quinta-feira, 22 de setembro de 2022

The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature





Resenha: The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society

Leticia Costa de Oliveira Santos

OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto: Buffalo: London: University of Toronto Press, 2020. 264 p

Abstract

In the book Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom proposes a commons based system. His so-called Radical Alternative stands in relation to the dialectic between two fields of readings on the commons grouped as Conventional Wisdom and Left Western Consensus. He denotes that both readings are limited from a decolonial critique. The key to his Radical Alternative is on the centrality of land, autonomy, and justice from the Global South. It presents land in an approximated sense to territory/territoriality, as used in Latin America, and territorializes the political discussion of the commons. He also develops the understanding of universal justice on land and contributes to discussions on contemporary commons, as he affirms the contemporaneity of forms of relationship with the land and persistent material and cultural exchanges on the African continent.

Keywords:
Commons; Decoloniality; Socioenvironmental Justice; Political Ecology; Land

Resumen

En el libro Commons in an Age of Uncertainty: descolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propone un sistema basado en los comunes (commons based system). Su llamada Alternativa Radical se construye con relación a la dialéctica entre dos campos de lecturas sobre los comunes agrupados como Sabiduría Convencional y Consenso de la Izquierda Occidental. Indica que ambas lecturas, desde una crítica decolonial, son limitadas. La llave de su Alternativa Radical está en la centralidad de la tierra, la autonomía y la justicia desde el Sur Global. Presenta la tierra con un sentido cercano al de territorio / territorialidad, como se usa en América Latina, y territorializa la discusión política de los comunes. También desarrolla la comprensión de la justicia universal por la tierra y contribuye a las discusiones sobre los bienes comunes contemporáneos al afirmar la contemporaneidad de las formas de relación con la tierra y los intercambios materiales y culturales persistentes en el continente africano.

Palabras-clave:
Comunes; Decolonialidade; Justicia Socioambiental; Ecología Política; Land

Resumo

No livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propõe um sistema baseado em comuns (commons based system). Sua chamada Alternativa Radical constrói-se em relação à dialética entre dois campos de leituras sobre os comuns agrupados como Sabedoria Convencional e Consenso da Esquerda Ocidental. Ele indica que ambas as leituras, a partir de uma crítica decolonial, são limitadas. A chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global. Apresenta a terra com um sentido próximo ao de território/ territorialidade, como acionado na América Latina, e territorializa a discussão política dos comuns. Também desenvolve o entendimento de justiça universal sobre a terra e contribui para as discussões sobre comuns contemporâneos ao afirmar a contemporaneidade das formas de relação com a terra e trocas materiais e culturais persistentes no continente africano.

Palavras-chave:
Comuns; Decolonialidade; Justiça Socioambiental; Ecologia Política; Land

Introduction

Que explicações divergentes existem para as crises socioecológicas no Sul Global? Quais são as consequências de privatizar a natureza tendo em vista a diversidade social do Sul Global? Os comuns são barreiras ou uma forma de viabilizar progresso e prosperidade? Franklin Obeng-Odoom no livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020) se debruça sobre estas questões. O autor, que vem da Economia Política, é mais categórico que alguns autores que debatem os comuns como um remanescente ou como experimentações coexistentes com o sistema capitalista: ele efetivamente propõe a instauração de um sistema baseado em comuns (commons based system).

Para apresentar esta proposta, sistematiza as leituras sobre os comuns em dois campos - o da Sabedoria Convencional (expressão que toma emprestada de J. K. Galbraith) e do Consenso da Esquerda Ocidental, situando em relação a eles sua Alternativa Radical. Ele considera ambos limitados a partir de uma perspectiva decolonial, referindo-se não apenas ao tipo de solução que apontam, mas pela própria maneira como enquadram os “problemas de comuns”.

O que apresenta como Sabedoria Convencional é principalmente representado pelo embate entre Garret Hardin e Elinor Ostrom e suas tradições analíticas. O autor indica que, embora controversas, ambas as leituras estão logicamente próximas situando a crise socioecológica dentro dos arranjos, com ênfase na agência individual, sem uma reflexão atenta sobre justiça, poder e atravessamento de escalas. Em última instância não há, para o autor, uma mudança paradigmática entre um e outro.

Em contraponto, o Consenso da Esquerda Ocidental agrupa posicionamentos advindos das leituras marxistas e neomarxistas dos comuns. Nesta chave os comuns, ou seja, tudo que é coletivizado, são apresentados paradoxalmente como uma potencial solução para o neoliberalismo, ou como base de sustentação para o avanço do capitalismo, pois é potencialmente cooptado. Para Obeng-Odoom esta confusão é alimentada pela pressuposição da inevitabilidade do capitalismo na trajetória de transformações político-econômicas e, portanto, uma crítica rasa a sua historicidade e espacialidade. Ele também indica que falta rigor em considerar que “tudo” pode ser comuns e que há uma leitura estreita (e eurocêntrica) de comuns como regimes de propriedade.

A crítica que faz às duas formas de olhar para os comuns advém de uma lente de decolonialidade. Defende que pensar a partir do Sul Global deve ser uma abordagem metodológica para investigação. O que talvez seja a mais importante contribuição deste livro está na forma de conduzir a pesquisa tendo a decolonialidade como método, o que se reflete no enquadramento do problema, e na definição das fontes dos dados e dos critérios de análise.

Em relação às fontes e ao material citado, Obeng-Odoom pauta-se majoritariamente em estudos conduzidos em países africanos, com destaque para Gana e África do Sul, e estudos conduzidos pelo próprio autor. Ele se utiliza ainda de relatos de campo, tradição oral, e decisões judiciais, que afirma que costumam ser descartados como fontes. Destaca que esta escolha metodológica tem uma implicação na política de produção de conhecimento, uma vez que não são abundantes dados de coletas sistemáticas para estudos no continente africano.

Refletindo o problema de investigação, ele indica que o tipo de enquadramento que parte do Norte Global implica em soluções que também vêm do norte - soluções estas que passam por caminhos supostamente incontornáveis para o progresso, como o mercado, a propriedade e a comoditização da natureza. Destacando a insuficiência de análises sobre os comuns no sul que efetivamente partem do sul, ele observa que o Sul Global é usualmente apontado como a fonte das incertezas, dos conflitos e das fragilidades ambientais e institucionais, cabendo na chave explicativa das tragédias dos comuns. Tal enquadramento enviesado pressupõe o Sul Global como detentor de uma natureza prístina e populações humanas isoladas que em dado momento passam a sofrer impactos por motivações puramente econômicas, negligenciando a co-dependência de aspectos socioecológicos. Esse olhar é anistórico, pois ignora a herança da colonialidade na formação da economia política e territorial do Sul Global e da África em particular, além de relevar a persistência das interações através de escalas no sistema global no qual o sul seria central e não periférico.

Ele propõe uma revisão histórica dos comuns. Entende que não há uma deliberada negligência com relação à história dos cercamentos (enclosures), mas as leituras históricas se dão usualmente a partir das lentes marxistas, dos cercamentos ingleses que marcam a transição do feudalismo para o capitalismo. Esta seria uma perspectiva limitada, que não olha para a formação da propriedade privada sobre a terra em outros lugares que não a Europa (tampouco para o surgimento do dinheiro, das dívidas, etc.), que ele destaca como fundamental para que se entenda a dinâmica das terras, a apropriação e o rentismo, a relação com a natureza e as relações sociais.

No corpo principal de argumentação do livro o autor olha para as contribuições da Sabedoria Convencional e do Consenso da Esquerda Ocidental em relação a quatro entradas (cidade, tecnologia, petróleo e água). Ele identifica o que considera as falhas destes campos, a partir de cuja dialética estabelece o marco de sua Alternativa Radical.

Para Obeng-Odoom as soluções a partir da Sabedoria Convencional dão-se em defesa da “terceira via”, pautada na ação coletiva, nas soluções das pessoas organizadas e na recusa da centralidade do poder do Estado. Embora defendam a capacidade das comunidades de gerir os recursos, terminam por fomentar soluções de mercado (privatização, taxas, etc.), partindo de lógicas de escolha racional, aumento de eficiência e em defesa de uma “soberania consumidora” para garantir a prosperidade e o acesso aos recursos (como a suposta ampliação do acesso à água pela venda de água engarrafada), sem uma preocupação com a justiça. Além disto, pautam-se na tecnologia, tendo uma leitura triunfalista do avanço tecnológico e da inovação.

Para o autor, a divergência mais significativa do Consenso da Esquerda Ocidental está em sua centralidade da justiça, que não tem espaço na Sabedoria Convencional. O Consenso da Esquerda Ocidental opõe-se às soluções de mercado; no entanto, embora seja crítico da leitura triunfalista da tecnologia, defende sua apropriação (como dos meios de produção) para uma “nova economia”, sem uma crítica mais profunda sobre esta trajetória de transições econômicas e tecnológicas. Faz particular crítica ao vazio dos discursos ambientalistas e de decrescimento que não dão conta dos impactos socioambientais, por exemplo, de uma transição abrupta para matrizes energéticas renováveis que não atacam questões de justiça, expulsão da terra, perda de empregos, em função de demandas oriundas do norte global, para quem a África deve atender como usina do mundo. É uma visão que solidariza com os interesses locais, mas ainda assume uma postura paternalista, tal qual a Sabedoria Convencional, em esforço de “Salvar a África dos Africanos”.

