sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Quarteto de Alexandria


Jogos perigosos

Paixões violentas e narrativa impecável: este é
O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell

Moacyr Scliar
Anos atrás, fui apresentado a um jovem empresário que vinha do Egito, mais precisamente da cidade de Alexandria. Perguntei se ele conhecia O Quarteto de Alexandria (tradução de Daniel Pellizzari; Ediouro; 955 páginas). "Acho que eles não tocam mais lá", foi a intrigada resposta. O equívoco só é desculpável pelo fato de que a memória cultural costuma ser irremediavelmente curta. Nos anos 60 e 70, qualquer pessoa razoavelmente bem informada saberia que O Quarteto de Alexandria designa um grupo de quatro romances magistrais do inglês Lawrence Durrell, que marcaram profundamente a ficção da época. Felizmente, há esperança de remediar a amnésia literária: o Quarteto, que só era conhecido no Brasil por meio de uma edição portuguesa, acaba de ganhar sua primeira e competente tradução brasileira.

O romancista, poeta, dramaturgo e ensaísta Lawrence George Durrell (1912-1990) foi um inglês nascido na Índia colonial, tal como George Orwell. Ao contrário do socialista Orwell, ele era indiferente à política. No seu tratamento de paixões extremadas, Durrell guarda afinidade com o americano Henry Miller (ainda que seja menos direto do que Miller em matéria de sexo). Durante a II Guerra Mundial, Durrell trabalhou para a embaixada britânica de Alexandria, no Egito. Ali encontrou Yvette Cohen, que seria sua mulher – e que foi o modelo para a personagem que dá título a Justine, primeiro romance da tetralogia, publicado em 1957. Seguiram-se Balthazar (1958), Mountolive (1959) e Clea (1960). O Quarteto conjuga numerosas influências, da filosofia budista – com a qual Durrell se familiarizou na Índia – às idéias de Freud e Einstein. Mas a obra é sobretudo, nas palavras do próprio autor, uma "investigação do amor moderno", expressão que abrange uma vasta gama de situações: homossexualismo, bissexualismo, estupro, incesto. Não por acaso, o título do primeiro volume, Justine, alude à obra do Marquês de Sade.

A ação transcorre durante a II Guerra Mundial e nos anos que a precedem. Alexandria é mais que um cenário: a cosmopolita cidade funciona quase como personagem, um lugar de beleza, mistério – e também de miséria. Do ponto de vista estilístico, a grande inovação de Durrell é o jogo com o foco narrativo. Os três primeiros livros narram basicamente a mesma história, remontada e revista a partir de diferentes pontos de vista. No primeiro livro, o protagonista e narrador é Darley, jovem candidato a escritor que tem um duplo caso: com a bela e fogosa Justine, uma judia casada com o rico negociante copta Nessim, e com Melissa, dançarina de cabaré. A ligação entre Justine e seu amante é um jogo narcísico, uma paixão perigosa que só pode acabar em desastre. Nos dois livros seguintes, a história é iluminada com a perspectiva de outros personagens – o médico e cabalista Balthazar e David Mountolive, o influente embaixador britânico no Egito. Clea funciona como uma espécie de síntese, na qual os aspectos obscuros dos romances anteriores são esclarecidos quando Darley retorna a Alexandria depois de anos isolado em uma ilha. Os detratores acusavam essa elaborada seqüência ficcional de pedantismo, de obscuridade e até de "alienação" política. Mas o fato é que, com uma exímia técnica narrativa, Lawrence Durrell retratou as paixões mais violentas de uma forma que ainda hoje conserva sua provocante originalidade. Seus leitores poderão constatar que o Quarteto continua tocando em Alexandria.

CONVERSA DE HOMEM

"Ruas que escapam das docas com suas casas arruinadas e decrépitas, grudadas umas às outras, soçobrando. Sacadas com persianas fechadas, cheias de ratos. Cheiro de berberes empapados de suor. (...) Quisera eu ser capaz de mimetizar a autoconfiança resoluta com que Justine abria caminho por essas ruas na direção do café onde eu estava à sua espera: El Bab. Nossas conversas já estavam impregnadas de subentendidos que considerávamos o bom presságio de uma simples amizade. Justine falava como um homem, e eu falava com ela como a um homem."

Trecho de Justine

Revista Veja

Maria Antonieta


Maria Antonieta, a virtuosa

Uma biografia para restaurar a
reputação da rainha que perdeu
a cabeça na Revolução Francesa


Jerônimo Teixeira

Ao ser informada de que o povo francês estava faminto, Maria Antonieta, com o desdém conjugado das dinastias que representava – os Bourbon e os Habsburgo –, respondeu com a tirada famosa: "Se não têm pão, que comam brioches". Ou assim reza a lenda. A historiadora inglesa Antonia Fraser, biógrafa da rainha, diz que a frase jamais foi pronunciada por sua personagem. A mesma sentença já havia sido atribuída a uma princesa espanhola que se casou com Luís XIV, cerca de um século antes de Maria Antonieta pisar em Versalhes. E continuaria sendo atribuída a várias princesas nos 100 anos seguintes – até finalmente "colar" na nobre de origem austríaca, provavelmente por força da propaganda dos revolucionários que a levaram à guilhotina em 1793. É significativo que esse esclarecimento seja feito logo na primeira página de Maria Antonieta (tradução de Maria Beatriz de Medina; Record; 574 páginas) – livro que inspirou um exuberante filme de Sofia Coppola, ainda inédito no Brasil. De saída, Antonia Fraser deixa claro seu propósito fundamental: recuperar a imagem da rainha. A autora consegue sustentar essa revisão histórica com consistência e alguma graça narrativa – ainda que, em alguns momentos, cruze a fronteira que separa a biografia da hagiografia.

No ardor republicano que queimou a partir de 1792 na França revolucionária, Maria Antonieta tornou-se um símbolo da velha ordem que estava ruindo. A devassidão moral e a dissipação financeira da corte encontraram seu emblema na estrangeira que supostamente sangrava o tesouro francês em vestidos, jóias e bacanais. Na verdade, ela nunca foi esse monstro hedonista. Nascida em Viena, em 1755, Maria Antonieta era uma adolescente magra, de tez muito clara e quase desprovida de busto quando chegou à França como prometida do futuro rei. Tinha o queixo prognata que os Habsburgo carregavam como um estigma – mas não era desprovida de graça. O futuro Luís XVI, ao contrário, era um rapaz desajeitado. Já mostrava os primeiros sinais da obesidade que se tornaria quase escandalosa nos anos seguintes. A consumação física do casamento demorou nada menos do que sete anos para se realizar – ao que parece, o senso de profunda inadequação física do jovem herdeiro travava suas obrigações conjugais.

Os panfletos pornográficos que abundavam no século XVIII retratavam Maria Antonieta como uma ninfomaníaca enlouquecida. Antonia Fraser desmente essas versões. Sim, a rainha teve ligações muito íntimas com algumas damas da corte, mas esse "apego" era, segundo a biógrafa, "mais emocional do que físico". O único caso documentado de Maria Antonieta, com o conde sueco Fersen, foi conduzido com a máxima discrição, comportamento raro em meio à promiscuidade de Versalhes. A suposta insensibilidade social da rainha também é contestada – mas é nesse ponto que Antonia idealiza sua biografada. O episódio em que Maria Antonieta manda parar sua carruagem para socorrer um camponês ferido ganha uma importância desproporcional na narrativa. Antonia também insiste na modéstia de Maria Antonieta. Ela seria uma mulher à frente do seu tempo, uma rainha simples e caridosa que "se encaixaria com facilidade nas futuras monarquias apolíticas" – afirma a autora, numa frase em que está subentendida a idéia de que Maria Antonieta foi uma espécie de Lady Di do século XVIII.

Casada com o dramaturgo Harold Pinter, Antonia Fraser é uma historiadora popular da realeza européia. Seus livros anteriores voltavam-se para figuras da história britânica, como Mary Stuart e Henrique VIII. Nas últimas décadas, historiadores como o francês François Furet e o inglês Simon Schama têm revisado a Revolução Francesa. Considerando que outras monarquias chegaram a um quadro democrático e liberal sem banhos de sangue, será que o Terror foi mesmo necessário para afirmar os decantados ideais de Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Embora Antonia não se preocupe com os problemas da filosofia da história, sua biografia chega perto de sugerir que Maria Antonieta poderia ter sido uma figura de transição entre o absolutismo e alguma forma de monarquia constitucional. Vive la Reine!, diz a autora na introdução do livro. Bem diferente daquilo que o povo gritava em 1793 enquanto a carroça conduzia a rainha para a guilhotina da Praça da Concórdia.

Pobres princesas ricas

Ao dizer que Maria Antonieta "se encaixaria com facilidade" nas monarquias atuais, a historiadora Antonia Fraser sugere uma comparação com a inglesa Lady Di. Veja as semelhanças entre as duas:

Lady Di

VIDA PRIVADA
Lady Di achou que estava fazendo o casamento dos sonhos, mas tomou um banho de água fria. O príncipe Charles nunca escondeu sua paixão pela antiga namorada Camilla Parker Bowles. Uma conversa telefônica entre os amantes veio a público e resumiu bem a humilhação: nela, Charles dizia a Camilla que gostaria de ser o seu absorvente íntimo

PODER POP
Diana foi um ícone da moda: seu penteado foi copiado em todo o mundo e seus vestidos tinham espaço garantido na primeira página dos tablóides. Consagrada como "princesa do povo", engajou-se em causas sociais e humanitárias, como o combate às minas terrestres

MORTE ICÔNICA
Depois de dar depoimentos explosivos sobre a infelicidade de seu casamento com Charles e as traições de parte a parte, Diana morreu de forma trágica. O motorista embriagado de seu automóvel tentou fugir dos paparazzi que a perseguiam e provocou um acidente fatal

Maria Antonieta

VIDA PRIVADA
Maria Antonieta foi sempre descartada pela corte francesa como uma tola. Sua humilhação suprema: Luís XVI demorou sete anos para consumar o casamento – o que era de conhecimento público

PODER POP
Jovem demais e uma estranha entre os franceses, a austríaca Maria Antonieta consolou-se no dom para ditar moda. Os vestidos elaborados e os exóticos penteados pouf eram imitados por toda a aristocracia. Consta que também não era o monstro de indiferença que se pintou: ensinava caridade aos filhos e socorria camponeses feridos

MORTE ICÔNICA
Maria Antonieta foi emblema do excesso e da exploração da monarquia francesa. Em companhia do rei, Maria Antonieta tentou fugir da França revolucionária em 1791. Os dois foram capturados e acabaram perdendo a cabeça na guilhotina

Revista Veja

A Bruxa de Portobello

A bruxa está à solta

Novo romance de Paulo Coelho
lembra um fato fundamental: ele
é um péssimo escritor


Jerônimo Teixeira


Divulgação

Paulo Coelho: assassinatos "normais" e seita pagã que chega ao êxtase pela dança

Que Paulo Coelho é um fenômeno já se sabe. O escritor brasileiro contabiliza mais de 75 milhões de livros vendidos em 150 países. É também uma celebridade, com todas as extravagâncias que o título autoriza (inclusive a de receber o quadrilheiro José Dirceu para comemorar o réveillon no sul da França). Foi por força dessa popularidade que ele se tornou um imortal da Academia Brasileira de Letras. Nenhum desses fatos, porém, deve ser confundido com consagração literária. O lançamento de A Bruxa de Portobello (Planeta; 294 páginas) é uma boa oportunidade para reafirmar o fato fundamental sobre Paulo Coelho: ele é um péssimo escritor.

