Grandes famílias de grandes empresas: compromissos com a tradição na Lisboa moderna
Marta Jardim
Pós-doutoranda no CEBRAP, bolsista FAPESP. martabane@gmail.com
Marta Jardim
Pós-doutoranda no CEBRAP, bolsista FAPESP. martabane@gmail.com
I. No debate antropológico, entre os anos de 1980 e 90, emergem estudos sobre os diferentes signos que atualizam laços tidos como familiares, resultantes da crise que sofreram, nos anos 60, os estudos sobre família, categoria especialmente naturalizada naquelas sociedades que a tomam como resultado de processos tidos como biológicos. Olhando desde as sociedades consideradas modernas, como podem ser as capitais de cidades do oeste europeu – ainda que na periferia do que se pode entender por Europa – a família é um ícone da tradição. Lá predomina a valorização da empresa como instituição de caráter público, isenta de embaraços domésticos. A articulação entre empresa e família é vista como signo do passado (período pré-moderno). O dinamismo das empresas se opõe à estabilidade da família. Antónia Pedroso Lima enfrenta esse consenso estudando sete grandes famílias de grandes empresas modernas lisboetas. O estudo entra pela porta das empresas, examinando-as e descrevendo-as como signo das famílias, exibindo os laços que unem as histórias de ambas num projeto que atravessa diferentes gerações.
II. O livro de Pedroso Lima, antropóloga do ISCTE-Lisboa, é uma versão de sua tese defendida em 2001 no ICS Lisboa, sob orientação de João de Pina Cabral. Entre 1994 e 1997, a autora investigou sete famílias proprietárias de empresas de grande porte1 em Lisboa com o objetivo de estudar a sobreposição e inter-relacionamento entre valores e práticas familiares e empresariais. Antónia descreve como as famílias e empresas articulam a considerada ambígua – para os contextos modernos – associação entre trabalho e família, domínio público e privado. Por meio de um escrutínio dos processos diacrônicos, que atravessam as famílias e as empresas, o estudo ilustra o vigor de um debate etnográfico sobre a família em processos contemporâneos.
III. Para alcançar os objetivos traçados, o estudo enfrentou diferentes desafios. A começar pelo desinteresse das ciências sociais na investigação da relação entre família e empresa em contextos considerados modernos. Para vencê-lo, apresenta dados estatísticos que mostram um significativo número de empresas portuguesas do século XX de base familiar (assim como ocorre com ao menos um terço delas nos EUA) e dados históricos, que apontam como a organização política portuguesa (especialmente no Estado Novo) esteve indiretamente relacionada a grandes empresas de base familiar. Reflexões e dados etnográficos e históricos questionam a aparente contradição entre as duas instâncias.
O estudo também enfrentou o desafio de dialogar com diferentes períodos e contextos etnográficos, sem sucumbir àqueles correspondentes à crise dessa produção. Pedroso Lima etnografa a costura que grandes famílias de grandes empresas fazem para reproduzirem-se em relação às sociedades consideradas modernas. Tal esforço é – em tempos de crise de descaracterização e desvalorização dos estudos etnográficos – um alento e um estímulo. Compõe seu argumento a noção de segmentação de E. Pritchard; a composição dos sentidos da categoria "elite" é apoiada em Abner Cohen; compreende elementos de constituição da elite portuguesa a partir do jogo de relações e distinções que sugere Bourdieu; situa o sentido de família a partir de Pina Cabral, Yanagisako, Collier, Strathern; dialoga com estudos sobre elites norte-americanas contemporâneas com George Marcus ou com as elites brasileiras analisadas por Adriana Piscitelli, e com as italianas por Yanagisako.2 Apoiada nos acúmulos desenvolvidos sobre a crise dos paradigmas de estudos sobre família, conceitos como "família nuclear" são criticados à luz de "unidade social primária" e "socialização" à luz de "processo de constituição". A necessidade de associar diferentes categorias de análise que considerem o argumento, segundo o qual empresas e famílias são "identidades continuadas" – através de práticas de articulação da memória, da herança e das alianças – leva a autora a lançar mão de uma perspectiva diacrônica marcada num rico e contundente estudo das relações intergeracionais.3
O último desafio que o estudo apresenta é metodológico. São notadas, na literatura antropológica, as dificuldades correntes em pesquisa com grupos não subalternos. A autora apresenta uma reflexão sobre o processo de adequação do método etnográfico à sua experiência, o que incluiu o uso da técnica de história de família.4 Essa técnica permitiu ultrapassar alguns dos limites de um campo sem brechas para observações informais, em que todo o contato estabelecido foi pré-agendado (tendo hora para começar e terminar, sempre sob o controle dos informantes). Além disso, há de se registrar a necessária coragem de escrever sobre um grupo dominante contemporâneo, que pesquisa e publica histórias sobre si mesmo, e com o qual a autora se relaciona hierarquicamente.