As duas leituras têm valores distintos, mas comunalidades arraigadas. Para além das insuficiências das leituras, ele entende que as próprias soluções podem ser parte do problema, pois agravam a desigualdade social e os impactos ambientais. Ambas enquadram os problemas como uma necessidade de controle e eficiência, pela pressuposição de tragédias: escassez de recursos e crescimento descontrolado. Ambas antagonizam o Estado, depositam muita confiança na inovação tecnológica, (e impactos decorrentes, por exemplo, da extração de matéria prima para a produção de artefatos até especulação mediada pela tecnologia), negligenciam a terra. Embora minem a autodeterminação dos povos, apresentam um olhar romantizado para as soluções locais cujas limitações estruturais são questionáveis, bem como a precariedade, o risco à vida e à saúde (tais como a produção das favelas ou a atividade de coleta de material reciclável).

Obeng-Odoom propõe que se olhe criticamente para os processos que formaram as atuais condições sociais na África com destaque para a herança de sistemas de planejamento, as justificativas científicas que produziram cidades segregadas (que persistiram mesmo com o fim da colonização), para a supressão de formas autóctones de relações de troca, e para a imposição de formas de se relacionar com a terra, de padrões de produção, propriedade e consumo que não se compatibilizam com relações sociais existentes ou almejadas. Ressalta o posicionamento da África como fonte de energia e matéria-prima do mundo e a imposição de mercados e relações de propriedade ditos formais que, por exclusão, definiram a informalidade. Neste sentido, a chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global.

Ao longo do livro, Obeng-Odoom reitera que ao pensar em comuns, está olhando para terra (land). De certo modo, territorializa a discussão política dos comuns ao enfatizar a renda, despossessão, a especulação, a fonte material de recursos e os vínculos de vida para além de pensar os comuns (ou o comum) como ação política apenas. Ele destaca a centralidade da terra para a vida na África - assim como em outros lugares do Sul Global - e chama a atenção para o “sentido africanista de terra”. Embora pouco dialogue com autores latino-americanos, suas leituras aproximam-se do sentido de território e territorialidade para autores como Escobar (2010) e Haesbaert (2014). Terra aqui tem um significado particular: não é suporte para a natureza, mas é a natureza em si, bem como inseparável da economia e da identidade de africanos e de pessoas negras pelo mundo. Terra é apresentada como um conceito totalizante, que contempla o que é vivo e não vivo. É, além disto, sagrada, reverenciada e protegida; é produzida, embora isto não justifique sua apropriação.

Neste sentido, ele trabalha com um entendimento particular de justiça, de direito universal à terra, mesmo que nela não trabalhem - o que vale inclusive para quem vem de fora, como estrangeiros. Nas concepções africanistas, terras comuns não são terras sem dono, mas que pertencem à comunidade. Por sua vez, pertencer à comunidade não significa estar fechado a quem vem de fora, que podem negociar com os que já estão. Sendo assim, ele posiciona seu entendimento de comuns afastado de autores que entendem que o acesso ao recurso é garantido apenas aos que o produzem.

Isto é coerente com uma ideia de abundância (CAJIGAS-ROTUNDO, 2007), em que a preocupação com o “aproveitadores”, que permeia os pensamentos principalmente da Sabedoria Convencional, mas também do Consenso da Esquerda Ocidental, não cabe. A ameaça para os comuns são os aproveitadores invisíveis, como os proprietários de terra ausentes, de modo que a solução seria a distribuição da terra de forma equitativa e atenta às demandas locais. Neste sentido, ele também tira o excesso de apego da agência em relação à estrutura - que acredita ter tomado mesmo as leituras derivadas do marxismo.

Ainda nesta esteira, os comuns - ou a terra - não poderiam ser analisados como um tipo de propriedade (ou de relação de propriedade), pois precedem sua existência. Esta seria uma forma eurocêntrica de pensar os comuns, que observa as transições de regime de propriedade e a tendência da terra a tornar-se commodity - o que para Obeng-Odoom não caberia no sentido africanista de terra, já que não pode ser capitalizada, pois não é substituível. Entender conflitos de terra como conflitos sobre a apropriação de uma commodity poderia provocar que se ignore outras camadas de relação da sociedade com a terra que vão além da exploração econômica. Ignoram ainda as instituições locais, os mercados existentes, a economia da dádiva, os sistemas de partilha de terra e trabalho, os sistemas de recompensa, a solidariedade e uma miríade de formas de troca material e cultural persistentes no continente africano, e o próprio sentido de comuns.

Finalmente, sua Alternativa Radical supõe a promoção de uma mudança estrutural, também através dos Estados (não isolados dentro do continente), tendo a autonomia como componente fundamental. Tal qual pensadores latino-americanos da Ecologia Política, como Escobar (2016) e Souza (2019), sugere a construção de instituições pautadas nos entendimentos locais de justiça e relação com a terra, com menos ênfase em crescimento econômico e mais ênfase em distribuição e soberania. Em suma, defende que qualquer solução deve vir de garantia - e não da retirada - da autonomia e da autodeterminação do Sul Global. Ao indicar que se olhe para os comuns na África, está tratando formas presentes, necessariamente contemporâneas, não de formas “primitivas” ou “pré-modernas”. Ele se aproxima de um importante debate sobre o que são os comuns contemporâneos, que não se limitam aos comuns “tecnológicos”, “culturais” ou “urbanos”, mas que os contemplam, e são absolutamente vinculados ao território. Fala a partir do Sul Global não como um representante deste universo (destaca sempre sua posicionalidade africana), mas como uma fonte de contribuição global que expande um horizonte de possibilidades de futuros.

Agradecimentos

Agradeço ao autor, Prof. Franklin Obeng-Odoom e à University Toronto Press pela cessão do exemplar do livro para a revisão.

Franklin Obeng-Odoom, PhD., Universidade de Helsinki, Finlândia

Referências bibliográficas
CAJIGAS-ROTUNDO, Juan Camilo. La Biocolonialidad del Poder : Amazonía, biodiversidad y ecocapitalismo. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (org.). El giro decolonial : reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Encuentros. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 169-194.
ESCOBAR, Arturo. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Primera edición en castellano ed. Popayán, Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2016. 280 p.
ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. 1. ed. Bogotá: Envión Editores, 2010. 386p.
SOUZA, Marcelo Lopes De. Ambientes e territórios: uma introdução à Ecologia Política. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.350 p.
HAESBAERT, Rogério. Viver no Limite : território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. 320 p.
OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto; Buffalo; London : University of Toronto Press, 2020. 264 p.

No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro





DO LOCAL AO NACIONAL: A ATUAÇÃO DA CÂMARA DE MARIANA APÓS A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL, 1828-1836

Bruna Prudêncio Teixeira

Resenha de: OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. . No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro . Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.


Publicado em 2021, No laboratório da Nação: a Câmara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construção do Estado Nacional Brasileiro é fruto da dissertação de mestrado de Kelly Eleutério Machado de Oliveira defendida em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, a autora é pós-doutoranda em História pela Universidade de São Paulo.



Dividido em três capítulos, o livro traz nova contribuição aos estudos sobre as Câmaras Municipais. A temática foi bastante abordada pela historiografia do Brasil colonial. Autores como Júnia Furtado, Russel-Wood e Nuno Monteiro3 se debruçaram sobre o assunto. Oliveira, contudo, tem como pano de fundo o Brasil independente, especificamente no contexto onde as Câmaras sofreram reformas profundas que esvaziaram o poder que possuíam no período colonial. Com base no estudo específico da Câmara de Mariana, a autora explora o novo papel da instituição e como as dinâmicas locais interferiram no contexto geral. Nesse sentido, a obra segue a tendência historiográfica dos últimos anos, em que os estudos de caso aparecem como lócus privilegiado para compreensão das minúcias do processo de formação do Estado brasileiro.



O objetivo central do livro é analisar a atuação e trajetória dos vereadores da Câmara de Mariana e entender as relações e tensões desses agentes no processo de construção do novo Estado independente. Apesar do esvaziamento do poder local nas décadas de 1820 e 1830, a autora consegue analisar o peso da esfera municipal sobre a política nas suas relações com os níveis de poderes provincial e geral. Na análise de Oliveira, os vereadores emergem como agentes ativos no chamado “laboratório da nação”.



No primeiro capítulo, intitulado “Organização e Funcionamento da Câmara Municipal da Cidade de Mariana, Minas Gerais (1828-1836)”, a autora retraça o panorama de atuação da Câmara nos anos assinalados. Partindo das tensões entre pré e pós independência, demonstra rupturas e continuidades impostas pela lei de 1828, que regula e limita os poderes municipais no Brasil. Indo ao encontro da tese de Sérgio Buarque de Holanda,4 a medida é compreendida de uma perspectiva liberal, visto que estabelece mudanças em relação ao período colonial. Se antes as Câmaras eram espaços de poderes quase autônomos, após a reorganização foram subordinadas aos Conselhos Gerais provinciais e perderam atribuições judiciais, mantendo somente funções administrativas.



Todas essas alterações geraram tensões entre os vereadores de Mariana e para compreender o novo espaço de atuação da Câmara, Oliveira analisou cerca de 900 atas de sessões do local. Evidenciando os perigos de analisar essa documentação de maneira isolada, a autora chama a atenção para a forte inconstância política dos atores políticos no Período Regencial. Uma das reformas mais questionadas pelos vereadores marianenses foram as posturas municipais. Alguns defendiam que as posturas fossem assuntos da Câmara, e não do Conselho da província. Mesmo assim, de maneira geral, a Câmara considerava a lei de 1828 legítima, bem como as reformas liberais de 1830. Portanto, mesmo perdendo autonomia, e abrigando uma série de tensões e debates, a Câmara de Mariana tendia à corrente liberal moderada e se mostrou fiel à Regência.



