armados, havia largos setores da população que os reconheciam como uma liderança política legítima e absoluta. Tudo indica que, nas paragens distantes em que a Coroa não havia instalado o seu aparato administrativo, a ordem privada desempenhava um papel decisivo no cotidiano miserável dessas populações, uma vez que proporcionava desde o exercício da justiça e a solução dos conflitos vicinais até a cura de doenças e o auxílio a doentes e inválidos.

Campo vasto, mas árduo, o tema do poder privado nos sertões mineiros esbarra em inúmeras dificuldades, sendo a principal delas o fato de que as fontes disponíveis reproduzem o olhar das autoridades e por essa razão tendem a mascarar a natureza complexa da ordem privada, reduzindo-a à mera violência e barbárie. Se os potentados não tiveram direito à palavra, o mesmo também aconteceu com os seguidores deles: sociedade de analfabetos, não legaram aos estudiosos relatos mais densos sobre as suas motivações políticas. É através do olhar enviesado dos seus detratores que o historiador tem de adentrar no imaginário político desses homens, buscando nas entrelinhas as pistas e indícios das idéias e práticas que floresceram no sertão.

Por fim, é preciso elogiar a bela edição da Crisálida - cuja única restrição é a falta de uma revisão cuidadosa -, com um destaque especial para a sugestiva capa, inspirada numa xilogravura de Arlindo Daibert. A promissora editora firma-se assim como mais um veículo de publicação que se abre às numerosas e competentes dissertações de mestrado e teses de doutorado que, a exemplo do trabalho de Célia Nonata da Silva, tem revigorado a historiografia mineira.

1 MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.
2 ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
3 Ambos os documentos foram citados por RUSSELL-WOOD. Manuel Nunes Viana: paragon or parasite of Empire ? The Americas, April 1988, v.37, p.488-489, n.4.

Revista Varia História

Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo


AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. 144p.

Petrônio Domingues
Doutor em História/USP. Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). petrinio@usp.br


Como o racismo à brasileira deve ser enfrentado?

Célia Maria Marinho de Azevedo é professora de História aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp). Seu campo de especialização é a história do negro e das "relações raciais". Depois de ter publicado o importante trabalho, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites, século XX, em 1987, foi a vez de Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), em 2003, e Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, um ano depois. É justamente esta última publicação o objeto da presente resenha. O livro é uma coleção de sete artigos que Célia de Azevedo escreveu entre 1997 e 2003.

No primeiro capítulo (Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direitos de raça'?), a autora sustenta a tese de que seria mais eficaz a adoção de medidas universalistas (de cunho social) para a abolição do racismo do que medidas diferencialistas (ou específicas), em que o Estado tem que reconhecer a existência de raças. No entendimento de Célia de Azevedo, o "combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classificação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de raça'" (p. 50).

Já no segundo capítulo (Cota racial e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos), a autora analisa basicamente duas questões: o debate em torno da validade ou não da política de cotas para minorias discriminadas nos Estados Unidos e como a experiência estadunidense pode servir de inspiração para os brasileiros engajados na luta anti-racista e até que ponto ela pode ser importada para nosso país.

O terceiro capítulo (Entre o universalismo e o diferencialismo: as políticas anti-racistas e seus paradoxos) trata do espinhoso dilema: afinal, as propostas mais adequadas para se combater o racismo são as de cunho universalista ou diferencialista. Para Célia de Azevedo, faz-se necessária a "criação de oportunidade para os segmentos da população historicamente discriminada – sem no entanto perder o sentido universal de humanidade" (p. 73).

No quarto capítulo (A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça), a autora esquadrinha, primeiramente, alguns postulados do historiador Dominick LaCapra acerca da Nova História Intelectual e, em um segundo momento, analisa como LaCapra e outros autores vêm criticando o uso da noção essencialista de raça na produção do conhecimento histórico.

O quinto capítulo (13 de Maio e anti-racismo) problematiza a substituição, nas últimas décadas, do 13 de Maio - data em que se comemora o aniversário da Lei de Abolição, assinada pela Princesa Isabel - pelo 20 de novembro, presumível data da morte do "herói" negro Zumbi dos Palmares. Célia de Azevedo defende a idéia de que a Abolição foi resultado da luta de um amplo movimento contestatório (protagonizado por escravos, libertos e seus aliados progressistas). Por isso, entende que não se podem distorcer os fatos: a liberdade foi uma conquista dos negros e não uma dádiva das elites brancas (ou da Princesa Isabel); logo, o 13 de Maio "dos escravos" tem que ser tão revalorizado quanto o 20 de novembro de Zumbi dos Palmares.

No sexto capítulo (Quem precisa de São Nabuco), Célia de Azevedo questiona um dos personagens mais "santificados" da História do Brasil, Joaquim Nabuco (1849-1910), daí o porquê do "São Nabuco" do título. A autora demonstra que seu personagem pensava como as pessoas ilustradas de seu tempo. Se do ponto de vista racial as teorias que apregoavam a superioridade biológica, intelectual e cultural do homem branco sobre o negro estavam em voga na Europa e no Brasil no final do século XIX, Nabuco não ficou imune e bebeu em tais postulados. Para além de abolicionista, Nabuco - como um bom proprietário, senhor de escravos e político de sua época - seria defensor de seus interesses de "raça e classe", isto é, para a Célia de Azevedo, Nabuco concebia a Abolição em dupla perspectiva: como uma medida que garantiria a manutenção da ordem (e da grande propriedade) e como um mecanismo que facilitaria a entrada massiva de imigrantes brancos europeus a fim de promover a purificação racial da população brasileira.

Por fim, no sétimo capítulo ("Para além das relações raciais': por uma história do racismo") a autora preconiza a necessidade de superar a noção de "raça", bem como a de "relações raciais", para eliminar "o racismo no dia-a-dia". Em lugar de "raça", a autora entende que deveria existir apenas a noção universalista de "humanidade".

A despeito de o livro abordar temas correlatos, o escopo central é escrutinar a proposta de ações afirmativas para negro, especialmente em sua versão mais conhecida (e polêmica), as cotas raciais. Célia de Azevedo deixa patente que tal proposta não é a melhor solução para atacar as desigualdades raciais no Brasil. Primeiro, porque a "política de preferência racial esteve longe de ser um sucesso" nos EUA; segundo, porque existiriam programas mais eficazes para se combater o "racismo institucional" e o estado de penúria de boa parte da população negra. Esses programas não teriam um recorte racial e, sim, social, como o da reforma agrária, o da recuperação da qualidade das escolas públicas de ensino fundamental e médio; o Projeto de Renda Básica Universal e o Programa Bolsa-Escola. Que se sabe, os defensores das cotas raciais não são contrários à reforma agrária ou à melhoria da escola pública. Porém, o mais paradoxal é que alguns dos programas preconizados por Célia de Azevedo (como renda básica e bolsa-escola) estão no bojo das chamadas políticas compensatórias, e tais políticas seguem o mesmo princípio das ações afirmativas (do qual as cotas raciais fazem parte): reparar as injustiças do passado (e do presente) para os grupos que são discriminados negativamente, por motivo de cor, gênero, classe social ou orientação sexual.

Um dos motivos pelos quais Célia de Azevedo se opõe à política de cotas raciais é que ela consiste numa política pública específica (ou diferencialista). Em sua opinião, não são as políticas específicas e sim as universalistas as mais apropriadas para garantir a promoção dos negros. No entanto, não é isso o que as pesquisas apontam. A implementação de políticas públicas universalistas, quais sejam, programas governamentais que atacariam as causas sociais da desigualdade não sinalizam para a erradicação do racismo no país. Conforme apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2001, todas as políticas públicas universalistas empreendidas pelo governo, desde 1929, não conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no progresso educacional do brasileiro. Os brancos estudam em média 6,6 anos e os negros 4,4 anos. Esta distância, de 2,2 anos, é praticamente a mesma do início do século XX. A conclusão é reveladora: apesar de ter acontecido uma elevação do nível de escolarização do brasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferença de anos de estudos dos negros frente aos brancos permanece inalterada.

Isso significa que programas sociais ou políticas públicas universalistas, por si só, não evitam as desvantagens que os negros levam em relação aos brancos no acesso às oportunidades educacionais. Para se corrigir esta deficiência do sistema racial, são necessárias também políticas públicas específicas em benefício da população negra, ou seja, programas sociais que adotem um recorte racial na sua aplicação. Os problemas específicos dos grupos que historicamente sofreram (e sofrem) discriminação (como negros, mulheres, gays, entre outros) se resolvem, combinando medidas gerais e específicas. Portanto, a discriminação contra o negro deve ser enfrentada, igualmente, com ações anti-racistas.

