Resenha: The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society
Leticia Costa de Oliveira Santos
OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto: Buffalo: London: University of Toronto Press, 2020. 264 p
Abstract
In the book Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom proposes a commons based system. His so-called Radical Alternative stands in relation to the dialectic between two fields of readings on the commons grouped as Conventional Wisdom and Left Western Consensus. He denotes that both readings are limited from a decolonial critique. The key to his Radical Alternative is on the centrality of land, autonomy, and justice from the Global South. It presents land in an approximated sense to territory/territoriality, as used in Latin America, and territorializes the political discussion of the commons. He also develops the understanding of universal justice on land and contributes to discussions on contemporary commons, as he affirms the contemporaneity of forms of relationship with the land and persistent material and cultural exchanges on the African continent.
Keywords:
Commons; Decoloniality; Socioenvironmental Justice; Political Ecology; Land
Resumen
En el libro Commons in an Age of Uncertainty: descolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propone un sistema basado en los comunes (commons based system). Su llamada Alternativa Radical se construye con relación a la dialéctica entre dos campos de lecturas sobre los comunes agrupados como Sabiduría Convencional y Consenso de la Izquierda Occidental. Indica que ambas lecturas, desde una crítica decolonial, son limitadas. La llave de su Alternativa Radical está en la centralidad de la tierra, la autonomía y la justicia desde el Sur Global. Presenta la tierra con un sentido cercano al de territorio / territorialidad, como se usa en América Latina, y territorializa la discusión política de los comunes. También desarrolla la comprensión de la justicia universal por la tierra y contribuye a las discusiones sobre los bienes comunes contemporáneos al afirmar la contemporaneidad de las formas de relación con la tierra y los intercambios materiales y culturales persistentes en el continente africano.
Palabras-clave:
Comunes; Decolonialidade; Justicia Socioambiental; Ecología Política; Land
Resumo
No livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propõe um sistema baseado em comuns (commons based system). Sua chamada Alternativa Radical constrói-se em relação à dialética entre dois campos de leituras sobre os comuns agrupados como Sabedoria Convencional e Consenso da Esquerda Ocidental. Ele indica que ambas as leituras, a partir de uma crítica decolonial, são limitadas. A chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global. Apresenta a terra com um sentido próximo ao de território/ territorialidade, como acionado na América Latina, e territorializa a discussão política dos comuns. Também desenvolve o entendimento de justiça universal sobre a terra e contribui para as discussões sobre comuns contemporâneos ao afirmar a contemporaneidade das formas de relação com a terra e trocas materiais e culturais persistentes no continente africano.
Palavras-chave:
Comuns; Decolonialidade; Justiça Socioambiental; Ecologia Política; Land
Introduction
Que explicações divergentes existem para as crises socioecológicas no Sul Global? Quais são as consequências de privatizar a natureza tendo em vista a diversidade social do Sul Global? Os comuns são barreiras ou uma forma de viabilizar progresso e prosperidade? Franklin Obeng-Odoom no livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020) se debruça sobre estas questões. O autor, que vem da Economia Política, é mais categórico que alguns autores que debatem os comuns como um remanescente ou como experimentações coexistentes com o sistema capitalista: ele efetivamente propõe a instauração de um sistema baseado em comuns (commons based system).
Para apresentar esta proposta, sistematiza as leituras sobre os comuns em dois campos - o da Sabedoria Convencional (expressão que toma emprestada de J. K. Galbraith) e do Consenso da Esquerda Ocidental, situando em relação a eles sua Alternativa Radical. Ele considera ambos limitados a partir de uma perspectiva decolonial, referindo-se não apenas ao tipo de solução que apontam, mas pela própria maneira como enquadram os “problemas de comuns”.
O que apresenta como Sabedoria Convencional é principalmente representado pelo embate entre Garret Hardin e Elinor Ostrom e suas tradições analíticas. O autor indica que, embora controversas, ambas as leituras estão logicamente próximas situando a crise socioecológica dentro dos arranjos, com ênfase na agência individual, sem uma reflexão atenta sobre justiça, poder e atravessamento de escalas. Em última instância não há, para o autor, uma mudança paradigmática entre um e outro.