Acerca da nova organização das Câmaras a autora demonstra que os vereadores seriam eleitos pelo município dentre aqueles que possuíssem no mínimo 200$000 de renda anual. Não estavam previstos pagamentos para este cargo, a ideia não era “viver da Câmara” e sim “para a Câmara”. (p. 39). Portanto, a principal motivação em ser vereador seria o acumulo de prestígio e poder.



Os vereadores eram responsáveis pelas questões econômicas e policiais da cidade. Deveriam garantir o bem-estar local e costumeiramente aproveitavam para suprir seus interesses, inclusive financiando as obras. Sobre essa questão, o estudo de Oliveira adentra uma perspectiva importante sobre o processo de formação do Estado brasileiro. Ainda que a questão financeira tenha sido transferida para a esfera provincial, isso não impediu autoridades municipais de investirem dinheiro do próprio bolso nas obras públicas e melhorias locais. Com isso, a autora reverbera a tese da permanência da “componente patrimonial”, como herança do Antigo Regime (p.42).



No segundo capítulo, “Viver de seu negócio e governar o bem comum: o perfil socioeconômico nos primeiros anos das Regências”, Oliveira analisa o perfil dos homens que ocuparam a vereança. Para isso, baseia-se em testamentos, inventários, listas nominativas, registros de matrimônios, jornais e também informações contidas no livro Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Oliveira contabilizou 16 vereadores (três dos quais carecem de documentação). Eram via de regra, brancos, livres, “chefes de armas”, membros da elite local e da Sociedade Patriótica Marianense. Entre as ocupações mais comuns estavam as de fazendeiro, comerciante e padre.



Para traçar um perfil socioeconômico dos vereadores, a autoria os dividiu em quatro tópicos. No primeiro, analisou os eclesiásticos. Dentre os três padres, o que mais se destaca é Antônio José Ribeiro Bhering. No âmbito político, foi vereador, procurador, juiz de paz, municipal e de direito, membro do Conselho Geral, da Assembleia Legislativa mineira e da Assembleia Geral. João Paulo Barbosa, por sua vez, foi vereador da Câmara e membro da Assembleia Legislativa Provincial. Manoel Júlio Miranda assumiu, além da vereança, as funções de juiz de órfãos e deputado provincial.



Além dos cargos políticos, os padres receberam comendas. Sobre essa questão, a autora se aproxima dos estudos de Ângela Xavier e Antonio Manuel Hespanha5. Ainda que esses autores se debrucem sobre o cenário português da década de 1820, a economia de “troca de favores” está presente nos dois contextos. Era comum que indivíduos oferecerem serviços ao Estado em troca de comendas e títulos. A diferença, contudo, estaria na origem da nobreza. À luz de Lilia Schwarcz6, Oliveira defende que o critério brasileiro de nobreza estava muito mais ligado ao “merecimento” que ao “nascimento”. Ocupar cargos eclesiásticos, políticos e administrativos poderia gerar status social.



O segundo e terceiro grupo de vereadores são os que acumularam grandes e médias fortunas. Dentre os maiores montantes temos quatro vereadores que somavam de 30 a 70 contos de réis. O mais rico, entretanto, era detentor de um montante-mor acima dos 119 contos de réis. Os vereadores deste grupo eram em geral proprietários de terras, fazendeiros e comerciantes, alguns com investimentos na mineração, outros também no comércio de cativos. Havia ainda um advogado. Quatro vereadores representam as “médias fortunas”. Nenhum deles aparece como grande proprietário de terras, sendo que dois somam pouco mais de 9 contos de réis.



Assim como os padres, esses vereadores também acumulam cargos políticos. A autora sugere que esse amealhar de funções pode estar associado à carreira política exercida por essas pessoas e ainda à insuficiência de cidadãos para ocupar cargos requeridos pelo novo Estado. Além disso, esse grupo também tem sua lista de títulos e comendas, o que corrobora com a tese de “troca de favores” entre indivíduos e Estado e de busca de distinção social, práticas herdadas do Antigo Regime.



O quarto e último grupo apresentado por Oliveira é na verdade uma exceção: Manoel Francisco Damasceno era agregado, carpinteiro e o único vereador pardo. Seu caso representa uma ruptura com o período colonial. Se no passado as Câmaras Municipais eram espaços para “homens bons”, no oitocentos deixam de sê-lo em função do fim dos critérios de sangue para provimento de cargos públicos. Por outro lado, a renda era condição da vereança, e assim se observa que a maioria dos vereadores eram membros da elite política e econômica local, que por vezes já haviam ocupado posições na Câmara e circulavam por várias esferas políticas.



No terceiro e último capítulo, “A trajetória e atuação políticas de Antônio José Ribeiro Bhering”, Oliveira se detém na vida do vereador eclesiástico mais importante de seu recorte. Baseada nos trabalhos de Andréa Lisly Gonçalves, destaca a relevância de trajetórias individuais para o estudo de determinados contextos.7 Bhering, que já desfrutava de prestígio por ser padre, foi professor e figura ativa nos periódicos da época, sendo considerado “ilustre e combativo”. (P. 124). Politicamente, acumulou cargos locais, provinciais e nacionais, podendo inclusive ser considerado membro do que José Murilo de Carvalho chama de “elite imperial política”.8 Com uma tendência liberal moderada, o padre apoiava maior autonomia às províncias, sem simpatizar, contudo, com o federalismo. Defensor da monarquia constitucional, armou o seminário contra a Revolta do Ano da Fumaça. Bhering também gostava de distinções sociais e pediu duas comendas ao príncipe. Sua vida desenha a trajetória de um homem local que, entrando no cenário político do Estado imperial, ainda carrega as tensões e contradições entre as novas correntes políticas e as velhas práticas do Antigo Regime.



Em vista do exposto, No laboratório da Nação merece destaque. Com análise documental rica e minuciosa, Oliveira demonstra o que a reorganização das Câmaras Municipais no Brasil recém-independente significou na prática do dia a dia. Relativizando a tendência historiográfica que vê nas reformas de 1828 o esvaziamento do município em prol da província, sua pesquisa sugere que a Câmara permaneceu como espaço de proeminência que servia de trampolim para as elites locais. Partindo do estudo específico de Mariana, consegue averiguar como disputas nacionais eram tidas no município, e mais do que isso, como agentes locais circulavam entre os âmbitos provinciais e nacional. Seu livro é sem dúvida um convite para entender o novo papel das Câmaras no processo de construção da nação independente.

Bibliografia
CARVALHO, Jose Murilo de. A construcao da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a politica imperial. Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 2003.
FURTADO, Jania Ferreira. As Camaras municipais e o poder local: Vila rica- um estudo de caso na producao academica de Maria de Fatima Gouvea. In Tempo, 2009. P. 6.-22. https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#
GONCALVES, Andrea Lisly. Estratificacao social e mobilizacões politicas no processo de formacao do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. Sao Paulo, Hucitec, 2008.
HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Angela. As redes clientelares. In: Mattoso, Jose. Historia de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. Sao Paulo, Cia das Letras, 1995.
MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. Ler historia, Lisboa, n.10., 1987.
OLIVEIRA, Kelly Eleuterio Machado. No laboratorio da Nacao: a Camara Municipal de Mariana, Minas Gerais, e a construcao do Estado Nacional Brasileiro. Belo Horizonte: Fino Traco, 2021.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na America Portuguesa: um estudo de divergencia cultural. Revista de Historia, Sao Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos tropicos. Sao Paulo, Cia das Letras , 2003.


3
FURTADO, Júnia Ferreira. As Câmaras municipais e o poder local: Vila rica um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Gouvêa. In: Tempo, 2009. < https://www.scielo.br/j/tem/a/HxDGZzXvj7tRsPphZkB79cS/?lang=pt#> P. 6.-22; RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1977.77329 Revista de História, São Paulo, USP. V.50. N.109, 1997, p. 1887-249; MONTEIRO, Nuno. Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do antigo regime. In: Ler história, Lisboa, n.10, 1887.
4
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. 26ªed. São Paulo, Cia das Letras, 1995.
5
HESPANHA, Antonio Manuel. & XAVIER, Ângela. As redes clientelares. In: Mottoso, José. História de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Estampa, 1993.
6
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador: d. Pedro II o monarca dos trópicos. São Paulo, cia das letras, 2003.
7
GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional brasileito: minas gerais, 1831-1835. São Paulo, Hucitec, 2008.
8
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.


2
Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).


2
Historiadora, mestre em história pela UNIFESP. Atualmente doutoranda em Sociologia pelo PPGS/USP. Pesquisadora do NEV-USP. Bolsista FAPESP (2020/15880-0).

power and culture in imperial Brazil





JORNAIS: UMA AMPLA JANELA ABERTA SOBRE O SÉCULO XIX

Isabel Lustosa

Resenha de: Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Kraay, Hendrik; Castilho, Celso Thomas; Cribelli, Teresa. .University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.