IV. No primeiro capítulo, através da descrição de alguns aspectos da história de três empresas familiares analisadas, há uma revisão da literatura crítica à idéia de que existe uma "incompatibilidade entre empresas e família ou entre racionalidade econômica e solidariedade familiar" (51). Para Pedroso Lima, a ideologia hegemônica da sociedade ocidental industrializada, que supõe a separação entre família e empresa, provavelmente, é responsável pelo desinteresse das ciências sociais pelo tema. Vale destacar que em Portugal a historiografia – embora tendo em conta o forte papel de grupos econômicos de base familiar na política do Estado Novo – não desenvolveu uma análise da dinâmica de articulação entre empresas, famílias e Estado. Pedroso Lima organiza uma revisão da história do século XX português relacionando-a com a posição destas empresas. Descreve o processo de reestruturação destes grandes empreendimentos, que nos anos 80, enfrentaram a hegemonia da desvalorização do capital monopolista estimulado pelo Estado Novo, especialmente desde os anos 50.
A autora mostra as estratégias utilizadas pelas empresas no enfrentamento do valor dominante, expresso no desprestígio da associação das categorias entre sócios e parentes. Essas estratégias fazem parte de um conjunto de práticas de transmissão intergeracional de um capital econômico impresso nas empresas e outras propriedades e na transmissão de uma herança simbólica, materializada tanto no compromisso de reproduzir nomes, jóias, histórias, como no compromisso dos descendentes de dar continuidade ao legado empresarial. A descrição é organizada de forma a mostrar que esses processos de entretecimento se desdobram no interior de cada família e empresa, e também numa espécie de "comunidade de práticas" que as envolve e, ao mesmo tempo, marca sua distinção do conjunto da sociedade.
No capítulo 2, nota-se que a inter-relação família e empresa – que constitui um universo de relação duplo e indivisível – favorece a constituição de um patrimônio comum, que não se restringe ao econômico e está fortemente associado ao prestígio e às posições sociais. A descrição e a análise das estratégias utilizadas para atualizar a articulação entre família e empresa mostram algumas das formas pelas quais o patrimônio comum é acumulado, distribuído e reproduzido entre elas: encontros nas casas da família, passagem de técnicas (por exemplo, administrativas) em almoços familiares, emprego de pessoas consideradas da família em distintos postos das empresas, história da família e da empresa, passagem intergeracional do patrimônio econômico e simbólico da empresa e da família.
Então sua análise geracional se concretiza percorrendo o estudo todo. Tal análise se impõe pela própria natureza do objeto recortado. As grandes empresas de grandes famílias constituem-se num processo de valorização da tradição cultuada:
à medida que uma família empresarial avança geracionalmente, que a empresa se desenvolve e o seu poder cresce, a família vai aumentando a sua riqueza e o seu prestígio. Com o passar do tempo, a sua fama e boa reputação consolida-se na comunidade, legitimando o seu estatuto de riqueza antiga. A sucessão geracional e o tempo longo do exercício das suas actividades empresariais enraíza a sua identidade social no passado, numa tradição familiar que a distingue dos novos ricos e impõe a sua longa experiência – herdada dos seus antepassados – como mais valia e garantia do seu bom desempenho (Pedroso Lima, 2003:87).
O "patrimônio familiar" – um nome de família, uma história, antepassados, casas de família e quintas, títulos nobiliárquicos, brasões, uma rede de empresas –, resultado de um processo de constituição, partilha e perpetuação pela família e empresa, constitui o conteúdo que permite aos grupos marcarem sua distinção com relação aos demais grupos sociais, inclusive de elite.
Investigando os diferentes sentidos atribuídos à palavra família, Pedroso Lima considera que o símbolo do parentesco destas famílias é a empresa. A família resulta de inúmeras agencialidades que produzem, de forma heterogênea (conforme gênero, idade, geração, contexto), a identidade familiar em diferentes níveis de segmentação e dão sustentação e continuidade ao projeto empresarial em sucessivas gerações. As práticas de distinção são reproduzidas nos aprendizados que fazem parte do "processo de constituição" das pessoas familiares, desde suas experiências de formação nas unidades sociais primárias.