Em contraponto, o Consenso da Esquerda Ocidental agrupa posicionamentos advindos das leituras marxistas e neomarxistas dos comuns. Nesta chave os comuns, ou seja, tudo que é coletivizado, são apresentados paradoxalmente como uma potencial solução para o neoliberalismo, ou como base de sustentação para o avanço do capitalismo, pois é potencialmente cooptado. Para Obeng-Odoom esta confusão é alimentada pela pressuposição da inevitabilidade do capitalismo na trajetória de transformações político-econômicas e, portanto, uma crítica rasa a sua historicidade e espacialidade. Ele também indica que falta rigor em considerar que “tudo” pode ser comuns e que há uma leitura estreita (e eurocêntrica) de comuns como regimes de propriedade.
A crítica que faz às duas formas de olhar para os comuns advém de uma lente de decolonialidade. Defende que pensar a partir do Sul Global deve ser uma abordagem metodológica para investigação. O que talvez seja a mais importante contribuição deste livro está na forma de conduzir a pesquisa tendo a decolonialidade como método, o que se reflete no enquadramento do problema, e na definição das fontes dos dados e dos critérios de análise.
Em relação às fontes e ao material citado, Obeng-Odoom pauta-se majoritariamente em estudos conduzidos em países africanos, com destaque para Gana e África do Sul, e estudos conduzidos pelo próprio autor. Ele se utiliza ainda de relatos de campo, tradição oral, e decisões judiciais, que afirma que costumam ser descartados como fontes. Destaca que esta escolha metodológica tem uma implicação na política de produção de conhecimento, uma vez que não são abundantes dados de coletas sistemáticas para estudos no continente africano.
Refletindo o problema de investigação, ele indica que o tipo de enquadramento que parte do Norte Global implica em soluções que também vêm do norte - soluções estas que passam por caminhos supostamente incontornáveis para o progresso, como o mercado, a propriedade e a comoditização da natureza. Destacando a insuficiência de análises sobre os comuns no sul que efetivamente partem do sul, ele observa que o Sul Global é usualmente apontado como a fonte das incertezas, dos conflitos e das fragilidades ambientais e institucionais, cabendo na chave explicativa das tragédias dos comuns. Tal enquadramento enviesado pressupõe o Sul Global como detentor de uma natureza prístina e populações humanas isoladas que em dado momento passam a sofrer impactos por motivações puramente econômicas, negligenciando a co-dependência de aspectos socioecológicos. Esse olhar é anistórico, pois ignora a herança da colonialidade na formação da economia política e territorial do Sul Global e da África em particular, além de relevar a persistência das interações através de escalas no sistema global no qual o sul seria central e não periférico.
Ele propõe uma revisão histórica dos comuns. Entende que não há uma deliberada negligência com relação à história dos cercamentos (enclosures), mas as leituras históricas se dão usualmente a partir das lentes marxistas, dos cercamentos ingleses que marcam a transição do feudalismo para o capitalismo. Esta seria uma perspectiva limitada, que não olha para a formação da propriedade privada sobre a terra em outros lugares que não a Europa (tampouco para o surgimento do dinheiro, das dívidas, etc.), que ele destaca como fundamental para que se entenda a dinâmica das terras, a apropriação e o rentismo, a relação com a natureza e as relações sociais.
No corpo principal de argumentação do livro o autor olha para as contribuições da Sabedoria Convencional e do Consenso da Esquerda Ocidental em relação a quatro entradas (cidade, tecnologia, petróleo e água). Ele identifica o que considera as falhas destes campos, a partir de cuja dialética estabelece o marco de sua Alternativa Radical.