De forma bem-humorada, os organizadores deste livro incluíram no prefácio o comentário de um historiador-blogueiro ironizando o título que deram ao painel que deu origem à obra. O título era, em tradução livre para o português: “A hemeroteca digital brasileira e a pesquisa histórica: contexto, conteúdo e pesquisa em arquivos digitais”. Disse o maldoso comentarista que seria difícil até mesmo para um historiador ficar excitado diante da expectativa de assistir a três ou quatro apresentações sob esse título.



Talvez para o expectador de um país em que os recursos digitais estão avançadíssimos, a existência de uma hemeroteca como a da Biblioteca Nacional não seja um fato notável. Mas, quem, como a autora destas linhas, trabalhou com os periódicos da Independência usando aquelas carroças que são as máquinas de ler microfilme, sacrificando a vista diante das idas e vindas dos olhos da tela negra do filme para o papel branco em que fazia suas anotações, ergue a todo momento graças e louvores à hemeroteca da Biblioteca Nacional, cuja pane que a deixou fora do ar há poucos meses, apavorou o meio acadêmico.



Os caminhos para a pesquisa que esse acesso aos jornais do século XIX possibilitou estão perfeitamente demonstrados nos estudos aqui reunidos. Eles revelam muito sobre a história do Brasil, mas também sobre o papel que a imprensa jogou nessa história. Mais do que a história dos jornais ou até do o uso dos jornais como fonte, esses trabalhos demonstram na prática o papel da imprensa na história do Brasil do século XIX e o fazem também contando a história daquela imprensa.



O grande tema a assombrar a historiografia sobre aquele período, a escravidão, emerge aqui realçado pela revelação do quanto foi daninha a atividade da imprensa e como o suposto silêncio sobre esse tema fundamental esteve submerso por opção, fruto do grande arranjo político firmado ainda na Regência entre os Regressistas e os maiores e mais importantes jornais. Como revela o capítulo assinado por Alain El Youssef, foram esses os responsáveis por permitir que a lei de 7 de novembro de 1831 que proibiu o tráfico negreiro se tornasse uma lei para inglês ver. Pode-se acompanhar através da imprensa, o processo de ruptura entre os líderes dos moderados, Evaristo e Bernardo Pereira de Vasconcelos, e das forças políticas que lideravam. Evaristo manteve-se o fiel aos ideais liberais que orientaram toda sua trajetória, apoiando a eleição e a regência única de Feijó. Vasconcelos rejeitou o liberalismo que até 1834 defendera e criou o Regresso, movimento que daria origem ao partido conservador.



A imprensa foi o palco em que antigos liberais se tornaram defensores intransigentes do tráfico negreiro e, quando assumiram o governo, usaram-na para sabotar a lei de 1831 de todas as formas. Um jornalista que crescera sob as bençãos de Evaristo, Justiniano José da Rocha, vai ser a grande inteligência por trás dos sofismas utilizados pelos conservadores para justificar a vista grossa que a sociedade brasileira fez ao aumento do tráfico clandestino que, de 18.000 africanos traficados entre 1831 e 1834, saltaria para 230.000 entre 1834 e 40. Como conclui o autor: “Essa coalizão entre políticos, fazendeiros e a impressa foi diretamente responsável por um dos maiores crimes da história do Brasil. A política, a economia e a sociedade que emergiram da Regência foram fortemente baseadas na exploração de africanos ilegalmente contrabandeados. Sem a atuação da imprensa, a sociedade brasileira talvez tivesse sido consolidada de outra forma”.



De mesmo espírito é a revelação da imprensa como fonte fundamental para entender os esforços empreendidos ainda durante a Regência no sentido de promover a substituição do trabalho escravo pelo livre através do estímulo à imigração. Em seu capítulo, José Meléndez apresenta as ações empreendidas neste sentido por instituições como a “Sociedade promotora da colonização”, do Rio de Janeiro e suas congêneres em Salvador e em Santos. Lançadas entre 1835-1836, apesar da adesão de grandes personalidades da vida pública e da intensa atividade que desenvolveram através da imprensa, tiveram vida curta, não sobrevivendo à Regência.



Segundo o autor, por falta de documentação concernente, essas sociedades, costumam ser mencionadas apenas en passant, em trabalhos acadêmicos. Diante do volume de material que obteve nas pesquisas que fez sobre o tema na Hemeroteca Digital, Meléndez conclui que: “é na imprensa e não no parlamento, nem nas assembleias provinciais e nem em reuniões do Gabinete” que se devem realizar as pesquisas que dão acesso à dimensão mais completa do fenômeno. Os jornais abrem ao pesquisador janelas que revelam um sofisticado sistema desenvolvido para identificar, transportar e receber migrantes estrangeiros nos portos brasileiros entre 1834 e 1841. Por meio de artigos de opinião; de traduções de textos sobre o tema; de anúncios publicados e de informações logísticas relativas à colonização, a imprensa revelou-se ao autor como a primeira plataforma para conhecer a articulação que possibilitou a entrada dessa leva de imigrantes durante o período regencial.



Aspecto inédito nos estudos sobre imprensa, a ação de correspondentes nacionais nos jornais da corte do Rio de Janeiro, apresentada aqui por Hendrik Kraay, demonstra o vínculo estreito que havia entre as províncias e o poder central. Na visão do autor tais cartas teriam contribuído “para forjar a comunidade imaginada da nação brasileira”. Kraay analisou 128 cartas vindas da Bahia e publicadas em 1868 nos principais jornais do Rio que revelaram a interação que aquele tipo de correspondência pública promovia entre a província e a capital. Revelam ainda a forma como as disputas políticas da corte se reproduziam no resto do país, espelhando a divisão que marcaria as três últimas décadas do Segundo Reinado entre liberais e conservadores. No Jornal do Comércio, o mais importante do período, a seção tinha um caráter imparcial e abrigava correspondentes liberais e conservadores. Mas todos os grandes jornais mantinham esse tipo de seção que costumava ocupar um espaço generoso na página impressa. Sinal de que atendia às expectativas do público leitor da capital.



Boa contribuição à história do ofício de jornalista é a apresentação que Kraay faz do perfil do correspondente regional e de seu cotidiano: a espera do paquete com as notícias e a pressa em escrever a coluna antes que o próximo partisse. Também chama a atenção para o caráter peculiar daquele tipo de trabalho jornalístico, mais próximo da reportagem do que da crônica, levando o autor a um exercício de objetividade pela obrigação de descrever e interpretar os eventos para os leitores nacionais.



A atuação de José Carlos Rodrigues na imprensa brasileira é um tema que tem interessado aos historiadores, tanto pelo seu papel como editor do Jornal do Comércio que adquiriu dos irmãos Villeneuve na virada do século XIX para o XX, como pela publicação, na década de 1870, nos Estados Unidos, do jornal Novo Mundo. No capítulo assinado por Roberto Saba, Rodrigues se revela não só como o grande agente da difusão no Brasil de uma imagem de progresso e modernidade do que se tornaram os EUA, depois da Guerra Civil, como, intermediário fundamental para a inserção de herdeiros da elite cafeeira paulistana no meio acadêmico norte-americano. E as consequências desse investimento se fizeram sentir no processo de modernização agrícola experimentado pelos cafeicultores do oeste de São Paulo a partir do trabalho de seus rebentos instruídos nos States.



Esse trabalho de difusão das ideias apreendidas na América do Norte foi feito pelo Novo Mundo mas também por jornais publicados pelos estudantes brasileiros que se formaram em Cornell, universidade a que Rodrigues estava ligado por laços de amizade com os dirigentes. Em seus escritos, Rodrigues e seus pupilos, divulgavam as novidades tecnológicas implementadas nos EUA, ao mesmo tempo em que analisavam e discutiam causas e tendencias do progresso daquela nação. Para os jovens estudantes paulistas e seu mentor, José Carlos Rodrigues, o importante era demonstrar que, nos EUA, a dificuldade causada pela falta de braços depois da Abolição, fez a agricultura mais intensa e científica, pela adoção de modernizações tecnológicas que foram impulsionadas pelas novas circunstâncias.



O jornal de Rodrigues e o dos estudantes, Aurora Brasileira, depois, sugestivamente renomeada de Aurora Brazileira, tinham por objetivo promover o avanço científico da agricultura e das artes mecânicas e pregavam a superioridade do trabalho livre sobre a mão de obra escrava. O discurso que difundiam baseava-se em argumentos bem distantes dos discursos humanitários dos abolicionistas brasileiros e, como diz o autor, possibilitou que Rodrigues obtivesse o apoio dos mais cafeicultores brasileiros. A ponto de as mesmas ideias serem defendidas por um rico fazendeiro, o futuro presidente do Brasil, Campos Sales em artigo publicado na Gazeta de Campinas.



A ideia central era que a substituição gradativa do homem pela máquina e do escravo pelo trabalhador livre suficientemente instruído para operá-las, levaria a uma considerável economia de tempo e dinheiro. A partir da boa aceitação desse discurso entre o público leitor dessas publicações no Brasil, elas passaram a ter também uma boa carteira de anunciantes que vendiam: locomotivas, fertilizantes, ferramentas, implementos agrícolas, etc. Os estudantes paulistanos formados nas universidades americanas sob a influência de Rodrigues voltaram para o Brasil e foram atores importante no processo de industrialização e modernização do Estado de São Paulo.