Há um diálogo com a história em dois níveis distintos no capítulo 3. De um lado, na valorização, por parte das famílias, de uma história que inclui uma lenda sobre o fundador, as relações constantemente presentificadas entre gerações e a passagem intergeracional de um patrimônio econômico e simbólico "compósito" – posse de genealogias impressas, memorização de relações genealógicas, objetos, fotografias, nomes, casa da família, jóias de família, férias, livros de história produzidos. A ênfase na profundidade genealógica associa-se à organização patriarcal da família, à valorização da primogenitura, à exibição de símbolos e títulos de nobreza, à importância da transmissão por via varonil. Nesse sentido, a história, tomada como memória de um passado associado à aristocracia real, é positivada e presentificada como conteúdo de distinção.
Todavia, esses valores, na Portugal pós-74 – portanto frente à história que aquelas famílias compartilham com outros agentes –, são marginais aos valores hegemônicos da sociedade. Neste momento a "história" daquelas famílias não é positivada. Será por isso que Pina Cabral caracterizará como de "marginalidade superior" a posição dessas elites que, de um lado, valorizam suas histórias, e, de outro, são constrangidas pela associação de suas histórias a sistemas políticos sociais e econômicos considerados ultrapassados e autoritários. Entretanto sua condição de marginalidade superior não lhes tira do jogo da competitividade. Constituindo sua distinção, inclusive de outros grupos de elite, por meio da valorização da história da família, esses grupos lançam mão, privilegiadamente, das mais novas e seguras inovações tecnológicas e administrativo-financeiras. É na condição de antigas, que as grandes empresas – com o uso de tecnologias modernas – se distinguem de modernas empresas sem passado.
Através do estudo das alianças matrimoniais e das formas de sucessão (processo sincrônico) e herança (diacrônico), os capítulos 4 e 5 apresentam algumas estratégias de distinção usadas ao longo do século XX pelas elites analisadas. Reconhecendo a homogamia (capital econômico e simbólico) como característica do contexto europeu, o estudo das alianças mostra a materialização de solidariedades, já estabelecidas entre as famílias lisboetas, sem deixar de tratar dos dissensos marcados nos casos de divórcio.
A análise das situações de dissolução de aliança matrimonial incorpora o exame de aspectos aparentemente incongruentes que participam da constituição das práticas ideais. Assim, notam-se as manipulações agenciadas para dar conta dos ideais destas elites na análise das contradições expressas entre sócios e parentes; entre a valorização da linha agnática e a articulação das redes extradomésticas com base uxorilocal; entre o particularismo de valorização de suas famílias e a disposição universalista marcada em práticas de caridade; entre o ancoramento em valores aristocráticos e a organização empresarial moderna; entre a força do distanciamento genealógico que se constitui com a passagem do tempo e o compromisso da grande família de continuar a grande empresa.
Se essas manipulações servem, externamente, para marcar distinções com os demais setores, internamente, implicam um esforço coletivo e compartilhado de forma complementar. O patrimônio material e simbólico, que constitui o capital "compósito" dessas famílias, é efeito de desiguais formas de produção e distribuição de acordo com gênero, a ordem de nascimento e o contexto sócio-histórico. O estudo deixa ver que as hierarquias se reproduzem por meio de processos de embodiment das marcas diferenciais e, também, que esse patrimônio familiar será distribuído desigualmente nos processos sucessórios que se fazem articulados às exigências legais de igualdade da herança.
O último capítulo mostra a correspondência entre os critérios que participam do processo sucessório e o contexto histórico. Ao retomar os dois contextos de funcionamento da história econômica do século XX em Portugal, a autora ilustra dois tipos distintos de sucessão. No primeiro, correspondente ao Estado Novo, o valor está associado à experiência empresarial conquistada pelo aprendizado na prática; no segundo, pós-74, à formação profissional.
A análise empírica mostra que as empresas se adaptam aos padrões exigidos pela competitividade sem abrir mão dos valores dinásticos. Além disso, o estudo dessas grandes famílias de grandes empresas lisboetas contraria a teoria que concebe que esse tipo de organização sucumbe no terceiro processo sucessório, desafiando a lei das três gerações. Se as mudanças que decorrem da Revolução dos Cravos marcam a perda de capital econômico, elas também fortalecem os empenhos em favor da "continuidade dos grupos". Acompanhando a crítica de Bestard e de Strathern, entre outros, Pedroso Lima mostra que, em processos contemporâneos, o parentesco também serve como mola impulsionadora em projetos que associam mudança e continuidade (Bestard, 1998; Strathern, 1988). A análise dos elementos constitutivos das identidades familiares e de sua transmissão ao longo das gerações está atravessada pelas múltiplas interseções entre o mundo da família e da empresa (25).
