segunda-feira, 24 de março de 2014

A educação espontânea: quando os adolescentes se formam por si próprios


Diogo Acioli Lima; Ivar César Oliveira de Vasconcelos; Candido Alberto Gomes
Pesquisadores da Cátedra Unesco de Juventude, Educação e Sociedade da Universidade Católica de Brasília. aciolidiogo@gmail.com; ivcov@hotmail.com; clgomes@terra.com.br

Anne Barrère. [L'Éducation buissonnière: quand les adolescents se forment par euxmêmes] PARIS: ARMAND COLIN, 2011. 228 p.

Embora alunos, crianças e adolescentes ainda conseguem ter o seu próprio tempo, em que desenvolvem atividades da sua escolha. São atividades como esportes e outras formas de lazer organizado; inserção em atividades da cultura de massa; uso de tecnologias para fins relacionais; a convivência com colegas e outras atividades que Barrère comparou às "provas" rituais da Paideia grega, que formavam o caráter (neste caso, para o "bem" socialmente definido). Caberia acrescentar outras "provas", como a separação dos pais e as recomposições familiares, além dos ordálios cada vez mais temíveis do ingresso no trabalho. Com efeito, essa socióloga, a partir do contato com os filhos e seus amigos adolescentes, desenvolveu sofisticada pesquisa qualitativa sobre a autoformação desse grupo etário e sociocultural.

Verificamos, mais uma vez, que, para ser aluno, é preciso dominar o currículo da sala de aula, ao passo que, para ser adolescente e jovem, cabe transitar pelos meandros dos currículos da rua, que podem irradiar-se pelos pátios e arredores escolares, onde se exercitam as sociabilidades e protagonismos adolescentes e até infantis. As provas e ritos integradores se desenvolvem tanto na escola, em particular por meio das avaliações (cognitivas, afetivas, sociais, morais), para o papel de aluno, e, fora dela e da família, para o papel de jovem. Os currículos da rua são complexos: é preciso saber habitar a pele de uma multiplicidade de outros; captar, interpretar, satisfazer e contrariar expectativas de comportamento; usar diversas máscaras, sem confundir nenhuma delas com o próprio rosto; ser sem parecer e parecer sem ser; mostrar ou ocultar tristezas e alegrias, realizações e frustrações; liderar e ser liderado; concordar e discordar; negociar entre autonomia e heteronomia, tanto a da família quanto a dos grupos de pertencimento; estabelecer limites para a sua autonomia e os status nos grupos; nadar conforme as correntes, escapando sutilmente para as margens em determinadas circunstâncias; ser confiável, mantendo fidelidade aos códigos grupais; participar de certos gostos e padrões de consumo; apresentar certas aparências, conforme o tempo e o espaço; demonstrar autonomia e desenvolver outras características que, inegavelmente, formam o caráter, construindo e misturando os paradoxos pós-modernos com a dualidade dos antigos em meio a uma tragédia grega encenada com máscaras.

Certos educadores superestimam as relações antípodas entre as culturas escolares e adolescentes. Umas não são o avesso das outras, mas a tensão é maior para os alunos socialmente menos aquinhoados, distantes do capital cultural. Essa oposição e os consequentes tédio e revolta contra a escola não são exclusividade deles. Culturas adolescentes e juvenis também não conduzem necessariamente a comportamentos antissociais, ainda que o teste de limites, a transgressão "lúdica", o ingresso nas terras de aventuras e a aceitação de desafios sejam riscos. Porém, de fato, certas culturas etárias podem ser enredadas tanto pelo crime organizado global, como por diferentes tipos de cultura de massa.

Embora mantendo o monopólio das credenciais, a escola e, em grande parte, a família perderam o monopólio dos conhecimentos e da formação do caráter. Por isso mesmo, Barrère distinguiu cinco provas, similarmente à Paideia. A primeira é a da adesão ao amplo leque de atividades à escolha dos adolescentes. Necessárias à descompressão do tempo escolar e do seu tentáculo doméstico, o dever de casa, as atividades eletivas, por atraentes, levam a uma agenda sobrecarregada. Desse modo, é preciso aprender a gerir o tempo e os custos, como também o grau de dedicação a cada uma delas. Há tempo de singularizar e pluralizar, de concentrar e dispersar, sendo a conquista do autodomínio o desfecho feliz. Nesse sentido, o grupo de colegas é um agente ativo de regulação e, ao mesmo tempo, de apelo a excessos, tateando em busca de limites.

A segunda prova é a da busca de experiências vividas intensamente, que implicam saber aproximar-se e afastar-se ou, mais uma vez, estabelecer limites. Viver plenamente a vida, o delírio, o fascínio e a paixão, é necessário para romper o tédio e a rotina, afirmando a vida e assumindo plenamente a subjetividade e a condição juvenil, como é culturalmente definida. Ao mesmo tempo porém, é preciso aprender a conjugar intensidade e duração das atividades, bem como a evitar as derrapagens das condutas de risco. A escola é lenta, a música e a dança são intensas e dinâmicas, elevam ao êxtase, embora exista o reverso profundo da depressão e do suicídio, deixando os alunos a viver entre Apolo e Dionísio. Da mesma forma que os adolescentes fazem o zapping das atividades, também desenvolvem a sua bolha individual. Como na escola, sucessos mais frequentes que fracassos são fatores de adesão e de abandono de atividades eletivas.

A terceira prova é a da singularidade, ou seja, tornar-se indivíduo, pessoa. O pesado manto da uniformização se faz efetivo tanto pela cultura de massa quanto pelo conformismo grupal, se bem que os processos não são monolíticos. Ao contrário, existe uma sutil dialética entre a padronização e a individualização quando os olhos captam os pormenores. A coerção social cede lugar à necessidade de construir uma personalidade nascente, um sujeito dentro e pelo grupo. Contrapõem-se e se associam desejo de pertencimento e afirmação pessoal, integração ao grupo e subjetivação, comportamentos uniformes e pequenas diferenças de apresentação pessoal, pensamentos e gostos, que constroem a singularização. Claro que há grupos mais ou menos abertos às diferenças, todavia o conformismo total se revela impossível, inclusive porque agir como os outros não evita as críticas. Por outro lado, as normas e padrões grupais são dinâmicos, de modo que é preciso efetuar escolhas.

A quarta e última prova é a de caminhar na dimensão temporal, isto é, de estabelecer os elos entre o presente e o futuro, entre as atividades da adolescência e as projeções da idade adulta. Em vez do imediatismo, favorecido pelo consumo e, ao mesmo tempo, criticado e praticado pelos adultos, é preciso olhar adiante. O adolescente mira o futuro com a ótica do sonho, influenciado pelas mitologias da mídia. Os sonhos não apenas mudam, como se envolvem na névoa indefinida de inviáveis ambições. Entretanto, para converter sonhos em projetos, é preciso um caminho. Este processo de escolhas viáveis, exigido pela escola e pela família, implica não raro a morte do sonho e a superação do respectivo luto. Envolve o planejamento de pequenos e gradativos passos, consistentes, reunindo recursos e superando obstáculos. Essa prova decisiva da vida adulta se entrecruza com as anteriores: é um convite exigente para superar a polarização de uma atividade, mais intensa que duradoura, que, ao mesmo tempo, permite conquistar a singularidade, uma vez que o projeto de futuro é pessoal. O atendimento a essa convocação mobiliza o recurso ao capital social e cultural, muitas vezes a uma modalidade de transmissão ocupacional familiar, inclusive porque o sucesso escolar se torna cada vez menos suficiente.

Já os adolescentes e jovens dos meios populares utilizam outra lógica de inserção, baseada em novas articulações entre sonho, projeto e realidade, que, em grande parte, escapam à órbita da escola e da família. Para as duas populações, mas sobretudo para a menos aquinhoada, a experimentação de alternativas por ensaio e erro tem papel relevante. No entanto, a autora hipotetiza que, com a inflação escolar e o afrouxamento dos laços entre os diplomas e a alocação social dos indivíduos, a escola pode perder importância no futuro. Em contraponto, a prova de caráter do caminhar poderá ter maior pertinência nos próximos anos. Ou, pelo menos, em tempos de crise, traçar o caminho estará mais longe dos sonhos e projetos adolescentes.

As conclusões apontam para certa miopia do pessimismo que caracteriza muitas opiniões de educadores e da sociedade. Nas atividades eletivas os adolescentes participantes da pesquisa enfrentam as provas com lucidez e equilíbrio, se superam, buscam a singularização emancipadora, educam-se numa área livre dos discursos escolares, que, a nosso ver, incluem mais valores proclamados que vividos. A visão da escola para muitos é a de um castelo sitiado pela cultura de massa e pela tirania dos pares, mas também cabe relativizar conclusões de que é impossível educar diante da cultura de massa, em concorrência "cruel" com a cultura escolar. Consideremos, porém, que as coisas são menos simples para os que não contam com o capital cultural para vencer as provas da Paideia. Os meios populares desenvolvem culturas ou subculturas que parecem necessárias à sobrevivência dos que os habitam.

A autora ainda discute a visão da escola sob o prisma das atividades eletivas. Do ponto de vista da socialização, tais atividades também socializam e apresentam certa convergência em face dos valores da escola. Esta última se expande no que ela chama de "pedagogização da sociedade", com tempos, espaços e rituais fixos, muitas (a nosso ver, não todas) atividades eletivas apresentam um currículo assistemático, alternativo e até certo ponto lúdico, que envolve a introdução em conhecimentos e habilidades, além de aperfeiçoamento e obtenção de resultados, inclusive em competições públicas. Não raro os adolescentes encontram instrutores tão duros que os educadores considerariam inaceitáveis nas escolas. É arriscado supervalorizar tal currículo, contudo cabe lembrar que as pessoas desenvolvem aprendizagens e competências não reconhecidas pela escola, que poderiam ter lugar nela e que hoje, ao menos na área profissional, muitos países requerem a sua certificação, pela própria escola, já que ela mantém o monopólio das credenciais (seria um caso em que se nomeia Drácula gestor do banco de sangue?).

Daí brota outra questão. O currículo das atividades eletivas inclui imagens, música, informática e práticas esportivas, num ritmo dinâmico, alheio à cultura escolar. Há anos uma educadora manifestou a sua perplexidade ante o tédio manifestado pelos adolescentes nas pasteurizadas aulas de educação física, em contraste com a sua devoção aos exercícios nas academias. Contrastava o clima morno das aulas de línguas estrangeiras, com o interesse e a efetividade das aulas de "cursos livres", integrantes do tal sistema educacional "sombra". Acrescentaríamos os resultados concretos das aulas de apoio ou de explicadores hábeis no aproveitamento dos alunos, em contraste com as "aulas de recuperação" que até hoje muitas escolas inserem no calendário letivo e que parecem ser úteis apenas para cumprir a letra da lei (diria Anísio, citado por Darcy: Tudo legal e tudo muito ruim).

Por fim, Barrère situa a necessidade de refletir sobre a educação escolar a partir das atividades eletivas. A formação (do caráter) depende menos da escola que as expectativas usuais. Diante da pressão escolar, os participantes da pesquisa buscaram fora da escola a construção pessoal e a descompressão do tempo escolar. A escola foi retratada com um déficit de intensidade e dinamismo, daí o aborrecimento ou o tédio. No código popular: a escola poderia ser menos "chata"?