A Bruxa de Portobello representa um retorno ao misticismo, que o autor havia relegado a segundo plano em livros como Onze Minutos. Trata-se da história da mística Sherine Khalil, mais conhecida como Athena. Abandonada pela mãe cigana na Romênia, ela é adotada por um casal libanês que se estabelece em Londres nos anos 70. Em Portobello Road, rua londrina, converte-se em líder de uma polêmica seita pagã que busca o êxtase pela dança. A história de Athena é narrada em uma série de testemunhos – das mães adotiva e biológica, do ex-marido, de um padre, de amigos –, para firmar a idéia de que ela seria uma personagem múltipla e complexa. Mas Athena não passa de um veículo oco para os slogans idiotizantes do autor: "O amor é. Sem definições. Ame e não pergunte muito".


Paulo Coelho gosta de dizer que sua escrita é clara e simples, e que por isso ele é mal compreendido pela crítica que só admira escritores "ilegíveis" como James Joyce. A Bruxa de Portobello, porém, não é claro nem simples. A narrativa é confusa e mal estruturada. Tenta armar, sem sucesso, um mistério em torno do suposto assassinato da protagonista, para o qual inventa uma solução estapafúrdia. A linguagem é uma sucessão de lugares-comuns – "vale de lágrimas", "brutalmente assassinada", "flertando com o perigo" –, imprecisões pronominais e confusões de tempo verbal, para não falar em redundâncias escandalosas como "termina acabando". As aberrações chegam ao ápice nas páginas finais, quando se fala de um assassinato que teria de ocorrer "em circunstâncias absolutamente normais".

O leitor de Paulo Coelho talvez não se importe com esses defeitos formais. A "mensagem" do autor estaria em algum lugar do além, preservada da oligofrenia de sua prosa. Mas é na tal mensagem que reside o pior de Paulo Coelho. Disfarçada em conversa pseudofeminista sobre a reabilitação da "Deusa Mãe" reprimida pelas religiões "oficiais", A Bruxa de Portobello traz uma apologia descarada do curandeirismo e da irracionalidade. Paulo Coelho não é apenas mais um mau escritor: seu obscurantismo é nocivo. Não se deve perdoá-lo pelo sucesso.

O FIM DO SAGRADO

"Ai daqueles que buscam pastores, em vez de ansiar pela liberdade! O encontro com a energia superior está ao alcance de qualquer um, mas está longe daqueles que transferem sua responsabilidade para os outros. Nosso tempo nessa terra é sagrado, e devemos celebrar cada momento. A importância disso foi completamente esquecida: até mesmo os feriados religiosos se transformaram em ocasiões para se ir à praia, ao parque, às estações de esqui. Não há mais ritos. Não se consegue mais transformar as ações ordinárias em manifestações sagradas." setembro 2006

Trecho de A Bruxa de Portobello, de Paulo Coelho

Revista Veja

Travessuras da Menina Má


Em vários lugares do passado

Aos 70 anos, Vargas Llosa escreve
sua primeira história de amor. Com ela,
recupera as últimas décadas do século XX


Moacyr Scliar

Havia muito tempo, diz o peruano Mario Vargas Llosa, ele planejava escrever uma história de amor – não de erotismo e atração, como já fizera em Tia Julia e o Escrevinhador ou em Pantaleão e as Visitadoras, mas efetivamente um romance centrado na relação de um casal. Que ele tenha esperado até os 70 anos para pôr o plano em prática mostra a natural hesitação do escritor experiente diante do risco do lugar-comum. E mostra também o acerto da espera. Em Travessuras da Menina Má (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht; Objetiva/Alfaguara; 302 páginas), Vargas Llosa dribla tal risco mesclando a ficção com a memória. Seu romance (um dos títulos que inauguram no Brasil o selo literário Alfaguara, aqui lançado pela editora Objetiva em sociedade com o grupo espanhol Santillana) é uma obra sedutora, na qual o autor, seguindo sempre a trajetória desencantada de seus personagens, revisita algumas das cidades fundamentais de sua vida: Lima, Paris, Londres e Madri.

Vargas Llosa foi um dos expoentes da explosão latino-americana que, nas décadas de 60 e 70, colocou as obras de escritores como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Alejo Carpentier nas vitrines de livrarias européias e americanas. Esse prestígio coincidiu com o auge do realismo mágico, que, recorrendo ao absurdo como se este fosse um componente normal da realidade, funcionava como protesto contra as ditaduras que então dominavam a maior parte da América Latina. Vargas Llosa não foi um cultor do estilo, mas era – e é – um escritor atento à realidade política do continente. De todo ele, e não apenas do Peru. Em A Guerra do Fim do Mundo, por exemplo, abordou a Guerra de Canudos, no Brasil.

A maior parte de Travessuras da Menina Má, porém, se passa na Europa. O livro traz uma dedicatória intrigante: "A X, em memória dos tempos heróicos". O autor se recusa a dizer quem é X, ou que tempos heróicos são esses. O enigma termina aí. A história é clara, linear. Gira basicamente em torno de dois personagens, um homem e uma mulher. Nos anos 50, encontramos Ricardo Somocurcio no bairro de Miraflores, em Lima (um cenário preferencial do escritor), apaixonado pela chilena Lily, que, descobre-se logo, nem é chilena nem se chama Lily. Mentiras balizarão a história dessa mulher ao longo das quatro décadas abrangidas pela narrativa.

De Lima, Ricardo vai para a Europa, onde ganha a vida como tradutor. Através dos anos, mantém a patética paixão por Lily, que responde a ela de maneira ambivalente: faz sexo sem amor, entrega-se sem se entregar. É uma relação sadomasoquista, expressa no tratamento que os amantes dão um ao outro: Ricardo é chamado de "bom menino"; ela é a "menina má", que dá ordens inclusive durante o sexo. Mas Lily não é apenas uma mulher fria e manipuladora. É (e nisso representa um triunfo ficcional do autor) uma personagem contraditória e, no fim, trágica.

Não há dúvida de que Vargas Llosa está recuperando sua história pessoal e a de sua geração, e o faz de maneira até um pouco didática. Esse é daqueles livros que dão ao leitor a sensação de estar aprendendo algo sobre a segunda metade do século XX. Aí temos o movimento guerrilheiro peruano, a efervescência intelectual da França nos anos 60, a "swinging London" que ditava a moda na década de 70. Em todos esses lugares Ricardo reencontrará a sua amada, que vai camaleonicamente assumindo diferentes papéis: guerrilheira treinada em Cuba, esposa respeitável de um marido idoso, amante de um gângster japonês – sempre metida em confusões, sempre fugindo, e sempre reaparecendo de forma inesperada.

Militante comunista na juventude, Vargas Llosa remodelou seu pensamento e candidatou-se à Presidência do Peru, em 1990, com um programa liberal. Os eleitores preferiram Alberto Fujimori, com sua plataforma populista (um disfarce para a corrupção, como se viu depois). Melhor para os leitores – não só peruanos –, que continuaram a contar com um escritor excelente em tempo integral.

Londres é uma festa

"A curiosidade de Mrs. Stubard não se satisfez com as descrições de Juan sobre como a cannabis aguçava a lucidez e a sensibilidade, particularmente para a música. Afinal, vencendo seus preconceitos – ela era metodista praticante –, Mrs. Stubard deu dinheiro a Juan para experimentar maconha. A sessão teve como fundo musical a trilha sonora de Yellow Submarine, o filme dos Beatles que Mrs. Stubard e Juan foram ver de braços dados num cinema de estréias no Picadilly Circus. O meu amigo se preocupara com a possibilidade de que o barato fizesse mal à sua protetora e amiga, e de fato ela terminou se queixando de dor de cabeça e adormeceu de pernas para o ar no tapete da sala."

Trecho de Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa


"VÍAMOS O QUE QUERIAMOS VER"

Mario Vargas Llosa ainda participa da vida pública peruana – mas por meio de artigos e ensaios. Derrotado na eleição presidencial
de 1990, ele desistiu da política e hoje vive entre Lima, Europa e Estados Unidos. De Washington, onde passa o semestre
para dar um curso na Universidade Georgetown, ele falou com o repórter Jerônimo Teixeira.

EM TRAVESSURAS DA MENINA MÁ O SENHOR PERCORRE PARIS, LONDRES E MADRI. POR QUE ESSAS CIDADES?
Nos anos 60, viver em Paris era um privilégio. Era o centro da vida cultural e política. Nos anos 70, ela perdeu essa posição para Londres, com a revolução dos hippies, das drogas, dos gays. E foi maravilhoso viver em Madri na década seguinte, com o fim do franquismo. Essas cidades são a parte autobiográfica do livro.

POR QUE LILY, A PROTAGONISTA, É TÃO FRIA E DISTANTE, ATÉ NA HORA DO SEXO?
Ela representa o preço altíssimo que muitas mulheres tiveram de pagar por sua independência. É uma luta que não está encerrada na América Latina, onde o peso da tradição ainda é forte. A "menina má" pensa que, se se entregar ao amor, vai ser derrotada.

EM PARIS, O PROTAGONISTA ENCONTRA EXILADOS PERUANOS QUE SONHAM COM UMA REVOLUÇÃO NOS MOLDES DA CUBANA. HÁ AÍ ALGUMA NOSTALGIA?
Ricardo, o protagonista, evoca esses tempos com uma certa saudade. Ele mesmo não chegou a compartilhar essas ilusões: é indiferente à política, e o amor é sua única aventura vital. Mas muitos amigos seus morrem por essa revolução utópica. Hoje, as pessoas da minha geração notam que havia uma imensa ingenuidade nesses ideais. Mas também havia generosidade, uma disposição para o sacrifício.

SOBROU ALGO DESSE IDEALISMO NA ESQUERDA DE HOJE?
Não. A prova é que essa esquerda romântica degenerou, no caso do Peru, no Sendero Luminoso, um grupo de fanáticos que matam inocentes e pobres. Em Cuba, no início, também enxergávamos uma face romântica na revolução. Víamos o que queríamos ver, claro.

O SENHOR SEMPRE CRITICOU O ATUAL PRESIDENTE DO PERU, ALAN GARCIA. MAS, NA ÚLTIMA ELEIÇÃO, APOIOU-O CONTRA O POPULISTA OLLANTA HUMALA.
Na literatura, podemos escolher só a excelência. Em política, não: muitas vezes, temos de escolher o mal menor. García representa, pelo menos, a continuidade do sistema democrático. 27 de setembro de 2006

Revista Veja

O Império Derrotado

O golpe que deu certo

Como Portugal domou a Revolução dos Cravos e marcou um ponto para a democracia no mundo
Rinaldo Gama

Agencia Zoom

Manifestantes nas ruas de Lisboa, em 1974: uma festa que quase terminou em guerra civil

Em 1974, uma rebelião militar pôs fim a mais de quatro décadas de ditadura em Portugal. As tropas do Movimento das Forças Armadas que entraram em Lisboa na manhã do dia 25 de abril, uma quinta-feira chuvosa, para destituir o primeiro-ministro Marcello Caetano, não encontraram resistência. Ao passarem pelas floristas do Rossio, no centro da capital, os soldados ganharam delas dúzias de cravos vermelhos, surgindo assim a expressão Revolução dos Cravos, pela qual o levante se tornaria conhecido. Apesar dessa imagem romântica, o movimento foi crivado de conturbações. Portugal esteve à beira de uma guerra civil – mas teve sucesso em "domar" sua revolução. É o que demonstra O Império Derrotado (tradução de Laura Teixeira Motta; Companhia das Letras; 334 páginas; 49,50 reais), do inglês Kenneth Maxwell, historiador da Universidade Harvard e especialista em Península Ibérica e América Latina. Trata-se de um estudo rigoroso e esclarecedor sobre um golpe de Estado singular.