Outra fonte de pesquisa bem promissora é a seção conhecida como Apedidos que figurava obrigatoriamente nos jornais entre as três últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Tereza Cribelli analisou os apedidos publicados no Jornal do Comercio em janeiro de 1870 e, com essa amostra, abriu uma vereda para estudos bastante abrangentes sobre a sociedade brasileira daquele período. Incluindo uma variedade de vozes, de estilos, de insultos criativos e de humor e cobrindo um amplo leque de assuntos desde queixas contra os serviços públicas, questões entre particulares, mensagens de amor, ofensas, agradecimentos e homenagens, a seção Apedidos oferece, como diz a autora, uma visão única dos sentimentos dos brasileiros naquele contexto. O fato de poderem ser publicadas por quem quer que tivesse os trocados necessários para pagar por algumas linhas impressas no jornal fazia com que ações, pensamentos e experiencias da vida privada das pessoas comuns invadissem a esfera pública. A seção que já era publicada no Jornal do Comercio, nos anos 1850, ocupava, modestamente a segunda página, vindo logo depois dos noticiários nacionais e internacionais. Mas seu sucesso foi tamanho e os ganhos extra que o jornal obtinha com o pagamento dessas mensagens fizeram com que, na década de 1870, passasse a ser publicada na primeira página.



Dois outros capítulos deste livro contemplam a presença do “homem de cor” na sociedade brasileira em perspectivas bem diversas. Rodrigo Camargo de Godoi analisa a inserção de escravos na sociedade letrada a partir da atuação de muitos deles nas gráficas que se multiplicaram no Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado. Apesar das restrições que havia com relação à educação do elemento escravizado, o acesso e a variedade das publicações, além do aprendizado da leitura possibilitado pelo trabalho nas tipografias, influíram também na criação de um público leitor entre os escravizados. O Homem, foi um jornal publicado por um mestiço da elite para denunciar o preconceito racial na sociedade pernambucana. Seu objetivo era claramente demonstrar que, apesar da Constituição garantir direitos iguais para todos, na prática, os homens negros livres eram discriminados nos concursos públicos, proibidos de se reunir em manifestações e até mesmo demitidos de seus empregos por causa da cor. Celso Thomas Castilho que assina esse capítulo, chama a atenção para o fato de que as reações contra o jornal por parte de outros órgãos da imprensa local demonstraram que O Homem incomodava justamente por representar uma quebra no tradicional tabu contra a publicização da discriminação racial.



O caráter panorâmico de alguns textos certamente tornará o livro mais interessante para o leitor anglófono. Marcelo Basile, apresenta a imprensa política brasileira, entre 1822 e 1840, a partir de conclusões obtidas em trabalhos de outros colegas e nos seus próprios. Ludmila de Souza Maia se detém sobre um gênero que chegou aos nossos dias, a Crônica, e seu papel na imprensa do século XIX, como laboratório para a revelação e o desenvolvimento de talentos literário. Em panorama ainda mais abrangente, Mathew Nestler e Zephyr Frank traçam a história da imprensa brasileira do século XIX do ponto de vista de questões associadas a uma perspectiva econômica e publicitária entre 1820 e 1890. Finalmente, mas não menos importante, o capítulo de Arnaldo Lucas Pires Junior, apresenta a imprensa satírica ilustrada que tanta força teve no Brasil da segunda metade do século XIX, comparecendo aos debates centrais em torno da Guerra do Paraguai, da Abolição e da Proclamação da República.



Reunião de trabalhos de autores dedicados à história da imprensa com os de outros autores que até então usaram a imprensa como uma das fontes de seus estudos, este livro representa o merecido reconhecimento à Hemeroteca Digital Brasileira, mas é também um estímulo para a realização de mais estudos que problematizem a imprensa e o ativo papel que sempre exerceu na transformação (ou conservação) da sociedade brasileira.

Bibliografia
Press, power and culture in imperial Brazil; organizado por Hendrik Kraay, Celso Thomas Castilho e Teresa Cribelli. University of New Mexico Press, Albuquerque, 2021. 306 p.



Investigadora integrada ao Centro de Humanidades (CHAM), Universidade Nova de Lisboa.

Los juegos de la política. Las independencias hispanoamericanas frente a la contrarrevolución





A CONTRARREVOLUÇÃO NO PRIMEIRO SEXTÊNIO RESTAURADOR (1814-1820): HISTÓRIA CONTRAFACTUAL, O JOGO DAS POTÊNCIAS IMPERIAIS E AS INDEPENDÊNCIAS NA AMÉRICA ESPANHOLA

Andréa Lisly Gonçalves

Resenha de: TERNAVASIO, Marcela. . Los juegos de la política. Las independencias hispanoamericanas frente a la contrarrevolución. Zaragoza: Siglo XXI, 2021.

Reinhard Koselleck registrou em seu livro Passado Futuro que o neologismo contrarrevolucionário surgiu na França por volta de 1800. Uma irrupção tímida num contexto marcado pela presença avassaladora do conceito de revolução - de adoção nem de longe unívoca -, sempre referido à experiência francesa de 1789. O novo vocábulo, na acepção apresentada por Koselleck, não trazia apenas, se é que trazia, a ideia de defesa da tradição e do antigo regime. A contrarrevolução não seria o conceito antitético, por excelência, de revolução. Na tradução para o alemão, pouco tempo depois, contrarrevolucionário passa a identificar o “inimigo do Estado”. Revolucionário, portanto, designa aquele que respeita o Estado.3



A ocorrência do tema na literatura4 e na historiografia, desde então, tem refletido essa disparidade entre contrarrevolução e revolução, o que inclui os estudos sobre crise dos impérios modernos no fim do século XVIII e início do XIX. Uma resposta, dentre outras, às razões pelas quais os estudos sobre a contrarrevolução estão longe de se igualar àqueles sobre a revolução é a de que a derrota de tais movimentos teria diminuído o interesse dos historiadores por estudá-los “Ciertamente no fue ese pensamiento antiliberal y contrarrevolucionario el que acabó imponiéndose, y quizá por ello ha sido objeto de un interés menor”.5 O quadro, porém, vem se alterando nos últimos anos, o que se explica, dentre outros fatores, pela conclusão a que chegaram alguns dos estudiosos de que “no se puede separar el estúdio de las revoluciones basadas en los princípios del liberalismo del de las fuerzas antiliberales, fuerán éstas reacionarias o no”.6



Exemplo dos mais notáveis dessa mudança na historiografia é o trabalho de Marcela Ternavasio, Los juegos de la política. Las independencias hispanoamericanas frente a la contrarrevolución,7 objeto desta resenha. O recorte cronológico adotado é o sextenio da primeira restauração europeia, de 1814, com a derrota de Napoleão e a ascensão de Fernando VII ao Trono português, até 1820, quando se inicia o triênio liberal na Espanha e em Portugal. A autora restitui a autonomia do período, desafiando a ideia de se tratar apenas de um interregno, uma “anomalia de uma América insurgente”, um período débil como afirmou Rosanvallon.8



Da mesma forma que o tema contrarrevolução é pouco frequentado na historiografia, a metodologia da autora é também pouco usual: a história contrafactual. O que lhe permite alcançar o que Niall Ferguson, um dos teóricos desse campo, já destacara como o principal resultado desse método: uma abordagem sem determinismos.9



Levando a orientação de Ferguson ao pé da letra, Ternavasio aborda o período apontando as diversas alternativas que se colocavam aos contemporâneos que, em vários graus, detinham o poder de decisão, sem dimensionar essas escolhas por suas consequências. Ressalte-se, porém, que a autora não aciona uma história contrafactual “clássica”. O que constitui um mérito da obra, já que não se perde na construção ociosa de cenários hipotéticos ao passo que evita a adoção de uma perspectiva teleológica, uma história do post-facto. O que justifica, inclusive, a opção por narrar no tempo presente ou presente histórico, já que nem todas as alternativas resultarão em projetos viáveis ou dominantes.



Em outras palavras, a autora opta por uma história contrafactual “mitigada”, sem apresentar os resultados prováveis da adoção de ações diversas. Nesse sentido, ela assume um procedimento cuja importância tem chamado a atenção dos historiadores, que é abordar os distintos projetos em disputa, já que em períodos de crise, como o estudado, as formulações, o conjunto de propostas e de atores se multiplicam. Além disso, é do embate entre as proposições que prevalecem e as derrotadas que resultam as soluções que se tornam dominantes. Talvez essas estejam entre as principais virtudes a exaltar em um livro virtuoso no todo.



Outro ponto relevante é a opção teórica da autora, baseada na teoria dos jogos. Ao longo do livro, Ternavasio reconstrói as deliberações formuladas pelos jogadores, sejam nas cortes europeias, sejam no Novo Mundo. Os dilemas enfrentados e as escolhas correspondem às informações que detêm cada jogador ou à disposição que demonstram de assumir riscos conhecendo pouco ou nada das intenções dos adversários.



São realçadas as diversas estratégias políticas que cada autoridade ou grupo de atores/jogadores assume e os resultados correspondentes. Empenhada em mostrar, portanto, a partir da teoria dos jogos, das atitudes de cooperação ou de competição, os momentos em que Espanha e Portugal, principalmente, assumem “comportamentos oportunistas” ou “comportamentos cooperativos”, em escolhas nem sempre racionais, Marcela Ternavasio vem acrescentar, assim, aos estudos da contrarrevolução, a imprevisibilidade dos projetos políticos.