A escola republicana, ideal da modernidade, inseria-se num projeto político destinado a modelar as novas gerações. Então, indaga a autora, a serviço de que projeto está o rompimento entre a cultura escolar tradicional e as novas formas culturais? Tanto o pânico moral dos adultos em relação aos jovens quanto as atividades eletivas são antigos. De igual modo, criticar o anacronismo das instituições, entre elas a escola, não é novidade. O inédito, constatado pela pesquisa, é o estratagema que leva os adolescentes a provar a sua força de caráter, ideais e sua singularidade em grande parte fora das instituições tradicionais, como a escola. É claro que, no ensaio e erro, ocorrem excessos, adições e dificuldades de encontrar os caminhos e limites, mas o que chama a atenção de Barrère é a capacidade de alguns no sentido de fazer de certas atividades eletivas "verdadeiras tutoras da sua construção pessoal" (p. 207).

Da mesma forma que as flores da primavera desafiam as pedras e o cimento, irrompendo sem licença nos seus interstícios, parece-nos que os adolescentes não se saem tão mal como esperam os pessimistas, nem tão bem como supõem os otimistas. No seio das contradições da sociedade, das angústias e mudanças inesperadas, a capacidade de superação e flexibilização não podem ser subestimadas. Como denominador comum, entre ambos os extremos, fica a conclusão de que os desafios para a escola parecem crescer. Há que definir o que é educação e o que cabe à escola, tão reduzida a conteúdos, testes e diplomas.

A História mostra que os monopólios têm a trajetória de estrelas cadentes. Eles por si sós dificilmente poderão manter-se nesta modernidade caracterizada pela instabilidade estável e a efemeridade do eterno fluxo, conforme Heráclito. A pesquisa de Barrère descerra a delicada tessitura dos interesses do alunado e da incoerência entre estes e os currículos escolares, construídos por adultos numa arena de interesses também adultos, onde se hierarquizam prioridades. Não propomos o populismo educacional, pelo qual a juventude decida o que estudar na escola. É fato, porém, que se torna evidente sua alienação, inclusive dos "herdeiros".

Ao distanciar o foco acadêmico das necessidades e interesses discentes, a escola corre o risco de tornar-se um quisto cultural. Já no início do século XX, Dewey e outros filósofos propunham soluções para a educação escolar ante as mudanças da sociedade urbano-industrial e a construção histórico-social da juventude e da adolescência, cuja identidade se delineava como tímido ensaio. Por isso, entre outros caminhos (agora para os educadores), é preciso estudar e incentivar o engajamento dos alunos na escola, e poder pensar nesse ambiente como a ágora, local de prática da cidadania, construção e troca de conhecimento das mais diversas áreas na polis. Sem a vontade do aluno, que surge, no âmago de cada um, ao mesmo tempo como fator e efeito da dinâmica social, não se efetivam o processo educativo ou a aprendizagem. 
Cadernos de Pesquisa

Educação infantil e sociedade: questões contemporâneas


Educação infantil e sociedade: questões contemporâneas

Alexandre Fernandez Vaz; Caroline Machado Momm (Org.).
Nova Petrópolis/RS: Nova Harmonia, 2012. 189 p.


A Educação Infantil brasileira vive tempos de importantes debates e movimentações. No cenário contemporâneo, seu papel ­político-pedagógico se modificou, refletindo e refratando parâmetros de definição das políticas públicas, de implementação dos projetos pedagógicos nas instituições e, ainda, instigando novos problemas de pesquisa no que se refere à educação da criança de 0 a 5 anos.

Um dos grandes desafios que se colocam diante dessa configuração é o de concretizar em práticas concretas nas creches e pré-escolas os desejos de uma Educação Infantil que considere em suas propostas pedagógicas, tal como apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais para essa etapa da educação básica (em seu artigo 4°), a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos.

Para tanto, há que se garantir equipes de trabalho, gestores e professores, não apenas com a titulação exigida por lei, mas com a formação adequada para propor, desenvolver e refletir acerca das práticas desenvolvidas junto aos bebês e crianças pequenas. Formação essa que se tem mostrado bastante desafiadora, pois, para realmente se efetivar como meio de aprimoramento das práticas pedagógicas, tem que superar, o que Antônio Nóvoa já criticou, que é o excesso dos discursos e a pobreza das práticas1. Essa condição demanda problematizar certezas construídas e cristalizadas historicamente que, muitas vezes, norteiam e repetem situações no espaço da instituição que não se esperam, mas que são justificadas e naturalizadas.

É no cerne desse desafio que emerge a publicação Educação Infantil e sociedade: questões contemporâneas, que consiste em uma coletânea de artigos que buscam abordar questões candentes no atual cenário da Educação Infantil brasileira. O material publicado decorre de atividades desenvolvidas no contexto do Curso de Especialização em Educação Infantil, desenvolvido em uma parceria entre o Núcleo de Desenvolvimento Infantil - NDI - da Universidade Federal de Santa Catarina e a Coordenadoria de Educação Infantil - COEDI - da Secretaria de Educação Básica do MEC.

Duas características importantes marcam a publicação. A primeira é que a coletânea constitui um panorama de grandes temas da Educação Infantil, abordando desde fundamentos da Educação Infantil, até reflexões mais específicas acerca das práticas pedagógicas e sistematização de reconhecidos pesquisadores da área. A segunda característica, e talvez a que mais diferencia e coloca esse material como importante recurso de formação de professores, diz respeito ao esforço que se pode observar de articular as reflexões em torno de problematizações acerca de concepções presentes no cenário da educação de crianças pequenas que constituem debates complexos e controversos. Tendo como base essas duas características, vejamos alguns dos aspectos abordados nos artigos que compõem a publicação.

No primeiro capítulo, intitulado "Infância como construção social: contribuições do campo da Pedagogia", Maria Malta Campos, ao discutir as contribuições da pedagogia para se pensar a questão da infância, aborda uma importante contradição que tem se mantido e, muitas vezes, obstaculizado a reflexão sobre as práticas pedagógicas, que é o fato de que, mesmo quando o foco da ação educativa é o sujeito, a criança, ainda assim a pedagogia não deixa de ser um instrumento de socialização, e, nesse sentido, supõe uma intervenção.

A autora nos coloca diante de questões fundamentais e que concretizam controvérsias nesse debate. Dentre elas, "deveria a pedagogia necessariamente encolher-se para que a infância ganhasse primazia? Colocar a criança em destaque significa deixar de dar importância aos objetos com os quais se ocupa a pedagogia?" (p. 14-15).

Em resposta a alguns embates, aponta a necessidade de assumir uma pedagogia que respeite a criança pequena, buscando superar uma ausência de definição de um caminho pedagógico que abre espaço para práticas tradicionais e inadequadas junto à criança pequena. Para superar essa situação, há que se garantir desde a formação de professores, que efetivamente promova a reflexão sobre modelos e práticas possíveis de atendimento dos bebês e crianças pequenas em espaços coletivos, até a efetiva consolidação de condições de trabalho e de políticas adequadas com contexto da gestão das redes.

A problematização de questões continua a ser feita no capítulo 2, "Infância: construção social e histórica", de autoria de Moysés ­Kuhlmann Jr. e Fabiana Silva Fernandes. Os autores realizam uma incursão pela história da infância, buscando polemizar algumas "certezas" propagadas no campo da Educação Infantil a partir de leituras equivocadas do passado que parecem visar à legitimação do presente.

Inicialmente, coloca-se em reflexão o impacto que a obra de ­Philippe Ariès (História social da criança e da família) teve em diferentes áreas das ciências humanas, reproduzindo a ideia de que a consciência da infância inexistia no período medieval. Importa ter precaução na afirmativa de que em épocas anteriores à modernidade as crianças não seriam representadas nas artes plásticas e isso seria um indicador de que não haveria consciência da particularidade infantil. O exemplo disso são imagens em que o mundo infantil é retratado, expressando a forma como a infância era compreendida, inclusive de forma vivaz, alegre e em situações de brincadeira. Essa ponderação reconhece as transformações que ocorrem ao longo da história, mas advoga por uma análise que possa superar dicotomias e sentidos unitários e uniformes em relação à infância.

O artigo ainda questiona a ideia tão corrente e, de certa forma, tão prejudicial à construção de um currículo integrado na educação básica que é a noção de aluno e de criança. Tem sido dominante assumir uma interpretação (segundo os autores, equivocada) de aluno, como aquele "sem luz" e infância, a partir de infans, como o que não fala.

Muito esclarecedora é a reflexão que os autores trazem acerca das interpretações correntes que decorrem de uma "salada etimológica", que acaba por estimular uma dicotomia entre o mundo da criança e o mundo da escola, como se esses espaços fossem contraditórios e a condição de aluno negasse a condição de criança.

Questionamentos como esse, além de outros que o artigo aponta como a falsa oposição entre educação e assistência e a questão das férias coletivas, são temas profícuos de debate em contextos de formação de gestores e professores dedicados a pensar os projetos pedagógicos na Educação Infantil.

O terceiro capítulo, de Pedro Angelo Pagni, intitulado "Da infância-criança à in-fância do pensar na relação pedagógica", retoma, pela filosofia, algumas reflexões sobre a infância apontando o quanto, nos últimos séculos, as questões da infância foram instigantes para alguns pensadores, a exemplo de Montaigne, Rousseau, Kant, dentre outros.

Destaca que, a esse cenário do pensamento moderno, aspectos importantes da contemporaneidade têm desafiado os filósofos. Com Benjamin, destaca o retorno à experiência da infância como a possibilidade de criação do novo, contrapondo a experiência da infância com a do adulto contemporâneo, que, de certa forma, tem sua experiência empobrecida pela racionalização da experiência. Na construção do pensamento filosófico, a educação da infância, desde os primeiros anos, aparece destacada em Adorno, especialmente no que se refere à educação contra barbárie. Atualiza ainda o debate trazendo alguns aspectos da elaboração dos filósofos Agamben e Lyotard.

Nesse panorama das reflexões filosóficas acerca da infância, o autor destaca alguns aspectos que merecem reflexão aprofundada se pensamos em espaços de formação para atuar junto aos bebês e crianças, dentre os quais: a infância não mais apenas como um momento da vida humana, mas como uma condição e possibilidade que a acompanha; como uma experiência a ser recuperada pelos adultos e vivida pelas crianças.

As reflexões do autor nos levam a destacar a importância de, por meio da filosofia, sensibilizar os educadores a refletirem sobre a experiência da e com a infância presente na atividade pedagógica. Esse artigo nos possibilita e convida a empreender um percurso panorâmico sobre o olhar da filosofia para a questão da infância, além de orientar um possível caminho de leitura no campo da filosofia.

O quarto capítulo compõe essa seção dos fundamentos da educação pelo olhar da psicologia, com a reflexão de Zoia Prestes e seus questionamentos a partir da teoria histórico-cultural, que, assim como a Educação Infantil, tem estado em movimentação, especialmente, pelas novas traduções da obra de seu precursor Lev Vigotski, no Brasil. Nesse artigo, ela se dedica a sistematizar algumas perguntas com as quais tem se deparado no decorrer desse processo de recolocar algumas terminologias e noções vigotskianas a partir de outras possibilidades de tradução e, portanto, interpretações.

Nesse sentido, a grande pergunta para nós, que vimos nos últimos anos estudando Vigotski, ao ler as atuais reflexões da autora, ela tenta responder nesse texto: "Então, tudo que aprendemos até agora é um equívoco em relação a Vigotski? Você acredita em verdades absolutas?" De forma geral, a autora segue respondendo às perguntas, buscando historicizar o processo de chegada, tradução e disseminação da obra de Vigotski no Brasil.