A política colonialista de Portugal foi decisiva para a derrubada de Caetano, empossado em 1968, depois que o ditador António de Oliveira Salazar sofreu uma queda que o deixou em coma até a morte, em 1970. Diante dos movimentos de libertação que haviam eclodido nas colônias portuguesas da África, Caetano insistia no expediente da guerra, o que acarretava despesas colossais – 50% do gasto nacional. No contexto da Guerra Fria, o imbróglio colonial era uma questão sensível para os Estados Unidos e para a Otan, frente militar da qual Portugal foi membro fundador. Por muito tempo, os americanos viram o imperialismo português com reticência – o governo Kennedy chegou a auxiliar os movimentos de independência africanos. Maxwell observa que, por ironia, a Otan só deu apoio pleno à posição portuguesa na África nos anos 70, quando ela já era insustentável. Nessa altura, o colonialismo português se tornara mais palatável para os americanos, porque fazia frente aos movimentos marxistas que, com o apoio da União Soviética e de Cuba, combatiam a metrópole em Angola e Moçambique.


Foi um general, António Spínola, que colocou o salazarismo na linha de tiro, com o livro Portugal e o Futuro, lançado em 1974, e com a adesão dos oficiais menos graduados, os "capitães de abril". A repercussão do livro fez de Spínola um nome de peso para assumir o governo provisório após o golpe. Encurralado no quartel do Carmo, Caetano declarou que só se renderia a ele. Os anos seguintes seriam uma provação para Portugal – e O Império Derrotado cresce justamente a partir desse ponto. A questão das colônias africanas tomou conta dos debates, contrapondo todas as facções dominantes. No primeiro aniversário da revolução, havia mais presos políticos do que antes dela. Com tudo isso, os portugueses conseguiriam criar um sistema de governo pluralista. Numa interpretação original, Maxwell afirma que esse triunfo dos moderados foi um precedente para as transições do autoritarismo à democracia verificadas em fins dos anos 80 na América Latina e no Leste Europeu. Noutras palavras, o movimento português de 1974 culminou em uma direção que ajuda a compreender a nova ordem que, anos depois, se instalaria na Europa e fora dela – inclusive no Brasil.

Revista Veja

Da pedagogia do oprimido às pedagogias da exclusão: um breve balanço crítico*


Da pedagogia do oprimido às pedagogias da exclusão: um breve balanço crítico*

From pedagogy of the oppressed to pedagogies of exclusion: a brief critical balance


Danilo Romeu Streck

Doutor em Educação e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: dstreck@unisinos.br

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RESUMO

O artigo tem por objetivo analisar alguns deslocamentos nas práticas pedagógicas que correspondem à mudança conceitual ao longo das quatro últimas décadas, mais precisamente desde a formulação da pedagogia do oprimido no fim da década de 1960. Faz-se uma breve revisão do tema da exclusão social, em especial na sua vinculação com as políticas e práticas em educação, relacionando-o a três eixos explicativos identificados como consenso pedagógico, o deslizamento semântico de opressão para hegemonia e a crítica da modernidade e as teorias pós-modernas. Argumenta-se que o uso do binômio exclusão social/inclusão social encontra sua pertinência na denúncia das múltiplas desigualdades e no seu cará–ter instrumental para políticas públicas específicas. Paradoxalmente, nestes aspectos também se situam os seus limites em termos de projetar possibilidades de transformação da sociedade excludente.

Palavras-chave: Exclusão social. Paulo Freire. Práticas pedagógicas. Pedagogia da exclusão. Pedagogia do oprimido.


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ABSTRACT

This paper analyzes some shifts in pedagogical practices that correspond to the conceptual changes that have occurred in the last four decades, more precisely since the pedagogy of the oppressed was formulated, at the end of 1960s. It proposes a brief review of social exclusion, especially in terms of its implications for educational practices and policies, relating it to three explicative axes identified as: the pedagogical consensus; the semantic dislocation from oppression to hegemony, and; the critique of modernity and the post modern theories. It is argued that the social exclusion-social inclusion pair is relevant to denounce the multiple forms of inequalities and, as an instrument, to implement social policies. Paradoxically, these very aspects constitute its limits when it comes to projecting possibilities to transform the excluding social organization.

Key words: Social exclusion. Paulo Freire. Pedagogical practice. Pedagogy of exclusion. Pedagogy of the oppressed.


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(...) o conhecimento está sempre se transformando. Isto é, o ato de saber tem historicidade, então o conhecimento de hoje sobre uma coisa não é necessariamente o mesmo de amanhã. O conhecimento transforma-se à medida que a realidade também se movimenta e se transforma. Então, a teoria também faz o mesmo. Não é algo estável, imobilizado. (Paulo Freire, em diálogo com Myles Horton, 2003, p. 114)



Introdução

A linguagem indica que se trata de outros tempos. Desde que Paulo Freire escreveu o hoje clássico Pedagogia do oprimido,1 na virada da década de 1960,2 até os dias de hoje, quando surgem diferentes formatos de pedagogia da exclusão, houve importantes mudanças na sociedade que se refletem nas políticas educacionais e nas práticas educativas ou no sentido que se atribui a essas práticas. Ao mesmo tempo, pode-se argumentar que a realidade é a mesma. A saúde desatendida fere tanto ontem como hoje, os sintomas da fome são os mesmos no estômago de quem a sente e o desemprego significa hoje como então um obstáculo para a inserção digna na sociedade.

As discussões sobre modernidade e pós-modernidade, por um lado, e sobre a globalização e os movimentos que buscam uma globalização alternativa, por outro lado, têm trazido à tona os deslocamentos que ocorrem nos diferentes campos da atividade humana e que se dão na tensão entre rupturas e continuidades ou permanências. Uma visão linear da evolução dos fatos não será capaz de dar conta da leitura de nossos tempos e a discussão tende a se tornar infrutífera porque há argumentos razoáveis de ambos os lados. Além disso, o significado de conceitos como modernidade e globalização varia de acordo com o contexto em que são usados. É muito diferente falar de modernidade ou globalização a partir do centro onde os processos se constituíram do que falar deles desde a periferia, de um lugar que se viu inserido nesses processos de forma subalterna.

Neste ensaio haverá inicialmente uma tentativa de compreender o surgimento da pedagogia do oprimido e o seu contexto. Se a ideia da pedagogia do oprimido se espalhou como fogo num rastilho de pólvora em todos os continentes é porque havia um clima propício para a identificação com os argumentos expostos, quem sabe na mesma proporção que causava rejeição em outros. Uma característica de um clássico, lembra Ítalo Calvino (1993), é colocar em palavras o que todos aparentemente já sabiam e queriam ter dito. O autor empresta as suas palavras para o público, que delas se apropria muitas vezes como se fossem dele, ajudando a compor um novo senso comum. São códigos que passam a identificar grupos e práticas, dispensando maiores elaborações. Sabemos que isso tem o seu preço, uma vez que as ideias mais críticas não estão isentas de uma leitura acrítica. Também as ideias de Paulo Freire nunca estiveram livres desta leitura que ele chamava de mecanicista. Daí seu desabafo numa entrevista a Rosa Maria Torres no ano de 1985: "Não me compreendem. Não compreendem o que tenho dito, o que digo e o que tenho escrito" (Torres, 2007).

Uma questão que merece atenção especial é o embate entre os espaços formais e não-formais da educação. A pedagogia do oprimido teve o mérito, entre tantos outros, de refazer a geografia das práticas educativas, colocando a escola como um dos espaços possíveis da educação. Este deslocamento foi importante para que décadas depois se assumisse a pluralidade de contextos educativos, ao mesmo tempo em que se passou a repensar o papel clássico da escola como instituição formadora da modernidade. Se na sociedade medieval não havia possibilidade de salvação fora da Igreja, na modernidade essa possibilidade começa a ser concentrada na escola (Illich, 1972). O dentro e o fora da escola passaram a ser vistos como o dentro e o fora da própria sociedade. Com a pedagogia do oprimido há um novo olhar para as práticas pedagógicas presentes nos processos sociais e para os próprios processos sociais como mediações pedagógicas na construção de novos saberes e novas práticas.

O segundo subtema da discussão trata dos acercamentos do sentido da exclusão social, em especial no campo da educação, procurando identificar alguns eixos que caracterizam esta expressão. Também no uso desse conceito é importante identificar o lugar de quem fala ou escreve. Estaríamos mais uma vez transplantando conceitos, por ingenuidade ou por astúcia? O conceito pode nos ajudar na compreensão de nossa realidade brasileira e latino-americana que é também, ao mesmo tempo, planetária? Supera o escopo deste trabalho fazer uma revisão sistemática dos muitos usos do conceito,3 colocando-se como prioridade deste ensaio compreender a dinâmica social na qual o conceito de exclusão social adquire o seu lugar na interpretação da realidade, especialmente no âmbito da educação.

Por fim, há uma tentativa de identificar algumas características das pedagogias da exclusão, relacionando-as com a pedagogia do oprimido. O que aparece de novo nas recentes articulações da teoria pedagógica? Haveria indícios dessas características na própria teoria freiriana? Se a exclusão social, conforme Aldaíza Sposati (1998), é sobretudo um conceito-denúncia, onde encontrar sinais de anúncio? A pedagogia do oprimido tinha na libertação o seu horizonte utópico e as práticas procuravam traduzir sinais desta libertação. Educação, dizia Paulo Freire em títulos de seus livros, como prática da liberdade ou como ação cultural para a liberdade. Onde estaria hoje este "inédito viável"?



O oprimido e sua pedagogia

Criou-se no imaginário coletivo da época atual a sensação de que é de hoje o privilégio ou o infortúnio de viver um tempo de incertezas, de riscos e de buscas.4 Se olharmos para a Pedagogia do oprimido, vemos que Freire lutava com questões semelhantes há quase meio século e que talvez fosse mais adequado reconhecer que cada geração está confrontada com a tarefa intransferível de encontrar o seu "posto no cosmos". Segundo ele, o problema central que então assumia um "caráter ineludível" era o da humanização de homens e mulheres. Seria outro o problema central, hoje?

Freire está atento para o contexto em que os seres humanos realizam esta busca do "ser mais". Na nota de rodapé do primeiro capítulo ele fala das várias rebeliões que estão ocorrendo, com atenção especial para a rebelião dos jovens (1968), que, segundo ele, "manifestam, em sua profundidade, esta preocupação em torno do homem e dos homens [sic!], como seres no mundo e com o mundo". Mas havia outras rebeliões cujos reflexos foram tão ou mais expressivos que a rebelião dos jovens, como o movimento das mulheres, que alterou profundamente as relações de gênero, o movimento antirracista e o movimento anticolonialista, que culminou com a independência de países africanos e promoveu lutas por autodeterminação dos povos ao redor mundo.

As notas de rodapé indicam também os interlocutores que Paulo Freire escolhe para elaborar as suas idéias. Hegel e Marx aparecem junto com Erich Fromm, Karel Kosik, Althusser e Lúkacs; Franz Fanon e Albert Memmi com a fala de um camponês e o depoimento de um sociólogo; Marcuse, Sartre, Simone de Beauvoir, Martin Buber e Jaspers com Husserl; Reinhold Niebuhr com Gregório de Nissa e Mater et Magistra; Álvaro Vieira Pinto, José Luís Fiori e Francisco Weffort com Lucien Goldmann e Wright Mills; Che Guevara e Camilo Torres com Mao Tsé-Tung. As possibilidades de combinação dos nomes acima referidos, e de tantos outros não mencionados, são quase infinitas e dão uma ideia do caráter plural da obra de Freire.

Saliente-se, no entanto, que não se trata de uma simples justaposição de autores e ideias. Balduíno Andreola (2004) argumenta que o pensamento de Paulo Freire, mesmo que as partes aparentem desconexão entre si, volta-se a um projeto global de transformação e a uma nova sociedade. Estaríamos diante de uma original "pedagogia da simbiogênese e da solidariedade". Também Rosa Maria Torres (2007) no artigo intitulado Los multiples Paulo Freires escreve que pouco importa discutir se houve aqueles que entenderam Freire melhor que outros ou se há quem realmente o compreendeu. Segundo ela, "talvez a contribuição maior de Paulo Freire está em haver alcançado comunicar-se com as fibras mais amorosas e genuínas de muita gente".