Dentre as opções colocadas aos jogadores, no xadrez europeu da restauração, destacam-se alianças entre Espanha e Portugal, que passariam, inclusive, pelo enlace matrimonial das filhas de D. João e Carlota Joaquina com os tios Fernando VII e Carlos Maria Isidro. Com a união dinástica, a monarquia portuguesa se empenharia em deter as forças independentistas na América, o que contribuiria para preservar o próprio Brasil. As negociações teriam, supostamente, o condão de conter o ímpeto dos Bragança de se assenhorarem de domínios hispânicos na América. O êxito da solução negociada dependeria, também, da disposição de Fernando VII de devolver a Portugal a praça de Olivença, na Extremadura, que havia sido cedida à Espanha em decorrência da “Guerra das laranjas”, em 1801.



Caso Portugal recusasse a aliança e insistisse em estender seus domínios na América, não restaria outro recurso à Coroa espanhola senão concretizar a ameaça de dominar o próprio Portugal, numa nova “União” Ibérica. As regras do jogo, porém, eram plurívocas e mutáveis, até porque não dependiam apenas das negociações entre os dois países ibéricos, mas também das decisões tomadas nos congressos das potências europeias.



Em contextos como esse, de crise geral, no qual a diplomacia tem no segredo e na espionagem suas armas mais importantes, como mostra Ternavasio, o “inimigo rumor” passa a ser alimento para a ação, extrapolando os palácios e entornando pelas ruas. Como observou Gabriel Di Meglio, confirmando as palavras da autora, “Los rumores fueron entonces decisivos: definieron creencias grupales e incluso ayudaron a delinear el pensamiento de qué era posible hacer, a qué se podía aspirar.”10 Papel semelhante tiveram os panfletos apócrifos, como aqueles afixados pelas paredes dos vilarejos do Alto Peru, com “una supuesta llamada de Fernando VII a sus súbditos para que lo defendieran”, ou os proclamas, dessa vez do campo insurgente - termo que a autora rechaça, optando por revolucionário - que conclamavam à “la rebelión en Nueva España”.11



Outro importante aspecto a destacar é que, por manter uma relação dialética com a revolução, a contrarrevolução também apresenta “vocação” internacionalista. Como afirma Alexandre Dupont “la contrarrevolución se construyó desde el inicio como una cultura política internacional” pois que “el internacionalismo estructuró esta cultura política em formación a partir de la década revolucionaria.”12 De fato, Marcela Ternavasio realiza um trabalho primoroso de história conectada, com as abordagens transnacional e transcontinental ultrapassando as “histórias nacionais”, tão justamente criticadas pelos teóricos da história global, dando consequência à observação de Dupont.



A autora mostra a importância da decisão do regente D. João de permanecer no Brasil e sua disposição de construir um poderoso império no Novo Mundo, mesmo sofrendo a oposição da Inglaterra ao projeto. Ainda que o plano tenha sido interrompido pelos acontecimentos em Portugal, em 1820, tal disposição confirma não serem infundadas as suposições de um abade De Pradt que servem bem a uma história contrafactual. De Pradt prognosticava a separação entre Brasil e Portugal como certa, devendo D. João “fazer-se plenamente Brasiliano”. Afirmava o prelado que “Em vez de se entreter com lamentar a perda de um estreito território, como é Portugal, uma alma elevada daria graças ao Céu pela necessidade que o levou a um país de extensão ilimitada, e de riquezas imensas.”13



Voltando ao tema das negociações, das relações diplomáticas, Marcela Ternavasio destaca o papel desempenhado por Carlota Joaquina nas tratativas entre Espanha e Portugal, a fim de preservar intactos os impérios coloniais ibéricos. Como é sabido, a Princesa do Brasil esteve à frente de várias experiências contrarrevolucionárias nas Américas, bem como no Reino, após o retorno, em abril de 1821, da Família Real a Portugal.14 Em Los juegos de la política, são dados a conhecer detalhes da intervenção de Carlota Joaquina nas relações entre Portugal e Espanha, sobretudo nos planos para os esponsais entre suas filhas e os tios, como já mencionado.



O enlace de uma filha de D. João com o tio, mostra Ternavasio, restou incerto, também, pelas expectativas de que o rei espanhol desposasse a filha do czar, selando uma aliança nos domínios europeus. O casamento não ocorreu por questões religiosas, pois nunca uma descendente do czar teria abdicado do catolicismo ortodoxo para se casar. O apoio da Rússia à Espanha não deixou de se concretizar pela impossibilidade do matrimônio. Ao contrário, em várias ocasiões, o imperador russo manifestou apoio diplomático e militar a Fernando VII, inclusive para conter a revolução na América.



Um apoio que seria importante, sobretudo no Congresso de Viena, que se propôs a redesenhar as fronteiras da Europa nos moldes do período anterior à expansão napoleônica, na vigência do Antigo Regime. A autora revela, porém, que as potências reunidas não se ocupavam dos assuntos relativos a Portugal e Espanha e de seus impérios coloniais. O único tema tratado fora o tráfico internacional de escravos, por ter sido colocado em pauta pela Inglaterra. Afinal, até mesmo os líderes do congresso de Viena não viam com bons olhos o conservadorismo absolutista de Fernando VII.



Nos jogos da política, diferentemente do lugar comum, não é necessário que a diplomacia falhe para a guerra ter início ou, pelo menos, para que os jogadores decidam usar a força para tentar fixar suas posições ou avançá-las. Até por isso, a autora se ocupa, mais detidamente no primeiro capítulo, mas com recorrência em toda obra, da Expedição Pacificadora enviada pela Espanha à América, sob o comando de Pablo Morillo (1775-1837), militar com importantes serviços prestados na guerra contra a França de Napoleão.



De todas as conclusões a que a autora chega, uma parece das mais importantes: as independências não foram o ponto de partida, mas de chegada, do processo que se desenrolou nas Américas durante o primeiro sextênio restaurador. O que implica admitir que, nas disputas entre os grupos rivais, algumas lideranças, inclusive revolucionárias, buscaram acordos com Fernando VII e, principalmente, mostra a autora, com os Bragança, no Rio de Janeiro. O objetivo, quase sempre, era se fortalecer ante grupos rivais.



Nesse ponto, a autora insiste em quão superadas estão as teses de uma historiografia nacionalista que, por exemplo, rejeitava a comprovada disposição de um líder como Artigas (1764-1850) de apoiar Fernando VII em sua decisão de enviar uma expedição à América que influísse no equilíbrio de forças em favor da Banda Oriental e em prejuízo do Rio da Prata. Surpreende, em alguma medida, a variedade de projetos sustentados pelas forças em conflito nos antigos vice-reinos, como mostra Ternavasio. O que lembra François-Xavier Guerra, para quem a independência foi uma “guerra de todos contra todos”.15



O próprio Guerra recorda que o apoio ao rei “coacto” em Bayona era, de início, generalizado na América.16 Uma situação, ao mesmo tempo, similar e diferente, aqui, Ternavasio é quem nos lembra, da formulada por Kantorovich sobre os dois corpos do rei. No caso espanhol, o corpo mítico desaparecera com o estabelecimento de uma nova dinastia. Seu corpo físico, porém, permanecia intacto, apesar de cativo.17 O que alimentava esperanças de que o rei pudesse se transladar para as Américas, a exemplo dos Bragança.



A recusa de Fernando VII em fazê-lo, porém, não desestimulou a formulação de projetos monárquicos nos antigos vice-reinos, destacando-se o restabelecimento da Casa dos Incas.18 Muitos desses projetos objetivavam uma possível aliança com a Corte do Rio de Janeiro. Cogitou-se, assim, criar nas Américas um Império que desafiasse, em força e poder, a própria Europa.



A contrarrevolução esteve presente nas tentativas de aliança entre as potências, mas também se manifestou nos grupos subalternos, na plebe, como vêm demonstrando os estudos sobre o realismo ou monarquismo popular.19 Nessa perspectiva, as escolhas dos indígenas, forros e mestiços, em sua luta por autonomia ante as forças revolucionárias ou mesmo o alinhamento com os reis, não significava uma adesão fanatizada ou despolitizada aos grupos em disputa. O caso peruano é exemplar, mostra Ternavasio, ao tratar da vitória das forças realistas no Alto Peru.20



Por fim, a autora refere-se a um debate ao qual um estudioso da contrarrevolução não pode se furtar. Após citar ponderações de Javier Feranández Sebastián sobre uma tendência dos atuais historiadores de se sentirem mais próximos dos revolucionários que dos “serviles e monárquicos”, em vez de se preservarem das querelas políticas do passado, ela completa: “Lidiar con la mayor o menor empatía que nos despierta certos atores y su posicionamentos en él passado, es sin dúda um desafío constante ne nuestra profissión.”21 Para atenuar o “desconforto”, legítimo, que o historiador da contrarrevolução possa sentir ao se ocupar dos reacionários, ultraconservadores, absolutistas, é bom lembrar Pedro Rújula. Para ele, em primeiro lugar, não se trata de reabilitar a contrarrevolução, mas de reavaliá-la em uma revisão historiográfica. Isso implica evidenciar os paradoxos, as contradições “de un período que se debate entre dos tendencias que podrían ser denominadas como arcaísmo y modernidade”. Revelar “esta tensión manifiesta, permanente y productiva (de palabras y de actos) la que constituye la originalidad de un momento que hace frente a un “pasado que no pasa”, por retomar la fórmula aplicada por Éric Conan y Henry Rousso a la Francia de Vichy, pero también, y tal vez sobre todo, a un futuro repleto de incertidumbre.”22 Incertezas que compreendem as tentativas atuais de reeditar um “passado que não passa”, com a emergência do pensamento e de regimes políticos de extrema-direita que se supunham eliminados com o fim das experiências totalitárias do século XX. Que o desvendamento dos jogos da contrarrevolução, na crise dos impérios modernos, seja uma arma para melhor combatê-los.

