segunda-feira, 9 de março de 2009

HANNAH ARENDT - POR AMOR AO MUNDO


Quem foi Hannah Arendt

Maria De Fátima Simões
ELISABETH YOUNG-BRUEHL

sendo o próprio conceito de biografia importante na filosofia de Hannah Arendt, a proposta de escrever uma biografia da autora faria recomendável o cuidado de levar isso em consideração. A história de vida, que reúne o conjunto de atos e palavras de uma pessoa, tem, segundo a filósofa, o sentido de dar a conhecer ao mundo quem essa pessoa era, de revelar sua identidade singular. Entretanto, é só na esfera pública que os homens chegam a ser de fato únicos. Na esfera privada, na família, cada um é sempre a extensão do outro.
E. Young-Bruehl está consciente desse modo de pensar, pois ao relatar a vida da autora não se esqueceu das diferentes contribuições do público e do privado para a singularidade da pessoa. Embora a vida privada de Hannah não tenha sido desprezada, é sua participação na esfera pública e política que recebe a maior atenção.
Hannah nasceu em Konigsberg, em 1906, numa família judia bem-sucedida. Logo afeiçoou-se pela poesia alemã e estudos literários, criando com os amigos, na adolescência, um círculo de leitura e tradução do grego. De 1924 a 1929, estuda filosofia em Marburg com Heidegger. Aluna destacada, é por ele enviada a Jaspers em Heidelberg, a fim de encaminhar seu doutorado sobre o conceito de amor em Agostinho. Mulher emancipada do início do século, depois de vários namorados vai morar sem se casar com seu primeiro marido, Gunther Stern. A crise econômica da República de Weimar impede que ele obtenha um posto na universidade. Judia, ela estava impedida de pleiteá-lo. Ao contrário de uma carreira acadêmica, que sua brilhante formação sugeria como sequência natural, foi outra a via seguida pela filósofa após seus anos universitários.
Young-Bruehl mostra que, até ser reconhecida como intelectual e devotar-se ao que denominava "vita contemplativa", Arendt passou longos anos dedicada à "vita activa". É a ênfase nesse aspecto menos conhecido que constitui a virtude maior do livro. Até o fim de seus anos universitários, reconhecia a filósofa, ela fora ingênua e inteiramente desinteressada pela política. A descoberta da esfera pública, que viria a se tornar o eixo maior de sua filosofia, se deu quando a sua condição de judia a impeliu para o centro daqueles acontecimentos, durante a ascensão do nazismo, que reclamavam a ação e o pensamento centrados na política.
Foi essa condição que a fez inicialmente voltar-se para o movimento sionista, pelas mãos de Kurt Blumenfeld. O sionismo propiciou a sua primeira educação política. Não obstante o exaustivo trabalho intelectual e prático, ela nunca obteve no movimento sionista uma posição de destaque, nem a adesão de um grupo particular a suas idéias. A razão para isso era sua análise extremamente crítica e lúcida acerca da responsabilidade pelos acontecimentos, que não fazia concessões à massa de judeus e menos ainda à elite judaica. O apolitismo de uns e outros, a recusa em tratar politicamente a chamada "questão judaica" eram os alvos de suas ácidas críticas.
O relacionamento com o pensamento e a política de esquerda é, por sua vez, um capítulo à parte na vida da filósofa. Sendo os dois maridos da filósofa ativistas do PC alemão, ela tivera ocasião de conhecer de perto os dilemas e discussões do partido. O segundo marido, Heinrich Blucher, leitor ávido de Rosa Luxemburg, Trotsky e Bukharin, crítico do marxismo doutrinário, foi responsável por boa parte de sua visão política. Assim como mantinha distância em relação ao sionismo, fazia o mesmo com os partidos de esquerda, censurando neles a submissão a Moscou e a incapacidade de dar respostas adequadas aos problemas da época, dentre os quais o anti-semitismo, o nazismo e, na França, a massa de refugiados, judeus e comunistas. A sua necessidade de ser ativa diante dos acontecimentos fizera, contudo, com que intermediasse, na Berlim do início dos anos 30, uma rede de fuga destinada principalmente a comunistas.
Pode-se dizer ainda que, mesmo mais tarde, a sua relação ambígua, de distanciamento e proximidade, com o pensamento e a política de esquerda, tornava difícil aos leitores de seus livros classificá-la claramente. Ao mesmo tempo que era profunda entusiasta de Rosa Luxemburg e sua "revolução espontânea" -em quem se inspirara num dos temas principais de sua filosofia política, a defesa do sistema de conselhos populares-, fazia muitas críticas ao marxismo, chegando a propor como projeto de pesquisa para a Fundação Gugenheim, no início dos anos 50, um estudo dos "elementos totalitários do marxismo".
O texto de E. Young-Bruehl é assim não apenas pleno de informações acerca da "vita activa" de Hannah Arendt, como também acerca de vários debates da política de nosso século. O prefácio nos anuncia a pretensão de fazer uma "biografia filosófica". O que quer que venha a ser isso, se esperamos algo como a demonstração da gênese dos temas e conceitos próprios da filosofia arendtiana, a partir das experiências de vida, não é o que encontramos. Na verdade, a filosofia da autora está pouco presente. Nem tampouco o caminho é o da biografia romanceada, da construção de uma personagem. O que vemos é o desejo de fidelidade aos fatos mediante a apresentação de uma grande quantidade de documentos -cartas e artigos, basicamente.
Maria de Fátima Simões Francisco é professora na Faculdade de Educação da USP.

Folha de São Paulo

OBRAS LITERÁRIAS, FILOSÓFICOS E MORAIS


A face noturna do Renascimento

Carlos Antonio Brandão
LEONARDO DA VINCI

o que o leitor encontrará nessas "Obras" de Leonardo (1452-1519) é, sobretudo, a paisagem ao fundo dos personagens de suas pinturas. Quase nunca observados atentamente, esses "fundos" retratam o mundo mental de Leonardo. Há mais na "Adoração dos Magos" (1481-1482) do que a luz que emana de Maria e seu filho. Há mais na "Virgem das Rochas" (1483-1486) do que a graça do seu rosto. Há mais na "Gioconda" (1503-1506) do que a sedução do seu sorriso. Atrás de tais protagonistas assistimos o movimento e furor de um universo em ebulição.
As ruínas da arquitetura clássica e as grutas aí pintadas nos reconduzem a um arcabouço pré-histórico, enigmático e metamórfico. É justamente esse arcabouço que vem ao primeiro plano nessas "Obras" de Leonardo, deixando-nos ver não só a filosofia e o mundo em que trafega a sua imaginação como também a face noturna do Renascimento, geralmente esquecida diante da radiosa definição do período como "descoberta do homem e do mundo". Esses escritos ajudam a desmontar tal idéia e a revelar as tensões, dinamismo e componentes trágicos presentes no século 15 e sem os quais a própria dimensão apolínea de sua arte permanece inexplicável. Neles se revela o alicerce de concepções e dúvidas que sustenta a densidade lunar do espírito de Leonardo. Boa epígrafe ao livro seria o último dos "Pensamentos" que o abrem: "A lua, densa e pesada, densa e pesada, como se sustenta a lua?".
Na "Adoração dos Magos", por exemplo, uma claridade difusa abriga o redemoinho de pessoas, cavalos e ruínas turbilhonados ao redor da Virgem (composição similar à da "Batalha de Anghiari", de 1504). Nenhum posto privilegiado é assinalado ao homem, criatura que "padece da máxima loucura" e que, "a não ser pela voz e pela silhueta, são menos que animais" ("Pensamentos", 107 e 125). Rostos fantasmagóricos povoam uma atmosfera surrealista e anticlássica. Nenhuma feição ou gesto individual é bem delineado: tudo é absorvido na espiral vertiginosa da incessante transformação da realidade.
Essa polimorfia do real exige uma visão poliédrica capaz de descrever as suas várias faces: "O movimento é causa de toda vida", diz ele no terceiro dos "Pensamentos". E a vida exige a morte para se alimentar e se regenerar, como se lê em algumas das "Fábulas", na maioria das "Profecias e Adivinhações" e se demonstra na "Disputa 'Pró' e 'Contra' a Lei da Natureza": o desejo da "quinta-essência" que comanda a alma é liberá-la do encarceramento do corpo e reconduzi-la ao caos primitivo, "al suo mandatario". A evidência desse desejo no homem o faz "modelo do mundo", sua vida se mantém "graças às coisas que ele come, e estas levam consigo a parte do homem que está morta" ("Profecias e Adivinhações", 124).
Na "Virgem das Rochas", a Madonna também ocupa o centro. Contudo, ela se desmaterializa no "sfumato" e se funde às rochas da gruta e sua atmosfera uterina, úmida e densa. Essa "subnatura" abriga dimensões ocultas que fascinam o olhar do pintor mais do que a própria descrição da cena bíblica. Nesse olhar, arte e ciência não se separam. E é por meio da arte que Leonardo indica os caminhos a serem percorridos por Galileu e Descartes. A caverna é um mundo que precisa ser adentrado para ser conhecido: sem essa "experiência" todo conhecimento é ilusão e de pouco adianta retornar à Antiguidade ou aplicar-se às especulações metafísicas.
Por isso, Leonardo abandona o meio neoplatônico florentino e segue para Milão. Por isso, ele é mais próximo de seu antecessor, Alberti (1404-1472), do que de seu contemporâneo, Michelangelo (1475-1564). Por isso, o aristotelismo lhe parece mais adequado para o exame de uma natureza cujas razões imanentes devem ser encontradas nela própria, mediante "experiências" e estudos matemáticos, e não a partir dos procedimentos dos "metafísicos" ou dos "escolásticos", "gente que tem pouca obrigação para com a natureza, porque somente é dotada de virtudes acidentais e sem elas poderia figurar entre os rebanhos de animais" ("Proêmios", 3). Esse é um tema privilegiado também nos "Pensamentos", no "Discurso Contra os Compendiadores" e no "Contra o Necromante e o Alquimista", tão ávidos de substituírem os deuses e manipularem os espíritos da natureza que esquecem de sua condição humana.
Nas reflexões de Leonardo, o Renascimento debruça-se sobre si próprio e recolhe as forças necessárias para penetrar a "caverna da modernidade". Eis a raiz da solidão de Da Vinci: sua insatisfação com o presente o leva a habitar o futuro e "salvar-se" nele. Afinal de contas, ele justifica no "Pensamento 98", "quem se salva é o solitário". Para seus projetos, bastava-lhe indicar as trilhas desse futuro que ele esboça. Por essa razão, quase todas as suas pinturas permanecem abertas e sem conclusão. Da mesma forma, o leitor é convidado a se portar diante dos enigmas das "Fábulas, Alegorias, Profecias e Adivinhações, Facécias e Proêmios": "Os homens jogarão fora seus próprios víveres: isto é, semeando"; "as penas elevarão os homens, como fazem com os pássaros, em direção ao céu: pelas palavras escritas com essas penas"; "qual é a coisa que muito se deseja e quando se possui não se pode conhecê-la? É o sono".
Os escritos leonardianos demonstram como que o olhar do cientista não se opõe a uma visão mágica do universo, pleno de relações secretas e seres fantásticos que habitam a imaginação do autor e servem, com seus hábitos, à educação dos próprios homens: dragões, gigantes, serpentes e monstros marinhos, dentre outros, convivem com hipopótamos, panteras, camelos, crocodilos e golfinhos na "paideia" natural observada nas "Alegorias".
Ao fundo da "Gioconda", a mesma "subnatura" comparece, contrapondo-se à intelectualidade leonardiana figurada na face de Mona Lisa. Atrás das rochas decompostas pela luminosidade filtrada de vapores parece esconder-se uma usina em que a morte se transforma em vida e vice-versa. Metabolizando-se entre os estados sólido, líquido e gasoso, os elementos sofrem a mesma pulsão cósmica entrevista no sorriso da mulher ou no calor do seu sangue latejando nas veias sob a pele. Diante da natureza, Leonardo não confere transcendência à existência humana. Ao contrário de Michelangelo, ele a dota do mesmo estatuto e submete-a a uma lei única e inescapável cujos efeitos sobre o nosso mundo cumpre descrever, seja no pincel da usina que se assiste atrás da Mona Lisa, seja na pena que descreve "O Dilúvio" ou a "Caverna".
Nestes, uma natureza indômita aparece constituída por uma potência e atividade vital que a tudo envolve em sua ordem implacável, desejosa de confrontar corpos e matérias numa escala cósmica diante da qual se revela a fragilidade humana e sua impotência diante da ira divina. Frente ao dilúvio ou à caverna que seduzem o seu olhar e movem seu pincel e sua pena, Leonardo experimenta o sentimento ambíguo que atravessa essas "Obras": por um lado, ele pretende vê-los de forma puramente objetiva, encorajado pelo desejo de conhecer o extraordinário que aí se esconde; por outro, ele teme o desconhecido e sabe que tal objetividade só é possível unida à melancolia de um universo desprovido de toda e qualquer dimensão mágica, enigmática e misteriosa.
Além de oportuna do ponto de vista do conteúdo, essa edição brasileira das "Obras Literárias, Filosóficas e Morais" contém uma precisa apresentação da vida do autor e do contexto histórico e espiritual em que ela se move. A boa tradução esforça-se por compreender a pluralidade de significados contidos no texto. Merece elogios, portanto, a presença do original ao lado do texto traduzido: além de permitir a conferência do trabalho da tradutora, ele nos convida a procurar outros sentidos porventura abrigados num texto tão fecundo quanto as paisagens das pinturas acima descritas.
Carlos Antonio Brandão é arquiteto e professor de história da arte na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Folha de São Paulo