Um outro motivo pelo qual Célia de Azevedo rejeita a política de cotas raciais é que ela exige que o Estado classifique racialmente a população. E, segundo a autora, enfrentar o racismo significa lutar pela "desracialização dos espíritos e das práticas sociais". Se a "raça" foi uma invenção nociva aos destinos da humanidade, afirma Célia de Azevedo, "por que reivindicar a racialização pelo Estado?". Ora, é sabido que "raça" é uma construção social, com pouca ou nenhuma base biológica, mas não adianta o Estado negligenciá-la, porque as pessoas classificam e tratam o "outro" de acordo com as idéias socialmente aceitas. Ademais, o Estado brasileiro nunca teve a tradição de desenvolver políticas de identidade racial junto à população (haja vista a decisão do governo federal de retirar o quesito "cor" ou "raça" do censo oficial em 1970), mas nem por isso o racismo deu sinais de subtração ou perecimento.

Como é de praxe nas coletâneas, o livro peca pela redundância das idéias e, em casos extremos, pela repetição literal de trechos, como o que acontece no primeiro parágrafo da página 72 e no terceiro da página 81. De toda sorte, o livro é uma equilibrada contribuição teórica para o importante debate que está pautando a agenda nacional no momento: como o racismo à brasileira deve ser enfrentado? Ninguém tem mais dúvidas que o Brasil é um país marcado pela desigualdade de oportunidades entre negros e brancos, seja no mercado de trabalho, na esfera educacional, na vida pública, etc.; entretanto, não há consenso acerca das medidas a serem tomadas para se atacar um mal que penaliza quase metade da população brasileira e a impede do pleno exercício da cidadania. Só existe um consenso: não dá mais para ficar de braço cruzado e aceitar a falácia de que o Brasil é o país do paraíso racial.

Revista Varia História

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil


SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007, 504 p.

Sílvia Cezar Miskulin
Doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutoranda em História/ Universidade de São Paulo/ bolsa FAPESP . Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária São Paulo – SP – CEP 05508-900. silmiskulin@uol.com.br

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 analisa com rigor o surgimento da literatura infantil no Brasil e na Argentina, na primeira metade do século XX. O trabalho que agora temos o prazer de ler é fruto da Tese de Doutorado de Gabriela Pellegrino Soares, defendida no Departamento de História da USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ligia Coelho Prado.

A autora debruça-se sobre a formação da literatura infantil, destacando as semelhanças e diferenças entre os escritores argentinos e brasileiros. Diferenciando-se da literatura produzida para a escola, a literatura infantil constituiu-se em um campo próprio, no qual se buscava a ampliação do público leitor e a democratização do conhecimento por meio das produções e traduções de obras voltadas para o público infantil. O objetivo da pesquisa é compreender os esforços realizados no Brasil e na Argentina para promover a prática de leituras não escolares entre as crianças. As diferenças entre os dois países foram mostradas pelo panorama que Gabriela Pellegrino Soares traçou da rede de ensino primário e de bibliotecas escolares e populares presentes na Argentina desde fins do século XIX, enquanto no Brasil as políticas públicas voltadas à difusão da leitura foram bem mais restritas e efetivaram-se somente no século XX.

Além desta diferença de contexto, Gabriela soube muito bem enfocar o repertório nacional que compunha a literatura infantil em cada um dos países. Na Argentina, muitos escritores se dedicaram a temas nacionalistas e trabalharam em suas obras elementos da história da nação, do folclore e da natureza. Dentro deste grupo a autora apresenta as obras infantis de Ada María Elflein, Alvaro Yunke, Hugo Wast, Rafael Jijena Sánchez, Horacio Quiroga, Guillermo Enrique Hudson e Ana Maria Berry.

Entretanto, o trabalho destaca um outro horizonte na literatura infantil argentina, conformado pela revista Biliken e seu criador Constancio C. Vigil. O objetivo da publicação era a formação da bagagem cultural da criança, que se tornaria no futuro o homem moderno, self-made man. Na revista, ecoavam as idéias da escola nova, que buscava uma progressiva autonomia da criança. Além disso, Biliken era irreverente, jogava com o humor, a imaginação e a estética para valorizar o esforço e a inteligência como forma de ascensão social.

A morte de Constancio C. Vigil em 1954 encerrou uma época na literatura infantil argentina e marcou o recorte cronológico final da pesquisa. Já o recorte inicial do trabalho, 1915, refere-se ao ano de surgimento da coleção "Biblioteca Infantil", da editora Melhoramentos, a pioneira no Brasil no campo da literatura infantil, que será estudada na segunda parte do livro.

Outro destaque dado por Gabriela Pellegrino Soares à literatura infantil argentina passou pela trajetória de Javier Villafañe, criador do teatro de títeres. Villafañe trabalhava com as dimensões lúdicas, imaginativas e poéticas através da narrativa oral, dialogando também com os princípios da renovação educacional da escola nova. Muitas de suas histórias também acabaram editadas.

No Brasil, o livro enfocou detalhadamente a produção dos escritores Monteiro Lobato e Tales de Andrade. As obras de Tales de Andrade tinham balizas ideológicas, cívicas e educacionais muito bem definidas. A maioria de suas histórias tinha como protagonista uma criança do campo que conseguia, graças aos estudos, tornar-se um "arauto das luzes" em seu meio. Neste caso, o saber letrado significava o progresso para a população rural.

Monteiro Lobato foi um marco no surgimento da literatura infantil brasileira. Ele primou pela elaboração artística nos livros infantis, pois seu objetivo era conquistar novos leitores. Gabriela relaciona as concepções educacionais de Monteiro Lobato com as idéias de Anísio Teixeira, já que Lobato via na escola uma parceira da literatura no projeto de modernização da sociedade brasileira. Anísio Teixeira, por sua vez, foi o introdutor da filosofia de John Dewey no Brasil, que propunha a integração da aprendizagem escolar com as experiências sociais.

Lobato e Teixeira acreditavam que a educação infantil deveria se dar em um "meio purificado", em que se eliminariam os aspectos nocivos do ambiente social, sem nenhum tipo de violência física ou psicológica. O alvo era incentivar a busca pela melhoria de vida e a integração social das crianças. Em sua minuciosa pesquisa, Gabriela Pellegrino Soares mostrou como as obras de Monteiro Lobato criaram situações de aprendizagem em que se exemplificaram as práticas educacionais de Anísio Teixeira.

A autora também ressalta que os elementos críticos, ateus e irreverentes da obra de Monteiro Lobato encontraram resistências entre certos mediadores culturais, por exemplo, os censores católicos, as autoridades governamentais e até entre certos expoentes da escola nova, como Lourenço Filho e Cecília Meireles.

A segunda parte de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil enfoca sobretudo as mediações e os mediadores culturais, ou seja, indivíduos e instituições que se dedicaram a criar, divulgar ou circular a literatura infantil. Duas mediadoras foram selecionadas pela autora: Gabriela Mistral, escritora chilena, mas com uma importante atuação no campo educacional argentino e mexicano e, no caso do Brasil, a escritora Cecília Meireles. Gabriela Mistral foi professora no ensino público do Chile por duas décadas e atuou nas reformas educacionais de José Vasconcelos no México. Difundiram-se na Argentina suas perspectivas de educação infantil, muito afinadas com as idéias da escola nova. Além disso, em suas obras criou poesias voltadas às crianças, trabalhando com elementos do folclore, do campo e da cultura popular.

Cecília Meireles participou do movimento escolanovista, além de assumir a direção do Instituto de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro. Fundou a Biblioteca Popular Infantil em 1934, que se tornou o Centro de Cultura Infantil no Rio de Janeiro, com a promoção de inúmeras atividades culturais. Entretanto, em 1937, foi invadido e fechado por ordem do interventor sob o pretexto de possuir em seu acervo um livro de "conotação comunista": As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.

Gabriela Pellegrino Soares também nos presenteia com a apresentação das produções infantis de Cecília Meireles e aproxima sua obra daquela elaborada por Mistral: as duas escritoras valorizavam a sensibilidade e a vivacidade infantis, ao acreditarem que o amor, a alegria e a harmonia estariam no cerne das atitudes voltadas às crianças. O livro não deixa de apontar as diferenças entre elas, já que Cecília Meireles combatia o ensino religioso nas escolas brasileiras, enquanto que Gabriela Mistral tinha uma formação cristã.

Ao destacar instituições culturais que foram mediadoras das leituras infantis, Gabriela Pellegrino Soares elegeu duas bibliotecas modelares: a Biblioteca Nacional de Maestros, de Buenos Aires, cuja seção infantil foi fundada em 1916 por Leopoldo Lugones, e a Biblioteca Infantil de São Paulo, criada em 1935, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, e dirigida por Lenyra Fracarolli.

Ao analisar o acervo, os funcionários e o ambiente das bibliotecas, além da freqüência das crianças às mesmas, o objetivo do trabalho foi constatar como as bibliotecas participaram da criação de repertórios culturais e da construção de atividades sociais junto ao público infantil, ao visar sua formação moral e intelectual e a democratização do acesso aos livros. Na visão da autora, as duas Bibliotecas foram formas de realização de ações de modernização cultural por parte do Estado, perante a sociedade da época, já que divulgaram um determinado repertório e também contribuíram para a internalização de atitudes e de princípios morais e estéticos nas crianças.