Referências
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DI MEGLIO, Gabriel. La participación popular en las revoluciones hispanoamericanas, 1808-1816. Un ensayo sobre sus Popular Participation in the rasgos y causas Hispanic-American Revolutions, 1808-1816. Almanack. Guarulhos, n.05, p.97-122, 1º semestre de 2013, p.97-122.
DUPONT, Alexandre. “Las causas justas son Hermanas”: el internacionalismo contrarrevolucinario, entre tradición e innovación política”. In: RÚJULA, Pedro;SOLANS, Javier Ramón (eds.). El desafio de la revolución Reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). Granada: Comares, 2017.
ECHEVERRI, Marcela. Popular royalist, Empire, and politics in Southwestern New Granada, 1809-1819. Hispanic American Historical Review 91:2. Duke University Press, 2011.
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MONERRIS, Encarna Gárcia; MONERRIS, Carmen García. Palabras en guerra. La experiencia revolucionaria y el lenguaje de la reacción. Pasado y Memoria Revista de Historia Contemporánea, 10, 2011, pp. 139-162
PIMENTA, João Paulo Garrido. De Raynal a de Pradt: apontamentos para o estudo da ideia de emancipação da América e sua leitura no Brasil. Almanack Braziliense São Paulo, n°11, p. 88-99, mai. 2010.
RÚJULA, Pedro. Introdução. Recomponer el mundo después de Napoleón: 1814 y las restauraciones. Revista: Pasado e Memoria Revista de História contemporânea, n.13, 2014.


3
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p.70.
4
Duas obras ficcionais, talvez menos conhecidas do que a Maria da Fonte, de Camilo Castelo Branco, de 1884, merecem ser citadas. A primeira, a de Victor Hugo, Noventa e três. A guerra civil, sobre o movimento contrarrevolucionário da Vendeia, na França (Rio de Janeiro: Garnier, s/d), que veio a público em 1874. A outra, a de Miguel de Unamuno, Paz em la Guerra. (Madrid: Cátedra, 1999), publicada pela primeira vez em 1897, que narra a última guerra carlista na Espanha.
5
MONERRIS, Encarna Gárcia; MONERRIS, Carmen García. Palabras en guerra. La experiencia revolucionaria y el lenguaje de la reacción. Pasado y Memoria. Revista de Historia Contemporánea, 10, 2011, pp. 139-162, p.129.
6
FRASQUET, Ivana. Restauración y revolución en el Atlántico Hispanoamericano. In: RÚJULA, Pedro; SOLANS, Javier Ramón (eds.). El desafio de la revolución. Reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). 1ª ed. (Granada: Comares, 2017, p. 46).
7
Zaragoza: Siglo XXI, 2021.
8
TERNAVASIO, Marcela. Los juegos de la política. Las independencias hispanoamericanas frente a la contrarrevolución. Zaragoza: Siglo XXI, 2021, p.12.
9
NIALL FERGUSON (Organizador). História Virtual. Lisboa Tinta-da-China, 2006, p.98
10
DI MEGLIO, Gabriel. La participación popular en las revoluciones hispanoamericanas, 1808-1816. Un ensayo sobre sus Popular Participation in the rasgos y causas Hispanic-American Revolutions, 1808-1816. Almanack. Guarulhos, n.05, p.97-122, 1º semestre de 2013, p.97-122, p.108.
11
Ibidem, p.108.
12
DUPONT, Alexandre. “Las causas justas son Hermanas”: el internacionalismo contrarrevolucinario, entre tradición e innovación política”. In: RÚJULA, Pedro;SOLANS, Javier Ramón (eds.). El desafio de la revolución. Reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). p.143
13
Dominique-Georges-Frédéric de Rion de Prolhiac Dufour de Pradt. Des trois derniers mois de l’Amerique meridional et du Brésil, 1817. Correio Brasiliense, v. XIX, 09/1817. Apud, PIMENTA, João Paulo Garrido. De Raynal a de Pradt: apontamentos para o estudo da ideia de emancipação da América e sua leitura no Brasil. Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 88-99, mai. 2010, p.95.
14
AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
15
GUERRA, François-Xavier. A nação na América espanhola: a questão das origens. Rio de Janeiro, Revista Maracanan, v.1, n.1, 1999.
16
Idem.. Conocimiento y representaciones contemporáneas del proceso de continuidad y ruptura. In: DAMAS, Germán Carrera; LOMBARDI, John V. (Ed.). La crisis estructural de las sociedades implantadas. Madri: Editorial Trotta, 2007. p. 429-447.
17
TERNAVASIO, Marcela. Los juegos de la política....Op.Cit. p.102.
18
Ibidem,, p.140.
19
ECHEVERRI, Marcela. Popular royalist, Empire, and politics in Southwestern New Granada, 1809-1819. Hispanic American Historical Review 91:2. Duke University Press, 2011.
20
TERNAVASIO, Marcela. Los juegos de la política...Op. Cit. p.28, 134.
21
TERNAVASIO, Marcela. Los juegos de la política.... Op. Cit. p.206.
22
RÚJULA, Pedro. Introdução. Recomponer el mundo después de Napoleón: 1814 y las restauraciones. Revista: Pasado e Memoria. Revista de História contemporânea, n.13, 2014. p.28. Universidade de Alicante. http://dhcon.ua.es/pasado-memoria/.


2
Bolsista de produtividade do CNPq.

Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX





CÂMBIOS TEMPORAIS NO MUNDO IBEROAMERICANO: NUANCES DE UM TEMPO EM CRISE

Daniel Lourenço do Prado

Resenha de: WASSERMAN, Fabio. . Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX/ Fabio Wasserman. - 1a ed. - Cuidad Autónoma de Buenos Aires: PrometeoLibros, 2020.


Se durante boa parte de sua história o tempo foi considerado apenas como uma das premissas implícitas ao ofício da historiografia, capaz de evidenciar por si próprio suas formas de recortá-lo, periodizá-lo e datá-lo, nesta última metade de século a situação é outra. Uma breve vista aos índices das principais revistas acadêmicas dedicadas à teoria e prática historiográfica revela que nas últimas décadas a problemática das temporalidades tem ganhado espaço cada vez mais relevante nas discussões sobre a história e suas formas de escrevê-la. Vivemos uma crise temporal.3

Evidencia essa tendência não só o fator quantitativo, mas também o qualitativo, expresso nos debates que vêm sendo travados, em escala global, acerca das formas de conceituar e abordar o tempo como elemento central para qualquer narrativa histórica. Mesmo com o recente crescimento no número de estudos que elegem a temporalidade enquanto objeto de análise, ainda não se foi capaz de sanar a escassez de diálogo que afasta dois tipos de história: uma mais voltada à investigação dos eventos e das estruturas sociais, que por vezes considera o tempo simplesmente como dado ou data; e outra, intelectual, que encara a temporalidade como problemática final de sua investigação (por vezes desencarnada). Encontrar meios de aproximação e cruzamento entre as duas tem sido um dos desafios de nossa geração.



Autores amplamente traduzidos e difundidos como Reinhart Koselleck, François Hartog e Hans Ulrich Gumbrecht têm estabelecido um importante campo de discussão onde o tempo histórico é posto como problemática fundamental e, partindo dele, tem-se buscado alargar e renovar o espectro de temáticas possíveis ao domínio da historiografia - mais do que isso, oferecer novas lentes para recolocar em cena questões que já pudessem parecer encerradas. É nesse sentido que Tiempos críticos: História, revolución y temporalidad em el mundo iberoamericano(siglos XVIII y XIX) vem trazer sua contribuição, sob uma perspectiva ampliada e até então pouco explorada.



Essa perspectiva ampliada refere-se não apenas ao interesse compartilhado pelas diversas áreas do saber que se encontram ao longo de seus treze estudos - como a filosofia, a antropologia, a estética, a teoria política, a geografia, os estudos literários e a teoria da história -, mas sobretudo à abordagem espacial a partir da qual o livro se propõe: o estabelecimento de um campo de estudos transatlânticos dedicados à questão das temporalidades. Tal iniciativa é parte de um esforço mais amplo empreendido pelo grupo Iberconceptos,4 rede de investigações ligadas à história conceitual que busca pensar suas questões epistemológicas levando em consideração, em primeiro lugar, as particularidades do Mundo Iberoamericano. O livro em questão, por sua vez, busca somar-se não ao debate acerca do que é o tempo em si ou de suas definições, mas acerca dos seus usos e tratos, encarnados pela realidade política iberoamericana. Não se trata de construir uma história do conceito de tempo, mas de se debruçar sobre questões que vão surgindo na investigação daquelas formas específicas de se relacionar, experimentar, perceber, representar e conceituar o tempo. A equipe Temporalidades reúne, em Tiempos críticos, produções realizadas na Espanha, México, Colômbia, Venezuela, Peru, Brasil, Chile e Argentina.