ENTRE QUADROS E ESCULTURAS: WESLEY E OS FUNDADORES DA ESCOLA BRASIL


Os labirintos de Wesley Duke Lee

Annateresa Fabris
YANET AGUILERA; CLÁUDIA VALLADÃO DE MATTOS

numa longa entrevista concedida a Cacilda Teixeira da Costa em 1978, Wesley Duke Lee apresenta aquele que poderia ser definido seu "credo artístico". Algumas idéias merecem destaque dentro desse quadro de referências, pois elas permitem compreender melhor suas relações com o universo da arte contemporânea em sentido lato. O primeiro axioma, que abre a entrevista, não deixa dúvida sobre a imagem do artista elaborada por Wesley Duke Lee, que a remete a uma condição primordial, quase biológica: nasce-se pintor. A partir dessa premissa, pode ser considerada consequência lógica o fato de ser colocada entre parênteses a relação tradicional mestre/discípulo em favor da idéia de uma troca, alicerçada numa fala pessoal em voz alta, capaz de ordenar o que se afigurava como confuso.
Para Wesley Duke Lee, portanto, a arte é "uma subjetividade", da qual decorre o sentimento de pertencer ao "grupo dos 'colegas'±" e graças à qual o artista mergulha no próprio inconsciente, em busca de mitos e arquétipos, de vivências pessoais e ancestrais ao mesmo tempo. "Tremendo labirinto" dentro do qual o artista nada sabe, a pintura representa para Wesley Duke Lee não apenas um desafio existencial, mas igualmente um desafio material. É tarefa do artista respeitar cada meio, despertar as energias de cada material, fazer-lhe perguntas, "ver o que acontece", voltar a formular interrogações...
Se esse é o pano de fundo dentro do qual se elabora a produção de Wesley Duke Lee, não pode ser considerado de todo correto o paralelo entre ele e Duchamp, proposto por Cláudia Valladão de Mattos no texto analítico do livro "Entre Quadros e Esculturas: Wesley e os Fundadores da Escola Brasil". É verdade que o próprio pintor coloca Duchamp entre suas "afinidades eletivas", mas não se pode desconhecer que ambos representam duas concepções bem diferentes de arte.
"O Grande Vidro", apontado pela autora como o principal ponto de convergência entre os dois artistas, é um aparato muito complexo, a partir do qual, ao contrário, as diferenças se fazem patentes em vários níveis. O uso do vidro permite a Duchamp negar qualquer indicação espacial e reafirmar, portanto, sua idéia de que a arte não é feita de referências visuais e, sim, de múltiplos significados conceituais. A sexualidade, que permeia a obra, coloca-se sob o signo da sublimação, da impossibilidade do encontro, da masturbação (masculina) e do "voyeurismo". A alegoria dos dois domínios incomunicáveis, para a qual convergem todas as experiências mentais, estéticas e técnicas de Duchamp, é regida por um sutil equilíbrio entre acaso e precisão, visível e invisível, constituindo um exemplo paradigmático de "work in progress" (voluntariamente) inacabado.
Se há uma diferença substancial entre a crença na arte e em seus valores, evidenciada por Wesley Duke Lee, e o desinteresse pela especificidade artística, ostentado por Duchamp, a concepção do erotismo é um outro ponto de bifurcação entre os dois artistas. As máquinas celibatárias de Duchamp são aparatos andróginos, estéreis, que recusam a sexualidade genital, enquanto o artista brasileiro incide justamente na dimensão afetivo-libidinal, carregada de conotações arquetípicas, como atestam as séries "Ligas" (1962) e "A Zona" (1964), entre outras.
"Ligas" e "A Zona" são consideradas por Cláudia Valladão de Mattos elementos de reforço na aproximação entre Wesley Duke Lee e Duchamp. A auto-referencialidade, que distinguiria tanto um artista quanto o outro, deve, no entanto, ser ampliada. Ela é uma estratégia típica da arte moderna, como demonstra de sobejo Picasso, não podendo constituir uma categoria exclusiva de alguns criadores. "Ligas", como afirma acertadamente a autora, apresenta pontos de contato com o erotismo tenso e violento de Schiele, mas essa série (assim como "A Zona") evoca um outro possível diálogo do artista brasileiro, que não me lembro de ter visto nos vários estudos dedicados a ele. Refiro-me a Allen Jones que, no início dos anos 60, dá vida a um conjunto de imagens eróticas, cujo tratamento apresenta semelhanças com a poética de Wesley Duke Lee. A concentração iconográfica nas coxas e na virilha, um certo jogo de mascaramento e revelação da imagem, uma representação frequentemente anti-refinada, uma construção por zonas de adensamento e de rarefação são elementos estruturais que sugerem pontos de convergência entre duas poéticas igualmente interessadas, naquele momento histórico, em promover um diálogo entre as novas possibilidades que se abriam à figuração e a herança abstrata com a qual ainda se viam a braços.
Um traço fundamental na concepção de Wesley Duke Lee é sua relação com a história da arte, que Cláudia Valladão de Mattos coloca sob o signo de um "jogo de citação de citações", de interpretação e retradução. Se as imagens do passado representam um aspecto ulterior do mito e do arquétipo, há nessa relação uma outra dimensão que merece algumas considerações. A atitude nômade do artista em relação ao legado do passado, seu fascínio pela memória, a retradução dos ícones que despertam sua atenção nas mais variadas técnicas parecem colocar a poética de Wesley Duke Lee no âmbito da estética do fragmento, que é um dos traços (possíveis) da atitude pós-moderna.
Dentro da lógica do fragmento, a citação adquire um significado peculiar, por não ser um mero jogo de descontextualização e recontextualização, mas por apontar para uma tensão constante entre a impossibilidade de fazer algo (inteiramente) novo e a impossibilidade de refazer o velho. Nessa zona de fricção acaba se constituindo uma nova atitude perante a arte, que Wesley Duke Lee parece compartilhar: a linguagem do artista não é um sistema, e sim uma intenção, uma atitude que se formaliza num gesto subjetivo. Esse gesto é resultado de uma dialética entre lugar e não-lugar, entre escrita autógrafa e apropriação assimétrica da escrita de outrem, na qual o que se busca é, antes de tudo, uma afinidade particular. Relacionar-se com a história da arte implica, pois, buscar no outro um suplemento que ajude a sanar uma falha (antes de tudo simbólica) e a propulsionar a elaboração de um novo conceito de imagem em constante construção.
Se esta hipótese for correta, talvez ela ajude a entender melhor a relação de Wesley Duke Lee com seus alunos. O que ele ensina a Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo, Frederico Nasser e José Resende é primordialmente uma atitude perante a criação. Atitude que ele próprio continua a mobilizar, com as constantes interrogações que dirige à arte e a suas possibilidades.
Annateresa Fabris é historiadora, crítica de arte e autora, entre outros livros, de "Cândido Portinari" (Edusp).