Em princípio, nos perguntamos em que medida um artigo que traga essas questões não seria muito genérico em uma publicação focada nas questões da Educação Infantil. Contudo, a perspectiva histórico-cultural acerca do desenvolvimento infantil tem estado presente na maioria dos documentos curriculares norteadores da Educação Infantil, justificativa que por si ressalta a importância de dedicarmos espaços de reflexão sobre essa teoria que fundamenta "formas de olhar" para a criança nos espaços coletivos de desenvolvimento, tais como as creches e pré-escolas. Nesse sentido, a autora traz em seu texto algumas noções bastantes disseminadas no Brasil no escopo da teoria de Vigotski, o que pode abrir espaços para (re)pensar aspectos especialmente relacionados a como a criança aprende, à brincadeira, à relação pedagógica, ao ambiente de aprendizagem etc.

Na seção 2, "Educação Infantil: questões da prática pedagógica", o conjunto dos artigos ilumina temas fundamentais que devem ser foco de reflexão no que se refere ao desenvolvimento curricular no contexto de creches e pré-escolas.

No capítulo 5, "Letramento e alfabetização na Educação Infantil, ou melhor, formação da atitude leitora e produtora de textos nas crianças pequenas", de Suely Amaral Mello, a autora traz para a reflexão um importante tema que é palco de debates e disputas que ilustram as diferentes concepções que se tem acerca do assunto.

O artigo busca esclarecer a adoção do uso da terminologia "formação da atitude leitora e produtora de textos nas crianças pequenas", em vez de letramento e alfabetização. Para tanto, a autora apresenta sua compreensão e críticas acerca da ideia de alfabetização e letramento, especialmente destacando a realidade da Educação Infantil. Assume a noção de "cultura escrita" como sendo mais adequada à compreensão do campo de aprendizagens aqui relacionado.

Para ela, ambas as palavras, alfabetização e letramento, por sonoridade, lembram alfabeto e letra, o que as aproxima do processo de aprender o aspecto técnico da escrita, o que não seria uma tarefa da Educação Infantil, mas do ensino fundamental.

Como o debate é contraditório, a autora não deixa de mencionar que a noção de letramento surge no vocabulário escolar diretamente relacionada à utilização da escrita em sua função social. Nesse sentido, como a noção de letramento tem uma amplitude maior do que a indicada no texto, vale considerar outras leituras de forma a não reduzir uma discussão profunda a uma escolha de terminologias. Essa não deixa de ser uma tarefa dos contextos de formação e dos formadores responsáveis por possibilitar a crítica contextualizada das práticas a partir de seus fundamentos.

No decorrer do texto, a autora reflete criticamente acerca de algumas praticas pedagógicas no ensino da escrita e da leitura, o que ressalta a importância dessa reflexão no campo da Educação Infantil. Campo esse que, muitas vezes, resiste a pensar de forma mais sistemática em suas formas de ensinar a criança pequena.

No capítulo 6, "A relação com as famílias na Educação Infantil: o desafio da alteridade e do diálogo", Daniela Guimarães traz a noção de alteridade em Bakhtin para pensar a relação família-instituição de Educação Infantil. A autora instiga o leitor ao desafiar que na construção dessa relação "Não se trata de compreender o outro com o ­objetivo de trazê-lo para os próprios referenciais, na busca de totalizá-lo, mas de oportunizar contato, troca, sem diluição das fronteiras" (p. 89).

Nesse cenário, questiona importantes posições que ainda vemos frequentemente assumidas nas instituições de Educação Infantil, que vão da cristalização de estereótipos de famílias a atitudes de tentativas de substituição das mães. Além do julgamento bastante comum de colocar a família em um lugar de "não saber" em relação à educação dos filhos. Falas de professoras de Educação Infantil são analisadas com vistas a iluminar os meandros dessa relação, a da instituição com as famílias, o que concretiza mais significativamente a presença das diversas concepções mencionadas no texto.

Os capítulos 7 e 8 compõem conjuntamente uma seção específica que aborda as "Relações étnicos-raciais na Educação Infantil". A importância dessa temática presente na publicação deve ser ressaltada pela atualidade da questão no cenário da educação em seus diferentes níveis, o que não exclui a Educação Infantil.

Joana Célia dos Passos, no capítulo 7, articula os atuais norteamentos legais às tensões que podem ser observadas no cotidiano das vivências das crianças, nos espaços das instituições de Educação Infantil. Para tanto, o artigo possibilita um resgate de diversas referências tanto no que se refere a uma abordagem mais ampla acerca das reflexões sobre as relações étnico-raciais na educação quanto na especificidade da Educação Infantil.

Algumas questões são apontadas pela autora, dentre as quais algumas que são bastante desafiantes aos programas e ações de formação de professores, a saber: "em que momentos se evidenciam as relações étnico-raciais na Educação Infantil? Que tensionamentos as questões étnico-raciais trazem ao cotidiano das creches e pré-escolas? Como as professoras têm lidado com essas questões?", dentre outras.

O artigo nos dá pistas sobre algumas reflexões já feitas na área, o que pode subsidiar importantes debates junto a gestores e professores da Educação Infantil, e nos deixa o desafio de consolidar práticas cotidianas que efetivem os princípios éticos, políticos e estéticos que devem nortear os projetos político-pedagógicos de uma educação para a infância.

O capítulo 8, "As creches e a iniciação e as relações étnico-raciais", de Anete Abramovicz, Tatiane Cosentino Rodrigues e Ana Cristina Juvenal da Cruz, de certa forma, aprofunda a reflexão sobre a questão das relações étnico-raciais no âmbito da instituição educativa ao trazer para o debate as discussões propostas por Guattari, Deleuze e Foucault.

De certa forma, a proposta de complexificar o debate culmina com a pergunta que é como interagir, compreender e significar o outro em sua alteridade, sem domesticá-lo, naturalizá-lo, reduzi-lo a um lugar de identificação. Em resposta a esse desafio, as autoras apontam para o reconhecimento do "pensamento negro" como "uma resistência, ou a resposta mais forte à experiência da escravidão, da colonização e da segregação" (p. 134). Há que se destacar com as autoras o quanto esse caminho de reflexão também não viabiliza a consolidação de formas de convivência que possibilitem constituir as diversas diferenças dos sujeitos.

Por fim, ampliando a reflexão para as Políticas para a Educação Infantil (Seção 4), a publicação contempla as discussões acerca da formação de professores e da avaliação na Educação Infantil.

O capítulo 9, de Marilene Dandolini Raupp, "Concepções de formação de professoras de Educação Infantil na produção científica brasileira", traz reflexões que contribuem diretamente para pensar o papel do professor de Educação Infantil no cenário brasileiro. Isso porque a autora parte do reconhecimento, difícil de superar, da dicotomia que ainda se estabelece entre Educação Infantil e "escola", crítica essa já apontada, a partir de outra perspectiva, por Kuhlmann Jr. e Fernandes, no capítulo 2 da mesma publicação.

Seguindo em sua análise, a autora constitui a importante reflexão sobre a formação de professoras de Educação Infantil na superação da dicotomia antes referida e, portanto, na direção de uma complexificação da atuação e profissionalização dessa etapa da educação.

No capítulo 10, "Avaliação na Educação Infantil: velhas tendências e novas perspectivas", Eliana Bhering e Jodete Fülgraf abordam as formas de avaliação das crianças feita por seus educadores nas unidades de Educação Infantil, além de explorar as possibilidades de avaliação da qualidade dos processos educativos efetivados nas creches e pré-escolas.

As autoras propõem um exercício de reflexão importante que abrange a avaliação como um processo que inclui os diferentes ­âmbitos de concretização das políticas e práticas da Educação Infantil, partindo do monitoramento da rede, da avaliação institucional até ­acompanhamento do trabalho desenvolvido junto à criança e o próprio desenvolvimento da criança contextualizado nesse cenário.

Esse processo de desenvolvimento curricular da Educação Infantil e sua avaliação giram em torno da qualificação das práticas de atendimento em creches e pré-escolas. Nesse sentido, as autoras não se furtam a apontar, a partir de documentos oficiais e resultados de pesquisa, eixos em que se concretizam a qualidade da Educação Infantil.

Por fim, algumas possibilidades de registro e instrumentos de reflexão e observação dão mostras de que a avaliação, inúmeras vezes reduzidas a provas e diagnósticos pontuais, pode adquirir na Educação Infantil status de ferramenta de construção da qualidade no que se refere às políticas educacionais e práticas pedagógicas.

Diante da amplitude e da riqueza dos debates trazidos nos diversos artigos dessa coletânea, destacamos essa publicação como um registro de aspectos do debate desenvolvido no contexto da experiência de formação da Universidade de Santa Catarina que pode contribuir com outras experiências de cursos de especialização. Mais que isso, ainda constitui importante material formativo, pois, como apontamos inicialmente, de forma geral, faz convergir temas fundamentais no debate atual da Educação Infantil, por leituras panorâmicas e problematizadoras de aspectos que compõem essas questões.

Marisa Vasconcelos Ferreira
Docente do Curso de Especialização em Gestão Pedagógica e Formação em Educação Infantil, no Instituto Superior de Educação Vera Cruz. Desenvolve pesquisa sobre a Avaliação da Educação Infantil na Fundação Carlos Chagas, t_mferreira@fcc.org.br

Revista Cadernos de Pesquisa

Teorias de currículo


Idelsuite de Sousa Lima

Professora adjunta da Unidade Acadêmica de Educação do Campo, do Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG (PB) idel.lima@uol.com.br


ALICE CASIMIRO LOPES, ELIZABETH MACEDO SÃO PAULO: CORTEZ, 2011. 280 P.

Apresento, neste texto, uma resenha do livro Teorias de currículo, de autoria de Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo, uma publicação marcante, com notável distinção e elegância. Com efeito, o campo do currículo no Brasil é contemplado com a divulgação de mais uma obra específica, levada a efeito pela editora Cortez, vindo suprir uma lacuna nos cursos de pedagogia e licenciaturas e até nos cursos de pós-graduação em educação.

A ousadia de publicar um livro denominado Teorias de currículo é reconhecida pelas próprias autoras, pela complexidade temática, geradora de questionamentos, circunstanciada pelos riscos de inclusões e exclusões próprias ao desafio de apresentarem um texto com essa envergadura. Ao elencarem as motivações para a elaboração da obra, Lopes e Macedo afirmam que a escrita sinóptica cerca-se de muitos riscos, sobretudo porque, entre outras alusões, os "perigos são intensificados numa contemporaneidade em que a ideia de fundamento é posta em xeque" (p. 9). Todavia, a ausência de produções textuais com essa abordagem torna justa a suposta audácia de sua escritura, constituindo-se numa salutar intrepidez, num ato corajoso para tornar possível sua edição.

As autoras iniciam o livro situando os muitos perigos que circundam a sua produção, e enfrentam a provocação sem, no entanto, pretenderem fixar sentidos. Relatam a dificuldade na organização e eleição dos temas, tendo em vista a hibridização do campo curricular, com enfoques e perspectivas múltiplas. Abordam proposições teóricas, lançam ideias, ampliam a possibilidade de comunicação do campo, referenciam significados, sem, entanto, se distanciarem dos textos originais.