O recorte temporal que é indicado pelo título vem mais como uma referência geral aos autores e leitores do que de fato um limite, já que muitos dos ensaios ultrapassam essa barreira de diferentes formas: não apenas em seu sentido diacrônico (ora articulando seu objeto com eventos anteriores, ora avançando sobre o século XX), mas também no sentido de que suas reflexões remetem ao tempo presente e à historiografia contemporânea (ultrapassando o recorte de maneira transversal). Esse maior enfoque que é dado aos séculos XVIII e XIX, contudo, se deve principalmente ao grande câmbio temporal vivido pelo ocidente nesse período: o rompimento com a chamada História Magistra Vitae e o início do regime moderno de historicidade, o historicismo. A consciência de se viver num tempo em revolução, sintoma da temporalidade moderna no mundo atlântico, trouxe consigo um novo tipo de sociedade voltada para o futuro: ao passo que as experiências passadas perdiam peso em sua função de orientar os rumos tomados pelas nações, as expectativas pelo porvir se distanciavam cada vez mais do próprio passado. A História deixava de ser a mestra da vida para se tornar uma cadeia linear-ascendente de eventos, amarrando-os numa sucessão de causa e efeitos que marchava em direção ao Progresso. A chamada futurização do do ocidente introduziu um tipo de tempo unívoco e sequencial que reformulou os arranjos entre passado, presente e futuro daquelas sociedades. Tal movimento teria gerado uma maior consciência acerca do tempo enquanto fator demonstrativo do grau de civilização alcançado pelas diferentes nações, numa espécie de escala universal do desenvolvimento humano rumo ao progresso. A partir daí, o tempo enquanto conceito político ganha novos contornos e assume o centro das discussões globais acerca do lugar que cada nação ocupava nessa linha temporal, admitindo para si os mais variados usos e significados dentro do debate público.



Sendo notória a contribuição de Reinhart Koselleck acerca da temática, a história dos conceitos se apresenta como o principal aporte teórico-metodológico de Tiempos críticos.5 É ela que dá ao livro seu elástico fio condutor, capaz de amarrar suas diferentes temáticas, épocas e lugares sob a ótica comum das temporalidades. Isso não significa que o arcabouço teórico do livro se esgote na análise koselleckiana, nem tampouco que sua realização seja uma simples tradução e aplicação dessa análise a um mundo iberoamericano estático e homogêneo. Não são poucos os caminhos metodológicos que surgem ao longo dos estudos para dar conta das especificidades de cada enfoque. Além das categorias fundamentais de espaço de experiência e horizonte de expectativa, também se recorre de forma pragmática a outras categorias como as de experiências de tempo, cronotopo, regimes de historicidade e regime cultural do tempo, tecendo uma espécie de teia na complexa tarefa de circunscrever um objeto por vezes tão volátil. A estas, soma-se ainda a colaboração de um amplo leque de autores que reúne nomes como Carl Schmitt, Niklas Luhmann, J. G. A. Pocock, Quentin Skinner, Pierre Rosanvallon, e também os já referidos Hans U. Gumbrecht e François Hartog.



Sua eclética composição, formada por pesquisadores de diferentes lugares, gerações e áreas do saber, que num primeiro momento poderia parecer um problema à realização da obra, ao contrário, é aqui encarada como um de seus trunfos: sua pluralidade de enfoques e ferramentas analíticas é o que, segundo Wasserman, possibilita à obra explorar a fundo as diferentes faces do recorte geral. Mesmo a delicada questão das traduções e suas limitações - seja de conceitos chaves como Progresso, Revolução, Civilização, Modernidade e Regeneração, seja das teorias e metodologias articuladas ao longo dos estudos - às realidades iberoamericanas, são tomadas de forma crítica como elemento de sua reflexão.



Em sua caminhada, o livro nos conduz a diferentes lugares, como por exemplo às revoluções liberais do mundo hispânico, articuladas por Javier Fernández Sebastián em Levantando los planos del porvenir - onde o autor investiga, a partir de sua relação com as independências nas Américas, um movimento de futurização radical da política e, mais especificamente, um processo de descobrimento de um futuro em si mesmo que, a partir de 1830, passa a ser tematizado, analisado e especulado. Em Café con el Anticristo, Victor Samuel Rivera nos convida à experiência política dos cafés na cidade de Lima, que em seu intenso fluxo de jornais e periódicos noticiavam as últimas novidades da Revolução Francesa, expressando ali a tensão entre a tirania española do rei Carlos e os valores da libertad francesa. O próprio Fábio Wasserman, em De la revolución al historicismo romântico, nos transporta ao Rio da Prata para investigar as novas experiências temporais e a aceleração do tempo naquele espaço a partir da chamada Revolución de Mayo, reconstruindo as formas de expressão e percepção das elites rioplatenses acerca da tensão entre revolução e temporalidade. Além desses, passamos ainda pela Venezuela, México, Lisboa, região neograndina, entre outros.



O caso brasileiro é contemplado em quatro deles. Rafael Fanni, em La Independência de Brasil y la conciencia de un tiempo revolucionário (1820-1822), utiliza periódicos e panfletos políticos para enxergar como os novos conceitos temporais circulavam por aqueles veículos, sendo articulados, metaforizados, expressando a temporalização dos discursos políticos que influiu diretamente na formação dos sujeitos envolvidos com o processo de independência. Em Saber Prudencial em el debate político brasileño, Luisa Pereira e Larissa Teixeira se debruçam o debate feito no Senado Imperial acerca da reforma constitucional em 1832, para buscar na linguagem do âmbito parlamentar os usos dos conceitos, metáforas e do próprio passado histórico na argumentação política. Já em Modulando el tiempo historico, Christian Lynch busca examinar no conceito de regresso formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, as operações de temporalização dos conceitos pautada pelo giro conservador dos anos 1830, numa indicação de fazer retroceder o curso da história ao Antigo Regime. E finalmente, Maria Elisa Noronha de Sá encara os conceitos de sertão/litoral, inscritos na visão política de Paulino José Soares de Souza e na visão literária do poeta Antônio Gonçalves Dias, tensionando-os com os ideais de civilização/barbárie, buscando em suas sensibilidades as distintas concepções temporais experimentadas na época.



Desta forma, os treze estudos admitem uma leitura individual de cada um deles, de acordo com os interesses de cada leitor - o que não substitui a experiência geral de ler o livro como um todo. A obra, que não se pretende uma simples compilação de ensaios atomizados, entende a si mesma como resultado de um processo coletivo, articulado ao longo de diversos encontros, simpósios e trocas entre a equipe Temporalidades e o grupo Iberconceptos. Seu formato antológico não a impede de dialogar consigo própria, fazendo com que o leitor reavalie os capítulos a partir da leitura uns dos outros, complementando-se mutuamente. O geral vai se revelando na análise de casos particulares, articulados em enfoques específicos, que se unem como num mosaico e nos fazem enxergar a forma como esse múltiplo processo de câmbio temporal foi significado entre diferentes culturas - se mais ou menos ligado ao cenário internacional, se de maneira positivada ou reacionária, as formas como foram articuladas, suas ambiguidades e disputas.



Portanto, apesar de sua assumida limitação acerca de suas fontes estarem restritas, em grande parte, à análise de documentos e discursos políticos, capturados em sua maioria pela cobertura da imprensa acerca de um debate público restrito às camadas letradas e às elites urbanas, a obra não deixa, contudo, de apontar caminhos para que esse enfoque seja alargado. A própria perspectiva de uma história intelectual que deixa de incluir em sua análise a participação, por exemplo, das populações rurais e até dos outros idiomas praticados no mundo iberoamericano, também é consciente da impossibilidade de se realizar uma história que dê conta de todas as vozes de uma sociedade ao mesmo tempo. Por sua postura de abrir novos canais e não de encerrá-los, a obra costura caminhos e oferece ferramentas de análise que possibilitam a expansão de seus interesses para além do recorte político, indicando meios para enxergar a problemática das temporalidades também na literatura, por exemplo, ou em outras áreas da cultura.



Justamente por não buscar uma definição para o que é ou foi o tempo, nem tampouco tentar pôr à prova uma única teoria e metodologia que pudesse dar conta de explicá-lo por completo, a obra soube aproveitar a amplitude que seu leque temático oferece para propor meios variados de compreensão e análise daqueles processos históricos. Em sua exitosa missão de consolidar um campo de estudos temporais transatlânticos e estabelecer um terreno firme para as vindouras produções acerca do tema, Tiempos críticos nos convida a pensar nossa própria historicidade a partir do ato de pensar o passado, não apenas tomando a temporalidade enquanto objeto fim, mas sendo atravessado transversalmente por ela. Pensar a forma como o nosso presente pensa o passado é um de seus elementos centrais

Referências
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiência do tempo;- Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos; - Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história;- 1. ed. - Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.
KOSELLECK, Reingart. Uma latente filosofia do tempo; Orgs. Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues; traduzido por Luiz Costa Lima. - São Paulo: Editora Unesp, 2021.


3
Nos termos desenvolvidos por François Hartog em HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiência do tempo;- Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
4
Projeto e Rede de Investigação em Historia Conceitual Comparada do Mundo Iberoamericano. Disponível em: http://www.iberconceptos.net/.
5
Nos termos desenvolvidos em obras como KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos- Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. e KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história;- 1. ed. - Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.


2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), com financiamento da CAPES. Faz parte do grupo de pesquisa Epistasthai, vinculado ao Instituto de História (IHT) da Universidade Federal Fluminense, sob coordenação de Francine Iegelski e Maurício de Carvalho Ramos. Email: danielprado97drive@gmail.com.