Folha de São Paulo

FILOSOFIA: A POLIFONIA DA RAZÃO


Uma pedagogia da razão

Newton Bignotto
OLGÁRIA MATOS

o aumento do interesse por temas filosóficos, associado ao retorno da filosofia aos currículos do segundo grau em alguns Estados, tem permitido o aparecimento de livros escritos por especialistas de renome, destinados em grande parte a um público bem mais amplo do que aquele que normalmente se interessa por debates acadêmicos. Esse é o caso do mais recente livro de Olgária Matos. Dedicado ao estudo da relação da filosofia com a educação, ele parte da idéia da filosofia como uma "pedagogia da razão", para explorar as diversas possibilidades trilhadas pela tradição na elaboração de um itinerário adequado para a formação dos indivíduos, ou, como prefere a autora, para a construção de uma "paideia" cujos objetivos a própria razão se encarrega de traçar.
O tema do livro não é certamente novo na literatura e a autora poderia ter buscado o conforto de uma exposição cronológica das diversas soluções encontradas, ao longo da história, para o estudo da relação entre razão e educação. Essa, no entanto, não foi sua estratégia e é esse, a nosso ver, o mérito de seu livro.
Olgária nos oferece uma visão pessoal e instigante do tema, tecida na convivência com os grandes clássicos e elaborada mediante uma crítica madura de nossa época. Por isso, o leitor que recorre ao livro de maneira tópica, à procura de informações normalmente contidas em manuais, corre o risco de perder o que ele tem de mais precioso: um itinerário crítico, que, sem desconhecer os pilares da tradição, explora seus desvãos e seus pontos obscuros, para nos oferecer, no final, uma visão renovada da questão central da educação à luz da filosofia.
Mas evitemos um equívoco. O livro não está baseado na busca de textos menores e desconhecidos que, apresentados sob nova luz, poderiam contribuir para uma releitura da história das idéias. Seus eixos são os escritos principais de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Nietzsche e os pensadores da Escola de Frankfurt. Assim, na primeira parte, Olgária se dedica ao estudo da "paideia" grega, procurando mostrar, a partir da análise dos principais diálogos platônicos, a capacidade dos gregos para pensar a formação dos homens sob a égide dos espaços abertos pela pesquisa racional, mas também sob o influxo de virtudes como a moderação, a prudência, a amizade e outras.
A esse respeito é bastante esclarecedor o item dedicado à ética aristotélica. A estratégia geral do livro, no entanto, se revela menos em suas exposições sobre os temas tradicionais do pensamento grego e mais nas páginas dedicadas ao tirano e ao filósofo, quando a autora expõe os limites e os riscos contidos na educação pensada pela ótica da razão. O tirano é apresentado como um outro do filósofo, mas não como um outro da cidade, à qual pertence de forma integral. Essa constatação, presente já em Platão, não visava excluí-lo do mundo dos homens, mas demonstrar que nele estava inscrito como uma das possibilidades de nossa condição, que não podia ser descartada pelo simples apelo às conquistas da razão.
A segunda parte do livro se intitula "Filosofia e Reforma da Razão". Nela Descartes reina soberano. Olgária se dedica a mostrar como ele construiu uma nova morada para a razão e como determinou com isso o nascimento da subjetividade moderna. Ao mesmo tempo em que são explorados os veios principais de sua filosofia, em que a separação sujeito-objeto vai se constituindo num dos pilares do pensamento moderno e que o "cogito" se universaliza em oposição à particularidade do corpo, vão sendo criados problemas, segundo a autora, que a filosofia cartesiana deixou sem solução ou postergou, como no caso da moral.
Ela demonstra suas hipóteses tecendo um frutífero diálogo com autores contemporâneos como Merleau-Ponty, crítico da separação analítica entre sujeito e objeto, ou Foucault, analista arguto das filosofias da representação, mas sobretudo se referindo a questões como a da melancolia, amplamente retratada na pintura e na literatura e que não pode ser incorporada à nova arquitetônica senão pela ótica do negativo. As brechas do racionalismo moderno são expostas pelo recurso a outros discursos da própria época e que muitas vezes foram preservados pelas artes ou por formas de conhecimento que viriam a ser descartadas com o aparecimento das ciências modernas. Nessa parte o livro se preocupa menos em explorar a idéia de formação no primeiro sentido apresentado e mais em mostrar as condições de aparecimento de uma pedagogia da razão.
A pedagogia da razão se converte em pedagogia pela razão. Estamos no território dos iluministas, representados na terceira parte pela figura emblemática de Kant. Partindo dos limites impostos por ele ao uso da razão na produção de conhecimentos científicos, Olgária acentua, sobretudo, a importância da ética dos deveres, deduzida a partir do uso da razão prática, e o papel que é atribuído à razão na vida política.
O leitor, apesar das explicações dadas no prefácio, não deixará de sentir falta da figura de Rousseau, que tanta atenção dedicou à educação e muitas vezes de um ponto de vista extremamente crítico aos iluministas franceses; assim como não se pode deixar de notar a inexistência de referências mais longas a Hegel, para quem a idéia de "Bildung", que a própria autora associa à "paideia", foi tão importante. De qualquer maneira, o caminho escolhido vem introduzir uma viragem definitiva no texto.
Num primeiro momento a crítica ao racionalismo moderno é feita pela evocação do pensamento de Nietzsche e de Freud, para se completar com o recurso a temas caros à Escola de Frankfurt, da qual Olgária é boa conhecedora. O que se esboçava desde a segunda parte ganha na conclusão toda sua extensão. O projeto moderno certamente criou um novo mundo a exigir uma nova educação. Os avanços no domínio da natureza, no entanto, longe de forjar uma educação compatível com os desenvolvimentos técnicos, contribuiu para novas formas de barbárie e para a substituição da educação formadora pelo que Adorno chamava de "semiformação". O tom do final é pessimista, mas traz como pano de fundo o apelo a uma nova "paideia", forjada pelas armas da filosofia e temperada pelos valores da amizade e da prudência.
Tendo iniciado seu percurso pelos clássicos e observado que, enquanto Kant constrói uma ética baseada fundamentalmente na idéia de dever, Aristóteles foi capaz de pensar a vida na cidade sob a ótica da felicidade, Olgária à sua maneira reabre o espaço de discussão sobre a querela entre os antigos e os modernos. De posse dessa informação, o leitor pode se interrogar se, ao fazê-lo, ela não está, na verdade, se aliando ao passado, para propor uma crítica radical do presente e um elogio da filosofia como busca incessante de novos sentidos para a vida em comum.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de "Maquiavel Republicano" (Loyola).

Folha de São Paulo

PARADOXO DO ESPETÁCULO


A comédia do mundo

Luiz Roberto Monzani
LUÍS ROBERTO SALINAS FORTES

este livro sobre a obra de Rousseau é ousado e brilhante. Sem usar os velhos e gastos recursos, que comumente são utilizados para a leitura do autor -escritos de juventude versus escritos de maturidade, análise psicológica ou psicanalítica etc.-, Salinas procura mostrar, mediante uma rigorosa leitura interna, a coerência do discurso rousseauniano. E sua sólida argumentação acaba convencendo o leitor.
Seu ponto de partida é a insistência de Rousseau na metáfora cênica ou espetacular: o mundo como cena ou teatro. Se a figura é um lugar-comum na literatura e na filosofia, Salinas mostra que, no caso de Rousseau, ela deve ser levada a sério; como ele mesmo diz, o leitor "logo desconfia não se achar, nesse caso, simplesmente diante de um cacoete da moda, de uma cláusula de estilo". Na verdade, todo o esforço de Salinas é mostrar que essa analogia exprime "o núcleo mais essencial desse pensamento", na forma de uma estrutura paradoxal.
Por isso mesmo, como nota o apresentador do livro, a "Carta a D'Alembert" passa a ter uma importância central para a análise de Salinas.
Partindo de um estudo hoje clássico, de Bento Prado Jr. (1), nosso autor concorda com o juízo emitido por este último quando diz que, segundo Rousseau, "o mal profundo que corrói o teatro francês (mas não todo espetáculo em geral), não é de natureza metafísica, mas de ordem histórica". Entretanto, pergunta imediatamente Salinas, "não seria a própria 'história' um 'mal' de natureza 'espetacular'?", já que ela é, para Rousseau, o lugar privilegiado da "perversão representativa"? Daí porque a crítica ao teatro francês só possa ser plenamente entendida -assim como o elogio que Rousseau faz da festa- se se tomar como eixo esse distanciamento crescente que foi produzido na história. O que implica analisar detidamente o estatuto da representação em Rousseau. Daí o plano do livro: análise da representação, como ela incide no mundo sociopolítico e, por fim, a crítica que Rousseau elabora a respeito do teatro.
Seria impossível para mim, nos limites desta resenha, ressaltar todas as análises minuciosamente elaboradas por Salinas, que têm como resultado a dissolução das tão faladas e famigeradas contradições de Rousseau. Limitar-me-ei aqui a indicar, nas suas linhas gerais, o percurso trilhado pelo autor.
Para se perceber melhor esse itinerário é bom ter em mente que a natureza é, para Rousseau, um ponto de fusão, de imediatidade que aponta para a negação de qualquer mediação. Sendo assim, é algo impensável, na medida em que, para pensar, já é necessária a mediação da representação. Ela funciona muito mais como uma idéia reguladora no sentido kantiano. O distanciamento se introduz na passagem -mítica- do estado de natureza para o estado de cultura ou de sociedade. É nesse momento que o homem se separa de si mesmo, se exterioriza e abre o caminho da alienação.
Pode-se, portanto, ter uma distância mínima -caso dos homens primitivos que se reuniam ao pé de uma árvore para dançar e cantar-, que seria o estado mais feliz da humanidade, ou pode-se ter uma distância que se aproxima do máximo -caso da sociedade francesa do século 18, onde a cisão entre dizer e agir, ser e parecer, está quase em sua apoteose.
Sendo assim, e Salinas insiste muito neste ponto, a ordem natural serve como uma escala mediante a qual podem-se medir progressivamente os diferentes estados da sociedade, da cultura, das artes etc., na medida em que se distanciam mais ou menos desse paradigma. Trata-se da instituição de uma "arte da medida", como salienta com propriedade Franklin de Matos na sua apresentação do texto ou, como diz Salinas: "A operação essencial a que se dedica a razão é então uma operação de medida (...) e, a partir do momento em que o homem-animal ultrapassa a primitiva condição de simbiose, dentro da qual a adequação à ordem universal se fazia de modo espontâneo, o recurso à razão e o esforço 'dialético' tornam-se a via indispensável".
A partir desse princípio torna-se possível ordenar todo o discurso de Rousseau, e suas "contradições" tornam-se apenas um efeito de superfície. Falei, há pouco, em dissolução das contradições. Mas não entendamos a expressão no sentido hegeliano e, sim, mediante a aplicação dessa escala. Por exemplo, no campo político, sabemos qual a forma mais perfeita de governo. Mas essa forma implica em certas condições -desde o tamanho do Estado-, que nem sempre são possíveis de serem realizadas.
Os diferentes Estados serão julgados segundo essa escala de "um mínimo a um máximo de representação". A discussão política será realizada naquele Estado não onde não haja representação -algo impossível-, mas onde, "na medida do possível, o sujeito seja cidadão, isto é, tenha existência na cidade".
Da mesma forma, Rousseau pode condenar certos tipos de espetáculo (como o teatro francês) como inadequados para certas sociedades (Genebra) porque se trata sempre de examinar as condições em que se pode dar um "ótimo". Mas esse "ótimo" não é o mesmo para todas as sociedades. Ou, como diz Rousseau, num texto célebre: "O homem é uno, admito; mas o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em geral e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar" (2). Por isso também Rousseau pode criticar o teatro e fazer o elogio da festa, pois a "métrica" me ensina que o segundo tipo de espetáculo está mais distante das armadilhas e perigos da representação.
Pelo que disse até agora, acredito que o leitor concordará comigo que o estudo de Salinas tem o enorme atributo de ser indispensável.
Notas
1. Prado Jr., Bento - "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in "Estudos Cebrap", nº 14, 1975, págs. 5-34.
2. Rousseau - "Carta a D'Alembert", citado por Salinas, pág. 154.
Luiz R. Monzani é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor convidado da Universidade Federal de São Carlos.