Por último, analisa as concepções editorais da Melhoramentos, cuja coleção "Biblioteca Infantil" foi dirigida por Lourenço Filho. Por meio da análise de seus pareceres, Gabriela Pellegrino Soares pode ricamente nos mostrar o papel de destaque que a literatura infantil ocupou nesta editora, já que Lourenço Filho acreditava que as obras infantis deveriam complementar o papel da escola. A autora destacou como o diretor da coleção tinha restrições aos contos de fadas e também as depurações que fazia com os contos da tradição oral popular. Como as obras infantis sempre passavam pela leitura de um educador antes de chegar nas mãos das crianças, o objetivo de Lourenço Filho era conquistar a confiança dos mediadores culturais, para finalmente chegar às crianças de forma criativa e recreativa.

Ao realizar uma extensa e exaustiva pesquisa em diferentes tipos de fontes raramente examinadas,1 o livro de Gabriela Pellegrino Soares proporciona aos leitores do início do século XXI um olhar esclarecedor das concepções intelectuais, educacionais e literárias que guiaram os diversos agentes e instituições que buscaram conformar um campo da literatura infantil no Brasil e na Argentina na primeira metade do século XX. Trata-se de uma contribuição fundamental para pensar as diferenças e semelhanças que certas vezes distanciaram e muitas outras aproximaram a história dos dois países vizinhos na América Latina.


1 Walter Benjamin dedicou-se em alguns trabalhos a analisar livros infantis. Veja: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas

Revista Varia História

Polémicas intelectuales en América Latina: del "meridiano intelectual" al caso Padilla (1927-1971)


CROCE, Marcela (comp.). Polémicas intelectuales en América Latina: del "meridiano intelectual" al caso Padilla (1927-1971). Buenos Aires: Simurg, 2006, 288 p.

Adriane A. Vidal Costa
Mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Av.Antônio Carlos, 6627 – Belo Horizonte – MG – CEP 31.270-901 . adrianevidal@oi.com.br

A coletânea organizada por Marcela Croce inclui um conjunto de textos que contemplam quatro importantes debates político-intelectuais do século XX na América Latina, marcados por questões polêmicas e por uma intensa "belicosidade discursiva". O primeiro desses debates, envolvendo espanhóis e hispano-americanos, ocorre no contexto vanguardista dos anos 20, com a publicação do artigo do espanhol Guillermo de Torre, M adrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica, na revista madrilena La Gazeta Literária, em abril de 1927, no qual o autor, como o próprio título indica, propõe Madri como o meridiano intelectual da América Hispânica. O segundo debate também ocorre nos anos 20 e gira em torno das discussões entre os peruanos José Carlos Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre sobre a teoria e a prática do marxismo. O terceiro debate constitui a polêmica discussão entre o argentino Julio Cortázar e o peruano José María Arguedas sobre o indigenismo na literatura, que ocorre entre 1968 e 1971. E, por fim, o "caso Padilla" (1971), que suscitou um polêmico debate em torno do regime de Fidel Castro e sua relação com os intelectuais.

No conjunto, a obra reúne correspondências, poesias, manifestos e artigos que alimentam o debate intelectual com dúvidas profícuas e polêmicas fecundas. Além dessa documentação, o livro traz textos de vários autores que analisam, separadamente, os principais matizes dos quatro debates supracitados.

A introdução é de Marcela Croce, intitulada Polémicas, entredichos y disidencias en América Latina, na qual a autora afirma que, de um modo geral, o que dá o tom polêmico a esses debates é a vontade de criar uma verdade, ou seja, cada intelectual exprime suas razões como definitivas, mesmo quando simula certas concessões ao oponente para terminar desclassificando-o por sua ignorância, seu descuido, sua incapacidade ou sua má fé. O embate acontece quando as "verdades" são questionadas, e, na maioria das vezes, transforma-se no enfrentamento do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, do claro e do confuso. Quando esse ocorre, no afã de defender posições, as acusações ao oponente vêm à tona: incongruente, iconoclasta, ortodoxo, contraditório. São polêmicas, mal-entendidos, questionamentos que marcam o território da "belicosidade discursiva" no campo intelectual latino-americano. É a partir desses argumentos que Marcela Croce organiza a coletânea, ou melhor, uma "antologia de discursos polêmicos na América Latina".

A primeira parte do livro é dedicada à polêmica do "meridiano intelectual" e traz, na íntegra, o texto de Guillermo de Torre, Madrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica. Além disso, apresenta dois pequenos artigos que discutem a questão. No primeiro, Del lado de allá, Pablo Valle analisa um dos pontos mais polêmicos do texto de Guillermo de Torre, qual seja: Madri como o grande meridiano literário para os hispano-americanos, em substituição, principalmente, a Paris. E no segundo, Del lado de acá, Gabriela G. Cedro analisa a reação e o enfrentamento, quase que imediatos, de vários intelectuais hispano-americanos, que proclamam uma relativa autonomia intelectual em relação à Espanha. Além disso, a polêmica sobre o "meridiano intelectual" propicia o debate sobre questões estéticas, artísticas e culturais. Grande parte desse debate está nas páginas da revista ultraista e portenha Martín Fierro (n°.42, junho-julho de 1927), que contém as primeiras declarações belicosas contrárias à proposta do "meridiano". O tom das declarações dos martinfierristas varia entre a ironia, a zombaria, a seriedade, o desprezo, mas sempre mantendo a coerência dos argumentos. Segundo Cedro, as respostas dos martinfierristas são vistas na Espanha como despropositadas e injuriosas.

O livro traz o número 42 da revista Martín Fierro, que contém os textos/ respostas de Ortelli y Gasset (Jorge Luis Borges e Carlos Mastronardi), A un meridiano encontrao en una fiambrera; Pablo Rojas, Imperialismo baldío; Raúl Scalabrini Ortiz, La implantación de un meridiano anotaciones de sextante; Jorge Luis Borges, Sobre el meridiano de una gaceta; Lisardo Zía, Para Martín Fierro; Ildefonso Pereda Valdés, Madrid, meridiano etc.; Ricardo Molinari, Una carta.

Na seqüência estão organizados os textos com as respostas de vários intelectuais espanhóis às declarações do martinfierristas, que são acusados, entre outras coisas, de arcaicos, retrógrados e desdenhosos. Os textos são publicados na revista La Gaceta Literária, Madri, 1°. de setembro de 1927, n°.17, com o sugestivo título Un debate apasionado; abaixo do título a inscrição: "campeonato para un meridiano intelectual. La selección argentina Martín Fierro (Buenos Aires) reta a la española Gaceta Literaria (Madrid). Gaceta Literaria no acepta por golpes sucios de Martín Fierro que lo descalifican. Opiniones y arbitrajes".1 Os autores que assinam os textos são: Giménez Caballero, Guillermo de Torre, Ramón Gómez de la Serna, Benjamin Jarnés, Gerardo Diego, Antonio Espinosa, entre outros.

Como a intenção do volume é mostrar as polêmicas e os enfrentamentos nesse debate, foram compiladas também as réplicas dos martinfierristas aos intelectuais espanhóis. A réplica está no número 44/45 de Martín Fierro (ago/nov de 1927), nos seguintes artigos: Buenos Aires, metrópoli, de Santiago Ganduglia; Croquis, de Vizconde de Lascano Tegui; El pez por su boca muere, de M.F. (hijo); Carta a los españoles de la 'Gaceta Literaria', de Pablo Rojas Paz; Extrangulemos al meridiano, de Nicolas Olivari. Todo esse debate repercutiu em outras revistas hispano-americanas como Avance, de Havana, e Variedades, de Lima, mas não foi tão intenso como na revista Martín Fierro.

A segunda parte do livro traz o polêmico debate entre José Carlos Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre em torno da teoria e da prática do marxismo. O artigo é de Susana Santos, intitulado Polémicas de la 'pátria nueva' (1919-1930): ¿peruanizar el marxismo o marxistizar el Peru?, que mostra os principais pontos da polêmica entre os dois peruanos. A autora faz uma boa síntese e procura compreender a polêmica dentro da história peruana, mostrando o contexto político da Pátria Nueva, as lutas camponesas e a "Geração de 20". Em contrapartida, os documentos anexados são escassos, ou seja, apenas um texto de Mariátegui, Aniversario y balance (Amauta, n°.17, 1928); uma breve síntese do programa da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA); e uma carta de Haya de la Torre para Mariátegui, escrita no México em 1928, que não são suficientes para expressar a intensidade da polêmica.