Essa pluralidade se reflete na compreensão do oprimido. O oprimido é o ser humano alijado da condição de "ser mais" no sentido de realização da vocação de ser capaz de pronunciar o seu mundo como sujeito. É um ser histórico com uma subjetividade complexa cujos níveis de profundidade requerem, para a sua apreensão, uma "arqueologia da consciência". Embora seja o portador da esperança de um futuro diferente, ele não está isento ou acima dos conflitos e das contradições da sociedade em que vive. A libertação será possível na medida em que houver uma assunção crítica dessas contradições, não apenas na teoria nem apenas na prática, mas na práxis que integra ação e reflexão como dois movimentos complementares em permanente tensão. Por isso Freire denuncia o "fatalismo libertador" inscrito em práticas e teorias que partem de leituras a-históricas da realidade.

O oprimido consubstancia-se como sujeito na luta pela liberdade. Paulo Freire situa-se entre aqueles que veem o sujeito histórico não como uma essência fixada em determinada classe ou grupo social, mas como emergência na história a partir de condições de possibilidade que existem no oprimido. Este sujeito do ato de libertação é portador de virtudes como autonomia, dialogicidade, humildade, esperança e fé no ser humano. O sujeito forma-se à medida que o "ser para o outro" surge como um "ser para si". Essa libertação implica, para Freire (1981, p. 70), também sempre o processo de transformação da estrutura que oprime.

Como marginalizados, "seres fora de" ou "à margem de", a solução estaria em que fossem "integrados", "incorporados" à sociedade sadia de onde um dia "partiram", renunciando, como trânsfugas, a uma vida feliz...

Sua solução estaria em deixarem de ser "seres fora de" e assumirem a de seres dentro de.

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em "seres para outro". Sua solução, pois, não está em "integrar-se", em incorporar-se a essa estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se "seres para si".

A pedagogia do oprimido é o conjunto de práticas educacionais realizadas neste processo de transformação da estrutura que oprime. A revolução tem para Freire (1981, p. 59) "um caráter eminentemente pedagógico". Estão equivocados os líderes que para convencer as massas da necessidade das mudanças usam para isso os métodos que servem para a educação do opressor. O novo na pedagogia de Freire está exatamente em conceber a pedagogia a partir do outro e junto com o outro, que está à margem, e que desde este outro lugar tem a possibilidade de ousar pensar um mundo distinto daquele que existe. Como diz Ernani Maria Fiori (in Freire, 1981, p. 3) na apresentação da Pedagogia do oprimido: "Os caminhos da liberação são os do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgata, é sujeito que se deve autoconfigurar responsavelmente". É uma pedagogia que não está aí, pronta, apenas para ser descoberta. Ela terá de ser criada na práxis, entre educador e educando, na perspectiva do oprimido, por ele mesmo e por aqueles que veem na luta do oprimido a possibilidade de transformação da sociedade.



As pedagogias da exclusão

O livro Pedagogia do oprimido é dedicado "(a)os esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam" (1981, p. 17). Na Pedagogia da autonomia Freire reafirma o seu ponto de vista como sendo o dos "condenados da Terra, o dos excluídos" (1996, p. 16). Freire incorpora este novo conceito com uma naturalidade até surpreendente. De fato, pode-se argumentar que assumir esta nova nomenclatura faz parte do posicionamento epistemológico efetivado no livro Pedagogia da esperança (1992), quando a metáfora da trama assume uma importância central, sinalizando a necessidade de ser pós-modernamente progressista (Streck, 2001). Ou seja, a sociedade em movimento requer outra leitura, com novos conceitos. Paradoxalmente, a ideia de exclusão está fortemente associada com o neoliberalismo, contra o qual se volta a sua ira especialmente por não permitir espaço para a ação de homens e mulheres como sujeitos da história.5

Ao contrário do que acontece em Pedagogia do oprimido, não há neste seu último livro a preocupação com definições. Pode-se especular que isso se deve, por um lado, ao fato de Freire valorizar uma continuidade básica em sua obra, a qual é dada, sobretudo, pelo posicionamento ético em favor dos "esfarrapados" (1970) ou dos condenados (1996) da Terra. Por outro lado , a nomenclatura parece ter um caráter secundário diante da realidade de seres humanos ameaçados em sua existência, independente do nome que se lhes atribui "de fora", a partir de esquemas teóricos. A introdução da expressão "ser gente" nos últimos escritos parece indicar um retorno ao que o ser humano tem de mais básico e que está ligado com a sua dignidade e liberdade.

Um ano antes da publicação de Pedagogia da autonomia (1996) havia sido lançada a coletânea Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação (Gentili, 1996). Fica patente que o uso do termo na pedagogia brasileira se dá no contexto do assim chamado "consenso de Washington",6 que sacramenta o uso das políticas neoliberais. Entre os temas do livro constam a privatização do ensino, o Banco Mundial e as políticas da educação, os mercados educacionais e o avanço da nova direita. Nas "Notas preliminares" o organizador, Pablo Gentili (1996, p. 9), chama atenção para o fato de que estes trabalhos "permitem caracterizar a ofensiva neoliberal como uma nova pedagogia da exclusão." Também Hugo Assmann (1996) usa o conceito exclusão para referir-se à lógica excludente do mercado capitalista. Ele entende que exclusão tenha se tornado uma espécie de palavra-síntese para referir-se às novas características das desigualdades sociais no Brasil e no mundo. "Dívida social, apartheid social, e expressões similares, não expressam da mesma maneira o círculo vicioso da exclusão" (p. 214). Enumera então algumas características deste fenômeno da exclusão, entre as quais se destaca a existência de um enorme contingente de "inaproveitáveis" ou "desnecessários", a "massa sobrante". São perspectivas que estão em sintonia com o pensamento de Manuel Castells (1999, p. 98), que sintetiza sua ideia de exclusão social como significando um processo no qual determinados grupos e indivíduos estão impedidos do acesso a posições que lhes garantam uma existência autônoma de acordo com os padrões de determinado contexto.

Vários autores argumentaram de maneira convincente que, como um fenômeno estrutural, a exclusão social é inerente ao processo de acumulação capitalista. Dentro dessa perspectiva, Avelino da Rosa Oliveira (2004a, p. 146) conclui seu estudo sobre Marx e a exclusão social afirmando que esta não pode constituir-se num conceito capaz de representar um novo paradigma social.7 Este argumento é retomado em Ghiggi e Oliveira (2007, p. 28): não estaríamos diante "de qualquer novidade substantiva que requeira um novo paradigma. (...) O modelo exclusão/inclusão é típico de uma perspectiva positivista-funcionalista, que apenas visa a corrigir as disfunções sociais, reatar os laços rompidos, supondo intocável a estrutura social".

José de Sousa Martins (2002) parte do mesmo pressuposto de que não se está diante de um novo dualismo, ressaltando em seus estudos que a sociedade que exclui é a mesma que inclui, no sentido de gerar formas desumanas de integração e participação no mesmo corpo social. Em sua frase irônica, "a novidade da chamada exclusão social é a sua velhice renovada" (p. 14). No entanto, segundo ele, a definição de exclusão social para identificar as desigualdades sociais hoje estaria também revelando um dos novos aspectos da sociedade de classes, ou seja, que a classe operária não mais ocupa o centro das explicações das lutas sociais.

É importante considerar que o conceito surge no norte, onde, na análise de Aldaíza Sposati (1998, p. 2), ele se refere a duas marcas desta sociedade: "A da perda de um patamar alcançado e do não-respeito à aquisição do novo direito à diferença. Ou a perda do lugar conquistado na responsabilidade pública, social e a discriminação quando da não-realização do direito à diferença". O seu surgimento está geralmente vinculado à obra de René Lenoir (1974), para quem os excluídos são, de forma generalizada, os esquecidos do progresso ou os que por circunstâncias diversas não estão adaptados à sociedade, entre os quais os doentes mentais, os deficientes físicos e os anciãos.

Não é sem razão que Pedro Demo (1998) ironiza o "charme da exclusão social" à inglesa e à francesa. O conceito esconde uma espécie de saudade de um paraíso perdido, um sentimento que diz pouco para quem esta realidade nunca passou de miragem. Mas diz muito para quem se vê na iminência de "cair" para este outro mundo. Ulrich Beck (1998, p. 32) adverte para o risco da "brasilianização da Europa", com uma minoria rica e uma maioria pobre, resultante do "capitalismo desorganizado". Esta expressão traduz tanto o sentimento de iminente perda de privilégios acumulados ao longo de séculos de expansão capitalista quanto o eurocentrismo, a partir do qual o outro é visto como inferior e, nesta nova conjuntura, cada vez mais como ameaça.8

Como se percebe, tal como o fenômeno caracterizado como opressão nas décadas de 1960 e 1970, a exclusão social não se refere a algo novo nem uniforme (Knijnik, 1997). Parece que a generalização do uso da expressão exclusão social no campo da educação se deve a um conjunto de fatores, alguns deles atravessando os campos ideológicos, o que faz com que a expressão tenha um apelo de universalidade. As décadas de 1980 e 1990 correspondem a um movimento multifacetado da sociedade, com muitas contradições em todos os sentidos. Se, por um lado, houve o avanço das políticas neoliberais, é também o período da promulgação, na nova Constituição brasileira, da consolidação da institucionalidade democrática e da eleição de governos populares. A ideia de exclusão social faz parte deste contexto e refere distintas perspectivas dessa mesma realidade, entre as quais destacamos as seguintes: a) a exclusão social como referência ao consenso pedagógico; b) a exclusão social como campo de lutas múltiplas para a constituição de uma nova hegemonia; c) a exclusão social como expressão do intento desconstrucionista das teorias pós-modernas.

Um consenso pedagógico

Assim como o consenso de Washington teve a intenção de prescrever as estratégias e os limites para ações possíveis na esfera da economia, na educação foi se formando um consenso sobre os limites da ação pedagógica. Isso está expresso em primeiro lugar nas reformas educacionais com ingredientes muito semelhantes em todos os continentes, dando a entender que efetivamente estamos num mundo globalizado e que, se o papel dos sistemas educacionais originalmente estava associado com a identidade dos povos tendo por base a soberania dos Estados nacionais, nestes novos tempos há uma realidade global a ser atendida. Criam-se para isso padrões internacionais que passam a balizar a avaliação desde o rendimento dos primeiros anos escolares até a produção científica dos pesquisadores. Na análise de Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 330), este megassenso comum é resultado da "canibalização" da emancipação social pela regulação social, havendo se criado uma espécie de paralisia da subjetividade, tornada incapaz de conhecer e desejar para além da regulação.

Essas políticas uniformizadoras penetram o interior das práticas educativas, empurrando para segundo plano a teoria pedagógica, a qual muitas vezes se justifica apenas na medida em que serve para assegurar o cumprimento de metas de produtividade estabelecidas de fora (Magalhães & Stoer, 2002). A exclusão social é vista como uma deformidade a ser vencida por meio da capacitação do indivíduo. Uma vez desenvolvidas as devidas competências, todos estariam aptos para serem incluídos na sociedade. Possivelmente nenhuma competência tenha recebido tanta atenção como o aprender a aprender. Na realidade a aprendizagem permanente faz parte da necessidade de adaptação do ser humano para a preservação da própria vida. No limite, a capacidade de aprender e a possibilidade de viver são sinônimos (Streck, 2001). Talvez hoje essa competência humana tenha se tornado efetivamente mais urgente e, neste sentido, o seu desenvolvimento deve receber uma atenção especial na educação. A falácia está na disseminação da ideia de que o fato de desenvolver essa capacidade seja suficiente para a integração plena na sociedade.