Folha de São Paulo

POESIA - NOVOLUME


Entre o humor e a ironia
Bento Prado Jr.
RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO

O périplo começa onde finda,/ vôo elíptico de pomba/ em volta ao Mundo,/ ovo de Colombo" Bento Prado Jr., "A Revolução da Resenha"
Com a ajuda de Bergson, fixemos dois pontos cardeais para melhor entrarmos em nossa matéria: "A mais geral dessas oposições será talvez aquela entre o real e o ideal. (...) Ora enunciaremos o que deveria ser, fingindo crer que é precisamente o que é: nisso consiste a 'ironia'. Ora, ao contrário, descreveremos minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo crer que é bem isso que as coisas deveriam ser: assim procede amiúde o 'humor' "("Le Rire", in "Oeuvres", Paris, PUF, pág. 447). Por que definiriam esses pontos o horizonte adequado à leitura de "Novolume"? É o que tentaremos mostrar ao longo desta resenha.
É principalmente a partir de 1981, com "O Vôo Circunflexo", que a crítica começou a perceber toda a importância da obra poética de Rubens Rodrigues Torres Filho. De lá para cá, entre outros, Alfredo Bosi, Benedito Nunes e (hoje, a propósito de "Novolume") Arthur Nestrovski empenharam-se em identificar a profunda originalidade do estilo dessa grande poesia.
Agora, com esta publicação da obra completa (que, aliás, lança retrospectivamente um novo lume sobre cada um dos poemas que o compõem) (1), é chegado o momento de explicar por que razão quase todos nós reconhecemos, no autor, um dos maiores poetas brasileiros. Não é nossa pretensão, é claro, fazê-lo nos limites desta resenha. Mais modestamente, queremos mostrar que a pista predominantemente perseguida com esse objetivo, sem deixar de ser boa, não é talvez a única; acenar, apenas, para uma linha complementar de leitura, talvez indispensável.
Numa palavra, perguntamo-nos se basta, para identificar a originalidade dessa poesia, insistir na duplicidade do autor, isto é, pensar Rubens Torres como poeta e filósofo. É aliás o próprio poeta que exprime alguma resistência a essa forma, no entanto, espontânea ou natural, de identificação: alguém já cogitou, por exemplo, diz ele algures, analisar a obra de Jorge de Lima à luz da dupla condição do autor, poeta e médico? E, de fato, visar a complexidade de sua poesia em conexão com o rigor conceitual de suas análises dos sistemas filosóficos, não seria isso uma forma de "reduzir" a poesia à filosofia? É a essa redução virtual que eventualmente o autor resiste, insistindo na diferença essencial entre essas duas formas de escrita que pratica. Talvez devêssemos, para desfazer algum equívoco, dar nomes diferentes ao filósofo e ao poeta; por exemplo, Rubens R. Torres Fº e R. Rodrigues T. Filho.
Mas é preciso andar devagar com o andor. Pois é inegável que algo da filosofia parece impregnar sua poesia. De um lado, nomes de filósofos (Tales, Protágoras, Pascal) estão presentes em seus versos e alguns filósofos (como Nietzsche e mesmo Fichte) constam entre os poetas traduzidos no final do volume. Acresce que seu estilo peculiar pode ser caracterizado como aquele da "reflexão interminável", da reflexão que jamais atinge sua "Befriedigung", satisfação, pacificação ou repouso final, que se exprime e brilha apenas no instante que corta a continuidade do tempo, especialmente na forma do epigrama, do aforismo ou do fragmento (2) (lembremos os comentários de Rubens sobre a teoria do fragmento em Schlegel e Novalis -ou do "ouriço" de Schlegel; lembremos ainda a frase de Wittgenstein, que também cultivava o aforismo e cultuava o romantismo alemão: "Toda uma névoa de metafísica concentrada numa gota de gramática"; ou ainda os versos do próprio Rubens: "Repara: o cílio, silente. A descrição/ da lágrima. Lágrimas/ da gramática", "Novolume", pág. 50).
Reflexão interminável que assume a dupla forma da reflexão objetiva da linguagem (o vai-e-vem entre a letra e o espírito, o significante e o significado, o novelo enrolado pelo lado de dentro da semântica) e da reflexão subjetiva (do sujeito ou da alma, do olho que se olha, o abismo sem fundo da subjetividade). Toda uma temática e uma imagética a que esse estilo está essencialmente ligado e que remete a uma imagética e a uma temática que nasceram com o idealismo e o romantismo alemães, embora sobrevivam até hoje de diversas maneiras; o privilégio do Príncipe do negativo, que vislumbrou o oco do Mundo e a vacuidade do Eu. Como no poema "Cena": "Docemente, perigosamente, o frio toma conta dos meninos de mentira que brincavam lancinantes à beira-nada" ("Novolume", pág. 54).
Certamente é essencial essa referência ao romantismo alemão, como ratificava Benedito Nunes na "orelha" de "Poros". Ali, via como essencial uma "corrente de meditação descontínua sobre as transações da linguagem com a experiência, que vai traçando a micrografia do ver ao dizer, do sentir à palavra poética; repete-se aqui, de outra maneira, enquanto 'concordia discors', 'palavras ágeis' com 'fatos ariscos', a cisão entre forma e conteúdo da ironia romântica, cuja incidência a crítica apontava em 'O Vôo Circunflexo'±". Articulação e corte, a um só tempo, entre fenomenologia e semântica, significado e significante, que se exprime exemplarmente no próprio título "Vôo Circunflexo".
Notemos a consistência perfeitamente irônica entre forma e conteúdo dessa exploração da cisão essencial entre forma e conteúdo, detendo-nos nessa expressão. Note o leitor que, nela, o adjetivo espelha a "forma" do substantivo (não é, também a letra "V", além do mais, um assento circunflexo invertido?), mas ao mesmo tempo denuncia o que há de irrisório no espelhamento do sentido e na materialidade da letra. E, mais, que, na sua materialidade, a palavra "vôo" pode abrir uma "cadeia significante" (vá lá esse deslize ou lapso lacaniano) (3) -palavra puxa palavra- que leva a "ovo", "oco", "olho", "vão", que vai ao "eco" (4), enfim, que, sempre ecoa, na superfície do verso, o seu anverso (ou vice-versa). Reflexão infinita, vacuidade do sujeito, transparência do "olho que se olha" (5), vazio do ovo do mundo. É como um fio, ao mesmo tempo formal e material que atravessa o livro de ponta a ponta. Vejamos: "E que espaços de silêncio/ vão nos silêncios que chovo/ se me comovo não vendo/ no ovo o vôo do novo" (pág. 123); "A ti, furo no escuro, caixa/ de ressonâncias, palavra,/ te digo: -Se sei, escuto,/ onde está o eco, teu oco:/ o fato astuto" (pág. 124); "ave-oovo/ ave-ovoo/ oovovoa" (pág. 32).
Mas, até agora, só insistimos no primeiro dos anunciados pontos cardeais, a arqui-reconhecida vinculação ao "nihilirismo", à "lógica" (6) ou à "logologia" do romantismo alemão. Onde ficou a idéia de "humor" (7)? Ora, o que é preciso sublinhar é que, se Rubens se impregnou de poesia e filosofia alemãs (a ponto de dominar essa matéria com a maestria de grande filólogo), ele o fez a partir de uma cultura anterior. Aqui, também, não vou dizer muita novidade: a poesia de Rubens entronca no momento mais alto da poesia brasileira. Falo do modernismo em sua fase madura e, por assim dizer, "neoclássica". Com João Cabral de Melo Neto (ver, nesta página, o "Elogio do Oco") e, sobretudo com Carlos Drummond de Andrade, em cujas obras semântica e fenomenologia se atravessam de maneira crucial, mas diferente da maneira alemã: real e ideal aqui articulam-se de modo diferente. Nessa poesia, se chegamos à metafísica, nós o fazemos de modo mais terrestre. Particularmente com Drummond, do poema-piada da primeira fase, chegamos a uma poesia de estilo elevado, onde todavia o humor não está ausente (8). Nada semelhante à ironia romântica que, na Alemanha, culmina na pacificação do misticismo e do catolicismo, na mão de Deus.
Tudo se passa como se, na poesia de Rubens, ironia e humor se entrelaçassem num contínuo e inquieto movimento de báscula ("Unruhigkeit", tortura, mas também realismo), a ironia disciplinada pelo humor e o humor ironizado, inventando um estilo inteiramente novo. Para além da alternativa entre nacionalismo e cosmopolitismo vanguardista, temos uma literatura que foi capaz de interiorizar (o bom canibalismo) temas e formas da literatura européia, sem perder seu caráter nacional. Causalidade interna, diria, talvez, Antonio Candido; um pouco como se pudéssemos aplicar a esta relação entre o português e o alemão as reflexões de Hõlderlin sobre a tradução grego-alemão. Ou revolução copernicana, como poderia dizer alguém que tivesse lido uma nota curiosa que Rubens acrescentou a sua tese sobre Fichte: "A conotação astronômica (do deslocamento dos pontos de vista efetuado pela Doutrina da Ciência; nota de B.±P.±Jr.), aqui, permite compreender a singular soberania com que Machado de Assis pode deslocar-se, de um provinciano Rio de Janeiro, para o 'ponto de vista de Sirius'; mas também, sem sair de nossa literatura, pode-se avaliar o quanto isto se paga em desenraizamento: onde "situar' a 'terceira margem do rio'?" (9). Só podemos situá-la no limite entre a ironia e o humor, numa errância universal, entre o Brasil e a Alemanha, o Eu e o Mundo, nessa tensão interna ou dialética entre o interno e o externo que constitui o coração do "Novolume".
Notas:
1. Quando mais não seja, tornando clara a perfeita continuidade do estilo através dos anos, que não permite falar de "fases" ou de uma "evolução" da obra, como bem observa Aguinaldo J. Gonçalves na "orelha" de "Novolume". Lembremos, ainda, que o livro ordena os poemas do presente para o passado, ou de rabo a cabo, o tempo virado no avesso, como poderia dizer o poeta.
2. Cf. Novalis - "Pólen", São Paulo, Iluminuras (Tradução, apresentação e notas de Rubens R. Torres Filho).
3. Talvez aqui justificado, já que parece ser sugerido que só vemos de modo novo o velho e mesmo mundo, quando treme a semântica, quando o sentido deslisa sobre a materialidade do significante, dissolvendo vínculos sedimentados entre o espírito e a letra, que impediam a revolução do olhar.
4. Mas, também, "ego", "ergo", como na pág. 61. Poderíamos chegar até "egg", não? Note o leitor a bela capa de Waltercio Caldas.
5. Lembre-se o leitor que o título do primeiro capítulo do livro de Rubens sobre Fichte ("O Espírito e a Letra") era muito exatamente "A Claridade do Olho" e trazia uma epígrafe tomada de empréstimo a Moritz: "E assim ele errava, sem apoio e sem guia, pelos abismos da metafísica".
6. Lembrar a abertura do primeiro livro, "A Investigação do Olhar": "A poesia, esforço de linguagem, será primeiramente 'lógica'±" ("Novolume", pág. 156).
7. Com efeito se a palavra humor comparece, e muito raramente, na poética do romantismo, como é o caso de Jean Paul Richter, ela não significa nada de diferente do que nesse horizonte é pensado como ironia. Cf. R. Wellek, "História da Crítica Moderna", vol. 2, Ed. Herder, págs. 90-98. É só justamente na crítica que Kierkegaard, na esteira de Hegel, endereça ao romantismo que, a meu conhecimento, o conceito de humor será definido na sua oposição ao conceito de ironia.
8. O poeta que reconhece sua precariedade (alimentado de Ronsard, Petrarca, Camões e capim, longe da fulana inacessível), a imensidão do mundo real e a solidez do fimito.
9. "O Espírito e a Letra", Ática, págs. 64-5.
Bento Prado Jr. é professor da Universidade Federal de São Carlos.