Trata-se de um texto que tem relação com o aspecto autobiográfico que expressa. Abrange uma discussão intensa, com redação e linguagens acessíveis, abordando, com rigor, premissas substancialmente importantes para os estudos do campo curricular. O livro é composto por onze capítulos, cuja abordagem temática focaliza contextos espaço-temporais diversos, ao mesmo tempo em que dialoga com tendências, perspectivas, epistemologias, deslocamentos e desconstruções, fazendo emergir percursos de autoria na consecução dos processos investigativos vivenciados pelas autoras.

No primeiro capítulo, nomeado "Currículo", as autoras antecipam o posicionamento acerca da impossibilidade de responder à pergunta "O que é currículo?", uma vez que a escrita e definição de um termo traz embutido o conjunto de perspectivas e conotações em que a acepção está inserida. Preferem considerar que o movimento de criação de novos sentidos para o termo currículo remete a sentidos prévios, ainda que para negá-los ou para reconfigurá-los; por isso a opção de atentar para sentidos que têm se tornado mais salientes no decorrer da existência dos estudos do campo.

Nesse capítulo, as autoras historicizam a trajetória dos estudos curriculares, referenciando autores e fundamentos que se tornaram relevantes na historiografia desses estudos. Situam origens e abordagens que foram acompanhando o desenvolvimento do campo; retratam discussões levadas a efeito pela influência dos movimentos do início da industrialização americana e, nos anos 1920, no Brasil, com o movimento da Escola Nova, em que a tônica da decisão sobre "o que ensinar" ganha fôlego, o que leva muitos autores a associarem o início dos estudos curriculares a esse período.

O capítulo dois, denominado "Planejamento", aborda o tema mais recorrente para a noção de currículo da tradição, que o concebia como o estudo das formas de planejá-lo. Essa noção de planejamento ainda é bastante forte no meio educacional brasileiro, compreensão que se estende também sobre o currículo. Para apresentar historicamente o tema, as autoras focalizam a racionalidade tyleriana, cuja influência no Brasil foi marcante, principalmente até meados dos anos 1980, com resquícios tênues, mas muito presentes em reformas educacionais.

As autoras fazem uma retrospectiva da elaboração curricular de Tyler, relacionando-a à abordagem do currículo por competência, utilizada por César Coll, organizador de propostas curriculares de vários países, inclusive do Brasil. Lopes e Macedo não se restringem a relatar os estudos sobre o tema, mas sugerem possibilidades de pensar o planejamento curricular a partir de outras bases teóricas, incorporando discussões pós-estruturais. Nessa direção, indicam o movimento desenvolvido por Pinar e, na mesma linha autobiográfica, destacam a ideia de "currículos centrados nas histórias de vida dos sujeitos a partir das quais os 'conteúdos' curriculares se tornam existencialmente significativos" (p. 66). Fazem referência à experiência de planejamento em torno de temas culturais, defendida por Sandra Corazza, em publicações nos anos 1990, que compreende o planejamento como um texto pedagógico produzido nas escolas e o ato de planejar como uma prática deliberada de construção de outros significados curriculares.

O terceiro capítulo é alusivo ao "Conhecimento". De acordo com as autoras, esse talvez seja o tema que congrega maior destaque ao longo da história do currículo. Em torno do questionamento sobre qual conhecimento deve ser ensinado, as discussões acerca do que é currículo ganham força e servem de respaldo para a consecução daquilo que diferentes concepções e interesses colocam em apreço. É, pois, sobre o conhecimento a ser ensinado-aprendido que finalidades da escolarização tomam corpo e se edificam.

O quarto capítulo, "Conhecimento escolar e discurso pedagógico", é apresentado em três tópicos: transposição didática, recontextualização e principais contribuições da recontextualização e da transposição didática para as teorias de currículo. Lopes e Macedo afirmam que questões curriculares estão diretamente relacionadas com o processo de transformar os saberes legitimados socialmente em matéria escolar; daí porque algumas teorizações se desenvolveram no sentido de procurar entender o processo de pedagogização para fins de ensino e seu impacto na organização do conhecimento.

Finalizando o capítulo, as autoras apresentam as principais contribuições das teorias da transposição didática e da recontextualização para as teorias de currículo, evidenciando-a como uma teoria potente para análise das políticas de currículo, uma vez que há um processo inerente à circulação de discursos e textos geradores de diferentes leituras contextuais, permitindo conceber que a "recontextualização pode se desenvolver pela produção de híbridos culturais" (p. 106).

O título do quinto capítulo é "Disciplina" e trata, entre outros assuntos, da concecução de finalidades educacionais por meio das disciplinas, considerando a organização disciplinar como uma técnica de organização e controle de saberes, sujeitos, espaços e tempos na escola. Salientam que essa organização disciplinar vigora em currículos de diferentes países, configurando uma noção de currículo centrado nas disciplinas. Abordam a teorização de Ivor Goodson, pesquisador da história das disciplinas escolares, para quem a disciplina escolar não é decorrente de uma simplificação de conhecimentos de nível superior para o nível escolar, mas "construída social e politicamente nas instituições escolares, para atender a finalidades sociais da educação" (p. 119).

As autoras fazem referência aos estudos de Popkewitz, para quem não há um saber a priori, mas lutas políticas que se hegemonizam em campos disciplinares. Lopes e Macedo afirmam que "as disciplinas são construções sociais que atendem a determinadas finalidades da educação e, por isso, reúnem sujeitos em determinados territórios, sustentam e são sustentadas por relações de poder que produzem saberes" (p. 121).

"Integração curricular" é o tema do sexto capítulo. Nele, as autoras relatam que a noção de currículo integrado tem perpassado a história do currículo com denominações diversas, entre elas a de currículo global, interdisciplinar, currículo transversal e metodologia de projetos. Em razão dos princípios utilizados como base de integração, as propostas se pautam em três modalidades: integração pelas competências e habilidades a serem formadas nos alunos; integração de conceitos das disciplinas, mantendo-se a lógica dos saberes disciplinares de referência; abordagem de integração das políticas mais amplas, com respaldo em demandas sociais.

As autoras mencionam os propostos da interdisciplinaridade e destacam os estudos de Veiga-Neto, que defende os projetos pluridisciplinares, aceitando, assim, a legitimidade das disciplinas, quer do ponto de vista epistemológico, quer do ponto de vista contextual, uma vez que assim são organizados os currículos. Na sua visão, através dos tempos, o currículo tanto é um produto quanto é capaz de produzir formas de pensar.

No sétimo capítulo, "Prática e cotidiano" ganham destaque. Esse é mais um tema relevante e as autoras informam que ele acompanha o desenvolvimento da teorização do campo do currículo, assumindo diferentes sentidos. Referem-se a abordagens da teoria do currículo que se têm, historicamente, voltado para a discussão da prática e do cotidiano dos sujeitos, e destacam que o foco de tais pesquisas é a busca pelo entendimento da "epistemologia" da prática.

O oitavo capítulo chama-se "Emancipação e resistência". As autoras registram que o deslocamento dos estudos curriculares das análises macrocontextuais para a escola passa por dois movimentos: os estudos que elegem a prática e o cotidiano, desnaturalizando a separação entre desenvolvimento e implementação curricular, e outros que se contrapõem às teorias da correspondência e da reprodução. Neste capítulo, dão relevo ao segundo eixo – teoria da resistência –, cujo propósito é "entender a escola como lócus de luta por hegemonia e não como reflexo determinado das relações hegemônicas" (p. 165).

Lopes e Macedo destacam os principais estudiosos da resistência, salientando que a divulgação dessa perspectiva no Brasil é influenciada pela literatura inglesa, haja vista a sua maior influência nas obras publicadas no Brasil. Enfatizam aspectos significativos da teoria da resistência e salientam o deslocamento de trabalhos de determinados teóricos, principalmente os de Henry Giroux, para a temática da emancipação, como um avanço significativo em relação aos estudos curriculares. Entre os estudos brasileiros sobre emancipação, destacam-se as pesquisas de Inês Barbosa de Oliveira, que trabalha com alternativas curriculares emancipatórias, a partir dos estudos com o cotidiano.

As autoras revelam propósitos de ressignificação da resistência e da emancipação a partir da incorporação dos aportes teóricos pós-coloniais e da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, inclusive em seus próprios trabalhos. Defendem que há múltiplas demandas particulares de projetos emancipatórios em busca de hegemonização, em contextos diversos, "uma proposta contingencialmente construída, em lutas culturais e políticas" (p. 183).

No nono capítulo, "Cultura" dá título ao texto. Em consequência da multiplicidade de sentidos que o conceito congrega na teoria curricular, as autoras anunciam que a abordagem dessa temática não é uma tarefa simples. Salientam que, tradicionalmente, nas perspectivas funcionalistas, a principal função da escola seria a socialização dos sujeitos, levando-os a partilhar uma mesma cultura, mas, contemporaneamente, "essa cultura, de caráter universal, é posta em questão por sociedades que se mostram, a cada dia, mais multiculturais" (p. 185).

As autoras ressaltam as contribuições teóricas de Stuart Hall e Henry Giroux, situando a importância do contato do campo do currículo no Brasil com os estudos culturais, ocorrido durante a segunda metade dos anos de 1990. Citam um texto emblemático para os estudos curriculares, de autoria de Stuart Hall, denominado A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais de nosso tempo, publicado em 1997. A partir de Stuart Hall, surge o entendimento de que assumir a perspectiva pós-estrutural significa "aceitar que todo e qualquer sentido somente pode ser criado dentro de sistemas de linguagem ou de significação" (p. 202).

Lopes e Macedo reconhecem a importância dos trabalhos de Tomaz Tadeu da Silva, no Brasil, em seus diálogos com Foucault, Derrida, Deleuze, Gatarri. Destacam autores como Nestor Canclini e Home Bhabha, que são referências importantes nos estudos mais recentes do campo do currículo no Brasil, "exemplos de diferentes formas como a cultura como processo híbrido de representação pode ser apropriada" (p. 208).

O décimo capítulo trata de "Identidade e diferença". As autoras anunciam que, ao tratarem dessa temática, estão atentas em considerar "aspectos das identidades que se relacionam com a participação dos atores sociais em determinados grupos" (p. 216). Para isso, abordam questões que interrogam os mecanismos sociais discursivos de estabilização das identidades. Argumentam sobre a importância de pensar a diferença cultural para além da identidade.

Autores como Stuart Hall, William Pinar, Homi Bhabha, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe referenciam os estudos das autoras do texto. Com base em tais fundamentos, salientam a fluidez das identificações e o entendimento dos sujeitos descentrados e políticos. As autoras propõem, por fim, um currículo instituinte, no sentido de desconstruir discursos, desconstruir hegemonias.

O último capítulo do livro é dedicado à "Política". Nele, expressam-se discussões sobre a separação entre projeto e implementação curricular, as políticas de currículo e o foco na estrutura econômica, a abordagem do ciclo de políticas e, para além desta, os discursos na política de currículo. As autoras sistematizam a escrita do texto apresentando algumas das principais concepções de política a partir de estudos que abordam diferentes perspectivas e teorizações, como a administrativa, a ciência social, os estudos estruturais e pós-estruturais. Assinalam que, tanto no Brasil quanto no exterior, grande parte das análises curriculares é mais voltada à crítica de documentos e projetos do que às investigações relacionadas com as políticas de currículo.

As autoras destacam as contribuições dos estudos de Ball para análise de políticas de currículo, mas aprofundam a discussão, incorporando a teoria do discurso de Ernesto Laclau. Entendem que "qualquer discurso é uma tentativa de dominar o campo da discursividade, fixar o fluxo das diferenças e construir um centro provisório e contingente de significação" (p. 252). Concluem, afirmando que o currículo é uma luta política por sua própria significação e que a divulgação da obra é também uma forma de participar dessa luta.