Também a crença da salvação pelas novas tecnologias faz parte desse novo consenso. Trocar as notas do quadro-negro por lâminas de power point que o aluno copia em seu caderno ou salva numa pasta eletrônica ainda não significa inovação pedagógica e muito menos o desenvolvimento de condições para a inserção crítica na sociedade. O uso do computador e de outros meios disponibilizados pela tecnologia é nada mais que um direito de quem vive nestes tempos. A inclusão digital é muitas vezes tratada como um fator capaz de garantir a superação da exclusão social, sem fazer referência à situação de desigualdade que está na origem da própria necessidade da inclusão. A competência tecnológica, analisa Bonetti (2000, p. 21), tornou-se o padrão referencial para igualar as diferenças, mais uma vez eximindo o Estado de sua responsabilidade pelas desigualdades. Este quadro faz parte do fenômeno que Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 97) qualifica como "racionalidade metonímica", que reduz a experiência a uma mesma lógica e não permite a coexistência, em forma de ecologias, de distintos saberes, temporalidades, escalas, reconhecimentos e produtividades.

A noção de exclusão social serve, assim, ao propósito de reforçar o senso comum de que as alternativas de mudança não ultrapassam o nível do indivíduo ou, no máximo, do grupo mais imediato. São colocadas no mesmo patamar as políticas de inclusão de cegos ou surdos e políticas de inclusão de negros ou pobres. O que se perde com isso é a possibilidade de distinguir problemas que têm a ver com a estruturação classista da sociedade, em suas articulações com raça e gênero,9 de problemas que se situam num plano de habilidades e possibilidades do indivíduo ou de um grupo de indivíduos, no caso dos portadores de necessidades especiais. Não se trata também de hierarquizar os problemas, como se uns fossem menores que os outros, mas de distingui-los para que possam ser tratados de acordo com o contexto de práticas sociais e políticas em que se situam. O discurso da exclusão social tem o dom de mascarar essas diferenças.

A construção da hegemonia

Giovanni Semeraro propõe que dois grandes conceitos podem sintetizar a filosofia política que orientou a educação popular na segunda metade do século passado. Nos anos de 1960 e 1970, que corresponde primeiro a um despertar das massas e depois ao movimento de reação e resistência às ditaduras militares, o grande tema foi o da libertação, representado, sobretudo, pelo pensamento de Paulo Freire. O conceito de hegemonia, tendo Gramsci como referência, teria sido o paradigma dos anos 80 e 90. Independente de quem tenham sido as referências, até em virtude da proximidade do pensamento de Gramsci e Freire,10 sua análise mostra importantes deslocamentos ocorridos nesse período. Segundo ele, "o deslizamento de vocabulário" sinaliza essas mudanças de paradigma: de opressão para hegemonia, de libertação para direção, de identidade para projeto, dos movimentos para os partidos, do diálogo para o poder, da mística para a estratégia.

Nos anos de 1980, a disputa não era mais entre os movimentos populares e o Estado, mas entre projetos da sociedade civil burguesa e projetos emanados do movimento popular. Houve, neste sentido, importantes conquistas: a Constituição de 1988 incorporou aspectos reivindicados pelos movimentos sociais em muitas áreas; também o orçamento participativo de Porto Alegre nasceu como resultado da luta dos movimentos sociais por uma participação efetiva na gestão pública por meio de um governo popular. Em contrapartida, nas palavras de Semeraro (2006, p. 32), "a concentração das atenções nos partidos, a profissionalização da política e o dispêndio de energia acabaram esvaziando os espaços voltados para a educação popular e esvaziando muitos movimentos sociais".

Dentro dessa compreensão, a exclusão social e o seu correlato - a inclusão social - deixam de ser vistas como uma questão meramente individual, mas assumem um caráter coletivo como possibilidade de ocupar espaços na luta pela construção de uma nova hegemonia. Por exemplo, a política de cotas é vista como uma política inclusiva e pode ter várias leituras dentro do mesmo campo ideológico favorável à superação da desigualdade racial. Para uns, é mais uma vez uma concessão do Estado que contribui para esvaziar os movimentos que lutam por uma transformação das estruturas da sociedade. Para outros, é um passo nessa mesma luta que continuará sendo desdobrada em várias frentes.

A crítica da modernidade e as teorias pós-modernas

As teorias pós-modernas tiveram o inegável mérito de colocar sob suspeita as verdades da ciência e a própria ciência moderna. No campo social esse pensamento está presente em discursos de teor semelhante sobre o fim das utopias, o fim da história, o fim da sociedade, o fim do sujeito, entre outros. O que esses discursos têm em comum é a assunção de limites para o agir humano, confundido muitas vezes com acomodação ao status quo.

No pensamento de Paulo Freire essa mudança é sinalizada pela importância dada por ele à metáfora da trama. Na Pedagogia da esperança (1992), em meio aos embates ideológicos que anteriormente apontamos e num período em que muito se lamentava o refluxo do movimento popular, Paulo Freire escreve uma pedagogia que se coloca decididamente contra a desesperança derivada do sentimento de impotência diante dos acontecimentos.

É também nesse contexto que ele formula a sua versão sobre a relação entre a modernidade e a pós-modernidade. Para ele, os ideais que moveram a modernidade não podem ser descartados, ainda mais por quem nunca chegou a usufruir os seus benefícios. Ao mesmo tempo, a época exige outro tipo de postura e de leitura, que ele caracteriza como pós-moderna. Precisa-se ser, segundo Freire (1992, p. 81), "pós-modernamente progressista". Algo semelhante ao que o filósofo Enrique Dussel (1993) expressa com o seu conceito de transmodernidade,11 que não vê a modernidade como uma fase a ser seguida por outra, mas como um movimento que dialeticamente a supera, dela incorporando os elementos emancipadores, mas subsumidos numa ética da vida que respeita a alteridade.

A noção de exclusão social, portanto, tem o seu lugar neste contexto da trama que incorpora a complexidade inerente à leitura dos novos tempos, quando vozes diferentes se fazem ouvir no cenário cultural, social e político com suas narrativas próprias. São vozes que cada vez mais querem contar a sua estória, com suas palavras, e construir os seus significados.12 Trata-se, na expressão de Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004, p. 108), de uma verdadeira "rebelião das diferenças", quando estas se posicionam contra ditames epistemológicos, sociológicos e políticos que procuram incluí-las em narrativas prontas.



O alcance da noção de exclusão social no campo da educação

O pressuposto nesta discussão é de que conceitos são instrumentos para a leitura de nosso mundo. Se, por um lado, sua criação e uso têm um inescapável grau de arbitrariedade, também é necessária uma legitimação social e pública para a sua eficácia na comunicação. O uso do binômio exclusão social/inclusão social encontra sua pertinência no contexto da denúncia e do pragmatismo, onde paradoxalmente também se revelam os seus limites.

O seu potencial como fator de denúncia fica evidente na grande marcha que a cada ano é realizada sob os auspícios de setores progressistas da Igreja Católica com o nome de Grito dos Excluídos e também na mistura de pessoas e de grupos que compõem o Fórum Social Mundial (Streck, 2004). Há uma correspondência entre exclusão social e os assim chamados novos movimentos sociais, que têm no reconhecimento identitário uma importante bandeira de luta.13 Podem ser as mulheres, os jovens, os negros, os índios, os sem-terra ou os sem-teto, cada um deles por sua vez eventualmente subdividido em novos grupos. Na ecologia, pode haver grupos que lutam pela sobrevivência de uma espécie vegetal ou animal, grupos que lutam pela preservação da Amazônia, contra a ocupação predatória do solo etc. Todos eles encontram sob o manto da exclusão social algum tipo de abrigo.

Talvez se pudesse dizer que o deslizamento linguístico da opressão/libertação para exclusão/inclusão social implica um deslocamento do político para o ético. Libertação era um conceito de mobilização política da classe oprimida em busca da construção de outra sociedade. Na medida em que os contornos do horizonte dessa libertação se tornaram mais difusos, o conceito perde muito de sua força. Isso se deve tanto a fatores internos, com a assunção do poder por forças progressistas que frustram expectativas, como a fatores externos simbolizados na queda do muro de Berlim e à consequente sensação da impossibilidade de construção de alternativas que tenham condições de se sustentar no cenário global.

Grosso modo, a exclusão social pode ser definida como a limitação de acesso às condições de vida consideradas dignas dentro de critérios éticos com reclamos de universalidade. São cada vez mais as próprias diferenças que dizem o que é digno a partir de suas particularidades.14 Isso pode levar, como já foi alertado por Pierucci (1999), a um relativismo que em última instância reforça desigualdades existentes ou cria novas.15 Por isso a necessidade de princípios que digam respeito a toda a sociedade e a todas elas.

Em Freire o reconhecimento da diferença como riqueza da humanidade é combinado com o que ele chama de ética universal do ser humano. A identificação do que seja a dignidade tem a ver com o contexto específico, mas também com uma compreensão de pertencimento a uma mesma espécie planetária. As condições de diferenciação entre os ricos pelo rótulo do vinho e outras sofisticações têm a ver com a indignidade da fome em países do Terceiro Mundo. A partir daí também se dá o inescapável encontro do ético com o político. É, no entanto, uma sinalização de que a conquista de espaços e de poder, em si, não é condição suficiente para a transformação da sociedade.

O binômio exclusão social/inclusão social tem também um inegável valor pragmático. Já apontamos seu uso no debate de políticas públicas em várias áreas das práticas sociais. Se isso traz ambiguidades, também possibilita acordos entre os campos políticos para promover "inclusões" que, embora subalternas do ponto de vista da estrutura social existente, representam avanços para quem delas se beneficia.16

O uso pragmático também se verifica no mundo acadêmico e ali cumpre um papel semelhante ao que desempenha no campo das políticas. Este pragmatismo se manifesta de duas formas: pela possibilidade de descrever indicadores e aproximar a reflexão teórica da busca de dados empíricos e pelo desdobramento em diferentes "nomes" a partir de distintas leituras da realidade.

No primeiro aspecto, destaca-se o amplo trabalho que Márcio Pochmann (2004) e sua equipe de pesquisa vêm divulgando periodicamente no Atlas da exclusão social. Para a investigação que possibilita este mapeamento são indispensáveis indicadores que permitam organizar dados estatísticos já existentes ou levantar outros pertinentes. A exclusão social pode ser medida a partir dos seguintes índices desenvolvidos pela equipe: a) para a dimensão vida digna: pobreza dos chefes de família, taxa de emprego formal sobre a População Economicamente Ativa (PEA), desigualdade de renda; b) para a dimensão conhecimento: taxa de alfabetização, número médio de anos de estudo do chefe de família; c) para a dimensão vulnerabilidade: porcentagem de jovens na população e violência. Estes indicadores são passíveis de discussão e outros pesquisadores podem desenvolver outros atlas com base em outras definições. Não deixa de ser relevante, no entanto, que o conceito facilita ou até exige esta proximidade com a concretude das condições de vida.

Fernando Gil (2002), por sua vez, distingue entre um enfoque simples e um enfoque complexo da exclusão social. No primeiro caso, trata-se de uma visão maniqueísta segundo a qual todos sabemos quem são os excluídos e o que cabe fazer, desde a solidariedade por parte dos cidadãos à vontade política. Numa visão complexa reconhece-se a multiformidade da exclusão social considerando seus graus e níveis, os processos causadores de exclusão, a relação entre os diversos tipos de exclusão, a relação entre os efeitos excludentes e includentes dos fenômenos sociais, e a consciência e o conhecimento do caráter paradoxal destes fenômenos.