Folha de São Paulo

Elogio do oco

O oco desfaz as dúvidas
quanto ao vazio do que é:
ninguém fica sem recado.
Todos sabemos direito
o que importa a seu respeito.
O oco é fácil e honesto.
Não digo o mesmo do resto.
Rubens Rodrigues Torres Filho

Folha de São Paulo

MARGENS DE UMA ONDA


Navegador do sonho e da forma

Alberto Martins
DUDA MACHADO

a obra de Duda Machado, poética do flagrante e do conciso, mas também da indagação existencial e da atenção cerrada aos problemas da linguagem, vem desenhando um percurso que, no que tem de discreto, terá de consistente. Discrição, entenda-se aqui, como qualidade afim ao discernimento. Afinal, num "mundo em cacos" -para usar a expressão de Luiz Costa Lima na orelha do último livro de Duda-, discernir pode ser operação de máxima importância, quando não de sobrevivência mesmo da cultura.
No caso da poesia, o recurso a um certo anonimato e enclausuramento da linguagem poética acabou sendo -sobretudo a partir da década de 70, se não por todos, certamente por um número bastante significativo de poetas- um modo paradoxal de resistir à indigência a que se via relegada não apenas a própria literatura, mas, talvez, a noção mesma de realidade. O anonimato seria então um modo de se aproximar da natureza silenciosa (ou silenciada?) das coisas, dos gestos e dos objetos, ao mesmo tempo em que garantiria o acesso à universalidade da experiência, "desimpedida" aqui de um eu que tudo nomeia e falseia. O enclausuramento apareceria, por sua vez, como um modo de integridade possível em tempos particularmente adversos.
A eficácia de tal estratégia, no entanto, é sempre ambivalente, já que, muitas vezes, o poema acaba contaminado pela própria indigência que queria combater: sendo anônimo, não é de ninguém; enclausurado, não vai além de seu círculo. E, tal como numa guerra de trincheiras, aí ninguém mais levanta a cabeça, nem sai do lugar.
Boa parte da alegria que o leitor encontrará em "Margem de Uma Onda" -a mais recente coletânea de Duda Machado- advém precisamente da sensação de abrangência, por parte de um poeta que, fiel a seu trajeto de rigor e condensação, avança para um sentido mais amplo de captação do eu, do tempo e da realidade. Sem falsear a condição lírica de sujeito fragmentado, todo o livro denota um nítido desejo de superação daquilo que é forma estanque ou mero fragmento e uma tentativa de abarcar o real em planos e sequências cada vez mais articulados.
Tal movimento, no entanto, não é de agora. Ao reunir seus dois livros anteriores -"Zil" (1977) e "Um Outro" (1989)- sob o título duplamente significativo de "Crescente" (1990), o autor dava uma pista segura do rumo em que sua produção avançaria. Assim, se no seu livro de estréia, a espacialização e suas lacunas constituíam um dado marcante da leitura, de lá para cá nota-se, progressivamente, a opção por uma sintaxe que não se contenta com a apresentação explosiva, desordenada, dos fenômenos, mas que procura apreendê-los mediante vínculos de sentido, relações temporais, cláusulas de subordinação e outros procedimentos.
A chave dessa transformação parece estar na própria experiência do eu lírico. Como se, ao reconhecer a matéria central de sua poesia -a subjetividade descontínua e fragmentária- como um campo próprio de operação do real, o poeta se visse instado a levar o problema a um outro nível de enfrentamento. Este nível é o tempo. Daí que não seja exagero afirmar que, no percurso de Duda Machado, a espacialização vem cedendo enfaticamente lugar à temporalidade. Leia-se um poema como "Duração da Paisagem", que é quase uma declaração de arte poética (leia poema nesta página).
Mas, para que esse desejo de duração se efetue, é preciso que o poema encontre seu equivalente no plano da forma. Assim, enquanto o eu esgarçado, sujeito à descontinuidade das coisas, tem no discurso irônico, elíptico, sua quase que única possibilidade formal, os poemas de "Margem de Uma Onda" aspiram igualmente a "uma perspectiva/ que domine também a ironia" (in "Vida Nova"). Daí a busca, ao longo de todo o livro, de uma forma que abranja tanto a fina veia analítica quanto um desejo fluido de encantamento e metamorfose.
Em "Fragmentos para Novalis", o poeta dirá mesmo "Navegador da forma enquanto sonho/ navegador do sonho enquanto forma", como a saudar a possibilidade de uma poética que, sendo rigorosa e substantiva, dê conta ainda assim do movediço e do informe. O fato é que, com isso, a expressão literária se adensa e a visão de mundo ganha em complexidade e espessura. Em consequência, os poemas já podem ultrapassar a posição de defesa, diminuta e reativa, para readquirir um sentido de sondagem do possível, de todos os possíveis -o que está, desde o princípio, na raiz da atividade poética. E é exatamente essa operação -precisa e necessária- que torna tão bem-vinda a coletânea de Duda Machado.
Alberto Martins é poeta e artista plástico.

Folha de São Paulo


Duração da paisagem
MARGENS DE UMA ONDA
DUDA MACHADO

Esquece a música.
Antes sustentar a tensão
A ponto de contemplá-la
dentro ainda
de sua permanência.
A partir daí
-o mundo intacto-
vai-se abrindo um espaço,
paisagem não-preenchida,
habitada somente
por uma duração
para a qual acordamos
e, na qual, às vezes,
podemos existir.
Duda Machado

Folha de São Paulo

TROVAR CLARO


Dois gumes

Ana Paula Pacheco
PAULO HENRIQUE BRITTO
O novo livro de Paulo Henriques Britto traz surpresa e algum desconcerto. A surpresa da insistência na metalinguagem, justamente quando os poetas brasileiros contemporâneos a abandonam, e da dimensão que ganha em certos momentos do livro, por vir atada aos confrontos da subjetividade. O desconcerto que a boa poesia de um sujeito armado de crítica até os dentes pode provocar no leitor.
Como já vinha acontecendo em seu trajeto, a poesia de Paulo Henriques afasta-se tanto das já ingênuas opções pela inovação formal como da linguagem considerada poética por excelência. O poeta parece colocar-se no fio tênue do equilibrista: se escolhe a rítmica da linguagem muito próxima da fala (na linha da geração de 70), ela vem disposta, nesse livro mais do que nunca, em estrofes regulares e versos via de regra metrificados, criando uma tensão por vezes surpreendente.
Como de costume, a opção é pela poesia intimista, reflexiva. Os volteios do eu vêm agora conjugados ao questionamento do sujeito na cena lírica e do próprio fazer poético. Em contrapartida, a evidência de um olhar que vaza a máscara do fingidor dá à metalinguagem uma dimensão de voz que fala de um mundo, resguardando-a do limite de ser não mais que proposta de ingredientes para a boa poesia.
Mas não é só a metalinguagem que esconde/desvela esse sujeito. Se falar do eu o tempo todo é pegajoso e inconveniente, o poeta se objetiva, fala das coisas e do outro. As coisas, entretanto, são as que lhe dizem respeito e o outro não é um terceiro, mas segunda pessoa, mais propriamente um espelho (e, nesse caso, somos nós, leitores, a imagem predileta). O que se vê muitas vezes é alguém que se desdobra para falar de si como um outro. Lembra, nesse sentido, um impostor -persona poética- que tem a atitude irônica de tratar do eu com distanciamento, buscando eliminá-lo enquanto assunto, sem, no entanto, deixar de falar sobre ele. Torna-se então patente a luta por submergir o eu no que tem de sentimentalismo, salvando, no entanto, a consciência particular que tem do mundo e de sua estada nele. Sob o crivo de uma razão crítica que tem voz marcada nos poemas, o sujeito está presente mesmo quando tenta lançar-se em abismo.
"Um Pouco de Strauss" é exemplar dessa luta, aqui mudada em conselho debochado ao leitor (leia o poema nesta página). "História Natural", por seu turno, alarga a visão do problema, mostrando que a dissolução do eu não é uma verdade programática. A vontade de objetivar-se nas coisas não chega nunca a roçar a credulidade no artifício poético. O sujeito retorna, sempre à espreita por detrás das coisas e do artefato literário e, a despeito do burburinho monótono da moda, "é preciso dizer-se" ("mesmo/ que a moda agora mande (e a moda manda,/ e muito/ acreditar que o eu é o esmo,/ o virtual, o quase extinto...").
Mas a tensão nunca se resolve: o sujeito também tem consciência do paradoxo que o envolve -a moda diz que o eu é "o panda/ desgracioso da história do Ocidente" e, ainda que não a siga, ele reconhece "o ardor do bambu nas entranhas", a sobrevida de panda acuado pela ordem que manda aniquilá-lo. Recusar a moda é gesto duro, já que a dissolução do sujeito é também condição histórica: na multidão somos "como dois e cinco e sete", "como seis e dois e zero"; "Não fale. Não seja. Não tente", diz o poema "Falange".
Em torno ainda do eu, imagens das noites em claro -das "exumações da insônia" e da relação erótica com a noite, "enorme prostituta complacente"-, o tema da memória como seletividade postiça, vestígio falso do irrecuperável (a notável marca do silêncio é um telefone, "gordo como um rei"), da morte, da dor, sempre possível, do amor resistente e das cópulas que formigam no veraneio, única sobra de um eldorado modorrento.
Conjugados aos dilemas do sujeito, os temas do livro incidem sobre duas tônicas principais: a linguagem e o mundo de que trata; e o divórcio entre razão e desejo. Desdobrando-se, incluem, no questionamento do ofício, a desmistificação da persona lírica ("mero signo, simples mito", em "Pessoana"), dos artifícios da poesia, a todo momento desnudada, e a desmistificação do mundo ordenado. Esta última, que alarga consideravelmente as beiras da metalinguagem, surge em "Sete Estudos Para a Mão Esquerda". É cara ao poeta a idéia da verdade, das certezas viscerais e da ordem instituída como falácias de um "mundo de plástico" e de um sujeito que, quando distraído, se deixa levar por ele. Há uma profunda descrença da ordem aparente, serena, no fundo engendrada por uma vontade crassa. Nesse chão ardiloso, passeiam em fila única as lagostas cegas do ódio e as portas são uma constante.
O mundo retesado, assunto e não só pressuposto de um sujeito partido, também está presente em "Até Segunda Ordem", de resto exceção do tom geral do livro.
Trata-se de um bloco diferenciado de poemas que descortinam um mundo de negociatas: "Até Segunda Ordem" coloca as imagens em movimento, entrelaçando uma narração obscura que imita a própria natureza evasiva do assunto. Os poemas são parte de uma correspondência entre infratores, lacunar o bastante para que tudo fique literalmente "debaixo dos panos". A paródia formal salta aos olhos: a história é contada em cinco sonetos, todos com o mesmo esquema rímico (a,b,a,b/ c,d,c,d/ e,f,g/ e,f,g). Entre tramóias e personagens entrevistos, nós, interlocutores, somos involuntariamente cúmplices e até parte no negócio -seguindo as instruções, devemos destruir o último soneto.
Quanto à dupla desejo e consciência, outra tônica do livro, estão sempre desajustados -enquanto a razão se angustia, o corpo não liga, quer praia. A razão tenta ordenar o caos interno, o desejo revém, com suas aporias e contradições. A fratura entre ambos define o homem e impregna as coisas -na alquimia às avessas que o livro equaciona, tudo que a reflexão toca se humaniza, tornando-se entrave; tudo que o desejo ilude, inquieta a mente.
Num dos mais belos poemas do livro, o sujeito enterra seus "últimos defuntos fecundos", aos quais a objetividade se rendeu. As palavras são a "pá única de cal" que despeja sobre eles, curiosamente, na última série, como se o final fosse renovada promessa de aniquilamento, prazo fatal da luta.
Mas depois que enterra seus últimos defuntos, ainda o vemos, transfigurado, andando entre os móveis, na intimidade do apartamento. Um sujeito sempre pronto a objetivar-se, sem nunca desaparecer de vez da cena, e sem nunca deixar de ser desafiado pela consciência crítica -é este o limite que faz o melhor dessa poesia.
Com o perdão da panorâmica instantânea: o que se vê em "Trovar Claro" é continuidade e certa radicalização em relação aos dois livros anteriores, "Liturgia da Matéria" e "Mínima Lírica". Segue-se a atenção à matéria mundana, única capaz de resgatar um sentido do que seja realidade, numa espécie de antiidealismo revelador. Mantém-se a linguagem da fala íntima, sempre reflexiva, agora ainda mais clara (curiosamente, a aderência a padrões formais fixos parece permitir um uso mais amplo e ritmado da linguagem próxima ao coloquial). Torna-se ostensiva a presença da metalinguagem, o que é uma faca de dois gumes. Mas, se a moeda já está um pouco batida hoje em dia, Paulo Henriques consegue dar-lhe novo alcance: a metalinguagem se une à substância crítica e à experiência de um sujeito insone que leva seus dilemas até a exaustão. A química é tal que a percepção do mundo não fica prejudicada por uma poética que se fecha no próprio texto como realidade apartada. Pelo contrário, se questiona a linguagem é porque questiona o mundo de que fala, se põe em dúvida o eu, duvida da capacidade de apreender e da validade de sua experiência. Apesar da restrição do leque de temas, o resultado é uma renovada dimensão lírica e crítica, que brota das contradições do eu e que não as elimina.
Ana Paula Pacheco é mestranda em teoria literária na USP.