A partir da leitura de Teorias de currículo, é possível afirmar que as discussões apresentadas, os autores citados, os textos referenciados constituem um arcabouço teórico para estudos interpretativos do campo curricular, potencializando novos estudos, novos sentidos para essa área. Uma leitura indispensável para os que se dedicam à disciplina Currículo em cursos de formação de professores, aos pesquisadores do campo, aos estudantes das licenciaturas e professores de modo geral. O texto é instigante e as contribuições dos estudos evidenciados dão margens a novas interpretações, podendo gerar outros movimentos, outros sentidos, novos significados.
Revista Cadernos de Pesquisa

Infância em perspectiva


Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições Müller, Fernanda (org.) São Paulo: cortez, 2010. 256 p.

Marina Fernandes
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília - PPGE/FE/UnB. E-mail: marinafernandes@unb.br

A análise da infância contemporânea ocidental tem incorporado críticas do senso comum, sobretudo por seus novos hábitos: horas a fio em frente a videogames, desenvolvimento psicomotor dito tardio pela frequência com que são utilizadas determinadas tecnologias limitadoras do movimento das crianças, falta de brincadeiras de rua. A sociedade apresenta respostas para esses novos hábitos optando cada vez mais por equipar a casa para o divertimento dos filhos, pois faltam espaços públicos seguros nas cidades. Todas essas críticas, verdadeiras ou não, refletem uma análise baseada na nostalgia dos adultos em relação às suas infâncias, como já escrevia Bachelard.1 Ou seja, ao pensar no ideal de infância, é comum recorrermos às próprias experiências de infância e, partir dessa referência, é provável que encontremos respostas equivocadas às noções de infância.

Se olhar para a infância com nostalgia não é algo novo na humanidade, mais antigo ainda é deixar de olhar para as crianças. No Brasil, o primeiro estudo sobre o comportamento coletivo de crianças data dos anos 1940.2 Segundo Trent,3 esses estudos não são tão recentes assim no meio internacional, mas os problemas de pesquisa estiveram mais voltados a questões de saúde e desenvolvimento individual das crianças. Aqui, o tema de repercussão foi a criança em situação de vulnerabilidade social. Mais recentemente, a criança ganha visibilidade como sujeito sociológico quando é considerada competente para dar respostas sobre sua própria vida. Apenas a partir dos anos 1980, estudos europeus e estadunidenses sobre a infância começam a considerá-la como uma construção social, e não mais como uma fase natural da vida humana que necessita de socialização adulta.4

Nesse contexto, é perceptível que limitar o estudo da infância a um único campo de conhecimento, uma única lente, tende a se tornar incompleto, insatisfatório. A infância é uma categoria geracional e social e, portanto, precisa ser estudada a partir de vários olhares. É com essa necessidade que emerge o livro Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições. A capa já sugere reflexões importantes, ao apresentar a imagem de uma criança em diversos ângulos, com diferentes recortes, o que reflete a intenção e defesa da obra: o esforço interdisciplinar necessário ao estudo da infância.

O livro concatena dez artigos de diferentes áreas do conhecimento, a saber: antropologia, educação, enfermagem, filosofia e sociologia. Os autores são oriundos de instituições do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. É nessa multidisciplinaridade que o livro se apresenta com o intuito de investigar a infância a partir das categorias políticas, pesquisas e instituições. Na primeira categoria, são contempladas as diversas legislações e a sua aplicabilidade a todas as crianças nos mais diversos contextos culturais. Sobre a segunda, o livro mostra um conjunto de estudos que foram realizados diretamente com crianças, inovando no campo acadêmico ao considerá-las como sujeitos de pesquisa e construtores de dados em conjunto com os pesquisadores. Na terceira, são apresentados estudos sobre as crianças e a infância nas instituições, mais especificamente na cidade, família e instituições de educação infantil. Nessa categoria, às crianças é perguntado como percebem essas instituições que são planejadas e consideradas importantes para elas.

O livro é organizado em duas grandes partes, além do importante prefácio de Alma Gottlieb e da introdução da própria organizadora da obra: 1. Infância e crianças nas políticas e pesquisas; e 2. Infância e crianças nas instituições. A primeira parte, representada pelos cinco artigos de Alan Prout, Nick Lee, Alexandre Filordi de Carvalho e Fernanda Müller, Rita de Cássia Marchi e Ethel Volfzon Kosminsky, versa sobre a necessidade de escuta às crianças a partir de referenciais não centrados nos adultos e a produção de estudos da infância nas ciências sociais, especialmente na sociologia. A segunda parte, representada pelos outros cincos artigos, quais sejam de Pia Christensen, Berry Mayall, Samantha Punch, Cynthia Andersen Sarti e Damaris Gomes Maranhão e Marita Martins Redin, focaliza as questões que relacionam a infância às instituições sociais, sobretudo a cidade, a família e o contexto das instituições de educação infantil. Nesta parte, é importante ressaltar que, embora a criança tenha sido estudada nas ciências sociais a partir das instituições socializadoras e, por sua vez, tratadas de forma secundária, esses artigos mostram o caminho contrário: como as crianças percebem e se relacionam com essas instituições a partir dos seus próprios pontos de vista.

Ainda que exista uma linha condutora entre as pesquisas da coletânea, além de diversas convergências de ideias e achados, são expostas a seguir características intrínsecas aos campos teóricos e empíricos explorados em cada capítulo.

Ao abordar o tema infância, é quase que inevitável o pesquisador se deparar com dicotomias. É sobre uma delas que o primeiro artigo discorre. Trata-se da ideia de que a infância é entendida a partir de duas imagens sobre as crianças: criança em perigo e crianças perigosas. Criança em perigo sugere imaturidade, vulnerabilidade, inocência e dependência. Criança perigosa nos remete à ideia de necessidade de socialização contínua, sob pena de ela vir a se tornar um perigo à sociedade. Em ambas as noções, não é possível vê-la como autônoma, racional ou capaz de entender sua própria vida, ora precisando dos adultos para proteção, ora precisando das instituições para socialização. Para desconstruir essa ideia, é necessário, portanto, associar as concepções de cultura e lideranças no entendimento da infância.

O segundo artigo apresenta uma hipótese e uma sugestão, tendo como referência a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança adotada em 1989. A hipótese é que palavras e categorias bem delimitadas podem facilitar a tomada de decisão de instituições, as ambiguidades, no entanto, permanecem a perturbar sua organização. A sugestão do autor é entender essas ambiguidades a fim de possibilitar mudanças não no âmbito da ausência ou abundância de voz das crianças, mas sim da sua ambiguidade enquanto falantes. Embora a Convenção seja criticada pelo autor em alguns momentos, principalmente no que se refere à sua ambiguidade, é perceptível que há a garantia da escuta à voz das crianças como direito delas (mesmo que a forma como é colocada não permita sua aplicabilidade).

Ainda sobre a voz da criança, as perspectivas metodológicas na pesquisa com crianças apresentam formas de garantir esse direito a elas no estudo da infância. É nesse contexto que se insere o terceiro artigo. Mesmo que o pesquisador se disponha a levar em consideração a fala da criança, é necessário atentar para as relações hierárquicas de poder e à desigualdade que sempre existirão entre adultos e crianças. Também é preciso investir em diferentes linguagens para se aproximar da maneira como as crianças se expressam, sem se limitar à fala e à escrita. Desenhos e fotografias são bons recursos metodológicos para se aproximar dessas representações das crianças. Perceber que existe uma relação hierárquica na pesquisa, na chegada ao seu objeto e na escolha de seus instrumentos é essencial, já que a construção da pesquisa não é necessariamente a preocupação da criança.

O entendimento da criança como protagonista de sua realidade social sugere que alguns temas de pesquisa somente possam ser estudados a partir do ponto de vista dela. O quarto artigo, além de ir ao encontro dos outros ao discorrer sobre a emergência da sociologia da infância, aponta para a questão de ordem essencialmente política em que a concepção de infância se enquadra, ainda que não seja reconhecida como tal na sociologia. Segundo a autora, sociólogos da infância têm alertado para o caráter político da construção social da infância. Ela aborda ainda a relação existente entre o processo de individualização e a construção social da infância.

Para finalizar a primeira parte da coletânea, o quinto artigo trata das lacunas do conhecimento sobre a infância que se transformam em pesquisas com crianças. É importante ressaltar que a autora também explora o tema da juventude, não focando apenas a criança. Para isso, apresenta o Núcleo de Estudos da Infância e da Adolescência - Neia - , grupo de pesquisa e discussão do qual a autora faz parte. Nesse contexto, as categorias infância e juventude são apresentadas a partir de uma análise histórica e categorial que a autora propõe. Para concluir, é ressaltada a opção pela abordagem interdisciplinar por ser, na visão da autora, a mais adequada e rica para o entendimento da infância.

Na segunda parte, ao apresentar pesquisas com crianças sobre as instituições sociais que regram e influenciam suas vidas, as autoras mostram a necessidade de reconhecer e compreender as ressignificações das crianças sobre essas instituições, considerando-as protagonistas de suas vidas. Os espaços destinados a elas são planejados e elaborados por adultos que dizem entender o que é ideal para as crianças sem, muitas vezes, tê-las consultado. Sendo assim, essa parte corrobora a ideia que já fora apresentada na introdução de que "o espaço só faz sentido quando articulado às relações sociais; isso é óbvio, mas a visão do adulto, muitas vezes, perde essas pistas, principalmente ao pensar e executar políticas voltadas para as crianças" (p. 16).

Explorar os espaços, suas texturas, suas estruturas a partir da lembrança dos adultos sobre sua infância é importante, e é o que tem sido feito por uma abordagem tradicional. O sexto artigo propõe um estudo inovador. Ao investigar lugares e espaços, a autora busca o conhecimento das crianças sobre sua localidade, identidade e vida cotidiana. A autora chega à conclusão de que essa compreensão é necessária para a mudança do ambiente físico em que vivem, ou seja, é preciso promover a participação das crianças na tomada de decisão sobre alterações na localidade em que vivem. Além disso, a autora ainda explora a relação existente entre a biografia das crianças, o movimento e o conhecimento do espaço e do lugar.

Estudar a infância requer estudar a família na qual a criança está inserida para entender o papel socializador atribuído a ela ao longo do tempo.5 O sétimo artigo aponta a necessidade de considerar as relações intergeracionais sob três categorias: socialização, família em mudança e interdependências. A autora descreve alguns pontos de partida que norteiam o seu trabalho e chega à conclusão de que as crianças são ignoradas conceitualmente até mesmo em outros campos do conhecimento como a economia, ainda que o planejamento familiar confirme a participação da criança nas finanças da casa. Entender a escolarização da infância como molde para a vida das crianças não é suficiente, visto que as percepções que elas têm sobre suas vidas são presentes a partir dos seus próprios pontos de vista.

Ajustada à perspectiva metodológica de considerar a hierarquia entre sujeito de pesquisa (criança) e pesquisador, a hierarquia dentro da família é confirmada pelos privilégios que pais dão aos filhos de acordo com as idades e ordem de nascimento. O oitavo artigo se remete às experiências fraternais vividas por crianças, à luz da sociologia da infância, já que essa temática vinha sendo estudada apenas sob a perspectiva da psicologia. Toda relação humana envolve poder. As crianças organizam brincadeiras com relações hierárquicas. As brincadeiras são complexas, incorporam questões da cultura e outras que são próprias das culturas infantis. Portanto, a hierarquia existente na família também é socialmente construída e a posição na ordem de nascimento sugere limitações e possibilidades às crianças, mostrando que essas duas concepções estão periodicamente sujeitas a negociações.