A terceira parte do livro é dedicada à polêmica Arguedas-Cortázar, que girou em torno do indigenismo na literatura.2 O artigo Entre la tierra originaria y la ciudad de las luces: un problema de ubicación: arriba o debajo de la torre del marfil, de Mariana Bendahan, esclarece a origem da polêmica e os canais nos quais ocorrem o enfrentamento e a "belicosidade discursiva". Enfim, a autora faz um breve resumo do panorama textual e contextual em que se inscreve a polêmica, com o intuito de mostrar que o debate em torno do indigenismo canaliza outros temas centrais: a relação entre cultura e política, a natureza da função do intelectual na América Latina após a Revolução Cubana, a tensão entre localismo e cosmopolitismo, as posições polares de ambos a respeito do "boom" da literatura latino-americana(Córtazar no centro e Arguedas na periferia).3

A origem da polêmica é uma carta que Cortázar escreve, de Paris, a Roberto Fernández Retamar, em maio de 1967, publicada na revista cubana Casa de las Américas, na qual argumenta que a distância territorial promove benefícios em prol de uma melhor contemplação e entendimento da realidade intelectual latino-americana, e que, por isso, sua literatura possui uma raiz nacional e regional potenciada por uma experiência mais aberta e mais complexa. Arguedas, que não concorda com os argumentos de Cortázar, publica um artigo na revista peruana Amaru (abril-junho de 1968), expondo sua convicção em torno da tarefa do escritor: escrever novelas não é uma profissão, o escritor escreve novelas por amor, necessidade, prazer e não por ofício, ao mesmo tempo em que coloca em evidência a lógica mercantilista do boom na literatura latino-americana.

O livro recolhe, além das cartas, outros textos importantes da polêmica, como a entrevista de Cortázar, concedida à jornalista Rita Guibert para a revista norte-americana Life, em sua versão para o espanhol, em 1969, intitulada Julio Cortázar: fragmentos de las declaraciones recogidas en la nota Creador Solitário; o artigo que Arguedas publica na revista Amaru, nesse mesmo ano, com o título de Inevitables comentários a unas idéias de Julio Cortázar; e os fragmentos do Tercer diário, do livro de Arguedas, El zorro de arriba el zorro de abajo, publicado postumamente em 1971. Em todos os textos selecionados pela autora, fica claro o ponto central que gera e alimenta a "belicosidade discursiva": o nacional e o cosmopolita como determinantes da prática literária do escritor latino-americano na década de 60.

A quarta parte do livro recupera o debate suscitado pelo "caso Padilla", 4 em 1971, que, segundo Marcela Croce, revela, ao mesmo tempo, um corporativismo intelectual e uma ruptura definitiva de parte da intelligentzia latino-americana com o governo cubano e suas instituições culturais.

A organização dessa parte do livro é a mesma das anteriores, ou seja, artigos breves, que situam o leitor no debate e, em seguida, os textos dos intelectuais envolvidos na polêmica. O artigo de Martín Chadad, Testimonio de partes,o quién es quién, mostra como Padilla deixa de ser um sujeito para tornar-se um caso, um caso que impunha, para muitos, uma nova forma de avaliar e compreender a Revolução Cubana. No outro artigo, El difícil ofício de calcular, o donde me pongo, Verônica Lombardo mostra a dimensão que adquire o "caso Padilla", em 1971, desde a prisão do poeta até a sua autocrítica. Segundo a autora, o campo intelectual polariza-se e pauperiza-se, anulando qualquer possibilidade de dialética para circunscrever- se na oposição entre o melhor modelo intelectual a ser seguido: ou se é um intelectual crítico ou um intelectual revolucionário.

O "caso Padilla", segundo Lombardo, permite polemizar não só os caminhos da Revolução Cubana e as formas estéticas da arte, mas também coloca em jogo um debate muito profundo sobre os valores, os alcances e os limites do intelectual, no que diz respeito à sua responsabilidade estrutural na esfera de transformações políticas e sociais. Dessa polêmica participam importantes intelectuais latino-americanos: a lúcida crítica de Ángel Rama, publicada em Cuadernos de Marcha; a posição inicialmente oscilante de Julio Cortázar até sua firme adesão à revolução; a postura esquiva e conciliatória de García Márquez, que permanece fiel a Fidel Castro; a posição controvertida de Mario Vargas Llosa, que culmina com sua renúncia do Comitê da Casa de las Américas e sua ruptura drástica com Cuba.

A resposta dos intelectuais latino-americanos radicados na Europa, e de muitos intelectuais europeus, ao "caso Padilla", é imediata. A primeira (re) ação é uma carta aberta, Declaración de los 54, endereçada ao "Comandante Fidel Castro", na qual expressam a preocupação com a detenção de Heberto Padilla. Assinam a missiva Carlos Barral, Simone de Beauvoir, Ítalo Calvino, Fernando Claudín, Julio Cortázar, Marguerite Duras, Hans-Magnus Enzensberger, Carlos Franqui, Carlos Fuentes, Maurice Nadeau, Octavio Paz, Jean-Paul Sartre, Susan Sontag, Mario Vargas Llosa, entre outros. Uma outra carta, Declaración de los 62, é endereçada a Fidel Castro em 1971, após a autocrítica de Padilla, que, segundo os intelectuais, havia sido forçada. Essa carta não conta com a adesão de Julio Cortázar, que declara posição favorável a Cuba.

Além de compilar as duas cartas citadas acima, o livro reúne também outros documentos sobre o debate em torno do "caso Padilla": os fragmentos do poema de Padilla, Final del Juego (1968), e o texto com a sua autocrítica (1971); os fragmentos do discurso de Fidel Castro no Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura (1971); a carta de Mario Vargas Llosa a Haydée Santamaría (1971) e a resposta de Haydée Santamaría; as declarações de García Márquez à imprensa colombiana (1971); a carta de Julio Cortázar a Haydée Santamaría; a opinião de Rodolfo Walsh em Cuadernos de Marcha (n°.49, Montevidéu, 1971); a carta aberta de David Viñas a Roberto Fernández Retamar; e o artigo de Ángel Rama, Una nueva política cultural en Cuba, publicado em Cuadernos de Marcha, n°49.

Enfim, pode-se concluir que o panorama traçado pelos autores da coletânea esboça a história dos intelectuais em quatro momentos diferentes da história latino-americana, amarrados por uma questão recorrente no discurso intelectual: a polêmica. Polemizar significa, entre outras coisas, tentar compreender e traduzir uma época e, ao mesmo tempo, os caminhos do futuro.

1 CROCE, Marcela (comp.) Polémicas intelectuales en América Latina: del "meridiano intelectual" al caso Padilla (1927-1971). Buenos Aires: Simurg, 2006, p.86. [ Links ]
2 Em termos gerais, o indigenismo, como prática discursiva, tem como referencial a representação do mundo indígena, ou seja, da realidade social, política, econômica e cultural dos povos indígenas da América Latina. Tem seu início em fins do século XIX, com ampla vigência até meados da década de 1960. Para uma concepção crítica do indigenismo na literatura ver CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: UFMG, 2000. [ Links ]
3 Na década de 1960, assistimos ao surgimento do "boom" da literatura latino-americana, em especial dos romances. Nesse período, são produzidos vários livros de grande valor literário, que ganham projeção internacional. O "boom" traduz-se em uma produção bastante original nas letras latino-americanas, tem seu limite temporal circunscrito em torno de figuras como Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e José Donoso. Em apenas seis anos aparecem obras como Rayuela, Cien años de soledad, Sobre héroes y tumbas, La ciudad y los perros, entre outras. O que motiva o "boom", a nível comercial, além da qualidade literária das obras, é o impulso das editoras (sobretudo européias) e a irrupção da Revolução Cubana, que motiva inúmeros leitores, pelo mundo afora, a conhecerem a literatura, a cultura e a história latino-americana. Ver DONOSO, José. História personal del "boom". Barcelona: Anagrama, 1972. [ Links ]
4 Heberto Padilla foi perseguido por causa de suas opiniões sobre a Revolução Cubana. Em 1971, Padilla foi preso e fez, ou, como muitos afirmaram, foi coagido a fazer, uma autocrítica, negando tudo que havia dito anteriormente. Isso desencadeou uma onda de protestos da parte de antigos aliados de Cuba, de Jean-Paul Sartre a Mario Vargas Llosa.

Revista Varia História

Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico


Evergton Sales Souza
Professor Adjunto do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFBA, Rua Prof. Aristides Novis, 197. Federação. CEP: 40210-909. Salvador- Bahia, evergtons@yahoo.com.br


SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/Bauru: Companhia das Letras/Edusc, 2009, 483p

Stuart Schwartz é, sem sombra de dúvida, um dos mais talentosos historiadores dedicados ao estudo da América Portuguesa na época moderna. Nos últimos anos, como sabemos, tem ampliado para o mundo espanhol o espaço de suas investigações. Neste importante livro, fruto de mais de dez anos de pesquisa, examina o problema da tolerância religiosa em todo o espaço ibero-americano. Seu objetivo é demonstrar a existência de um substrato de tolerância religiosa que não foi sufocado pelas condições hostis do meio católico ibero-americano. A tarefa toma uma forma algo surpreendente, ou contracorrente como diz o próprio autor, ao optar por investigar os indícios desses pensamentos e atitudes tolerantes não em filósofos e teólogos, mas, sobretudo, em homens comuns. Neste sentido, o estudo de Schwartz alinha-se àqueles que procuram demonstrar o papel determinante que homens e mulheres anônimos têm na história. Mesmo quando se trata de uma questão plena de implicações teológicas, que poderíamos julgar terreno de competência exclusiva de teólogos, nota-se que as pessoas simples não deixam de ter sua própria maneira de analisar as coisas. Esta massa de indivíduos não se constitui, portanto, em mera consumidora e reprodutora de ideias.