Para Obeng-Odoom as soluções a partir da Sabedoria Convencional dão-se em defesa da “terceira via”, pautada na ação coletiva, nas soluções das pessoas organizadas e na recusa da centralidade do poder do Estado. Embora defendam a capacidade das comunidades de gerir os recursos, terminam por fomentar soluções de mercado (privatização, taxas, etc.), partindo de lógicas de escolha racional, aumento de eficiência e em defesa de uma “soberania consumidora” para garantir a prosperidade e o acesso aos recursos (como a suposta ampliação do acesso à água pela venda de água engarrafada), sem uma preocupação com a justiça. Além disto, pautam-se na tecnologia, tendo uma leitura triunfalista do avanço tecnológico e da inovação.
Para o autor, a divergência mais significativa do Consenso da Esquerda Ocidental está em sua centralidade da justiça, que não tem espaço na Sabedoria Convencional. O Consenso da Esquerda Ocidental opõe-se às soluções de mercado; no entanto, embora seja crítico da leitura triunfalista da tecnologia, defende sua apropriação (como dos meios de produção) para uma “nova economia”, sem uma crítica mais profunda sobre esta trajetória de transições econômicas e tecnológicas. Faz particular crítica ao vazio dos discursos ambientalistas e de decrescimento que não dão conta dos impactos socioambientais, por exemplo, de uma transição abrupta para matrizes energéticas renováveis que não atacam questões de justiça, expulsão da terra, perda de empregos, em função de demandas oriundas do norte global, para quem a África deve atender como usina do mundo. É uma visão que solidariza com os interesses locais, mas ainda assume uma postura paternalista, tal qual a Sabedoria Convencional, em esforço de “Salvar a África dos Africanos”.
As duas leituras têm valores distintos, mas comunalidades arraigadas. Para além das insuficiências das leituras, ele entende que as próprias soluções podem ser parte do problema, pois agravam a desigualdade social e os impactos ambientais. Ambas enquadram os problemas como uma necessidade de controle e eficiência, pela pressuposição de tragédias: escassez de recursos e crescimento descontrolado. Ambas antagonizam o Estado, depositam muita confiança na inovação tecnológica, (e impactos decorrentes, por exemplo, da extração de matéria prima para a produção de artefatos até especulação mediada pela tecnologia), negligenciam a terra. Embora minem a autodeterminação dos povos, apresentam um olhar romantizado para as soluções locais cujas limitações estruturais são questionáveis, bem como a precariedade, o risco à vida e à saúde (tais como a produção das favelas ou a atividade de coleta de material reciclável).
Obeng-Odoom propõe que se olhe criticamente para os processos que formaram as atuais condições sociais na África com destaque para a herança de sistemas de planejamento, as justificativas científicas que produziram cidades segregadas (que persistiram mesmo com o fim da colonização), para a supressão de formas autóctones de relações de troca, e para a imposição de formas de se relacionar com a terra, de padrões de produção, propriedade e consumo que não se compatibilizam com relações sociais existentes ou almejadas. Ressalta o posicionamento da África como fonte de energia e matéria-prima do mundo e a imposição de mercados e relações de propriedade ditos formais que, por exclusão, definiram a informalidade. Neste sentido, a chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global.
Ao longo do livro, Obeng-Odoom reitera que ao pensar em comuns, está olhando para terra (land). De certo modo, territorializa a discussão política dos comuns ao enfatizar a renda, despossessão, a especulação, a fonte material de recursos e os vínculos de vida para além de pensar os comuns (ou o comum) como ação política apenas. Ele destaca a centralidade da terra para a vida na África - assim como em outros lugares do Sul Global - e chama a atenção para o “sentido africanista de terra”. Embora pouco dialogue com autores latino-americanos, suas leituras aproximam-se do sentido de território e territorialidade para autores como Escobar (2010) e Haesbaert (2014). Terra aqui tem um significado particular: não é suporte para a natureza, mas é a natureza em si, bem como inseparável da economia e da identidade de africanos e de pessoas negras pelo mundo. Terra é apresentada como um conceito totalizante, que contempla o que é vivo e não vivo. É, além disto, sagrada, reverenciada e protegida; é produzida, embora isto não justifique sua apropriação.
