terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Grandes famílias de grandes empresas: compromissos com a tradição na Lisboa moderna


Grandes famílias de grandes empresas: compromissos com a tradição na Lisboa moderna

Marta Jardim

Pós-doutoranda no CEBRAP, bolsista FAPESP. martabane@gmail.com


I. No debate antropológico, entre os anos de 1980 e 90, emergem estudos sobre os diferentes signos que atualizam laços tidos como familiares, resultantes da crise que sofreram, nos anos 60, os estudos sobre família, categoria especialmente naturalizada naquelas sociedades que a tomam como resultado de processos tidos como biológicos. Olhando desde as sociedades consideradas modernas, como podem ser as capitais de cidades do oeste europeu – ainda que na periferia do que se pode entender por Europa – a família é um ícone da tradição. Lá predomina a valorização da empresa como instituição de caráter público, isenta de embaraços domésticos. A articulação entre empresa e família é vista como signo do passado (período pré-moderno). O dinamismo das empresas se opõe à estabilidade da família. Antónia Pedroso Lima enfrenta esse consenso estudando sete grandes famílias de grandes empresas modernas lisboetas. O estudo entra pela porta das empresas, examinando-as e descrevendo-as como signo das famílias, exibindo os laços que unem as histórias de ambas num projeto que atravessa diferentes gerações.

II. O livro de Pedroso Lima, antropóloga do ISCTE-Lisboa, é uma versão de sua tese defendida em 2001 no ICS Lisboa, sob orientação de João de Pina Cabral. Entre 1994 e 1997, a autora investigou sete famílias proprietárias de empresas de grande porte1 em Lisboa com o objetivo de estudar a sobreposição e inter-relacionamento entre valores e práticas familiares e empresariais. Antónia descreve como as famílias e empresas articulam a considerada ambígua – para os contextos modernos – associação entre trabalho e família, domínio público e privado. Por meio de um escrutínio dos processos diacrônicos, que atravessam as famílias e as empresas, o estudo ilustra o vigor de um debate etnográfico sobre a família em processos contemporâneos.

III. Para alcançar os objetivos traçados, o estudo enfrentou diferentes desafios. A começar pelo desinteresse das ciências sociais na investigação da relação entre família e empresa em contextos considerados modernos. Para vencê-lo, apresenta dados estatísticos que mostram um significativo número de empresas portuguesas do século XX de base familiar (assim como ocorre com ao menos um terço delas nos EUA) e dados históricos, que apontam como a organização política portuguesa (especialmente no Estado Novo) esteve indiretamente relacionada a grandes empresas de base familiar. Reflexões e dados etnográficos e históricos questionam a aparente contradição entre as duas instâncias.

O estudo também enfrentou o desafio de dialogar com diferentes períodos e contextos etnográficos, sem sucumbir àqueles correspondentes à crise dessa produção. Pedroso Lima etnografa a costura que grandes famílias de grandes empresas fazem para reproduzirem-se em relação às sociedades consideradas modernas. Tal esforço é – em tempos de crise de descaracterização e desvalorização dos estudos etnográficos – um alento e um estímulo. Compõe seu argumento a noção de segmentação de E. Pritchard; a composição dos sentidos da categoria "elite" é apoiada em Abner Cohen; compreende elementos de constituição da elite portuguesa a partir do jogo de relações e distinções que sugere Bourdieu; situa o sentido de família a partir de Pina Cabral, Yanagisako, Collier, Strathern; dialoga com estudos sobre elites norte-americanas contemporâneas com George Marcus ou com as elites brasileiras analisadas por Adriana Piscitelli, e com as italianas por Yanagisako.2 Apoiada nos acúmulos desenvolvidos sobre a crise dos paradigmas de estudos sobre família, conceitos como "família nuclear" são criticados à luz de "unidade social primária" e "socialização" à luz de "processo de constituição". A necessidade de associar diferentes categorias de análise que considerem o argumento, segundo o qual empresas e famílias são "identidades continuadas" – através de práticas de articulação da memória, da herança e das alianças – leva a autora a lançar mão de uma perspectiva diacrônica marcada num rico e contundente estudo das relações intergeracionais.3

O último desafio que o estudo apresenta é metodológico. São notadas, na literatura antropológica, as dificuldades correntes em pesquisa com grupos não subalternos. A autora apresenta uma reflexão sobre o processo de adequação do método etnográfico à sua experiência, o que incluiu o uso da técnica de história de família.4 Essa técnica permitiu ultrapassar alguns dos limites de um campo sem brechas para observações informais, em que todo o contato estabelecido foi pré-agendado (tendo hora para começar e terminar, sempre sob o controle dos informantes). Além disso, há de se registrar a necessária coragem de escrever sobre um grupo dominante contemporâneo, que pesquisa e publica histórias sobre si mesmo, e com o qual a autora se relaciona hierarquicamente.