O livro encontra-se dividido em três partes – Dúvidas ibéricas, Liberdades americanas e Rumo ao tolerantismo – que seguem critérios geográficos e cronológicos. Na primeira parte, o autor se limita ao espaço da península Ibérica dos séculos XVI e XVII; na segunda, trata da América hispânica e lusitana do mesmo período; na última parte, trata do conjunto ibero-atlântico no século XVIII, enfatizando a época do reformismo ilustrado.

Na parte dedicada à península Ibérica, o autor explora as manifestações de tolerância inter-religiosa e inter-étnica. É sem dúvida um dos grandes aportes deste livro para um melhor conhecimento da realidade ibérica. Em países de inquisição, marcados pela intolerância religiosa, a pesquisa de Stuart Schwartz revela um aparente contra-senso: são numerosos os indivíduos que manifestam algum tipo de tolerância em relação aos que pertencem a credos religiosos diferentes. Evidentemente, como o próprio autor chama a atenção, isto não altera o quadro de intolerância institucional no mundo ibérico, mas modifica alguma coisa em nossa percepção acerca das sociedades espanhola e lusitana.

A busca das manifestações de tolerância segue na América o roteiro das populações locais e transplantadas. Daí o interesse do autor pelos índios, africanos e mestiços que compõem estas sociedades e que provocam nela a emergência de novos discursos tolerantes que, não raro, se mesclam aos pré-existentes. Nesta segunda parte do seu estudo, Schwartz faz questão de assumir de modo peremptório sua escolha pelo estudo das "ideias heterodoxas, da dissidência popular e das dúvidas" contestatórias das "ideias universalistas e potencialmente hegemônicas" (p.193). Sobre esta escolha farei adiante algumas observações.

A terceira e última parte é consagrada à engrenagem de um pensamento de tolerância – "tolerantista" - no mundo atlântico ibérico, espécie de ponto de chegada da tese sustentada por Schwartz. O autor procura demonstrar que a tolerância que se vai formando ao longo do século XVIII tem duas fontes principais. Uma mais vinculada aos meios intelectuais europeus que vinha se desenvolvendo desde os tempos de Spinoza e desemboca nos filósofos iluministas do século XVIII. A outra derivava de uma tradição popular de tolerância arraigada nas sociedades ibéricas e ibero-americanas, cuja existência procurou demonstrar nas duas primeiras partes da obra. Estas duas fontes se entreteceram para formar um discurso de tolerância religiosa que colocava em xeque as instituições tradicionais da vida social e política.

A edição é bem cuidada e as poucas gralhas não comprometem a boa compreensão do texto. A tradução para a língua portuguesa está, no geral, bem feita. Nota-se, contudo a presença de alguns problemas. A utilização dos termos "pelagismo" (p.66) e "semipelagista" (p.70) para se referir a pelagianismo e semipelagiano são exemplos disto.

A grande força e novidade do livro residem justamente em sua opção por encontrar nas pessoas comuns os traços de uma resistência tolerantista. Entretanto, esta belíssima pesquisa em nada perderia de sua riqueza caso o autor tivesse se permitido analisar com mais detalhe os traços do tolerantismo no discurso teológico erudito do mundo ibérico. Penso que tal investigação, acompanhada de um exame mais acurado acerca das decisões romanas sobre os temas relativos a estas questões, poderia fornecer ricos elementos para a compreensão acerca da circularidade das ideias nos espaços estudados. Tentarei oferecer um exemplo que deixe claro o meu ponto de vista a este respeito.

Entre os numerosos casos relatados no intuito de mostrar que era recorrente no mundo atlântico ibérico a ideia de que cada um podia se salvar em sua lei, o autor relata a história, ocorrida no Maranhão, em 1696, de um jovem noviço carmelita que sustentava não estarem os índios condenados por Deus em sua gentilidade. Nenhum argumento de doutos teólogos ou de seu mentor carmelita fora suficiente para demovê-lo de sua firme convicção (p.287). Seria muito bom se pudéssemos saber quais as bases da crença do jovem carmelita, mas nem sempre as informações contidas nos Cadernos do Promotor – documentação consultada por Schwartz neste caso – apresentam maiores detalhes. Entretanto, ao estender o campo de observação, como sugiro, é possível colocar o problema em nova chave. Neste caso, seria imperativo perguntar o que motivara o estranhamento diante da opinião do jovem carmelita? Esta questão faz sentido por sabermos que algumas expressões próximas a esse modo de pensar, além de relativamente comuns, contavam com a aprovação da própria Igreja. O jesuíta Simão de Vasconcelos, mencionado no depoimento de um penitenciado da Inquisição de Cartagena, certo Sebastião Damil e Sotomaior, como inspirador de sua maneira de pensar (caso relatado por Schwartz às p.309-312), é um autor importante para uma discussão acerca do assunto. Em suas Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil (1663 e reimpressas em 1668, acompanhando a sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil), Simão de Vasconcelos, que também foi vice-reitor do colégio da Bahia, reitor do Colégio do Rio de Janeiro e provincial dos jesuítas entre 1655-58, sustentou, em relação aos índios, que "todos aqueles que nesta sua gentilidade vivessem, segundo a justa lei da razão, e ditame do bom e honesto, poderiam alcançar de Deus graça e salvar-se".1 Isto parece mostrar que um jesuíta profundamente implicado no processo de missionação poderia compartilhar de uma visão mais otimista e tolerante em relação à possibilidade de salvação, sem que isto fosse um empecilho para que continuasse o seu fervoroso trabalho missionário entre os índios – ponto de vista que se distancia daquele apresentado pelo autor ao analisar a posição do padre Antônio Vieira (p.174). O argumento teológico do jesuíta funda-se principalmente nas Disputationes scholasticæ et morales de virtute fidei divina, de Juan de Lugo, e no Tractatus de fide, de Francisco Suarez. Sua posição guarda estreita relação com o princípio da ignorância invencível – referido no primeiro capítulo, p.68-70, do livro de Schwartz. Do princípio da ignorância invencível, Vasconcelos resvala para a defesa do que, mais tarde, seria conhecido como "pecado filosófico", ao afirmar que os homicídios, adultérios, furtos e semelhantes ações cometidas por aqueles que ignoram a existência de Deus não são pecados mortais, nem seus autores são merecedores do inferno, pois como não conhecem a Deus não cometem injúria contra ele. Poderíamos pensar que a circulação de tais ideias estimulou alguns, religiosos e laicos, a adotarem tal percepção tolerantista – à época vista por seus adversários como um excesso laxista.

Já é hora de voltarmos ao jovem noviço carmelita do Maranhão. Algo deve ter ocorrido no campo teológico para que, pouco mais de trinta anos após a publicação da referida obra de Simão de Vasconcelos, sua ideia acerca da não condenação dos índios tenha parecido tão escandalosa aos seus superiores. E de fato ocorreu. Pelo Decreto do Santo Ofício de 24 de agosto de 1690, o papa Alexandre VIII, condenou a doutrina do pecado filosófico. Vez que a Santa Sé pronunciou-se sobre o assunto, é natural que toda opinião contrária seja entendida como heterodoxa.

Ao concentrar seus esforços no exame das manifestações de tolerância religiosa nos homens comuns, Schwartz optou por tratar os problemas teológicos norteadores das posições tolerantes e de suas condenações num único capítulo – o primeiro – no qual, após explicar o que são as tais proposiciones que constituem o conjunto fundamental de fontes para o seu estudo, empreende um esforço de contextualização acerca das disputas no campo das ideias teológicas e morais na Igreja católica moderna. Não obstante a qualidade desta contextualização, insistimos que uma análise comparativa mais detida entre algumas dessas proposiciones e as posições teológicas debatidas por teólogos católicos poderiam mostrar que certas opiniões tolerantes se encontravam no seio da própria Igreja e, mais do que isso, talvez tenham estimulado muito as construções soteriológicas das pessoas comuns. Neste sentido, fica exposta minha divergência em relação ao postulado de que "para alcançar os substratos da tolerância é preciso se aprofundar sob as histórias políticas oficiais e dos dogmas religiosos, que têm dominado o campo da historiografia, e examinar primariamente não o discurso letrado (geralmente controlado), nem a política de reis e governos, e sim os atos e palavras das pessoas que tentavam pensar por si mesmas" (p.365). Sem definir uma ordem de prioridades, talvez o melhor seja sempre estabelecer comparações entre os dois universos que poderíamos chamar, à falta de uma melhor conceituação, de erudito e popular.

Contudo, esta pequena observação feita por um historiador que confessa seu gosto pela história das ideias religiosas, em nada altera a percepção que tenho de estar diante de um grande livro de história, construído com o talento e o rigor metodológico que todos reconhecem em seu autor. Trata-se de leitura importante para todo aquele que quiser conhecer mais sobre a religião e a vida no mundo atlântico ibérico moderno.