Quanto ao segundo aspecto apontado, basta ver os muitos significados atribuídos à exclusão social, numa indicação de que o estado a que este conceito se refere é passível de leituras diferentes e mesmo divergentes. Ao longo da história esse mesmo estado teve o sentido de ostracismo entre os atenienses, de proscrição em Roma, do pária na civilização hindu ou do gueto da Idade Média (Xiberras, 1993). Nas teorias sociológicas clássicas podia significar a dominação de classe (Marx), a ruptura da coesão social (Durkheim, Simmel, Weber) ou o desvio da norma (Escola de Chigago).17

As análises atuais traduzem a exclusão social como desfiliação, descarte, invisibilização, desqualificação, o mundo dos sobrantes, quarto mundo, desintegração, entre outros tantos sentidos. Este fato não pode ser atribuído simplesmente à falta de rigorosidade conceitual dos cientistas sociais, que fazem suas opções entre os termos existentes ou criam outros a partir de novas combinações. Parece que a elasticidade do conceito exclusão social favorece o encontro de perspectivas e as coloca diante do desafio de explicitação, questionando a rotulação fácil a partir de uma ou outra teoria.

Os mesmos motivos anteriormente apontados, que justificam o uso do conceito de exclusão social, também já indicam os seus limites. A amplitude e a pragmaticidade estão ligadas basicamente ao fato de lidarem com os sintomas da realidade social sem os referir às estruturas da sociedade, responsáveis por sua produção e reprodução. Este ocultamento dificulta posicionar as ações dentro de um quadro de referência que indique um horizonte de transformação social para além das inclusões de caráter geralmente compensatório e subordinado.

Talvez o jeito de Paulo Freire lidar com o problema conceitual em sua historicidade possa servir de exemplo ou inspiração. Houve, em sua obra, importantes deslocamentos conceituais vinculados com as mudanças da sociedade e as respectivas leituras. Em Educação como prática da liberdade a ideia de trânsito - do homem-objeto ao homem-sujeito, da sociedade fechada à sociedade aberta, da consciência ingênua à consciência crítica - expressa a expectativa de uma mudança em vias de realização por meio dos projetos que, naquela época de grande mobilização popular, estavam sendo desenvolvidos. Na Pedagogia do oprimido torna-se central a noção de conflito entre oprimidos e opressores, numa ruptura com a linearidade sugerida pelo conceito de trânsito. Em Pedagogia da esperança, a metáfora da trama indica novos tempos, novas leituras e novas pedagogias. A continuidade não está dada pelo apego a uma ou outra teoria, mas deve-se à escuta das práticas educativas que, em seu tempo, desafiam a busca de novos referenciais. Continua o desafio do trânsito da consciência, do ser humano e da sociedade em direção ao "ser mais". A luta pela libertação dos oprimidos não perdeu a sua vigência. Mas ambos os processos são ressignificados em outro contexto sociopolítico.

O argumento de Boaventura de Sousa Santos (1996) de que estamos num período de mudanças paradimáticas encontra eco na busca por uma linguagem que traduza a realidade. Os usos do binômio exclusão social/inclusão social na área da educação parecem ser uma expressão de incertezas epistemológicas que, conforme este autor, acompanham estes períodos de transição. Se, por um lado, a multiplicidade de vozes torna difícil reconhecer caminhos e direções, por outro, ela também desafia à criatividade e ao diálogo.



Notas

1. A expressão pedagogia do oprimido será usada em duas acepções. Uma, no sentido lato, quando a grafia não terá nenhuma identificação especial, e no sentido estrito do título de uma obra de Paulo Freire.

2. A primeira edição em português e em inglês data de 1970. Sabe-se, no entanto, que já antes o livro circulava, naqueles tempos de ditadura militar em grande parte dos países latino-americanos, de forma clandestina. Conforme seu depoimento (Freire, 1992, p. 53), ele escreveu o livro entre 1967 e 1968. Antes disso, no entanto, levou um ano ou mais "falando" o livro.

3. Importantes contribuições para uma visão sistematizada do tema da exclusão podem ser encontradas em Xiberras (1993), Demo (1998) e Oliveira (2004b).

4. Segundo Castel (2004, p. 77), "a atual inflação da sensibilidade dos riscos faz da busca da seguridade uma busca infinita e sempre frustrada". Haveria de se distinguir riscos que decorrem de contingências da vida, que são socializáveis e contra os quais é possível proteger-se, daqueles riscos que devem ser assumidos como limites, ainda que provisórios.

5. O dossiê Globalização e educação apresenta uma coletânea de excertos de artigos e livros nos quais Paulo Freire se refere ao neoliberalismo e à globalização sob o título "Referenciais freirianos: globalização e neoliberalismo na obra de Paulo Freire" (Carmo et al., 2006, p. 22-46).

6. O conceito consenso de Washington é atribuído ao economista inglês John Williamson, do Institute for International Economics, de Washington, DC, que o utilizou num artigo, em 1989, para resumir alguns pontos que pareciam consensuais para promover o desenvolvimento da América Latina. Dentre estes se destacam a disciplina da política fiscal, o redirecionamento dos gastos públicos para serviços básicos, como educação básica, saúde básica e investimentos em infraestrutura, a ampliação da base de taxação e a adoção de taxas moderadas, taxas de intercâmbio comercial competitivas, liberalização do comércio, privatização de propriedade estatal, liberalização do comércio de restrições para importação e segurança legal para direitos de propriedade.

7. Sobre a constituição da exclusão social como um novo paradigma a partir do qual a sociedade atual toma consciência de si e de suas disfunções, veja Paugam (1996).

8. "A dialética da representação do colonizado faz deste (...) um ser simultaneamente atractivo e repulsivo, um ser dócil e ameaçador, leal e traiçoeiro, um ser utópico e diabólico. Daí que os estereótipos não sejam unívocos nem consistentes. Consoante as necessidades de representação do colonizador, predominam estereótipos negativos ou, pelo contrário, estereótipos positivos, ainda que uns e outros se pertençam mutuamente" (Santos, 2006, p. 255).

9. Para uma análise das relações entre as desigualdades de classe, gênero e etnia, veja Enguita (1996).

10. Conforme a citação em epígrafe, parece pertinente afirmar que Freire se reinventa, o que significa dizer que em contextos históricos e sociais distintos haverá outras fontes inspiradoras para Freire, incluindo Gramsci (Streck, 2001).

11. "Trata-se de uma 'Transmodernidade' como projeto mundial de libertação em que a Alteridade, que era coessencial da Modernidade, se realize igualmente. A 'realização' da Modernidade não se faz numa passagem da potência da modernidade para a atualidade da referida modernidade européia. A 'realização' seria agora a passagem transcendente, em que a Modernidade e sua Alteridade negada (as vítimas) se realizarão por mútua fecundidade criadora" (Dussel, 1993, p. 187).

12. Essa busca de sua voz também se refere cada vez mais aos pobres, conforme as palavras de Cyntia Sarti (1996, p. 20), quando critica a redução da pobreza a um paradigma produtivista: "Os pobres foram pensados, nessa perspectiva 'produtivista', a partir de uma visão na qual, no entanto, eles próprios não se reconhecem, o que foi considerado marca de sua 'alienação' ou 'falsa consciência'. Em outras palavras, os pobres foram pensados como se sua identidade social fosse ou devesse ser construída exclusivamente a partir de sua determinação de classe (...). A determinação de classe dos pobres que vivem na cidade, embora defina sua posição estrutural na sociedade onde se inserem como pobres, não constitui a única referência a partir da qual operam e constroem sua explicação do mundo e do lugar que nele ocupam".

13. "Mais do que nunca, não nos é possível construir escalas de estratificação confiáveis a partir da ideia de classes antagônicas. As relações de dominação nem por isso desapareceram, pelo contrário; mas já não permitem que as desigualdades reais sejam descritas objetivamente. A dominação já não se insere nas relações de classes concretas e estáveis. Os problemas da estratificação e da mobilidade se destacam dos conflitos estruturais e a análise das desigualdades não conduz a uma visão organizada e estruturada das relações sociais" (Dubet, 2001, p. 10).

14. "Dizíamos que o respeito à diferença era uma ideia muito cara à educação popular. Hoje percebemos com mais clareza que a diferença não deve apenas ser respeitada. Ela é a riqueza da humanidade, base de uma filosofia do diálogo" (Freire, em Gadotti et al., 2000, p. 7).

15. "Ora muito bem, estas novas divisas de esquerda que giram em torno do 'direito à diferença' trazem consigo um ardil, instalado justamente nesta sua ambiguidade, uma debilidade hereditária: o fato de ter sido o amor à diferença alimentado no campo (ultra)conservador duzentos anos a fio, e só mui recentemente ter sido incorporado nalgumas faixas ou zonas do campo de esquerda. Este fato torna o atual clamor pelo 'direito à diferença' dificilmente distinguível da defesa das diferenças própria do estoque de certezas do senso comum conservador e do pensamento de direita" (Pierucci, 1999, p. 31).

16. Veja-se a conclusão do estudo de Maria Ozanira da Silva e Silva (2007) sobre as políticas sociais de transferência de renda atualmente em curso no Brasil: "Considerando a problematização e os resultados das pesquisas referenciadas, reafirmo que os Programas de Transferência de Renda, quando não articulados a uma política macroeconômica de crescimento sustentável e de redistribuição de renda, podem significar melhorias imediatas das condições de vida, de famílias que vivem em extrema pobreza, o que já é importante, mas não superam a pobreza, ultrapassando, somente em caráter marginal, a denominada linha de pobreza".

17. Para uma análise das teorias clássicas e das teorias do desvio, veja Xiberras (1993).

* O projeto do qual este trabalho é parte conta com o apoio do CNPq e com a colaboração dos seguintes bolsistas de Iniciação Científica: Daiane Azevedo (CNPq), Josiete Schneider (CNPq), Diulli Adriane Lopes Trindade (FAPERGS) e Vítor Schütz (UNISINOS).

Amar y pensar: el odio de querer vivir


Carmen Lúcia Fornari Diez

Professora Doutora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná

PETIT, Santiago López. Amar y pensar: el odio de querer vivir. Barcelona: Bellaterra, 2005.

Santiago López Petit é doutor em Filosofia e professor de Filosofia Contemporânea na Universidade de Barcelona, no Departamento de Historia de la Filosofía, Estética y Filosofía de la Cultura. Desde 1980 vem atuando como conferencista em eventos de Filosofia na Espanha, França, Alemanha e Itália. Entre suas diversas publicações (artigos em revistas científicas, traduções e prefácios de livros), as mais difundidas são: Entre el Ser y el Poder: una apuesta por el querer vivir, Editorial Siglo XXI, 1994; Horror Vacui: la travesía de la Noche del Siglo. Editorial Siglo XXI, 1996; El Estado-guerra. Hondarribia, 2003 (também publicado na Itália em 2005); El infinito y la nada: el querer vivir como desafío. Ediciones Bellaterra, 2003.

Grande parte de sua trajetória intelectual foi realizada enfocando a autonomia operária. Entretanto, ao observar as transformações que ocorreram na sociedade - que designa "passagem da sociedade de fábrica à Metrópole" -, assumiu a tarefa exigida ao pensamento crítico conseqüente (ou, como dizia Gramsci, contemporâneo de sua época), que é ter coragem de olhar e analisar os processos que modificam a realidade e, na medida da reconfiguração desta, também reinventar o pensar. Dessa forma, persistindo em uma perspectiva de liberação, deslocou o foco de suas reflexões do plano do capital à política da relação, e da composição de classe aos espaços do anonimato. (PETIT, 2000, s.p.)