Neste sentido, ele trabalha com um entendimento particular de justiça, de direito universal à terra, mesmo que nela não trabalhem - o que vale inclusive para quem vem de fora, como estrangeiros. Nas concepções africanistas, terras comuns não são terras sem dono, mas que pertencem à comunidade. Por sua vez, pertencer à comunidade não significa estar fechado a quem vem de fora, que podem negociar com os que já estão. Sendo assim, ele posiciona seu entendimento de comuns afastado de autores que entendem que o acesso ao recurso é garantido apenas aos que o produzem.
Isto é coerente com uma ideia de abundância (CAJIGAS-ROTUNDO, 2007), em que a preocupação com o “aproveitadores”, que permeia os pensamentos principalmente da Sabedoria Convencional, mas também do Consenso da Esquerda Ocidental, não cabe. A ameaça para os comuns são os aproveitadores invisíveis, como os proprietários de terra ausentes, de modo que a solução seria a distribuição da terra de forma equitativa e atenta às demandas locais. Neste sentido, ele também tira o excesso de apego da agência em relação à estrutura - que acredita ter tomado mesmo as leituras derivadas do marxismo.
Ainda nesta esteira, os comuns - ou a terra - não poderiam ser analisados como um tipo de propriedade (ou de relação de propriedade), pois precedem sua existência. Esta seria uma forma eurocêntrica de pensar os comuns, que observa as transições de regime de propriedade e a tendência da terra a tornar-se commodity - o que para Obeng-Odoom não caberia no sentido africanista de terra, já que não pode ser capitalizada, pois não é substituível. Entender conflitos de terra como conflitos sobre a apropriação de uma commodity poderia provocar que se ignore outras camadas de relação da sociedade com a terra que vão além da exploração econômica. Ignoram ainda as instituições locais, os mercados existentes, a economia da dádiva, os sistemas de partilha de terra e trabalho, os sistemas de recompensa, a solidariedade e uma miríade de formas de troca material e cultural persistentes no continente africano, e o próprio sentido de comuns.
Finalmente, sua Alternativa Radical supõe a promoção de uma mudança estrutural, também através dos Estados (não isolados dentro do continente), tendo a autonomia como componente fundamental. Tal qual pensadores latino-americanos da Ecologia Política, como Escobar (2016) e Souza (2019), sugere a construção de instituições pautadas nos entendimentos locais de justiça e relação com a terra, com menos ênfase em crescimento econômico e mais ênfase em distribuição e soberania. Em suma, defende que qualquer solução deve vir de garantia - e não da retirada - da autonomia e da autodeterminação do Sul Global. Ao indicar que se olhe para os comuns na África, está tratando formas presentes, necessariamente contemporâneas, não de formas “primitivas” ou “pré-modernas”. Ele se aproxima de um importante debate sobre o que são os comuns contemporâneos, que não se limitam aos comuns “tecnológicos”, “culturais” ou “urbanos”, mas que os contemplam, e são absolutamente vinculados ao território. Fala a partir do Sul Global não como um representante deste universo (destaca sempre sua posicionalidade africana), mas como uma fonte de contribuição global que expande um horizonte de possibilidades de futuros.
Agradecimentos
Agradeço ao autor, Prof. Franklin Obeng-Odoom e à University Toronto Press pela cessão do exemplar do livro para a revisão.
Franklin Obeng-Odoom, PhD., Universidade de Helsinki, Finlândia
Referências bibliográficas
CAJIGAS-ROTUNDO, Juan Camilo. La Biocolonialidad del Poder : Amazonía, biodiversidad y ecocapitalismo. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (org.). El giro decolonial : reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Encuentros. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 169-194.
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ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. 1. ed. Bogotá: Envión Editores, 2010. 386p.
SOUZA, Marcelo Lopes De. Ambientes e territórios: uma introdução à Ecologia Política. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.350 p.
HAESBAERT, Rogério. Viver no Limite : território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. 320 p.
OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto; Buffalo; London : University of Toronto Press, 2020. 264 p.