1 Cf. VASCONCELLOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e do que obraram seus filhos nesta parte do novo mundo..., Lisboa: A. J. Fernandes Lopes, 1865, v.I, p.CXVI. Sobre Simão de Vasconcellos ver os dados biográficos apresentados por SANTOS, Zulmira C. Em busca do paraíso perdido: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil de Simão de Vasconcellos, S.J. In: Quando os frades faziam história. De Marcos de Lisboa a Simão de Vasconcellos. Porto: Centro Interuniversitário da História da Espiritualidade, 2001, p.145-153.

Revista Varia História

O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício


GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire dAguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 454p.

Diogo da Silva Roiz
Doutorando em História da Universidade Federal do Paraná. Rua Tibagi, n. 404, Edifcio Aruanã, ap. 100, Centro, Cep. 80060-110. Curitiba/PR. diogosr@yahoo.com.br
O labirinto da realidade, os princípios da História e as regras da historiografia

Do labirinto de que nos fala o mito (em que Teseu recebe de Ariadne um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro) aos labirintos da realidade, que nos conduz a História e a sua escrita (em função da condição sempre fragmentária dos documentos e dos relatos), as distâncias (a)parecem, até certo ponto, intransponíveis para se determinar o princípio de realidade que deu base e originou cada uma daquelas diferentes narrativas (míticas e históricas). Mas essa condição de distanciamento entre o mito e a história talvez seja apenas aparente. É o que indicou Georges Balandier, em seu livro O dédalo, ao avaliar o processo de elaboração e manutenção de um mito no tempo e interpretar as mudanças drásticas, rápidas e sutis das sociedades (em especial, as contemporâneas), que lhe foi ensejada por meio da análise do mito do labirinto, não deixando de demonstrar as relações e as trocas complexas que se estabeleceriam entre o mito e a história ao longo do tempo. Sem ser indiferente a essa questão, Carlo Ginzburg se pautou no discurso do mito do labirinto, ao apreender a rica metáfora do "fio do relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade" (p.7), e sua relação com os infindáveis rastros, que as sociedades do passado nos legam em formas (definidas como) documentais. Nessa relação, entre os fios do relato e os rastros do passado, que os historiadores procurariam, de acordo com o autor, contar histórias verdadeiras (ainda que estas possam manter ligações estreitas com o falso), ao construir seu objeto de pesquisa e expor seus resultados sob a forma de uma narrativa, mesmo que peculiar. Para ele, hoje as relações entre verdadeiro, falso e fictício parecem muito mais tênues do que o foram para os historiadores oitocentistas.

Por isso argumenta, entre os quinze ensaios reunidos neste livro (e que foram produzidos entre 1984 e 2005), que há poucos decênios os historiadores passaram a dar maior atenção ao caráter construtivo e dinâmico de sua escrita, componente básico de seu ofício profissional. Alguns rastros dessa história recente do ofício de historiador formam o enredo principal deste livro, que se entrelaçam com a trajetória do autor, porque "a mistura de realidade e ficção, de verdade e possibilidade, est[iveram] no cerne das elaborações artísticas deste século" (p.334) e contra "a tendência do ceticismo pós-moderno de eliminar os limites entre narrações (...) ficcionais e narrações históricas, em nome do elemento construtivo que é comum a ambas, eu propunha considerar a relação entre umas e outras como uma contenda pela representação da realidade", que seria matizada por "um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos". Mas para enfrentar tal desafio não era possível se enclausurar em "velhas certezas", era sim "preciso aprender com o inimigo para combatê-lo de modo mais eficaz" (p.9). Para o autor desse O fio e os rastros, a contenda apontada acima estaria no cerne dos debates desencadeados, desde os anos de 1950, sobre o ofício de historiador, no qual verdadeiro, falso e fictício ganhariam contornos mais híbridos, ao se desfazerem as distinções até então aceitas entre elas, e que se tornaram totalmente enfadonhas para a compreensão do passado, de acordo com a interpretação cética, dita pós-moderna.

Desde que publicou Olhos de madeira, Relações de força e Nenhuma ilha é uma ilha,1 que Carlo Ginzburg vem, cada vez mais, avançando em sua crítica ao desafio cético sobre o aspecto construtivo do texto histórico, que ao ser apresentado como um discurso narrativo, a crítica pós-moderna o assemelhou ao texto literário, desfazendo, com isso, as distinções até então em voga e que calcavam no primeiro a pretensão à verdade (em função da utilização de fontes documentais, com os quais os historiadores presumiriam reconstituir o passado) e ao segundo a liberdade de criação imaginativa. Neste novo livro, o autor acrescenta os seguintes pontos: a) contar e narrar, servindo-se dos rastros do passado, para escrever histórias verdadeiras continua a ser um dos princípios do ofício dos historiadores; b) as relações entre as narrações históricas e as narrações ficcionais, ora se aproximando, ora se distanciando, é uma contenda que constitui, ao longo do tempo, uma disputa pela representação da realidade, na qual historiadores e romancistas mais se distanciaram do que aproximaram suas narrativas; c) a imposição da tese que descarta a possibilidade de as narrativas históricas apresentarem (ou falarem de) uma realidade, mas sim de quem deixou os indícios que são utilizados como fontes, desaperceberia o caráter profundo mantido nos documentos (mesmo os não autênticos) sobre "a mentalidade de quem escreveu esses textos" (p. 10); d) por isso, ler os testemunhos do passado a contrapelo, como sugeria Walter Benjamin, até para levar em consideração aquilo que não intencionavam expor quem os redigiu "significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados" (p.11); e) e, diante das relações entre ficção e realidade, se estabeleceria um espaço representado pelo falso, "o não-autêntico – o fictício que se faz passar por verdadeiro" (p.13), que, de fato, confirmaria-se à existência de uma realidade exterior ao próprio texto; f) nesse sentido, "destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo" (p.14), não deixaria de ser uma das pretensões do ofício dos historiadores (quanto ainda de outros profissionais, mesmo que o façam de formas análogas). E foi seguindo as pistas deixadas pela obra póstuma de Marc Bloch, Apologia da história ou ofício de historiador, que o autor destes ensaios procurou entrelaçar seus textos numa nova defesa da História e de sua escrita. De Lucien Febvre (1878-1956), que figura constantemente em sua obra Relações de força (que é um debate aberto contra a crítica pós-moderna ao ofício de historiador), a Marc Bloch (1886-1944), que aparece neste texto como figura chave, os elos que se estabeleceram durante a trajetória do autor se apresentam de uma forma mais direta com a historiografia francesa. Mas não só com ela, pois, em função de suas origens familiares e educacionais, o autor manterá um débito direto com Arsenio Frugoni (1914-1970), Eric Auerbach (1892-1957), Walter Benjamin (1892-1940) e Arnaldo Momigliano (1908-1987). Além de uma exposição minuciosa sobre o desenvolvimento do ofício dos historiadores e suas contendas, este livro apresenta também o entrelaçamento e os débitos de Ginzburg para com os autores arrolados acima.

Já nos comentários feitos (no apêndice deste livro) à obra O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, o autor aproveita para fazer de modo sutil, e até inesperado, uma revisão crítica aos apontamentos expostos por Hayden White, a partir de seu ensaio O fardo da história (publicado em 1966), ao ofício dos historiadores. Mas ao invés de refazer simplesmente o caminho pelo qual White sugeriu os contornos da divergência entre cientistas sociais e críticos literários aos historiadores, quando estes propunham que sua narrativa estaria em um nível médio, epistemologicamente neutro, de a história que escreviam estar entre a ciência e a arte, Ginzburg propôs seu ajuste de contas, demonstrando as relações instáveis que mediariam as trocas recíprocas, nas estratégias narrativas utilizadas tanto por historiadores, quanto por romancistas (e filósofos), a partir do século XV. E ainda, como sugeriu o autor, o leitor poderá ver nestes ensaios produzidos a partir da década de 1980, a gênese do projeto intelectual que deu origem aos textos reunidos neste livro. Por isso, não será por acaso, que se encontre desenvolvida entre os ensaios a proposta de mostrar "como resumos de fatos de crônica mais ou menos extraordinários e livros de viagem a países distantes contribuíram para o nascimento do romance e – através desse intermediário decisivo – da historiografia moderna" (p.319). Um intento justificado ainda pelo fato de o século XX vislumbrar de modo exemplar "a mistura de realidade e ficção, de verdade e possibilidade", e que esteve "no cerne das elaborações artísticas deste século" (p.334).