Folha de São Paulo


Um pouco de Strauss

TROVAR CLARO - PAULO HENRIQUES BRITTO

Não escrevas versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.
Não faças poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a "Valsa do Imperador".
E sempre a mesma lengalenga estúpida,
sentimental, melosa.
Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.
Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.
Paulo Henriques Britto

Folha de São Paulo

ERNESTO GEISEL


A fala do general
Boris Fausto
MARIA CELINA D'ARAUJO; CELSO CASTRO

Durante seu governo, o general Geisel quase sempre recusou-se a dar entrevistas. Lembro-me do espanto que causou uma quebra excepcional desse comportamento, quebra inusitada não só pela fala como também pela ambientação: um trem-bala em alta velocidade, a milhares de quilômetros do Brasil, durante uma visita presidencial ao Japão. Como viria a dizer anos depois, ele não gostava mesmo de conceder entrevistas e "não dava muita importância à imprensa", essa coisa "do dia-a-dia, da fofoca".
Recordo a cena, aparentemente distante dos objetivos de uma resenha, e as observações do general, para enfatizar o valor do empreendimento de Maria Celina D'Araujo e Celso Castro, que conseguiram realizar um excelente trabalho, colhendo um longo depoimento de Geisel, no âmbito do projeto sobre a memória militar recente do país, promovido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas. Daí resultou um livro em que, entre outros pontos positivos, é nítida a qualidade do diálogo: os entrevistadores foram muito felizes nas perguntas e o general raramente foi evasivo, deixando um depoimento relevante para se entender os rumos da história brasileira a partir da Primeira Guerra Mundial.
Geisel -como Garrastazu Médici, como seus irmãos Orlando e Henrique- fez parte de um punhado de filhos de imigrantes que optou pelo ingresso no Exército. Nascido no Rio Grande do Sul, filho de pai alemão e de mãe da mesma origem, teve uma trajetória que o distingue radicalmente dos paulistas também filhos de imigrantes nascidos na sua época, os quais nem sequer imaginaram seguir a chamada carreira das armas.
Ao mesmo tempo, essa trajetória foi até certo ponto diversa de jovens do Nordeste, filhos de famílias de uma elite ou de uma classe média em declínio que, à falta de melhor alternativa, foram sentar-se nos bancos de um Colégio Militar. A diferença reside na circunstância de que, no Rio Grande do Sul, mais do que em qualquer outro Estado e ao contrário do que acontecia em São Paulo, a profissão militar era cercada de prestígio. O general Geisel tinha plena consciência do fato, acentuando a tradição militar de seu Estado, situado em uma região estratégica de fronteira. O Rio Grande do Sul participou diretamente das campanhas do Prata e da Guerra do Paraguai no século 19, sendo também teatro de revoluções como a Farroupilha e a Revolução Federalista, esta já na República.
A meu ver, os traços básicos da formação de Geisel vinculam-se aos rígidos costumes familiares, às características da instituição em que ingressou e aos acontecimentos ocorridos na década de 20 e nos primeiros anos 30. Sob o primeiro aspecto, lembremos, a título de exemplo, a descrição da vida doméstica em Bento Gonçalves, em que se destaca a severidade dos costumes, contrastando com o comportamento das famílias italianas, em maioria na região. Na casa do general, eram de rigor os sapatos lustrados, as unhas limpas, os cabelos penteados, objeto de inspeção na saída para o colégio; já os garotos italianos -pelos quais Geisel revela simpatia- andavam soltos pelas ruas, jogando bola e brigando, a boca cheia de palavrões.
Sem dúvida, a formação familiar não diz tudo. Acrescentemos a ela a óbvia observação de que Geisel foi um homem do Exército. É certo que ele não poupa críticas a figuras individuais, mesmo àquelas com quem tinha afinidade. Mas a crítica a pessoas não diminui a importância do papel atribuído aos militares, no sentido de garantir a ordem e a coesão interna do país. Segundo ele, nas condições brasileiras, as Forças Armadas desempenham um papel político, sem se identificar com a política partidária. Elas não podem ser "o grande mudo" como queriam os instrutores da Missão Militar francesa. Ao contrário, devem intervir quando o país estiver ameaçado por graves dissensões internas, provocadas por políticos que se desviam de sua missão.
Nesta precária síntese de elementos formativos, ressaltemos afinal o fato de que o general Geisel pertenceu àquela geração de militares que, entre os 20 e os 30 anos de idade, viveu direta ou indiretamente episódios como as revoluções tenentistas, a revolução dos "maragatos" contra Borges de Medeiros, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930.
Da longa e sugestiva fala do general, desponta a figura de um conservador no terreno político, que aceita a ruptura do status quo, ou age nesse sentido, sempre que a ordem lhe pareça estar ou esteja de fato ameaçada. Assim, exemplificando, justifica o golpe do Estado Novo porque a disputa sucessória levava a um beco sem saída, dividindo-se entre os riscos de uma desforra paulista encarnada por Armando de Salles Oliveira e a surpreendente demagogia do suposto candidato oficial José Américo de Almeida; concorda com a deposição de Getúlio em 1945 porque ele se deixara embalar pelo queremismo e pela aproximação com os comunistas; afirma não ter tido problema algum de consciência ao conspirar desde a primeira hora contra o desastrado governo de João Goulart, pois, segundo ele, pelo que fazia, esse governo era ilegal.
O conservadorismo do general Geisel tem como fortes componentes o anticomunismo e a relativização da democracia. Seria injusto considerá-lo um anticomunista obsessivo, do gênero daqueles que perdem contato com a realidade. Seu anticomunismo é metódico, realista e, por isso mesmo, eficaz. Ele ridiculariza sem rodeios personagens como o caricato almirante Pena Boto. Quando no poder, a repressão à esquerda não o impede de estabelecer laços diplomáticos com a China e de reconhecer o governo revolucionário de Angola, por razões de conveniência. Num dos muitos episódios em que é pressionado pela linha dura, critica ironicamente os excessos do general Silvio Frota, dizendo-lhe que algo deve andar errado nos métodos, se o comunismo estiver mesmo sempre crescendo, apesar de nós o combatermos desde o levante de 1935.
Falando de suas leituras, Geisel destaca a influência em seu pensamento das obras de Alberto Torres e, principalmente, de Oliveira Viana. No depoimento, perpassa a influência deste último e de outros pensadores autoritários dos anos 30 e 40, sobretudo quando insiste na originalidade de nossa formação.
Assim, defende a adjetivação da democracia, ou seja, a democracia relativa, pois não é possível "pegar o que se usa e se faz nos Estados Unidos, ou na França, ou na Inglaterra, e transplantar integralmente para aqui". A soberania popular lhe parece ser um princípio teórico, dos homens do direito, mas cuja aplicação em países como o Brasil, dado seu estágio de civilização, deve ser vista com ressalvas. Daí sua crítica ao movimento das "diretas já" e às eleições diretas de um modo geral, tópico já bastante criticado pela imprensa, lembrando que o resultado de escolhas, a portas fechadas, de generais-presidentes como Médici, Costa e Silva, Figueiredo, dispensam maiores comentários. É bom lembrar, em todo caso que, nessa afirmação de descrença na capacidade popular em matéria política, o general não está sozinho. Como se sabe, essa é uma concepção corriqueira em setores letrados civis e nos meios militares, bastando lembrar, quantos aos últimos, os escritos dos generais Juarez Távora e Góes Monteiro.
Na área econômica, Geisel tem muito que dizer. Não só por ter chegado à presidência, mas por ter sido uma figura de destaque do grupo burocrático-militar que desempenhou um importante papel no projeto de desenvolvimento do país. Sua visão e sua orientação econômica estão imbuídas de um forte componente nacionalista e estatista, lembrando, com notas próprias, a teoria cepalina de substituição de importações, como bem observam os entrevistadores.
Sob este aspecto, Geisel surge como a última figura importante de uma época que se convencionou chamar de Era Vargas. Sua ênfase no papel do Estado, segundo afirma, derivaria de razões pragmáticas. Neste passo, a lucidez de sua análise histórica pode ser resumida em uma pergunta: quem, se não o Estado, poderia ter construído no país uma infra-estrutura básica industrial e de serviços, nas condições vigentes de um capitalismo estrangeiro arredio aos projetos de longa maturação e de uma burguesia nacional de horizontes estreitos, voltada para o lucro fácil?
Não creio porém que a missão relevante conferida ao Estado se deva apenas a considerações de ordem prática, pois aí reside um dos pressupostos básicos do pensamento militar. No caso do general Geisel, lembremos que a profunda mudança do quadro de relações internacionais e a crise do Estado foram insuficientes para modificar suas convicções. Falando em 1994, ele mantém seus pontos de vista, combatendo entre outras coisas, as privatizações que apenas se esboçavam.
A crença nos destinos nacionais leva o general a desacreditar de saídas recessivas nos momentos de crise, como demonstra o lançamento em seu governo do Segundo Plano de Desenvolvimento Econômico, buscando fazer avançar qualitativamente o processo de substituição de importações, apesar da conjuntura internacional adversa. É interessante observar que, ao defender o 2º PND -objeto de árdua controvérsia entre os economistas-, o general Geisel aponta uma razão de natureza política para a sua implantação, indagando: como é que eu iria justificar uma recessão, depois da euforia do desenvolvimento no governo do Médici?
Na impossibilidade de percorrer o fio dos acontecimentos históricos em que Geisel esteve envolvido, destaco o projeto de abertura lenta, gradual e segura. Ele surge nas páginas do livro como uma complicada operação estratégica, conduzida com o máximo de frieza possível. Não é a pressão das oposições, nem a indignação com a violação dos direitos humanos o móvel básico do general, que tem palavras dúbias com relação à condenação da tortura, por ele combatida na prática, em lances decisivos.
Seu projeto, a meu ver, derivou da compreensão de que o regime militar entrara irremediavelmente em desgaste, levando ao desprestígio das Forças Armadas e à quebra da hierarquia em seu interior. Em poucas palavras, a ordem estava ameaçada e a culpa agora não era dos políticos. Mesmo lamentando que ele tivesse às vezes de "jogar pasto às feras", é inegável que o papel do general Geisel foi fundamental no sentido de se tirar o país de um período sombrio, ao qual ele próprio estivera associado.
Boris Fausto é historiador, autor de "História do Brasil" (Edusp), entre outros.