"Amar e pensar: o ódio de querer viver" tem por norte banir o medo de querer viver transformando-o - na vivência com o outro -, em provocação política. Sua realização centrou-se na filosofia, em estreita ligação com a política, pois a reflexão não foi suscitada por questão intelectual mas partiu da própria existência, conforme depõe o autor: "Pensar o querer viver foi a maneira de continuar vivo. Se pensei o querer viver o mais longe que pude foi, pois, por necessidade, empurrado pela própriavida" (PETIT, 2005,p.11). Assim, mesmo abandonando suas reflexões anteriores acerca da autonomia operária, nesse outro prisma a partir do qual vê o mundo, a questão política permaneceu primaz, sob o fio condutor da frase: "A vida se vinga com a vida a ser vivida", pois o aprofundamento inconteste do estudo crítico do querer viver o torna ainda mais político. E isto se dá como desnudamento da intelectualidade para um expor-se, para dizer com simplicidade que a atitude de amar, pensar e resistir significa ter uma vida política, vida política que prescinde do sistema partidário mas está entranhada na intimidade de cada um. Enfim, quando se sente que a vida estremece, emergem questões sobre seu sentido (inclusive do porquê pautá-la no trabalho), indicando que a politização não se relaciona à consciência do espaço no qual se é fixado no processo produtivo-ou de exploração - mas pela contundência de que a vida foi abalada. Assim, "Amar e Pensar" é proposta para brandir a quietude e ser a via para fazer explodir o que há de indomável em cada um, com a certeza de que o ódio à vida é a faísca para incendiar a própria vida.

Prenhe de sentido político, essa obra também permite refletir sobre as questões da educação, especialmente aos que, cansados de perspectivas maniqueístas, persistem em indignar-se e arriscam-se a acolher o novo.

O livro está organizado em sete partes, não numeradas, mas que apresentam um continuum crescente das questões fundamentais postas, desde uma primeira aproximação entre amar e pensar, do querer viver tornado desafio passando pelo ódio livre e aportando na exacerbação da vida. Retoma, aprofundando, o amar, o pensar e em seguida as relações entre esses dois termos, para chegar à proposta final de uma vida política.

Inicialmente, o autor mostra como a aproximação entre amar e pensar sempre foi rechaçada pelos pensadores, pois a estes parece ser embaraçoso encarar o amor. Todavia, acredita que para unir amar e pensar coloca-se a exigência de desprender-se do orgulho e não temer o ridículo, asseverando que não existem poder, liberdade, vida, amor ou pensamento, mas relações de poder, processos de liberação, querer viver, vivências amorosas e de pensar.

O querer viver emerge como último recurso depois que a vida foi transformada em uma mobilização total cujo resultado é a realidade óbvia, na qual são reproduzidas as prisões do possível, promessas de futuro e esperança de felicidade. Apesar da certeza de que a vida não existe, ela se tornou temática abordada intensamente, como jamais havia sido. Ora, crer na vida é situação ideal para que o poder se realize em domínio. O medo se acomoda nessa fé, que gera a esperança vã de um porto seguro.

O desafio que se põe é, portanto, realizar a transposição da vida - destruindo-a - ao querer viver, que é inseparável na relação com o outro, é deliberação e desafio, o que exige buscar três vivências diversas: a adoção do não-porvir como sustentação; a modelagem de um "nós"; a invenção de um mundo. Nesse caso, a ambivalência se potencializa de forma ímpar prestando-se ao querer viver. Potência exclusiva implicando o sentido de que a niilização do ser é seguida pela difusão do querer viver. O querer viver arrebata de si mesmo o querer viver, fazendo com que a vida se politize. O querer viver como desafio é um gesto político extremo, múltiplo e, além disso, sempre precisa ser inventado, tarefa posta a um pensamento crítico conseqüente.

A vida é expiação, mas expiação na qual não há culpados ou redenção. Tal padecimento gera o ódio à vida, porque ela é um doloroso e inevitável fardo.

Odiar a vida, sim, mas não com o ódio débil carregado de medo, como o do cínico que tenta servir-se da vida mediando relações; não com o ódio do utópico que se alimenta do ar vão da esperança; não com o ódio jovial cuja inocência impulsiona-lhe a proteger-se dentro da vida. Essas formas de ódio carecem de força para enfrentar a expiação. Há que encontrar um outro ódio. Odeia-se a vida, mas ódio é a própria vida. Assim, a vida é objetivada, tornada real, de forma que a objetivação se efetua com culpabilização. O ódio à vida a culpabiliza provocando o medo à vida. Medo que provoca mais ódio, constituindo o círculo ódio-medo-ódio..., em uma circularidade sem saída, porque esse ódio também é insuficiente.

Somente um ódio suficiente é capaz de vencer o medo para impulsionar o querer viver. à mobilização total da vida pelo óbvio, que é engrenagem dessa sociedade, se lhe deve opor o ódio. Para buscar um outro ódio, um ódio que se apieda, Santiago se reporta à literatura da Antiguidade - analisando o ódio nos episódios de Caim e Abel, Prometeu, Aquiles - e à concepção de Empédocles, resgatando a existência de um outro ódio mais primevo, ódio diferente do ódio mútuo, capaz de se despregar dos maniqueísmos para gerar-se como algo novo, inquietante em sua dificuldade de pensar e viver, mas necessário para enfrentar a vida e fugir do poder. A esse outro ódio denomina "ódio livre".

Não há como ter certeza de que caminho é o caminho, para onde se dirige e onde acabará. Os únicos espaçamentos do querer viver são a solidão e a comunidade. O ódio livre gera tudo o que nasce e perece. Apenas ele é capaz de livrar do ódio que divide. E é dentro da solidão que se aprende a solidão.

A comunidade não se manifesta a partir de uma opacidade indistinta. Inversamente, nasce do abalo coletivo que gera o querer viver. Surge como um desafio, como um gesto político radical sem contrapartida possível. Há uma impossibilidade fundamental na comunidade que a impede de vir a ser: a idéia caricata de que um "nós" - em comunhão - é a condição de sua existência. O «nós» apenas será viável enquanto um estar-junto. Assim, para que uma comunidade sobreviva, é mister que se administre sua impossibilidade radical de ser. A ambivalência desafia o poder em uma comunidade e, quando aplicada por e a favor do "nós", suscita o querer viver que radicaliza seu ódio livre, ou seja, leva à reapropriação coletiva do ódio. A provocação que se põe ao "nós" é para que ouse realizar a experiência do "nós".

Há que irritar a vida. O auge disto é o ódio livre que se apinhava na solidão. Não é possível conhecer-se quando se mantêm os auto-enganos e a pureza mansa. O embate do ódio livre contra a vida se estende na luta da vida com a vida e não com a morte. A exacerbação da vida é um combate que gera disjunção e irreversibilidade. Quando os contendores são disjuntados, significa que houve uma separação diferencial entre eles. Ou seja, foi produzida distância e ruptura do "nós". A fabricação de irreversibilidade é conseqüência da exclusão de possíveis. Jogar estriba-se na anulação de possíveis, em progressiva redução de seu número. No caso da exacerbação da vida, o que está em jogo é viver, que se possa seguir vivo. Exacerbar a vida é opor à sua irreversibilidade mais irreversibilidade, e à sua disjunção mais disjunção, desde o prisma do querer viver, uma vez que ninguém tem conhecimento do que deseja e ninguém se conhece a si próprio. Viver é sobreviver, é exacerbar a vida. A exacerbação da vida como prolongação do ódio livre muda a disposição interna do próprio querer viver. Desdobra-o em um "eu" ou "consciência de si" e em um ponto central de dor. A exacerbação será radicalizada na proporção da disjunção de ambas as instâncias.

A inocência do querer viver é extinta pela exacerbação. Querer viver desdobrado em "eu" e "centro de dor" significa abandonar a ingenuidade e saber que a vida lacera e impede de viver. Viver é gerir a crueldade. Essa consciência, esse saber que é impossível viver a vida, impulsiona a exacerbá-la, opondo-a à própria vida, para libertar a vida de suas entranhas, entendendo-a como guerra sem trégua, sem paz possível. O jogo da vida constitui seus jogadores e no desenrolar da partida acontecimentos são gerados: vitórias e derrotas. Na exacerbação da vida, os acontecimentos que se produzem são amar e pensar. Transtornar a disposição do querer viver, agravá-lo, intensificá-lo, são as condições tanto para amar como para pensar.

Santiago afirma que para pensar o amor, os conceitos postos historicamente pela filosofia não oferecem grande auxílio. Tanto a perspectiva ontológica - em Platão -, como a psicologizante - em Descartes, Locke... -, apenas debilitam o vigor do amor.

Outro conceito: da felicidade que rompe a ideologia viscosa da felicidade, aquele que, edificando o amor, movimenta-se em torno de um núcleo de dor. Conseqüentemente, o amor não traz a felicidade mas enche de vida a quem ama e alivia o cansaço de ser.Apenas expurgando os medos que torturam, exterminando as esperanças que iludem, arriscando-se, categoricamente, a despedaçar o «eu», é possível dizer que amar é a troca de nada. Quando se ama assim, quando se ama sem esperar nada, o amor se faz translúcido e se mostra como é.

Há que exacerbar a vida para amar. Amar é causar dano imenso ao outro, perversidade que não é encoberta, é crueldade consentida. O querer viver que atravessou a exacerbação da vida sabe que amar é uma força destrutiva dirigida ao outro ao qual se abraça. O que liga os amantes é o núcleo doloroso comum, força destrutiva que se converte em leito comum. Amar agride ao ser que se encerra no que é. Movimento iniciado na vivência da solidão ao partilhamento do querer viver, de modo que tanto o querer viver de um, como o do outro, deleitam-se indefinidamente. Um olhar para a interioridade desde o "eu" e expansão desde o centro comum de dor, sustentados por uma mesma força. O querer viver é inquieto e se questiona. O querer viver que ama é, em si, uma pergunta.

O autor retoma os prismas filosóficos acerca do pensar, analisando, entre outros: Aristóteles,Agostinho, Platão, Hegel, Kant, Nietzsche e Luhmann, mostrando a relação que se estabeleceu entre pensamento e ordem, e como a derrubada da aporia da ordem cedeu lugar à tautologia do pensamento da ordem, desde o Mesmo. Diante da palavra tautológica, coloca o querer viver que traspassa essa gramática deixando um rastro de paradoxos inertes. No momento em que o pensamento usual se esgota, brota um outro pensar. Da e na exacerbação da vida - enquanto prolongação do ódio livre e luta renhida contra a vida. Um pensar que se abre ao impensado, para pressentir a ambivalência, em oposição ao pensamento usual que traveste a ambivalência em dicotomia infinito-nada, iguala o infinito e o nada, nivela-os ou constrói pontes para uni-los. Todavia, pressentir a ambivalência é estar atravessado pela força da assimetria. O impensado pressentido pelo corpo, força da assimetria sobre o corpo, força da dor rumo à vida.

Mergulhar na dor a partir da vida inicializa uma posição. O sofrimento, radicalizado, descortina um horizonte zero, já que apaga o horizonte de qualquer medo. Quando o corpo se confunde com a dor já não se atemoriza com nada. Assim, é possível entender que pensar é ocupar uma posição que significa uma vitória sobre a ordem, vitória em relação à posição que a ordem constituía e protegia. Portanto, pensar implica ocupar a posição da desocupação da ordem, e opondo-se ao pensar no diálogo para ser pensar contra o pensar e daí extrair sua dimensão essencialmente política.

Amar e pensar não se constituem em gestos políticos, mas antipolíticos, o que é diferente de pré-político, pois este se isola na esfera privada. Um gesto antipolítico, ao contrário, cria uma nova e inusitada relação do corpo com o poder. Não obstante, dessa radicalidade política não se desprende qualquer política.

Toda política é sempre uma política da relação. Amar e pensar não são uma relação, mas um encontro. Por isso é impossível a existência de uma política do amor ou do pensar. Contudo, amar e pensar são gestos anti-sociais e subversivos, que contêm a mesma força rebelde do querer viver exacerbado. Como força destrutiva posta entre os dois. Como força assimétrica da dor em direção à vida. Mas quando o amor se expõe ao perigo de se fechar na vida privada, o pensar corre o risco de se tornar sentido comum.

Não há como sair ileso das experiências de amar e pensar, ambas são aventuras sem consolo. Nem o amor nem o pensamento constituem alternativas de regeneração do mundo.Alguma esperança que possa existir reside paradoxalmente em sua radical impossibilidade. Amar e pensar são necessariamente uma transgressão.

