Aprendizado intelectual de Joaquim Nabuco e sua peculiar acuidade de visão são retratados em “Minha formação”
PERON RIOS
Joaquim Nabuco por Robson Vilalba
Constituído de artigos publicados inicialmente nos periódicos O Comércio de São Paulo eRevista Brasileira, Minha formação, de Joaquim Nabuco, é um livro redigido entre 1889 e 1899. O texto, com um pano de fundo memorialístico, ganha reedição da Editora 34, fazendo-se acompanhar de valiosas imagens emprestadas de fontes diversas, como a Fundação Biblioteca Nacional, a Academia Brasileira de Letras e a própria Fundação Joaquim Nabuco. A edição é enriquecida por um estudo penetrante de Alfredo Bosi e pelo ensaio Massangana no seu original francês (Foi voulue).
Joaquim Nabuco guardou do pai, o senador Nabuco de Araújo, a prática liberal que consiste em cultivar a “velha experiência”, sem o abandono da “nova experimentação”. Aqui, o olhar é certeiramente poético: à tradição aprendida, cabe ao escritor seu acréscimo de tonus individual. De início, percebemos um aprendiz de vinte e um anos, deslumbrado pela república estadunidense — marca, no seu entender, de uma plena liberdade em exercício. É a leitura de A constituição inglesa, de Walter Bagehot, que lhe confere uma virada fundamental na lida política: a simpatia pelo regime monárquico ali encontrou, a um só tempo, sua fonte e volume. A Carta britânica despontou-lhe, então, como uma Pedra de Roseta, à qual Bagehot serviu de Champollion. Assim, Joaquim Nabuco pôde observar que, ao contrário do que pensava, a forma dinástica de governar trazia um liberalismo mais largo do que o regime republicano. O monarca limitava sua tirania aparente à emblemática nacional, ao passo que o presidente inverteria o jogo de forças e, regiamente, seria o centro e o cetro do país. Além disso, a comunhão entre os Poderes Executivo e Legislativo — que a república preferia autônomos e, na prática, dissociados — promovia a lisura e a racionalidade da gestão pública. Para demonstrar a precisão e a transparência dos regimes, o escritor coteja exatamente as estruturas britânica e ianque, mas agora com preferências arrevesadas: “Comparados os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as horas da opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos”.
Sua peculiar acuidade de visão, todavia, proveio de um longo aprendizado, de uma verdadeira Bildung, na expressão certeira dos alemães, com a qual o título do livro indisfarçadamente dialoga. Apesar de Nabuco afirmar que o estilo dos autores não vai além daquilo que eles já desenvolveram na juventude, a lapidação de suas idéias — e da linguagem que lhes fosse fiel — submeteu-se a muito reajuste de forma e estilo, como seu abandono da escrita de poesia pode confirmar. Tão sólido processo formativo veio associado a um espírito vigorosamente cosmopolita, livre e atento aos eventos de todas as latitudes. Tal disposição de alma não poderia deixar de supor no ultranacionalista José de Alencar um duro adversário, como observamos na famosa polêmica, travada por ambos, entre setembro e novembro de 1875. Eis o que lemos, no capítulo “Atração do mundo”, da presente obra:
Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo.
O desejo de ver e conhecer tudo o que fosse digno de admiração lhe rendeu excessos, mas também o preveniu da percepção localista a que a intelligentsia nacional cedia sem muitas resistências. A sensibilidade poética lhe foi acinzelada, e se “cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento”, ele pôde contemplar a beleza com o olhar desacelerado, contrário à experiência do turista que tudo vê sem que nada lhe produza um significado vivo. Em variadas circunstâncias, abrandou assumidamente a curiosidade política em nome da experiência artística: a vocação do tribuno, no cerne de um debate político, submetia-se à paixão do estilista atento à sonoridade das palavras pronunciadas pelos oradores. É preciso entender, assim, que suas aspirações de foro, pelo menos no período anterior às refregas abolicionistas, são conseqüência de uma inflamação estética, e que, nele, as idéias são um reflexo da forma.
Sua maturidade crítica pode ser captada, sem perdas, na observação que elabora nas linhas que seguem:
Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Vênus de Milo ou a Gioconda tenha passado indiferente para muitos que notaram as suas menores impressões políticas. Eu, porém, não poderia sequer lembrar-me de que fora político diante do mármore dos mármores ou do colorido que se esvai e de um traço que se apaga de Leonardo. Na própria política eu me achava dividido pela mais positiva dualidade que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação histórica e estética era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes.