Por outro lado, a divergência apontada por White não era recente. Ginzburg demonstra que desde que o gênero histórico surgiu há pouco mais de dois milênios, que as divergências entre o discurso histórico, o literário e o filosófico são recorrentes. Por implicarem, cada qual a seu modo, representações da realidade, filósofos e romancistas acabaram dando pouca atenção ao trabalho preparatório da pesquisa elaborada pelos historiadores, e estes, por sua vez, dedicaram pouca atenção ao caráter construtivo de seu ofício, ao qual é demarcado por uma escrita, que é mediada por uma forma narrativa (ainda que peculiar). De acordo com ele, nas "últimas décadas, os historiadores discutiram muito sobre os ritmos da história [tendo a obra de Fernand Braudel (1902-1985) como base]; [mas] pouco ou nada, o que é significativo, sobre os ritmos da narração histórica" (p.321), com a qual se avolumaram críticas internas (dos próprios historiadores, hávidos por responderem aos céticos) e externas (vindas de críticos literários e filósofos). Por isso, a "crescente predileção dos historiadores por temas (e, em parte, por formas expositivas) antes reservados aos romancistas (...) nada mais é que um capítulo de um longo desafio no terreno do conhecimento da realidade" (p.326). Nesse sentido, Ginzburg responderá a indagação de White (e de François Hartog) se apoiando em Arnaldo Momigliano, ao dizer que:

A recusa, essencialmente relativista, de descer a esse terreno faz da categoria realismo, usada por White, uma fórmula carente de conteúdo. Uma verificação das pretensões de verdade inerente às narrações historiográficas como tais implicaria a discussão dos problemas concretos, ligados às fontes e às técnicas da pesquisa, a que os historiadores tinham se proposto em seu trabalho. Se esses elementos são desdenhados, como faz White, a historiografia se configura como puro e simples documento ideológico (p.327).

O que ressaltará Ginzburg, lembrando Momigliano, de que os historiadores trabalham com fontes, "descobertas ou a serem descobertas", e as ideologias contribuem "para impulsionar a pesquisa, mas (...) depois deve ser mantida à distância" (p.328), para que seja mantido o princípio de exposição da realidade, que está na encruzilhada entre a busca da verdade e a criação imaginativa, a que os historiadores estariam, de certo modo, enclausurados. Esse princípio condicionaria a interligação de todos os momentos do trabalho historiográfico ("da identificação do objeto à seleção dos documentos, aos métodos de pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literária"), aos quais, a redução "unilateral desse entrelaçamento tão complexo à ação imune a atritos do imaginário historiográfico, proposta por White [em Meta-história, de 1973] e por Hartog [em O espelho de Heródoto, de 1980], parece redutiva e, no fim das contas, improdutiva". Foi precisamente graças aos atritos suscitados pelo princípio de realidade "que os historiadores, de Heródoto em diante, acabaram apesar de tudo se apropriando amplamente do outro, ora em forma domesticada, ora, ao contrário, modificando de forma profunda os esquemas cognoscitivos de que haviam partido" (p.328). Em resumo, este seria o ponto que uniria os outros quinze ensaios reunidos pelo autor neste livro, e demonstrariam como ao longo do desenvolvimento do ofício de historiador ocorreriam trocas recíprocas no campo estilístico (e, em menor proporção, expositivo dos dados) utilizados pela história, pela literatura e pela filosofia. Embora haja uma interligação entre os textos, verificável facilmente pela maneira como o autor os organizou, tendo em vista uma ordem cronológica crescente de apresentação dos dados do passado e do presente, esta não é totalmente linear como se verá. Ainda assim, dois princípios expositivos seriam plenamente visíveis: a) a do desenvolvimento do método histórico e suas trocas recíprocas com a literatura e a filosofia; b) e, neste movimento complexo, estabeleceria o lugar específico de sua obra nesta contenda, e como se posicionou durante essas últimas décadas. Para ele, a "questão da prova permanece mais que nunca no cerne da pesquisa histórica, mas seu estatuto é inevitavelmente modificado no momento em que são enfrentados temas diferentes em relação ao passado, com a ajuda de uma documentação que também é diferente" (p.334).

Ao evidenciar, no primeiro ensaio, que constatamos como reais os fatos contados num livro de história, como resultado do uso de elementos contextuais e textuais, o autor voltou-se com maior atenção para os textuais, com os quais historiadores antigos e modernos se utilizaram, e por estarem ligados a certos procedimentos literários, que por convenção presumiam estabelecer um efeito de verdade, em sua narrativa tida como parte essencial de seu ofício. Na Antiguidade Clássica esse componente textual (que daria um efeito de verdade no relato escrito), relacionava-se a estratégia então usada de descrever com vividez os acontecimentos. Os elos que se estabeleciam neste exercício (narração histórica – descrição – vividez – verdade) constituíam a base da escrita da história na época. Contudo, enquanto neste período, para gregos e para romanos, a verdade histórica se fundava na vividez com que os eventos eram narrados, para nós, modernos, o autor dirá que esse efeito é encontrado por meio da utilização e interpretação dos documentos. Para ele, a historiografia moderna nasceria da convergência entre duas tradições intelectuais diferentes, a história filosófica e a pesquisa sobre a Antiguidade. Segundo ele, Momigliano teria notado o início desta mudança, no relato e na prática de pesquisa, no século XVII. Mas Ginzburg a verá no século anterior, por meio da interpretação da obra do italiano Francesco Robortello (1516-1567), que teve, de acordo com o autor, a sensibilidade de descrever parte daquelas alterações. Ao estabelecer o diálogo de Robortello com seus contemporâneos e com os autores da Antiguidade, Ginzburg acredita que demonstrou as raízes de um complexo problema, no qual surgiria à historiografia moderna, ao se distanciar das evidências puramente estilísticas e retóricas, que dariam maior vividez aos acontecimentos narrados, e dar maior atenção às "citações, notas e sinais lingüístico-tipográficos que as acompanham podem ser considerados – como procedimentos destinados a comunicar um efeito de verdade – os equivalentes" (p.37) da vividez (a enargeia) na Antiguidade. E que estava ligada a uma cultura baseada na oralidade e na gestualidade, na qual a vividez do relato comunicaria a ilusão da presença do passado. Já as citações e as remissões ao texto estarão ligadas a uma cultura dominada pelos gráficos e centrada na escrita, e o passado seria, portanto, "acessível apenas de modo indireto, mediado" pelos documentos. Para o autor foi graças "sobretudo à história eclesiástica e antiquária, [que] a prova documental (...) impôs-se sobre a" (p.38) mera evidência narrativa alcançada pela vividez do relato.

A maneira como o francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) recolheu de suas experiências de viagem e de suas leituras os ingredientes fundamentais para a elaboração de seus ensaios é, para o autor, um caso exemplar, por que: a) demonstra como nos séculos XV e XVI eram construídas as relações entre brancos europeus e índios americanos, e, sobre isso, como o autor dOs ensaios (cuja primeira edição é de 1580) a refez; b) e este transitou entre a vividez do relato e a remissão a textos, para a comprovação de seus argumentos (no terceiro ensaio).

O diálogo entre ficção e história (exposto no quarto ensaio) ganhará mais envergadura no século XVII, quando em 1647 na cidade de Paris, Jean Chapelain (1595-1674) passou a avaliá-la em seu texto Sobre a leitura de velhos romances (cuja primeira edição póstuma foi publicada em 1728), ao ter como base o romance Lancelot. A maneira como François de La Mothe Le Vayer (1588-1672), a partir de 1646, tomará partido nesta questão dará ao ensaio um tom detetivesco, principalmente, ao destacar que "uma das tarefas da história é a exposição daquilo que é falso" (p. 90). Para Ginzburg:

Nesse caso, portanto, a distância crítica com respeito à matéria tratada não é obra de Diodoro mas dos seus leitores, sendo o primeiro de todos La Mothe Le Vayer. Para ele a história se nutria não só do falso mas da história falsa – para usar mais uma vez as categorias dos gramáticos alexandrinos retomadas polemicamente por Sexto Empírico. As ficções (...) referidas, e partilhadas, por Diodoro podiam tornar-se matéria de história. Chapelain, que dava um desconto à veracidade de Lívio, entendeu a argumentação do Jugement às ficções (...) de Homero e de Lancelot: ambas poderiam tornar-se matéria de história (p.91).

Mais ainda:

A fé histórica funcionava (e funciona) de modo totalmente diferente. Ela nos permite superar a incredulidade, alimentada pelas objeções recorrentes de ceticismo, referindo-se a um passado invisível, graças a uma série de oportunas operações, sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas, fragmentos de estátuas erodidas pelo tempo, etc. Não só. Permite-nos, como mostrou Chapelain, construir a verdade a partir das ficções (...) a história verdadeira a partir da falsa (p.93).

A partir da análise do milanês Girolamo Benzoni (1519-1570) em A história do novo mundo (de 1565), e suas implicações perante a compreensão do xamanismo e do uso de produtos entorpecedores na Europa, Ginzburg procurou demonstrar, ao relacioná-la a História geral e natural das Índias de Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557), cuja primeira edição foi publicada em 1535, e aos débitos comuns destes autores para com Pomponio Mela e Solino sobre os trácios e Máximo de Tiro sobre os cita, que estão, por sua vez, relacionados a Heródoto, não deixa de ser tão surpreendente, quando se visualiza as possíveis raízes mongólicas e orientais dos rituais xamânicos dos citas, cujos autores do século XVI os aproximaram do xamanismo americano. Com isso, o autor observa que o "episódio interpretativo que reconstruí com minúcia talvez excessiva pode ser considerado quase banal: não a exceção, mas a regra" (p.111) para a construção e compreensão de qualquer processo histórico, que é matizado por testemunhos e esquecimentos, trocas recíprocas e inovações (algumas vezes até inesperadas).