Folha de São Paulo

CONCENTRAÇÃO E DESCONCENTRAÇÃO INDUSTRIAL EM SÃO PAULO (1880-1990)


A escola de Campinas

Paul Singer

Ambiciosa síntese de uma larga fatia da história industrial brasileira, com ênfase nas vicissitudes de sua localização, este livro tem como objetivo maior descrever, analisar e interpretar dois processos: a concentração industrial em São Paulo e a posterior descentralização do parque industrial brasileiro, que está hoje esvaziando a economia metropolitana. Traça quadros amplos da evolução da economia brasileira, ao longo de 110 anos, para assinalar os grandes vetores locacionais, responsáveis pelos dois processos mencionados.
Barjas Negri começa resenhando os estudos então mais recentes sobre concentração industrial no Brasil: o de Carlos Roberto Azzoni, "Indústria e Reversão da Polarização no Brasil" (USP, 1986) e o de Clélio Campolina Diniz, "Dinâmica Regional da Indústria no Brasil: Início de Desconcentração, Risco de Reconcentração" (tese apresentada na Universidade Federal de Minas Gerais, 1991). Assim, Negri contrapõe a sua obra, originariamente tese de doutoramento na Universidade de Campinas, às investigações e interpretações dos cientistas da USP e da UFMG. Não desejo insinuar que se trata de uma polêmica interuniversitária, pois não tenho idéia do quanto as teses de Azzoni e de Diniz refletem o trabalho de suas academias. Mas a leitura do livro de Negri sugere que, este sim, é fruto de uma instituição que, para o bem ou para o mal, produziu uma urdidura densa de interpretações afins. O que torna o instituto de economia da universidade campineira uma "escola" no sentido usual do termo.
Negri toma por base o trabalho anterior de Wilson Cano, seu orientador, o que me parece normal e inevitável. Mas, ao longo do livro, as numerosas análises históricas se fundamentam quase sempre nas obras de outros luminares da Unicamp, como João Manoel Cardoso de Mello, Carlos Lessa, Wilson Suzigan, Antônio Barros Castro, Conceição Tavares, Luiz G. Belluzzo, Tamás Szmrecsányi etc. Esta constatação não tem pretensão crítica, primeiro porque Negri cita e conhece outros autores e, segundo, porque os campineiros a que dá preferência são todos de elevado nível.
O que me parece distinguir a economia da Unicamp é que estas contribuições tendem a ser congruentes, complementando-se quase sempre, ao passo que nas outras faculdades a produção tende a ser muito mais dispersa. De modo que, se alguém tiver a curiosidade de conhecer em síntese a produção campineira sobre a industrialização brasileira, encontrará no livro de Barjas Negri um bom guia.
Na análise do processo de concentração, que vai aproximadamente de 1930 a 1970, Negri atravessa território já desbravado. A maioria das interpretações atribuem a concentração industrial em São Paulo ao desenvolvimento da indústria de bens de produção, que tem como mercado a indústria de bens de consumo. As empresas desse setor podem usufruir de ganhos de escala porque os bens que produzem em geral são padronizados, o que torna esta parcela da indústria naturalmente mais concentrada. Não faltam fatores históricos para explicar como São Paulo acabou sendo o local dessa concentração. Negri desenvolve a análise deste processo, sem aduzir novos elementos de grande relevância.
O processo de desconcentração industrial é mais recente e controvertido. Ele se inicia nos 70, quando o "milagre econômico" ensejou altas taxas de crescimento industrial. E continuou nos 80, a década perdida, quando a indústria no Brasil praticamente deixa de crescer e em São Paulo decresce. A interpretação deste processo é complexa, pois, sendo este estrutural, revela-se pela sua continuidade em todas as fases do ciclo de conjuntura. Negri discute de forma interessante o possível papel das políticas públicas de fomento industrial, que a partir dos 60 passam a ter a desconcentração industrial como uma de suas metas.
Considera também os fatores de expulsão da indústria de São Paulo, desde as chamadas deseconomias de aglomeração até o efeito da organização sindical sobre as decisões locacionais das empresas. Infelizmente, esta problemática não é suficientemente aprofundada. Nem tudo o que passa por deseconomia de aglomeração é realmente significativo como fator de descentralização industrial. Negri oferece longa enumeração em que aparecem fatores importantes, como a especulação imobiliária, o congestionamento do tráfego e a mobilização sindical ao lado de outros, totalmente irrelevantes como a elevação do número de acidentes de trabalho, o desemprego, a elevada rotatividade da mão-de-obra, a deterioração dos serviços de educação, de saúde e das condições de habitabilidade etc. A discussão toda ocupa pouco mais de uma página, quando teria de ser muito mais extensa.
Apesar desta restrição, o livro dá plenamente conta do recado. Acredito que se tornará uma obra de referência pela abundância dos dados que oferece e pela sua sistematização. Um dos seus méritos é também ultrapassar os limites do seu tema principal, apresentando um painel da história econômica do último século, fundamentado em diversas contribuições oriundas novamente sobretudo da Unicamp. Se houvesse ainda alguma dúvida quanto à existência de uma escola econômica de Campinas, este livro a teria eliminado por completo.
Paul Singer é professor do economia na USP e autor de, entre outros, "Um Governo de Esquerda para Todos" (Brasiliense).

Folha de São Paulo

PODER E DINHEIRO - UMA ECONOMIA POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO


Contra a globalização

João Sayad

Os economistas acadêmicos brasileiros podem ser classificados em escolas, embora se saiba que tais conceitos não captam a riqueza e a complexidade de cada um. Na Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro estão os monetaristas, em geral doutores pela Universidade de Chicago. Na Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP temos neoclássicos e monetaristas. A Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro reúne ótimos economistas com formação mais recente nos EUA, congregando a maior parte dos que podem ser chamados neoliberais, elaboradores do Plano Real e membros do atual governo.
Na Universidade de Campinas e na Federal do Rio de Janeiro estão os economistas que se denominam "estruturalistas", em homenagem às teorias da Cepal, onde muitos deles estudaram. De formação marxista, keynesiana, são também chamados de heterodoxos. Esta é a origem da maioria dos autores reunidos em "Poder e Dinheiro", um livro de artigos sobre aquilo que os neoliberais chamam de globalização. Os autores rejeitam esse conceito, pois acreditam que reflete apenas uma proposta ideológica e não a nova realidade do capitalismo. As imagens apresentadas pelos neoliberais sobre este período são muito diferentes dos acontecimentos observados com números e dados das contas nacionais.
Os ensaios de "Poder e Dinheiro" partem de dados reais. Não há controle de déficit, principalmente nos EUA, e sobretudo depois que o governo Reagan anunciou o combate ao déficit público; os cortes de gastos sociais foram substituídos por elevadas despesas com juros que resultaram em déficit ainda maior. A estatística e os dados da contabilidade nacional são incompatíveis com o discurso apologético dos neoliberais.
A coletânea começa com um artigo de 1985 da professora Maria da Conceição Tavares. Na época em que se falava da perda de hegemonia da economia americana, decorrente do aparecimento de novas potências mundiais como a Europa e o Japão, Conceição previu que a política de fortalecimento do dólar acabaria por recuperar a hegemonia dos EUA.
A hegemonia do dólar foi recuperada pelo sucesso do plano antiinflacionário do governo Reagan, com estratégia semelhante às adotadas pelos planos de combate à inflação da América Latina, incluindo o Plano Real. O governo Reagan reduziu impostos e aumentou o déficit público. O Federal Reserve comandado por Paul Volcker manteve uma política monetária rígida, elevando as taxas de juros a dois dígitos. Com mobilidade de capital e taxas de câmbio flexíveis, as taxas de juros altas nos EUA causaram imensa sobrevalorização cambial, importações mais baratas, concorrência dos produtos importados com os americanos e desemprego. A inflação começou a cair. Essas medidas foram complementadas por política dura e severa com os sindicatos, iniciada com a imposição de uma derrota à greve dos controladores de vôos, e por medidas fiscais destinadas a atrair capitais para os EUA. Uma das consequências desta política é bem conhecida por nós: a crise da dívida externa da América Latina.
Sobrevalorização do dólar e taxas de juros altas acabaram por reduzir a inflação, criando imenso déficit comercial e desemprego na economia americana. Situação parecida com a da economia brasileira hoje, com a diferença importante de que o dólar é a moeda-chave da economia mundial.
O artigo de Maria da Conceição Tavares, publicado em 1985, e aquele que ela escreveu com Luiz Eduardo Melin analisam as mudanças na política cambial americana e episódios onde aparecem com clareza os objetivos das negociações do governo americano.
Luiz Gonzaga Belluzzo discute o novo padrão de financiamento internacional e de crescimento, enfatizando a relação entre poder e dinheiro na definição das regras monetárias. Na realidade, a época em que estamos vivendo é um período de baixas taxas de inflação, ou mesmo de tendência à deflação, porque foram definidas regras financeiras a favor dos credores. O credor é quem tem a última palavra e a regra coercitiva -"quero meu dinheiro de volta", enunciada por Aglietta- é a que tem prevalecido nos últimos 20 anos. Segundo Belluzzo, neste tipo de situação, a economia tende à deflação e os ciclos de depressão são mais longos e profundos.
Os artigos de "Poder e Dinheiro" enfocam a instabilidade financeira internacional, chamada de globalização financeira, a partir da conceituação da moeda como uma instituição imanentemente ligada a questões políticas, nacionais e internacionais. Não há dinheiro sem poder e vice-versa.
José Luís Fiori aborda as relações entre poder, hegemonia e moeda, tema controverso, já que os neoliberais imaginam que nos tempos atuais Estado e governo são instituições irrelevantes ou inócuas para os novos mercados globais. É possível haver estabilidade na economia internacional sem que haja uma potência hegemônica? Kindleberger explica a gênese da crise de 1930 a partir da substituição da Inglaterra pelos EUA como nação hegemônica desde o final da Primeira Guerra Mundial. Fiori analisa esta tese e a contrapõe ao ponto de vista dos neoliberais que sugerem o fim do Estado Nacional. É possível haver capitalismo sem Estado como afirmam os apologetas da globalização financeira?
Será que, onde os autores apontam problemas e crises como regra, os neoclássicos apresentariam o mesmo problema como exceção e o debate continuaria sem conclusão, como afirmam os defensores da retórica econômica? Tenho dúvidas.
A política econômica, que se pratica no mundo hoje, começou a ser formulada nos anos 60, a partir dos trabalhos mais importantes de Milton Friedman, que propunham taxas de câmbio flexíveis como remédio para estabilizar o câmbio, longe das decisões sempre incorretas, segundo ele, dos burocratas do Banco Central e de forma a poder liberar a política monetária norte-americana dos encargos de nação hegemônica e, logo, de responsável pela estabilidade das finanças internacionais.
Friedman argumentou que, se o câmbio fosse determinado pelo mercado, seria mais estável do que se fosse determinado pelas autoridades monetárias. A aplicação de tais regras gerou um câmbio mais volátil do que antes, como sustenta Paul Krugman ( "Exchange Rate Instability", The MIT Press, 1993). A previsão não vingou.
Por incrível que pareça, os neoliberais de hoje defendem a rigidez das taxas de câmbio para a América Latina como regra de controle monetário. Para eles, as taxas de câmbio são apenas preços entre moedas. Tanto faz que R$ 1,00 compre US$ 1.00, ou cem centavos de real comprem US$ 1.00. Temos que ter preços fixos nominalmente para evitar que volte o problema inflacionário.
As evidências de Paul Krugman, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), muito citado pelas autoridades brasileiras, é que os salários nominais nos EUA, França e Inglaterra são insensíveis às taxas cambiais. Por conseguinte, taxas de câmbio fixam preços reais. Nessa lógica, economistas neoclássicos não teriam como defender a política cambial brasileira.
Permanece intacta a crença segundo a qual os mercados financeiros são eficientes, conceito importante para as expectativas otimistas sobre a globalização financeira, embora se argumente, com Krugman, que os mercados funcionam mal. Ele calcula que os japoneses que investiram em títulos públicos americanos, nos anos 80, perderam aproximadamente US$ 84 bilhões, apesar da proteção e dos seguros comprados nos mercados de derivativos. Nessa direção, o artigo de Ernani Teixeira Torres Filho, sobre a economia japonesa, lembra do prejuízo dos investidores japoneses que compraram e depois revenderam os edifícios do Rockfeller Center.
Há 20 anos atrás, Mundell, um monetarista da Universidade de Chicago, argumentava que, com mobilidade de capital, as taxas de câmbio deveriam ser fixas, isto é, não deveriam oscilar quando houvesse déficit ou superávit comercial. Caso contrário, teríamos instabilidade: se um país com déficit nas contas externas e desemprego, baixa as taxas de juros e desvaloriza o câmbio, acaba tendo mais déficit externo e menos emprego. Portanto, monetaristas também seriam capazes de prever que o arranjo financeiro internacional dos anos 80 e 90 gera instabilidade.
São resultados neoclássicos ou monetaristas, que poderiam ser utilizados para analisar, criticar e propor soluções para os difíceis momentos de crise que estamos vivendo. Entretanto, continuamos propondo e implementando, sem nenhuma preocupação contábil de registrar erros, acertos e correções.
O caso do Sudeste Asiático, ainda que seja cedo para concluir, continua sendo tomado como paradigmático pelos neoliberais. Neoclássicos e monetaristas poderiam concordar com muitos resultados apontados pela professora Conceição, por Belluzzo e outros autores deste livro. Entretanto, a maior parte dos neoclássicos e monetaristas contemporâneos acaba por concluir que temos que fazer os ajustes estruturais do Consenso de Washington, que não decorrem das suas proposições.
A leitura do livro permite várias reflexões. Primeiro, o ciclo da economia capitalista que estamos vivendo gera pouco crescimento e ciclos de recessão mais longos por causa de seu caráter financeiro. A globalização financeira gera instabilidade, concentração de riqueza no Primeiro Mundo e exclusão de trabalhadores e países. Em segundo lugar, neoclássicos poderiam ter feito análises semelhantes. Existem fatos, estatísticas e números que compõe uma única realidade, que pode ser "descoberta" pelos economistas. O relativismo não acabou com a verdade.
Consolado, fico com apenas uma dúvida que não consigo resolver. Por que não convergimos para uma conclusão? Será por que estamos tratando de poder e dinheiro?
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e ex-ministro do Planejamento do governo Sarney.