Ainda ao encontro da ideia de construção social, os papéis exercidos pela família são socialmente construídos antes mesmo de a criança nascer. Essa ideia é importante no momento em que as políticas públicas são elaboradas para a infância. Qual o papel das demais instituições socializadoras quando confrontadas com a família? Essa é uma das perguntas que o nono artigo responde à luz da função da creche. O estudo destaca a importância de construir uma rede social de proteção à infância que possibilite o fortalecimento das instituições que educam as crianças e cuidam delas, assim como a escola e a família, a fim de garantir o atendimento às necessidades e aos direitos da criança.

Alguns apontamentos da prática com crianças na educação infantil têm se mostrado relevantes na defesa da ideia de que profissionais dessa área precisam ter conhecimento específico sobre a infância e a necessidade das crianças. O décimo artigo mostra que as instituições parecem estar formatadas no intuito de enquadrar crianças, produzindo um padrão. Essa inadequação está ligada à ideia da necessidade de socialização das crianças que, se não forem submetidas a esse regime, podem se tornar crianças perigosas, o que também é abordado pelo primeiro artigo desta obra.

Os artigos da coletânea, embora originados em diferentes campos, apresentam pontos-chave em comum no entendimento do objeto infância e do sujeito criança: a infância é um período socialmente construído; é uma forma estrutural, porque permanece ainda que os sujeitos cresçam e não façam mais parte da infância;6 é um conceito culturalmente/socialmente construído; a infância não pode ser confundida com fases do desenvolvimento humano, e muito menos com imaturidade; precisa ser reconhecida como ela própria para não ser entendida como uma preparação para a vida adulta; crianças são agentes ativos; produtores de cultura e contribuem para a produção do mundo adulto.

Se o objetivo da obra era explorar a infância a partir de vários referenciais teóricos e campos empíricos, ela conseguiu contribuir na composição de um mosaico para entender a criança, já presente na capa do livro. Além disso, chama a atenção para o diálogo necessário entre os estudos acadêmicos e as políticas voltadas para a infância. E, por fim, abre horizontes para que os grupos de pesquisa se relacionem a fim de investigar esse fenômeno complexo que é a infância de forma mais colaborativa.

1 BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
2 FERNANDES, Florestan. As "Trocinhas" do bom retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. Pro-posições, Campinas, v. 15, n. 143, p. 229-250, jan./abr. 2004.
3 TRENT, James. A Decade of declining involvement: American sociology in the field of child development, the 1920s. Sociological Studies of Child Development, v. 1, p. 11-38, 1987.
4 Ver: MONTANDON, Cléopâtre. Sociologia da infância: balanços dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 33-60, mar. 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cp/n112/16100.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
SIROTA, Régine. Emergências de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 7-31, mar. 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cp/n112/16099.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
5 ARIÈS, Philippe. Centuries of childhood. Harmondsworth: Penguin, 1960.
6 QVORTRUP, Jens. Childhood in Europe: a new field in social research. In: CHISHOLM, Lynne et al. Growing up in Europe: contemporary horizons in childhood and youth studies. New York: W. de Gruyter, 1995. p. 7-19.
CORSARO, William. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
Revista Cadernos de Pesquisa

A voz e a escuta


A voz e a escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea

Arlene Martinez Ricoldi
Socióloga, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas. aricoldi@fcc.org.br

MIRIAM ADELMAN. SÃO PAULO: BLUCHER ACADÊMICO, 2009. 246 p.

A obra é uma síntese original e, talvez, uma das poucas em língua portuguesa sobre o assunto. A Voz e a Escuta discute a relação entre sociologia e feminismo, desde a década de 1960, em que a Voz representa as teorias feministas e a Escuta, a audição seletiva da disciplina sobre seus questionamentos. Resultado de doutoramento, a obra é madura e bem construída, devido, em grande parcela, à experiência acumulada da autora. A introdução é de leitura indispensável, pois reconstrói a trajetória singular dessa americana, aqui radicada desde a década de 1990, testemunha da introdução dos estudos de gênero na academia, entre Estados Unidos, México e Brasil.

O texto inicia apresentando a gênese histórica e social do feminismo e das "novas formas de pensar" (p. 54, nota 46) que emergem a partir dos anos 1960, com raízes no pós-guerra. Revisa os principais elementos constituintes da "década mítica", com referências literárias e cinematográficas: a geração beat, na década de 1950, e sua revolta contra o establishment e, posteriormente, o surgimento da Nova Esquerda e da contracultura. Todos esses movimentos, literários, políticos ou sociais, fizeram críticas mais ou menos elaboradas ao modelo cultural dos anos 1950, abrindo oportunidades para o surgimento para "novas formas de pensar". Um aspecto peculiar dessas novas formas de pensamento é que foram elaboradas a partir de novas trocas entre os grupos sociais, local e globalmente. Essa é a tônica da autora durante todo o texto. Ela mostra como a aproximação e o diálogo com o que, até então, era concebido como "Outro" (o Oriente, o Terceiro Mundo, as mulheres, os negros) reelabora as formas de pensamento.

Enquanto a Nova Esquerda questionava as formas tradicionais de fazer política, considerando valores pós-materiais, a contracultura reelaborava o cotidiano. Em especial na chamada contracultura, há questionamentos embrionários sobre os possíveis lugares das mulheres nos seus projetos, já que a família, a moral sexual convencional e o poder tradicional estavam sendo postos em xeque. A liberalização dos costumes, por vezes, representava em uma armadilha para as mulheres, ao se traduzir na obrigação de sempre estar sexualmente disponíveis para os homens. Esforços de organização autônoma de mulheres surgiram para debater suas questões nos chamados grupos de autoconsciência (consciousness raising groups). Nos movimentos sociais dos anos 1960 e no interior da Nova Esquerda, muitas mulheres começaram a contestar sua posição subalterna.

No campo científico, o surgimento das novas formas de pensar levou a uma mudança de paradigma que repercutiu na epistemologia e na sociologia do conhecimento. Entre elas, desenvolvimentos posteriores das correntes etnográficas da Escola de Chicago (etnometodologia e interacionismo simbólico), as releituras marxistas a partir da psicanálise, as novas problematizações das relações entre estrutura e agência e as insuficiências da centralidade da classe como conceito explicativo, o pós-estruturalismo e a chamada "virada cultural". Esses desenvolvimentos, com raras exceções, ainda estavam assentados em visões androcêntricas dos novos atores.

Imersa nesse caldo intelectual, a perspectiva feminista começa a introduzir suas críticas, que irão culminar na "emergência e construção da teoria feminista contemporânea" (p. 85). A autora dedica boa parte do terceiro capítulo a explicar a ruptura epistemológica provocada pela obra de Simone de Beauvoir. A feminista francesa foi a primeira a chamar a atenção para o profundo viés masculinista dos cânones científicos, isto é, o conhecimento legitimado. Aceitar esse questionamento, portanto, pressupõe a revisão de todo o conhecimento produzido até então. Em face disso, a autora se posiciona de forma cautelosa: não se trata de invalidar o conhecimento até então produzido, mas de revisá-lo a partir da inclusão do que fora antes silenciado. No caso do feminismo, trata-se de introduzir a diversidade da experiência das mulheres, excluídas do processo de formulação das ciências modernas, cuja admissão se deu somente quando suas instituições e epistemes já estavam constituídas. A mais óbvia consequência disso foi a formulação de questões em um mundo social no qual os homens ocupam o espaço público e as mulheres, o privado, bem como a desvalorização do feminino, identificando as mulheres com a natureza, as emoções e o corpo e os homens com a racionalidade. Durante o século XX, porém, essa tendência de exclusão das mulheres foi revertida, e elas passaram a ingressar cada vez mais no ensino superior e no mundo público.

O feminismo, assim como a psicanálise e a teoria pós-moderna, faria parte do que Flax (19911 apud p. 99) denominou de transitional thinking, um pensamento de transição que rompeu com alguns pontos do pensamento de tradição iluminista, que incluiria uma nova concepção do Eu, corporificado e social, a consideração de gênero como dimensão de análise do social e a revisão de conceitos considerados "clássicos" (como o de trabalho, por exemplo). O desafio posto é, portanto, trabalhar com o conceito de conhecimento/pensamento masculinista que constrói ideias naturalizadas a respeito de gênero a partir de uma série de dicotomias (razão/emoção, natureza/cultura, homem/mulher etc.). Uma nova geração de escritoras e acadêmicas feministas se dedica a compreender o significado da subordinação feminina na releitura de obras clássicas, postura que resultou em desdobramentos a partir das teorias marxistas, da psicanálise e da antropologia.

Para a autora, o impulso crítico do pós-estruturalismo, de forma geral, é que irá contribuir para lançar um dos maiores desafios ao feminismo nos últimos anos: pensar a pluralidade da condição feminina. O problema para o qual chama a atenção é a noção de Mulher Universal, equívoco semelhante e não ocasional ao da ideia masculinista tão criticada de Homem Universal. Foram as feministas negras e as lésbicas que primeiramente apontaram esse equívoco, descontruindo uma experiência universal das mulheres. Esses desafios encontraram obstáculos nas diferentes disciplinas e áreas de conhecimento.

Nesse cenário, a sociologia aparece como a ciência que ficaria em um "lugar intermediário entre a boa disposição antropológica e a cegueira institucionalizada da história e da literatura" (p. 133). Visto que a história e a literatura têm um caráter muito mais interpretativo que a sociologia (em especial, considerando-se a norte-americana), a incorporação de gênero nessas disciplinas exigiria mudanças mais radicais para se criar espaço e voz para as experiências femininas.

A sociologia, por sua vez, incorpora de forma sui generis a perspectiva de gênero: por meio de "mecanismos de contenção", com criação de espaços próprios e a adoção de gênero como mais uma variável descritiva, e não como uma "dimensão que exige profundas reformulações dos conceitos sociológicos mais importantes" (p. 133). A ideia de contenção foi extraída de Stacey e Thorne (1985),2 para analisar o contexto americano, mas que a autora acredita que, com as devidas ponderações, é possível aplicar ao contexto brasileiro.

Sendo assim, a sociologia teria tido uma incorporação menos "problemática", no sentido de pouco alterar as bases tradicionais da disciplina. Mesmo os grandes nomes da sociologia contemporânea no pós-68, como Pierre Bourdieu, Alain Touraine, Anthony Giddens e Jürgen Habermas, citados pela autora (p. 134), incorporam, tardiamente e de forma parcial a discussão sobre gênero. Curiosamente, poucas páginas depois, serão analisados, em subseções de tamanhos irregulares para cada autor, Richard Sennet, Giddens, Touraine e Habermas, nessa ordem. Mesmo que se esclareça que a escolha se deu por se tratar de notórios "teóricos da modernidade", a ausência do anteriormente citado Bourdieu se faz sentir por sua considerável atenção a questões de gênero e sua influência nesses estudos.