V. Destaco ainda de minha leitura aspectos da composição do texto. Para sustentar o seu argumento Antónia oferece gradualmente, em cada capítulo, um conjunto diferenciado de informações. As histórias das famílias, à medida que são incorporadas nas das empresas, apresentam-se de acordo com os temas em debate. Em função disso, em cada capítulo movimentos distintos se processam por meio de reflexões que dialogam com a literatura etnográfica, com o trabalho de campo, com a literatura histórica, com a introdução de dados específicos, com a identificação de dados quantitativos, com as reflexões, questionamentos e hipóteses.
Para finalizar cabe dizer que, desde o ponto de vista de uma antropologia formada em uma ex-colônia portuguesa e do olhar de uma pesquisadora que estuda outros ex-colonos - indianos em Moçambique -, impõem-se duas interrogações sobre a relação entre os processos contemporâneos e a situação colonial.
A primeira questão diz respeito ao fato de que a tese apresenta as lendas familiares de inspiração meritocrática, as quais divulgam os mitos de formação das fortunas familiares. Mas, de um ponto de vista analítico, não há relação entre essas narrativas e o processo mais amplo, que permita compreender o lugar ocupado pela formação daquelas fortunas em momentos decisivos da composição das hierarquias econômicas e políticas dominantes na contemporaneidade. A análise, recortada na metrópole e no século XX, não dá luz aos correlatos e interdependentes processos que configuraram o terceiro império português.
Em segundo lugar, a leitura da tese de Antónia sugere perguntar sobre os possíveis diálogos com o estudo de Capranzano na África do Sul, ou seja, entre a situação produzida por um antropólogo americano sobre as elites brancas sul-africanas do apartheid e aquela produzida por uma antropóloga conterrânea da elite estudada, como é o caso do trabalho aqui apresentado. Nos dois casos os antropólogos são representantes dos valores dominantes, embora economicamente subalternos em relação aos seus "objetos". Interessa saber dos entretecimentos entre essas posições relacionais; afinal, toda margem está em relação a determinados centros, sendo o isolamento (e a meritocracia) pretensão emic, criticável de um ponto de vista analítico.
Olhando a reflexão européia sobre família em processos contemporâneos, nota-se com ânimo o fôlego de um estudo etnográfico. Orientado pela tradição antropológica, este estudo sobre grandes famílias de grandes empresas na Lisboa contemporânea, tal como o seu objeto, dá continuidade a um projeto que permanentemente o modifica.
Referências bibliográficas
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COLLIER, J. S. & YANAGISAKO, S. (eds.) Gender and Kinship. Essays towards a unified analysis. Stanford, Stanford University Press, 1987.
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MARCUS, George E. Lives in Trust. The fortunes of Dinastic Families in Late Twentieth- Century America. San Francisco/Oxford, Westiview Press, 1992.
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__________ e Pedroso Lima, Antónia. Como fazer uma história de família: um exercício de contextualização social. Revista Etnográfica, Volume IX, Número 2, 2005.
PISCITELLI, Adriana. Jóias de Família. Gênero em histórias sobre grupos empresariais brasileiros. Tese de doutoramento, IFCH/Unicamp, 1999 [publicado pela Editora da UFRJ, 2006]
STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift. Berkeley, University of California Press, 1988.
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YANAGISAKO, S. Capital and Gendered interest in Italian Family Firms. In: KERTZER, David e SALLER, Richard. (eds.) The Family in Italy. From antiquity to the present. New Haven/London, Yale University Press, 1991.
Resenha do livro de Maria Antónia Pedroso Lima, Grandes Famílias, grandes empresas: ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa (2003).
1 Foram os seguintes critérios utilizados para definir as famílias analisadas: 1. As famílias tinham que ser proprietárias titulares de grandes empresas; 2. As empresas tinham que existir na mesma família há pelo menos três gerações; 3. Tinham de pertencer ou já ter pertencido à lista das cem maiores empresas de Portugal (cf. Pedroso Lima, 2003:22).
2 Cf. Evans-Pritchard, 1977; Cohen, 1981; Bourdieu, 1980; Marcus, 1992; Collier e Yanagisako, 1987; Piscitelli, 1999; Yanagisako, 1991.
3 Para o conceito de "unidade social primária" e "identidades continuadas", ver Pina Cabral, 1991; para o conceito de "processo de constituição", ver Toren, 1999:113-129.
4 Para "história de família", ver Pina Cabral e Pedroso Lima, 2005: 355-390.
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