Folha de São Paulo

TRIDIMENSIONALIDADE NA ARTE BRASILEIRA DO SÉCULO 20


Os dilemas da atualidade
Agnaldo Farias

A pouca familiaridade do brasileiro com as artes plásticas é um fato. Mesmo a literatura, arte mais intimista, interessou-nos já na infância com o ritmo ditongado do "café com pão" do Bandeira e, mais tarde, sob a forma proverbial de indagação desalentada, incorporamos o "E Agora José?", do Drummond. No entanto, aquele que ora me lê pode ter chegado até aqui sem a mais vaga lembrança das esculturas de fundo surrealista de Maria Martins ou da concisão com que Amilcar de Castro enfrenta o aço. Isto para não lembrar que, se os museus vêm arrastando multidões para ver o Monet, o Rodin e a Claudel, o simples tropeço na palavra "instalação", filha primogênita da escultura, ainda provoca terror, repulsa e urticária em muito cidadão pretensamente acolchoado na alta cultura.
Seguindo a voga das megaexposições e, com vistas a recuperar o tempo perdido, os anos 90 têm sido pródigos em oferecer visões panorâmicas da arte brasileira. Sejam elas coletivas -"Bienal Brasil Século 20", "Brasil dos Viajantes", "Coleção Gilberto Chateaubriand"- ou monográficas -Mira Schendel, Ernesto de Fiori, Tarsila do Amaral-, todas vêem acompanhadas de catálogos, não raro parrudos como uma boa lista telefônica.
Com o lançamento do catálogo "Tridimensionalidade", o Instituto Cultural Itaú (ICI) passa a integrar o rol das instituições preocupadas em oferecer publicações casadas com exposições referenciais. E, considerando a ausência de publicações sobre o tema e a penetração que os produtos do ICI vêm tendo em escolas, universidades, museus e centro culturais de todo o país, a publicação de um catálogo desta qualidade será inestimável. Contribuirá para amenizar essa triste ignorância sobre aquela que, neste final de século, é indiscutivelmente a fração mais inventiva da nossa produção artística.
O apuro do projeto gráfico do catálogo de "Tridimensionalidade", de autoria de Ricardo Ribenboim, deixa vazar já na capa sua amplitude temporal e conceitual (os termos são, como se verá, interligados). Associar uma escultura de Brecheret ao conceito de tridimensionalidade significa abrir um arco dentro da produção brasileira que tem seu início com a construção do conceito moderno de escultura e vai até o ponto em que esse conceito entra em crise. Porque, se é verdade que reconhecemos como escultura a "Tocadora de Guitarra", de Brecheret (pág. 44) -um volume de mármore a derramar sombra no espaço, a dividi-lo com sua massa densa e opaca-, o que dizer, por exemplo, da obra de Waleska Soares (pág. 263), uma sucessão de bancos de igreja com a superfície feita de cera de abelha e marcada por joelhos?
Mesmo aos olhos leigos, que reconhecem como escultura um elenco reduzido de materiais, técnicas e resultados formais, o catálogo dará a ver que esse conceito passou a não dar conta do universo tratado, ao menos a partir dos últimos 30 anos. A obra assegurará ao leitor um repertório que o fará compreender os dados do problema, inclusive a troca do conceito de escultura pelo de tridimensionalidade. E, caso este termo soe demasiado genérico, o compassivo leitor deverá creditá-lo à prudência do pensamento crítico, de ordinário afoito quanto às classificações, em abordar um território tão vasto.
Para montar esse panorama que abrange da escultura moderna até os dilemas da atualidade, fez-se uma divisão em quatro segmentos. Para tratar de cada um deles convidou-se uma autoridade no assunto. Duas delas, Annateresa Fabris e Tadeu Chiarelli, igualmente responsáveis pela supervisão da pesquisa que alimentou o banco de dados, a exposição e o catálogo. Em relação a este último, Fabris ocupa-se da escultura modernista, com destaque para a obra de Victor Brecheret. Fernando Cochiaralle, por sua vez, trata das correntes abstratas -entre elas, o concretismo e o neoconcretismo-, que floresceram ao final dos anos 40 até o início dos 60, enquanto Celso Favaretto justifica porque os anos 60/70 -onde prevalecem a nova figuração e a arte conceitual- merecem ser encarados como revolucionários. Por último, coube a Chiarelli tratar das tensões e rumos da produção atual.
Analisados isoladamente os textos são claros e elucidativos, fazendo jus à reputação de seus autores. Sua leitura fica ainda mais enriquecida pela consulta à seleção de obras reproduzidas e de excertos críticos que vêm em sequência a eles. Entretanto, sob o ângulo da orientação editorial, pesam alguns aspectos tópicos e de ordem mais geral que, resolvidos, dariam um melhor acabamento a um trabalho, desde já, indispensável.
Indo do particular ao geral, começo por lembrar que não é razoável que a copiosa e necessária citação de artistas que serviram de referência ao nosso meio artístico -Rodin, Brancusi, Picasso, Tatlin, Gabo etc.- não venha acompanhada de nenhuma ilustração de suas obras. Mais não fosse, "Tridimensionalidade" tem como objetivo atingir o maior público possível, público carente de informações e que frequentemente não terá uma bibliografia de apoio para consultar. Em artes plásticas a informação visual é tudo, e sem ela o leitor é deixado na árida e apavorante companhia de um monte de nomes e descrições abstratas. Ademais, a opção pela ausência de legendas das esculturas reproduzidas também concorre para o truncamento da leitura do catálogo, sobretudo porque não consta no índice a presença das suas fichas técnicas.
As considerações de ordem geral decorrem, como já disse, da orientação editorial e referem-se ao desajuste que os textos apresentam entre si. A concepção editorial defende a multiplicidade de visões sobre um mesmo assunto, o que certamente é interessante mas que não me parece justo aplicar neste caso. Não há dissensão conceitual evidente entre os autores ou uma metodologia de abordagem diferenciada. Se, com relativo pânico, costuma-se adotar a divisão cronológica dentro da história da arte, é ainda mais temerário juntar a isso a obrigação de cada período ser tratado dentro de um mesmo número de páginas. Considerando-se o objetivo da obra, de efetuar um mapeamento da questão, não há, por exemplo, por que tratar o modernismo com o mesmo destaque que os anos 60 e 70. Enquanto Brecheret, que não está a merecer tanto, tem sua obra lida em profundidade, a revolucionária produção dos anos 60 e 70 ganha uma análise que deixa a desejar. Pois, no limitado espaço disponível, não obstante a leitura competente de Favaretto, esta produção superior não logra ser senão objeto de considerações gerais, exteriores às obras.
Um outro nó problemático é a obrigação que cada autor se impõe de fazer o repasse de alguns conceitos básicos sobre a questão. Por exemplo, no que concerne à definição de escultura moderna. Um texto isolado, que tratasse exclusivamente desse ponto, deixaria os autores livres para um desenvolvimento maior de seus tópicos. Mas não é o que acontece. E ainda que Fabris e Cochiaralle concordem com o que seja modernidade em escultura, fazendo uso dos mesmos conceitos e autores, exemplicam-no com artistas diferentes, o que só confunde o leitor.
Agnaldo Farias é professor de arquitetura e urbanismo na Escola de Engenharia de São Carlos.

Folha de São Paulo