Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?*
Clovis Carvalho Britto
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. clovisbritto5@hotmail.com
A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.
Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas "zonas mudas" relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.
Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:
transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),
para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.
Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem
estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).
Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.
O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes "perturbadores", a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.
A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma "encenação do esquecimento"; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.
De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, "falocêntrico", a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.
Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.
O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a "avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino" (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.
Referências Bibliográficas
Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.
Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.
De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.
Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.
Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.
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Clovis Carvalho Britto
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. clovisbritto5@hotmail.com
A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.
Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas "zonas mudas" relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.
Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:
transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),
para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.
Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem
estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).
Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.
O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes "perturbadores", a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.
A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma "encenação do esquecimento"; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.
De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, "falocêntrico", a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.
Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.
O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a "avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino" (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.
Referências Bibliográficas
Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.
Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.
De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.
Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.
Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.
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