Em relação ao especificamente poético, o escritor é lapidar: “[...] o que não se pode expressar em verso não vale quase a pena ser conservado”. A atenção estética de Nabuco expõe a contemporânea falta de zelo com as artes, lacaias das disputas políticas e dos litígios encampados por toda sorte de minorias. Também é esse contato permanente e afetivo com a literatura que lhe dá, um tanto à revelia, relativa intuição teórica: “[...] o que neles [nos seus versos] podia soar agradavelmente era declamação poética, e não poesia; pertenceria à retórica, ou à eloqüência, e não à arte, que em tudo é criação. [...] Nada é mais contrário à poesia do que a ênfase, o lugar-comum e o patético da oratória. Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta”. Vê-se, portanto, a distinção essencial e lúcida entre o domínio técnico do verso e o vigor criativo que a empresa artística exige. Apesar da perspicácia reflexiva e do apuro crítico — ao dar o devido peso aos seus contemporâneos —, Nabuco mostra que também é filho de seu tempo, quando exclui da arte de Bilac o labor contínuo. Entretanto, como ele bem assinala, no mare magnum da inteligência não há possibilidade de ancoradouro. Assim, diz adiante com beleza expressiva: “O meu juízo estético foi, em todas as épocas, ainda o é hoje, imperfeito, instintivo, oscilante, como uma agulha que girasse por todo o mostrador”.
Propósito e importância
O homem político amadurece e começa, em fins da década de 1870, a esboçar o que viria a ser o abolicionista filósofo e propagandista, da palavra pública e privada. As tentativas de interpretar a nação assomam inevitáveis e, mesmo quando escreve sobre os países que visita, como a pátria norte-americana, seu olhar é mais sintético do que descritivo. Realiza, igualmente, uma análise fina e sensível da instabilidade política francesa fin-de-siècle e,sobre a sua terra, ele discorre: “O adiantamento de um país prova-se pela extensão da idéia de que a política é inseparável dos mais vitais interesses da sociedade, e por aí, de cada um. No Brasil, essa idéia não se derramou, pelas condições especiais em que nos achamos, de território, população, trabalho escravo, etc. Aqui ela está em cada cabeça”. Impressiona como, mais de cento e trinta anos depois, a avaliação de Nabuco infelizmente é atual: entre nós, a ideação política, em boa medida, se resume a opiniões particulares e difusas, que se dissolvem, sem profunda reflexão, no caldo coletivo das revoltas de manada.
Nessa fração da vida, Joaquim Nabuco percebe as antinomias entre o desideratum da política e as vontades efetivas dos cidadãos que ela supostamente representa: “A política, arte religiosa, converte em crime de sacrilégio o menor ato de liberdade individual”. Todavia, uma leitura atenta de Minha formação vem dar outra dimensão ao liberalismo de Joaquim Nabuco — que era mais receptivo à aristocracia britânica do que às igualdades sem pedigree dos americanos, mas que também entendia ser um sinal de irresponsabilidade social a suposta carência de solidariedade dos ianques.
Nos representativos capítulos “Meu pai” e “Massangana”, Nabuco assoma efetivamente como escritor, no sentido limitado da expressão. É quando podemos vislumbrar, em sua linguagem, a força dramática, a fluência narrativa e a captação de nuanças descritivas, prontas para nos falar, por exemplo, de um episódio emblemático de seus oito anos — o da criança escrava que lhe suplica o domínio, para que outro senhor não lhe inflija maus-tratos. Apenas um escritor que domina seus recursos realiza inversões violentas e reveladoras, típicas das almas efetivamente especulativas (palavra esta que, por sinal, não poderia ser etimologicamente mais adequada): ao morrer sua madrinha, observa o suplício dos escravos que foram por ela bem cuidados. Então ele arremata: “Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado… A gratidão estava do lado de quem dava”.
Minha formação descreve, como todo livro autobiográfico com propósito e importância, a composição meticulosa e microscópica de eventos incontornáveis da cultura e, no seu papel de lupa, a narrativa nabuquiana exuma personalidades encobertas e esquecidas, fundamentais para o sucesso da causa emancipatória, por exemplo. Quando já ouve o “toque de recolher” da vida, abandona cada vez mais o seu círculo exterior e turbulento para vasculhar uma geografia íntima e escarpada. A religião lhe reaparece como a ave redentora ao dilúvio universal (o que muito se deve à presença luminosa do Papa Leão XIII, em sua susceptibilidade frente à causa dos escravos) e a infância primeva se vê recuperada. Apesar de tantos trânsitos e torneios pelo mundo afora, Nabuco nos diz de uma imagem marinha que lhe ficara renitente, império indissoluto na recordação. Descrito com figuração romântica e de modo poeticamente elevado, o trecho, por sua vez, torna a autobiografia inesquecível, razão pela qual o deixamos aqui estampado, por duradouro epílogo:
Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente.
PERON RIOSÉ mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.