Na sociedade globalizada, há um espaço fronteiriço que resta aos que não participam do teatro da sociedade de rede - nem como empreendedores nem como precarizados, mas como sombras. Na terra de ninguém, o espaço fronteiriço esvaziado se faz linha do niilismo.

Para arrancar o querer viver da vida, o querer viver precisa abrir-se ao niilismo, internalizando-o para constituir uma prega na linha niilista, prega que compreende a autodestruição do próprio querer viver, significando amar e pensar. Assim, amar e pensar se constituem em uma prega da linha do niilismo, um expor-se e habitar o niilismo, sem enraizar-se nele, pois a prega deve sempre ser refeita. O querer viver se torna receptivo ao niilismo, também quando impele a linha niilista para além de si, realizando um gesto político radical. O gesto político radical consiste, assim, em um desafio feito pelo querer viver, ou seja, na radicalização de um gesto niilista.

Uma via política surge apenas quando o irritar a vida transforma o querer viver em um desafio tão extremo que exacerba a vida. Aí, da terra de ninguém aberta pelo ódio, irrompem gritos de luta. Uma vida política é transparente em oposição à obscura vida privada, e é edificada de simplicidade: amar, pensar e lutar.

Uma vida política pode ser solitária, estritamente pessoal e, não obstante, não ser uma vida privada. Uma vida política tem amigos, não os que segredam intimidades, mas os que compartem o mesmo fundo mútuo de arrojar-se à exacerbação e ao desafio.

A exacerbação prolongada no amar e pensar exige uma vida-sem-forma, aberta ao outro e ao impensado, disposta a ser continuamente atravessada. A vida-sem-forma é a verdade do que ama ou pensa. A distinção entre exacerbação e desafio abandona o conceito de imanência, sem cair na transcendência. Ambos articulam e canalizam o niilismo, por isso nomeiam as leis de produção da vida política.

Existe um duplo trançado entre a exacerbação (amar e pensar) e o desafio (destruição e construção), não dirigido a formar-se a si mesmo, mas à própria dissolução. Não basta que o ódio livre à vida respalde os dois pólos. Para além disso: eles devem construir pontes que funcionem como transformações; ou seja, optar por uma vida política, uma vida rasgada, sem lugar para a estetização da existência, uma vida cheia de raiva que inverte a idéia de que "não há mais nada a fazer" para assumir que "tudo está por fazer".

A leitura desse livro de Petit provoca grande desconforto uma vez que, ao expurgar quaisquer ilusões teleológicas, retira dos horizontes as certezas de onde aportar. Porém, em seu denso conteúdo e na lucidez de suas análises, longe de inspirar imobilismos ou retraimentos, "Amar e Pensar" incita a uma vida política, afetiva e reflexiva, cujo árduo e inseguro caminho leva à terra de ninguém, a um partilhar do afrontar os medos, do aprendizado de odiar livremente, de encarar a fatalidade da vida, enfim, de agudizar a experiência danosa de viver.

REFERÊNCIAS

PETIT, Santiago López. Crítica de las subjetividades latentes. Conferência proferida no Encontro "Da Autonomia Operária ao Antagonismo Difuso". Barcelona, 2000. Disponível em: . Acesso em: 20/12/2005.
______. Amar y pensar: el odio de querer vivir. Barcelona: Bellaterra, 2005.


Educar em Revista - UFPR

A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI


Tatiane Oliveira Zanfelici

Universidade Federal de São Carlos. Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos, SP


JANUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados, 2004.

No ano de 2004, a Editora Autores Associados lançou uma obra muito esperada no âmbito dos estudos em educação especial. Até os momentos atuais, a mesma obra é presença constante nas referências bibliográficas de aulas, projetos de pesquisa, teses e dissertações da área, bem como leitura recomendada em inúmeros processos seletivos de linhas de pós-graduação dedicadas ao estudo de métodos e processos educacionais relacionados às pessoas com necessidades especiais. Trata-se do livro A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI, de autoria de Gilberta de Martino Januzzi, professora livre docente pela Universidade Estadual de Campinas, autora de diversas publicações na área de educação, orientadora de trabalhos, pesquisadora e autoridade no que concerne aos estudos sociais e históricos em educação brasileira.

Fruto de outra obra lançada em 1986 e revisada em 2004 (A luta pela educação do deficiente mental no Brasil), o livro aqui resenhado foi baseado principalmente em documentos governamentais, tais como leis, decretos, portarias, relatórios e publicações, além de sólida revisão de literaturas e pesquisas de pós-graduação publicadas a partir de 1970. Contém prefácio elaborado pelo professor Pedro Goergen (Universidade Estadual de Campinas) e se divide em três capítulos: Primeiras iniciativas de encaminhamento da questão, Cresce o engajamento da sociedade civil e política nesta educação e Caminhos trilhados em busca da equidade. Permeada pelos diversos conceitos de normalidade e sempre consciente do momento histórico do país, a obra visa retratar o desenvolvimento da educação especial no Brasil desde os tempos coloniais - quando, num contexto social isento de instrução, os deficientes e suas necessidades passavam despercebidos pela sociedade - até o momento em que foi publicada.

O primeiro capítulo (Primeiras iniciativas de encaminhamento da questão) trata da educação do deficiente desde o século XVI, durante a colonização do país, até o início do século XX, no Brasil já industrializado. Há quase 400 anos, quando a sociedade era predominantemente agrícola e rudimentar, numa época quando apenas 2% da população eram escolarizados, e mesmo o ensino regular era tímido, a educação do deficiente praticamente nem existia, sendo pouco a pouco desenvolvida com o apoio de pessoas interessadas, mas respaldadas por um governo de segundas intenções. A educação do deficiente se concentrava basicamente no ensino de trabalhos manuais aos mesmos, na tentativa de garantir-lhes meios de subsistência e assim isentar o Estado de uma futura dependência desses cidadãos. A abordagem que fundamentava o conceito de deficiência naquele momento era o modelo médico, que perdurou até meados de 1930, quando foi gradualmente substituído pela pedagogia e psicologia, especialmente pela ação dos educadores Norberto Souza Pinto e Helena Antipoff. Durante o predomínio das ciências médicas, o momento histórico destaca a presença dos asilos, das classes anexas aos hospitais psiquiátricos (ilustrando as primeiras preocupações com a pedagogia para o ensino especial) e mais adiante, das classes anexas às escolas regulares.

Em 1890, após a realização de uma reforma nos métodos educacionais do Instituto Benjamim Constant (anteriormente denominado Imperial Instituto dos Meninos Cegos), o eixo científico começa a ser um pouco valorizado no ensino do deficiente. A referência para a normalidade passa a ser o posicionamento no rendimento escolar, e não havia qualquer orientação que balizasse o tratamento dos ditos "anormais". Assim, embora a ênfase fosse a educação em coletividade, os alunos com desenvolvimento atípico eram segregados em diferentes salas de aula para que não ocorressem interferências no ritmo de aprendizado dos demais alunos. Durante esse período histórico, educava-se em nome da "ordem e progresso", na tentativa de evitar que deficientes não educados se tornassem criminosos ou perturbadores da ordem social.

No segundo capítulo (Cresce o engajamento da sociedade civil e política nesta educação), a autora se concentra na educação do deficiente a partir do início do século XX, quando a sociedade civil começava a engajar-se nas causas a favor do deficiente, criando centros de reabilitação e clínicas psicopedagógicas, porém ainda mantendo as classes anexas aos hospitais. Esse capítulo situa a educação no tempo e na história até a década de 1970. Destacou-se nos anos sessentas a criação da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), prevendo que os alunos com deficiências estivessem inseridos "quando possível" na educação regular e indicando serviços especiais caso não existissem possibilidades de inserção desse alunado nas salas regulares. O conceito de anormalidade modificou-se novamente, passando a ser disseminado de acordo com o que era adequado às expectativas escolares ou sociais do momento histórico. Aqueles que não alcançavam os resultados esperados não se ajustavam à norma corrente e eram excluídos. Mesmo com a legalização da integração do indivíduo com necessidades especiais no ensino regular, já predominava a atuação do setor privado nos serviços educacionais de atendimento ao deficiente (inclusive filantrópicos), reforçando a idéia de educação para camadas mais favorecidas.

Com o advento dos anos setenta, aumentou também a valorização da produtividade do deficiente, porém seguindo o princípio de que "cada um valia aquilo que produzia". Além dos fatores "ocupação de tempo" e "participação social", o trabalho das pessoas com necessidades especiais tinha em vista o desenvolvimento social do país, engajando as mesmas em pequenos serviços industriais. Contudo, mesmo diante de alguns progressos, a educação do deficiente era pauta ausente das Conferências Nacionais de Educação. As reformas em educação especial visavam educar o normal dentro dos padrões de excelência, sem realmente favorecer as pessoas com necessidades especiais.

O terceiro capítulo (Caminhos trilhados em busca da equidade) continua retratando a evolução da educação especial a partir dos anos setentas. A década foi considerada pela autora um marco no assunto, ganhando visibilidade diante de alguns fatos, tais como a criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP, posteriormente Secretaria da Educação Especial - SEESP) em 1973, constituindo o primeiro órgão federal de política específica para o ensino do deficiente. As organizações filantrópicas e campanhas pela causa da deficiência continuaram se consolidando no país e a escolarização do deficiente ganhou valor, tendo em vista o desenvolvimento do país e a produtividade do indivíduo. O discurso pedagógico da época ressaltou a integração ou normalização da deficiência, inserindo as pessoas com necessidades especiais no cotidiano dos considerados normais (mainstreaming). Ainda na esperança de que um órgão nacional conseguisse melhorias e integração social ao deficiente, foi criado em 1985 um novo órgão para integração das populações, a Coordenação Nacional para a Integração da Pessoa com Deficiência (CORDE), que visou aspectos mais amplos do que o CENESP e oportunizou a participação dos deficientes em suas decisões, colaborou não só com a divulgação de orientações que viabilizassem a integração social do deficiente, mas também apontou os motivos que pareciam dificultar tal feito.

Na década de 1990, com o advento da declaração de Salamanca, o governo concebeu o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), avaliador e aprovador do plano anual do CORDE. O intuito desse órgão seria facilitar gestões descentralizadas e possibilitar a comunicação entre sociedade civil e governo. Porém, mesmo com a criação de tantos conselhos, permanecia a escola pouco democratizada e a educação especial como um sistema de ensino paralelo ao ensino popular. Este estigma perdurou até os idos do ano 2000, quando mesmo que tantas vezes influenciada pelos valores da ideologia dominante, a ênfase da escola começa a centralizar-se em seu poder transformador, necessitando que os educadores atentem às particularidades dos alunos e valorizando métodos e técnicas de ensino que atendam às "necessidades especiais" de cada um.

O século XXI trouxe em sua bagagem fatores como avanços tecnológicos e direitos conquistados, que preenchem diversas lacunas importantes para o bem-estar do homem, mas ao mesmo tempo, as desigualdades sociais, o progresso desenfreado, as cobranças acerca da produtividade e a competitividade ameaçam a todo tempo tudo o que foi conquistado. Nos dias atuais, ainda se luta para que a educação especial seja reconhecida como parte integrante de uma educação para todos. Nesse contexto, não cabem preconceitos, protelações ou isenções de responsabilidade.

Direcionado a educadores, estudantes e interessados pela área de educação especial, o livro constitui uma obra muito importante, que contextualiza esse segmento educacional na história brasileira no decorrer dos anos, conduzindo o leitor a uma reflexão sobre esse movimento, bem como os seus desdobramentos na educação atual. Utilizando-se de recursos de narrativa que ora avançam no tempo, ora retornam em importantes fatos históricos passados, a autora conseguiu reunir sistematicamente dados oficiais e literários de quase um século compondo um texto completo, agradável, e que prima por despertar o interesse no aprofundamento do assunto quando ressalta importantes autores, documentos e leis.

Educar em Revista - UFPR