A leitura de Eric Auerbach empreendida em Mímesis (obra pioneira, cuja primeira edição foi publicada em 1946) sobre Voltaire, é refeita por Ginzburg (no sexto ensaio) para demonstrar os contextos de ambos os autores e seus respectivos textos, suas leituras e seus débitos, com vistas a indicar como o estranhamento era uma estratégia estilística que Voltaire, inspirando-se em Swift, utilizava-se para propor uma representação sobre a realidade de sua época, na qual a diversidade cultural e religiosa, começava a ser homogeneizada, em função da ação da economia e do mercado mundial. Tal questão demonstraria as metamorfoses sobre a maneira com que Voltaire compreendeu a tolerância, e a forma como Auerbach a despercebeu em sua época.

O texto de Jean-Jacques Barthélemy (1716-1795) sobre a Viagem do jovem Anacársis à Grécia (de 1788) foi utilizado pelo autor (no seu sétimo ensaio) para demonstrar a inatualidade de sua estratégia narrativa, que não foi "nem um tratado sistemático de antiquariato, nem uma narrativa histórica" (p.146), mas teve uma inspiração direta nos antiquários, verdadeiros e falsos, e não nos historiadores que começavam a falar da realeza e de sua autoridade. Mesmo procurando documentar as indicações de seu texto (com mais de 20 mil notas, como lembrará Ginzburg), o trabalho de Barthélemy, em sua "híbrida mescla de autenticidade e ficção" procuraria superar os limites da historiografia existente. Mas durante seu processo de elaboração surgiria um outro texto, Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon (1737-1794), que se utilizaria da mesma cultura antiquária que inspirou Barthélemy, e a complementaria com outros elementos, como as idéias filosóficas de sua época, e que o tornariam o fundador da historiografia moderna "por ter sabido fundir antiquariato e história filosófica" (p.153). Nesse sentido, o caminho tomado por Barthélemy, que "propunha a fusão entre antiquariato e romance", foi uma estratégia, em longo prazo, perdedora, e hoje, para o autor, inatual, mas que nem por isso deixaria de ser "um antepassado involuntário [da etnografia histórica, prática] de antropólogos ou pesquisadores, mais próximos de nós" (p.153).

Para contornar as críticas pós-modernas "de abolir a distinção entre história e ficção" (p.157) ele partiu (no oitavo ensaio) de um caso analisado em escala microscópica, para "decifrar a identificação de Julien Sorel com Israël Bertuccio à luz dessa leitura verossímil" (p.159), da obra, Marino Faliero, de George Gordon Byron (1788-1824), escrita em 1820, para chegar a conclusões análogas. O que na época Lord Byron (forma como era mais conhecido) via como a análise de fatos reais, para nós pertenceriam ao mundo da ficção literária, mas "justamente porque é importante distinguir entre realidade e ficção, devemos aprender a reconhecer quando uma se emaranha na outra" (p.169). Nesse caso, o exemplo de Marino Faliero permitiria que se observassem os contornos entre realidade e ficção, e as mudanças que se operaram nessa relação, nas primeiras décadas do século XIX, quando a historiografia moderna passará a circunscrever e circunstanciar as regras do método histórico, e a delinear as restrições e diferenças da escrita da história sobre a criação ficcional dos romances.

Ainda seguindo por esses rastros, o autor verá o desafio lançado por Henri-Marie Beyle (1783-1842), mais conhecido como Stendhal, aos historiadores em seu romance O vermelho e o negro, que era "uma representação pontual da sociedade francesa sob a restauração" (p.178), e que será, depois, visto como uma construção (puramente) literária, não deixa de ser também um caso exemplar (quando cotejou seu processo de elaboração e a possível data de sua conclusão e publicação). Em especial, porque mostra como o discurso direto livre foi descartado pela pesquisa histórica, por não deixar, por definição, traços documentais. Por isso, "um procedimento como o discurso direto livre, nascido para responder, no terreno da ficção, a uma série de perguntas postas pela história, pode ser considerado um desafio indireto lançado aos historiadores" e ao qual o autor acrescenta: "Um dia eles poderão aceitá-lo de uma maneira que hoje nem conseguimos imaginar" (p.188).

No rastro da interpretação de Eric Hobsbawm, em sua autobiografia Tempos interessantes (publicada em 2002), na qual indica uma transição subterrânea em processo, tal qual a que ocorreu durante o período de 1890 a 1970, entre os procedimentos da história dos eventos políticos para a história social, em função das críticas efetuadas pelos historiadores modernizadores sobre os tradicionais que se deu àquela mudança epistemológica, que Ginzburg se voltará para a gênese da micro-história italiana (no décimo terceiro ensaio). Por Hobsbawm o ter inserido dentro da análise pós-moderna, crítica quanto aos procedimentos da história, que este irá reconstituir o desenvolvimento da micro-história italiana, com vistas a demonstrar que mesmo inserido neste campo de estudo (e não na macro-história econômica e social, defendida por Hobsbawm) não deixou de refutar as críticas dos céticos, pós-modernos. Por isso refez o caminho trilhado pela micro-história, desde os anos de 1970, quando com Giovanni Levi passaram a discutir a questão. Ao mesmo tempo indicou a gênese do termo micro-história no campo das ciências humanas. De George R. Stewart (que primeiro se utilizou da noção em 1959) a Luis González y González (que a usou em sua obra Uma aldeia em tumulto em 1968), perpassando pelas obras de Raymond Queneau, Primo Levi, Ítalo Calvino, Andréa Zanzotto, Richard Cobb, Emmanoel Le Roy Ladurie, François Furet e Jacques Le Goff, as reviravoltas das discussões sobre a compreensão do termo foram diversas. E a maneira pela qual a micro-história italiana se desenvolveu foi diversa e independente da maneira como ocorreram as discussões na Inglaterra e na França.

Dito isto, convém destacar que ao lado desta reconstituição da história do ofício de historiador, o autor insere um conjunto significativo de exemplos, para discutir as bases da pesquisa histórica, e responder e refutar as críticas pós-modernas à escrita da história (ao rever os conceitos de verdade, autenticidade, testemunho, provas, documento, narrativa, cientificidade e realidade). Da conversão dos judeus (cap.2) de Minorca em 417-8, que se seguiu à chegada das relíquias de santo Estêvão, descritas por Peter Brown em O culto aos santos (de 1981); as relações (apresentadas no cap.10) entre o Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu de Maurice Joly (lançado anonimamente em Bruxelas em 1864) e os Protocolos dos sábios de Sião, de 1903, em que uma "refinada parábola política se transformou numa tosca falsificação" (p.209); aos testemunhos individuais que expressavam a única versão sobre acontecimentos traumáticos emitida pelo sobrevivente, o princípio de realidade é o centro da discussão (no cap.11); a maneira como Siegfried Kracauer, em sua obra póstuma História: as últimas coisas antes das últimas, lançada em 1995, na qual o autor estabelece uma reconstrução dinâmica e recíproca entre história e fotografia (e cinema) (no cap.12); até as discussões sobre as proximidades e diferenças entre o inquisidor e o antropólogo na coleta e organização dos testemunhos (cap.14), e as relações entre a feitiçaria e o xamanismo (cap.15), o que se verá será uma discussão que, no rastro da obra póstuma de Bloch, demonstrará, na contramão da crítica pós-moderna, que o princípio de realidade ainda constitui um campo legítimo da pesquisa histórica, e em seu processo construtivo, continua a manter uma ligação estreita entre verdade e provas.

Naturalmente, que pelo que até aqui foi dito, muitos poderão acusar Carlo Ginzburg de ser um (mero) atualizador dos antiquários dos séculos XVII e XVIII. Que seu método expositivo é impreciso, às vezes exagerado, ao apontar continuidades e descontinuidades milenares entre diferentes posturas teóricas, ou entre certos costumes, formas de agir e pensar, dos homens e das mulheres de outrora, como já indicou Perry Anderson,2 ressaltando que a "explicação que ele oferece é convencional e descuidada – pouco mais do que referências genéricas" (p.88). Ao empreender sua resposta ao desafio cético, dito pós-moderno, Carlo Ginzburg alerta para a necessidade de maior precisão do método e das pesquisas documentais, as quais favoreceriam a elaboração das provas, quando expostas em uma narrativa. Talvez seja o que indica, ao dizer que sabendo "menos, estreitando o escopo de nossa investigação, nós esperamos compreender mais"3 Contudo, seu método não passou ileso, mesmo entre os historiadores profissionais,4 o que não quer dizer que sua contribuição tenha sido irrelevante,5 tanto para a renovação dos estudos históricos, quanto para o desafio lançado pela virada lingüística, nos anos de 1960 e 1970, e que ele avança ainda mais neste livro.


1 GINZBURG, C. Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
2 ANDERSON, P. Investigação noturna: Carlo Ginzburg. In:. Zona de compromisso. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Edunesp, 1996, p.67-98.
3 GINZBURG, C. Latitudes, escravos e a Bíblia: um experimento em micro-história. Revista Artcultura, UFU, v.9, n.15, p.86, 2007.
4 ANDERSON, P. Investigação noturna: Carlo Ginzburg, p.67-98.
5 LIMA, H. E. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
Revista Varia História