Adelman procura mostrar que os autores analisados, embora dialoguem em medidas diferentes com o feminismo, não incorporam o gênero de forma importante em suas análises, mesmo quando reformulam categorias extremamente "generificadas", em especial, aquelas que tratam da dicotomia público/privado. Enquanto Sennet e Habermas dialogam menos (ou quase nada) com a teoria feminista, Touraine, que se aproxima um pouco mais, refere-se ao feminismo de forma abstrata, utilizando o movimento de mulheres como exemplo para corroborar sua teoria, pouco citando autoras feministas. Giddens parece fazer um esforço maior para incorporar gênero em suas análises como um aspecto importante e com alguma centralidade. Sua maior lacuna seria a dificuldade de incorporar um aspecto fundamental nas questões de gênero, raça ou classe: a desigualdade.

Apesar das resistências ao gênero nas principais correntes de pensamento da sociologia, conceitos centrais da disciplina sofreram reformulações importantes a partir dos questionamentos suscitados pela sua formulação. Entre eles, trabalho, consumo, público/privado, pessoa, sujeito e ação social. Gênero eleva a um novo patamar temas como consumo e sexualidade, antes negligenciados, mas que são centrais para compreender a cultura da modernidade. A categoria trabalho é totalmente rediscutida, incorporando o trabalho não pago e o reprodutivo; a noção de care é introduzida no vocabulário político pelas feministas para valorizar o trabalho do cuidado, quase sempre executado por mulheres.

Uma contribuição importante para a revisão do cânone são os estudos pós-coloniais, que, ao lado das teorias feministas, lançaram novo olhar sobre as sociedades modernas. Autores como Edward Said, Stuart Hall e o precursor Franz Fanon são apresentados. Essa teorização é fundamental para realizar a crítica epistemológica que resultou em uma ampliação do sujeito, seu deslocamento e descentramento, bem como a desconstrução dos binarismos típicos da modernidade (margem/centro, Ocidente/Oriente, tradição/modernidade). A ideia principal dos estudos pós-coloniais é mostrar que a colonização não é algo "externo" às metrópoles, reencenando a História. As relações raciais, nessa reencenação, ganharam novo status e centralidade.

Com inúmeros pontos de contato, as relações entre estudos feministas e pós-coloniais são complexas. Nesses últimos, as questões das mulheres podem ser colocadas em segundo plano, ou instrumentalizadas nas lutas nacionalistas (contra e a favor dessas). Porém, defende a autora, o pós-colonialismo, cujas maiores referências são masculinas (Stuart Hall, Edward Said e Homi Bhabhas) teria diálogos importantes com a teoria feminista. Do outro lado, feministas ocidentais foram criticadas por sustentarem uma visão "orientalista" das mulheres do –terceiro mundo, construindo uma "mulher típica", "vítima", "pobre, reprimida e submissa às normas e tradições culturais" (p. 213).

Dessas relações emerge uma visão feminista pós-colonial ou multicultural, que dará centralidade ao complexo jogo de relações de classe, raça, gênero, nacionalidade e orientação sexual, na reconstrução das interpretações históricas. Os processos de tradução cultural são úteis para pensar essas trocas culturais entre Oriente-Ocidente e Norte-Sul, mas também para rever esses fluxos, reconhecendo diferentes percursos. Em lugar de somente pensar a imposição de conceitos e ideias do Ocidente (sem negar que isso também pode ocorrer), considera-se possível aproveitar esses conceitos, traduzindo-os e adaptando-os, realizando "empréstimos voluntários" ou apropriações criativas e críticas dos feminismos ocidentais.

As conclusões de Adelman reafirmam a prevalência dos mecanismos de contenção na sociologia; a incorporação de gênero no cânone ainda é muito discreta, o que resulta em alguns problemas importantes. Grandes autores da disciplina dialogaram com a teoria feminista, porém, essas leituras não deixam de ser "interpretações" (muitas vezes, parciais ou incorretas), não corretamente citadas, o que invisibiliza suas contribuições. Portanto, impede-se aos estudantes o acesso direto às autoras feministas e suas discussões.

O fenômeno da disciplinaridade contribui para a manutenção de temas canônicos. A autora, mais uma vez, contemporiza, defendendo certa manutenção das fronteiras disciplinares. Em lugar de romper fronteiras, defende uma maior "abertura interdisciplinar". Para isso, sugere três "estratégias": 1) um esforço por parte das pesquisadoras feministas de sair dos espaços "confortáveis" da área específica de gênero e se engajar no trabalho de introduzir as teorias feministas no cânone sociológico. A sugestão é que isso seja feito por meio da tradução cultural. No caso brasileiro, o problema da tradução é especialmente importante, pois, sem acesso a materiais em língua portuguesa, a maioria dos estudantes tem acesso apenas às ideias já reinterpretadas pelo cânone; 2) procurar novos interlocutores, frequentando os espaços nos quais são discutidos dos assuntos mais gerais da disciplina; e 3) procurar uma convivência mais intensa com outras áreas disciplinares, para produzir perspectivas mais polifônicas, sem negar a especificidade dos diversos olhares disciplinares e suas contribuições.

O livro de Adelman é importante por resumir diversas influências e referências que constituem o corpus teórico de gênero em seus diversos matizes e correntes teóricas. O peso da literatura de língua inglesa é um viés, mas, por outro lado, devemos lembrar que gênero (ou gender) tem origem nessa língua, daí a importância de compreender o contexto intelectual e histórico de sua criação. A obra se apresenta como uma leitura fundamental para estudantes de diversos níveis que, em contato com estudos de gênero, ainda têm dificuldade de ter acesso às discussões teóricas de fundo sobre o assunto.


1 FLAX, Jane. Thinking fragments: psychoanalysis, feminism and postmodernism in the contemporary West. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1991.
2 STACEY, Judith; THORNE, Barrie. The missing feminist feminist revolution in sociology. Social Problems, v. 32, n. 4, p. 301-316, apr. 1985.
Revista Cadernos de Pesquisa

Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care

 
Gisela Lobo B. P. Tartuce
Socióloga, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas. gtartuce@fcc.org.br

HELENA HIRATA, NADYA ARAUJO GUIMARÃES (ORG.) SÃO PAULO: ATLAS, 2012. 236 p.

O aparecimento de uma nova ocupação e sua posterior análise não é algo trivial. As demandas da sociedade, a consolidação de um corpo de conhecimentos, o credenciamento e reconhecimento sociais, a profissionalização e autonomização de uma categoria ocupacional não acontecem do dia para a noite. Nesse sentido, o care – simples e genericamente, "o cuidado com o outro", "a atenção para com outrem", visando a melhorar o seu bem-estar – não é uma ocupação nova, aqui e alhures: seja o trabalho que envolve o cuidar de crianças, passando por aquele que é dispendido nos afazeres domésticos no seio da família (que podem ser delegados a babás, empregadas domésticas e faxineiras), até aquele que engloba os cuidados na área da saúde, todos esses tipos de trabalho são ocupações consolidadas nos mais diversos contextos sociais da atualidade, cada qual sendo, na maioria das vezes, analisado por campos específicos do conhecimento.

O que é novo em relação ao care é a inclusão de mais uma ocupação no arcabouço dos cuidados – o/a cuidador/a de idosos –, o que tem tornado nebulosas as fronteiras entre as diversas categorias –ocupacionais mencionadas. Esse fenômeno decorre de inúmeras transformações, mas, principalmente, de mudanças no padrão demográfico das sociedades, cuja população tem envelhecido, vivido mais e, portanto, demandado um novo tipo de atenção. É assim que, em anos recentes, tem aparecido a figura da cuidadora ou cuidador, aquela ou aquele que cuida – formal ou informalmente, com ou sem remuneração – das pessoas idosas dependentes. O care não se refere apenas ao cuidado desse grupo; mas, dado que várias categorias antes separadas (a enfermeira e as técnicas de enfermagem, de um lado, e trabalhadoras domésticas, de outro) passaram a desempenhar esse papel, ao lado da cuidadora – com repercussões nas oportunidades ocupacionais, nas formas de regulamentação profissional e nas carreiras –, ele tem sido associado ao cuidado daqueles inseridos na chamada quarta fase da vida (infância, adolescência, adultez e velhice): "...o cuidado aos idosos é um campo especialmente rico [e] o estudo do trabalho do care evidencia que tarefas similares são realizadas sob múltiplas maneiras, bem como sob diferentes formas de trabalho e relações de emprego, que se combinam de modos variados com tipos diversos de provisão" (p. 64).

É à construção social desse extenso grupo social (crianças, velhos, dependentes em geral) e profissional (trabalhadoras domésticas e cuidadoras de velhos) que se dedica o livro Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. Em um volume bastante denso e detalhado, ele aglutina reflexões e pesquisas originárias dos hemisférios Norte e Sul, do Leste e do Oeste, e realizadas por estudiosas/os de diversas línguas, países e campos do conhecimento. Essa pluralidade de contextos é fundamental para a riqueza da obra, pois revela não apenas que o care está se alastrando e sendo analisado nos quatro cantos do mundo, mas também que seu desenvolvimento é recoberto de especificidades conforme a sociedade considerada. É a primeira iniciativa do tipo no Brasil, onde as diversas ocupações mencionadas já eram estudadas (embora o care, só muito recentemente), mas não de um modo integrado, tal como proposto na obra.

O livro é dividido em quatro grandes partes: 1) Care, trabalho e emoções; 2) Configurações sociais do care; 3) Care, políticas públicas e profissionalização; e 4) Care e migrações internacionais. A primeira trata de reflexões mais teóricas sobre a extensão do care, sua ética e os aspectos que envolvem esse tipo de trabalho; as três últimas analisam como ele se materializa em diferentes configurações sociais e em função dos recortes de classe social, gênero e raça ou etnia. Não irei resumir cada um dos 13 capítulos que compõem o volume, já que deles se pode ter uma visão bem panorâmica na Introdução, escrita pelas organizadoras. Proponho, assim, tratar das convergências que perpassam o care e que são tratadas pelos diferentes artigos, para que a diversidade de sua concretização, analisada em cada um deles, seja o convite para que o leitor mergulhe nas suas 236 páginas. Embora haja similitudes entre as várias atividades de cuidados (das crianças, da casa, dos idosos, dos deficientes físicos), os artigos – e esta resenha – se concentram nas situações que envolvem a atividade do care às pessoas idosas. Eventualmente, um ou outro artigo será explicitamente mencionado.

A primeira convergência diz respeito à especificidade do tipo de trabalho que o care envolve: o care se insere no setor de serviços (prestação de serviço a um cliente) e, como tal, engloba – além de competências físicas e cognitivas – uma forte dimensão emocional, porque pressupõe a relação entre pessoas, sempre complexa. Porém, mais do que qualquer outra ocupação baseada em uma relação de serviço, a emoção aqui tem um peso mais forte, pois esse tipo de trabalho mistura fortemente amor, afeto e altruísmo. Decorrência disso – e segunda grande convergência –, as atividades de care são majoritariamente desenvolvidas por mulheres (seja no interior das famílias ou em instituições públicas ou privadas), já que essas qualidades requeridas para o cuidado são tidas como "naturais" ou "inatas" a esse grupo, que as desenvolve no âmbito doméstico – por oposição às qualificações aprendidas pelos homens no espaço público.

Não sem razão, a distribuição e a gestão do care na sociedade assentam-se principalmente na instituição familiar, ou seja, no âmbito do privado, do informal – configurando o terceiro aspecto comum revelado pela maioria dos capítulos do livro – em quase todos os contextos considerados. Tal fato tem por base a representação social de que são as famílias – as mulheres – que devem ser as principais responsáveis por cuidar de seus velhos, já que estes seriam mais bem amparados por pessoas com algum grau de parentesco e/ou proximidade prévia. As outras instituições que podem dividir e administrar o care – Estado, empresas privadas e organizações filantrópicas sem fins lucrativos – terão um peso maior, aí sim, conforme determinada configuração social.

Quarta característica que perpassa o care, os serviços à pessoa em situação de fragilidade têm estimulado migrações internacionais de mulheres, que vão do Sul para o Norte e do Leste para o Oeste realizar esse trabalho considerado "sujo". Assim, desvalorizadas socialmente por estarem no âmbito da reprodução – onde há várias atividades "que se procura não fazer, [mas sim] delegar a alguém em posição socioprofissional hierarquicamente inferior" (p. 34) –, tais funções são delegadas não apenas às mulheres, mas às mulheres pobres e não brancas. Na confluência dos quatro aspectos mencionados, está a falta de reconhecimento simbólico e financeiro do care (falta de formação profissional, salários baixos, perspectiva de carreira limitada etc.), que considero aqui a quinta similitude apontada.

Claro está que essa representação – ou seja, a maneira como o care é visto e considerado em cada lugar – terá impactos consideráveis na formulação de políticas públicas (proteção social, profissionalização etc.). Daí a diversidade, já mencionada, que recobre as diversas formas de trabalho, de contratação, de remuneração e de relações de emprego do care, caracterizando a sexta convergência.

Esses seis aspectos que perpassam o trabalho do care – trabalho emocional feito por mulheres pobres, não brancas e migrantes, na maioria das vezes no ambiente familiar, sem regras claras de profissionalização e desvalorizado socialmente –, ao lado do fenômeno do envelhecimento populacional, já o transformaram em categoria social da maior relevância, "a ser assumida, mesmo que parcialmente, pela esfera pública" (p. 103). Do mesmo modo, tais aspectos têm forte impacto sobre várias áreas do saber, que o tomam como categoria analítica que tanto desafia ortodoxias quanto reforça temáticas pré-existentes, agora com nova especificidade. Daí a importância, apontada pelos artigos, explícita ou implicitamente, de um olhar multidisciplinar para dar conta de sua complexidade. Vejamos.

Ao contrário da economia neoclássica e mesmo da sociologia econômica, os economistas que estudam o care têm se esforçado por mostrar que as atividades humanas em que há conexões emocionais e mesmo íntimas podem ser vistas do ponto de vista econômico. Ou seja, as práticas de um trabalho com caráter social, que implicam sentimento e relações interpessoais, podem conviver com a remuneração de modo frutífero. Diversos autores americanos e franceses chegam a essa conclusão, ou seja, recusam a chamada perspectiva "dos mundos hostis" (na qual há um mercado que corrompe o care e o amor, degradados pela monetarização) e aquela "do comércio em toda parte" (para a qual importa apenas a definição do preço justo, sem contar os demais aspectos que envolvem essa relação de cuidado). No lugar, reconhecem que o care pago se tornou social e moralmente legítimo, mas é preciso que ele saia do gueto da marginalidade econômica e seja mais valorizado e mais bem pago, para o que propõem a perspectiva "das relações bem ajustadas": "... não se trata de se perguntar se o dinheiro corrompe ou não, mas, sobretudo, de analisar as combinações entre as atividades econômicas e as relações de care que dão lugar a situações mais felizes, mais justas e mais produtivas" (p. 23-24).

À mesma conclusão parecem chegar as pesquisadoras feministas, que, questionando os modelos de welfare state assentados sobre o trabalhador masculino, produziram transformações conceituais e políticas importantes. Assim, mais do que a necessidade de remuneração do care, agora já reconhecida, "procuram enfatizar o montante e a forma de pagamento" (p. 26). Nesse sentido, propõem um repensar sobre qual tipo de gestão dos cuidados seria mais favorável à igualdade de gênero. Na verdade, se todas as ocupações do care têm uma predominância feminina, certas ocupações do care – as menos profissionalizadas (empregadas domésticas e cuidadoras) – reforçam não apenas a desigualdade de gênero, mas também as de classe social e raça, como mostram diversos sociólogos que escrevem no livro: o trabalho do care "parece ser regido por um princípio de desigualdade (homens/mulheres, migrantes/não migrantes etc.)" (p. 99).

Essas análises sociológicas serão enriquecidas se acrescidas de uma visão que reflete sobre os processos psíquicos mobilizados nas atividades do care, de tal modo que se articulem suas implicações políticas, práticas e éticas: em vez de visões estereotipadas sobre o amor ou sobre a "má reputação" do cuidado, é imperioso "interessar-se por visões morais particulares onde a preocupação com os outros se expressa através de atividades concretas, mais ou menos agradáveis, que solicitam sentimentos ou afetos por vezes penosos, contraditórios, ambivalentes e marcados por defesas" (p. 41).

Dois autores chamam atenção para o fato de que, no trabalho do care, não se pode subestimar a importância de quem está sendo cuidado. Angelo Soares mostra que cuidar de crianças, de idosos ou de pessoas com alguma limitação são atividades bem diferentes entre si: "os atores que compõem essa relação são, dessa maneira, determinantes do tipo de interação que será estabelecida no trabalho de cuidar. Trata-se de relações desiguais perpassadas por assimetrias socialmente estabelecidas de gênero, idade, classe social, raça e etnia, que se recobrem parcialmente, que implicam um exercício de poder e exigem qualificações específicas" (p. 45). Guita Debert prioriza o ponto de vista dos idosos para refletir sobre um envelhecimento digno. A autora combate a visão dominante na gerontologia, segundo a qual os velhos querem ser cuidados por seus familiares. Em tal representação, a velhice é colocada como um problema das famílias, que devem ser ajudadas pelo poder público nessa tarefa, o que acaba por não dar visibilidade ao idoso como um sujeito de direitos. Assim, "apostar que o bem-estar da velhice está na reclusão do lar e que a família nessa tarefa terá o auxílio do Estado para contratar o empregado doméstico nacional ou imigrante é adiar inconsequentemente a reflexão e as propostas de práticas inovadoras para um experiência de envelhecimento bem sucedida" (p. 231).

Nesse sentido, são muito importantes as reflexões que mostram como vários países organizam diferentementeseus mercados e suas políticas públicas, em termos de financiamento e modos de atendimento do care: "... esse tipo de abordagem revela, desde logo, a importância do nível nacional de análise, dado o papel crucial do Estado na construção das formas de regulação institucional do trabalho e da profissionalização dos serviços de care em cada caso" (p. 83). É assim que se tem configurações sociais diversas na organização do care, que vão desde a predominância das famílias (care informal e não remunerado), passando pela do mercado privado – formal ou informal – até aquela do setor público ou sem fins lucrativos. Nos dois últimos casos, o cuidado pode se dar no ambiente familiar ou em instituições especializadas, revelando as várias combinações possíveis. Essa pluralidade atesta que ainda não está claramente estabelecido se os empregos de cuidadores devem ser organizados e pagos pelo Estado ou por clientes particulares, embora haja um consenso sobre a necessidade "de um sistema formal de apoio incorporando Estado e mercado privado, de forma a garantir uma assistência mais qualificada aos idosos" (p. 154).

Thierry Ribault enfatiza o lado do mercado na sua argumentação: em que pese a diversidade nacional, a individualização da relação salarial – presente atual e globalmente em todos os tipos de trabalho, mas principalmente na relação de serviço – prejudica não apenas os projetos daqueles que trabalham, mas põe em risco a própria qualidade do serviço oferecido: "como, de fato, estabelecer uma convenção confiável que possa medir os progressos num contexto de relação interindividual, na ausência de regras claras e valores coletivos?" (p. 122). Ou, em outros termos, "o que poderia desencadear um círculo mais ou menos virtuoso qualidade de emprego-qualidade de serviço, no campo da profissionalização dos serviços de auxílio a domicílio?" (p. 120). Entre uma solução tipicamente liberal (mercado espontâneo) e outra de cunho superinstitucionalizado (controle hierárquico taylorista), o autor propõe uma releitura do modelo de competência – uma objetivação dos critérios de avaliação, sem, no entanto, desconsiderar a "pluralidade das convenções de profissionalidade", já que "jamais existem duas relações idênticas no ofício de cuidadora domiciliar" (p. 130) –, para reinstitucionalizar democraticamente os mercados de trabalho.

Em resumo, a leitura do conjunto da obra revela que, apesar das convergências apontadas, é preciso evitar as dicotomias simplistas: toda tentativa de homogeneização do trabalho do care e das pessoas cuidadas, entre e intrapaíses, é perigosa. Por isso, é preciso considerar que não há apenas uma definição de care; ela é multidimensional para abarcar o "amplo campo de ações e atitudes" (p. 82) e as diversas hierarquias existentes em seu interior, em termos de profissionalização (formação, remuneração, recrutamento, promoção, condições de trabalho, reconhecimento etc.) e prestígio: cuidadoras da primeira infância, babás, empregadas domésticas e diaristas, técnicas e auxiliares da enfermagem, e, agora, a nova figura da cuidadora ou profissional do care, que, no Brasil, por exemplo, ainda não se reconhece como tal. Para alguns, "existe um continuum entre cuidados médicos, os trabalhos dos cuidadores e o trabalho doméstico, pois todos contribuem para a produção da saúde" (p. 137). Mas, a extensão do care – que tipo de trabalho pode ser aí incluído – ainda é controversa, e o livro abre perspectivas para o leitor elaborar sua própria interpretação.

O mais importante a reter é que o care é, definitivamente, uma questão de relevância social e acadêmica, no que se refere tanto àquele que presta o serviço quanto àquele que o recebe. Trata-se de propiciar um envelhecimento digno à população idosa e, simultaneamente, um trabalho decente àqueles que dela cuidam; ou melhor, a todos aqueles que se dedicam ao cuidado de pessoas dependentes. Para tanto, é preciso mudar a representação segundo a qual as competências mobilizadas nos serviços de care são iguais ou um mero prolongamento das funções domésticas. A qualidade do serviço e a do emprego estão intimamente relacionadas, e dependem da profissionalização das pessoas que irão executá-lo (para tornar visíveis e valorizadas as qualificações necessárias) e de políticas públicas próprias, dirigidas a estas e aos velhos: "o bem-estar da pessoa beneficiária do serviço e a garantia de condições de trabalho e de emprego sustentáveis para quem realiza este serviço não podem ser concebidos separadamente" (p. 129).

Claude Dubar, nesses Cadernos de Pesquisa (v. 42, n. 124, maio/ago. 2012), chamou atenção para o fato de que não é a natureza de uma atividade que a torna "profissional", mas sua organização, remuneração, reconhecimento social, enfim, sua construção social. Na verdade, o autor questionava a Sociologia das Profissões de cunho funcionalista, para a qual apenas certas atividades seriam verdadeiras profissões – definidas pelo conhecimento formal, abstrato, de nível superior – e, portanto, propiciadoras de realização de si e de reconhecimento pelos outros; as demais seriam apenas ocupações assalariadas comuns. Contrariando tal enfoque, Dubar defende que todo trabalho deve ser formador, fonte de experiências e aprendizagens, de construção de si e de identidade, desde que construído para tanto: "...todos os 'trabalhos', mas também todos os 'trabalhadores', independentemente de gênero, cor ou religião, têm direito à qualificação de 'profissional'. Com a condição de que esses 'trabalhos' sejam organizados, definidos, reconhecidos como 'ofícios', isto é, atividades que requerem competências que possam ser certificadas (p. 364).
Revista Cadernos de Pesquisa