IV. No primeiro capítulo, através da descrição de alguns aspectos da história de três empresas familiares analisadas, há uma revisão da literatura crítica à idéia de que existe uma "incompatibilidade entre empresas e família ou entre racionalidade econômica e solidariedade familiar" (51). Para Pedroso Lima, a ideologia hegemônica da sociedade ocidental industrializada, que supõe a separação entre família e empresa, provavelmente, é responsável pelo desinteresse das ciências sociais pelo tema. Vale destacar que em Portugal a historiografia – embora tendo em conta o forte papel de grupos econômicos de base familiar na política do Estado Novo – não desenvolveu uma análise da dinâmica de articulação entre empresas, famílias e Estado. Pedroso Lima organiza uma revisão da história do século XX português relacionando-a com a posição destas empresas. Descreve o processo de reestruturação destes grandes empreendimentos, que nos anos 80, enfrentaram a hegemonia da desvalorização do capital monopolista estimulado pelo Estado Novo, especialmente desde os anos 50.

A autora mostra as estratégias utilizadas pelas empresas no enfrentamento do valor dominante, expresso no desprestígio da associação das categorias entre sócios e parentes. Essas estratégias fazem parte de um conjunto de práticas de transmissão intergeracional de um capital econômico impresso nas empresas e outras propriedades e na transmissão de uma herança simbólica, materializada tanto no compromisso de reproduzir nomes, jóias, histórias, como no compromisso dos descendentes de dar continuidade ao legado empresarial. A descrição é organizada de forma a mostrar que esses processos de entretecimento se desdobram no interior de cada família e empresa, e também numa espécie de "comunidade de práticas" que as envolve e, ao mesmo tempo, marca sua distinção do conjunto da sociedade.

No capítulo 2, nota-se que a inter-relação família e empresa – que constitui um universo de relação duplo e indivisível – favorece a constituição de um patrimônio comum, que não se restringe ao econômico e está fortemente associado ao prestígio e às posições sociais. A descrição e a análise das estratégias utilizadas para atualizar a articulação entre família e empresa mostram algumas das formas pelas quais o patrimônio comum é acumulado, distribuído e reproduzido entre elas: encontros nas casas da família, passagem de técnicas (por exemplo, administrativas) em almoços familiares, emprego de pessoas consideradas da família em distintos postos das empresas, história da família e da empresa, passagem intergeracional do patrimônio econômico e simbólico da empresa e da família.

Então sua análise geracional se concretiza percorrendo o estudo todo. Tal análise se impõe pela própria natureza do objeto recortado. As grandes empresas de grandes famílias constituem-se num processo de valorização da tradição cultuada:

à medida que uma família empresarial avança geracionalmente, que a empresa se desenvolve e o seu poder cresce, a família vai aumentando a sua riqueza e o seu prestígio. Com o passar do tempo, a sua fama e boa reputação consolida-se na comunidade, legitimando o seu estatuto de riqueza antiga. A sucessão geracional e o tempo longo do exercício das suas actividades empresariais enraíza a sua identidade social no passado, numa tradição familiar que a distingue dos novos ricos e impõe a sua longa experiência – herdada dos seus antepassados – como mais valia e garantia do seu bom desempenho (Pedroso Lima, 2003:87).

O "patrimônio familiar" – um nome de família, uma história, antepassados, casas de família e quintas, títulos nobiliárquicos, brasões, uma rede de empresas –, resultado de um processo de constituição, partilha e perpetuação pela família e empresa, constitui o conteúdo que permite aos grupos marcarem sua distinção com relação aos demais grupos sociais, inclusive de elite.

Investigando os diferentes sentidos atribuídos à palavra família, Pedroso Lima considera que o símbolo do parentesco destas famílias é a empresa. A família resulta de inúmeras agencialidades que produzem, de forma heterogênea (conforme gênero, idade, geração, contexto), a identidade familiar em diferentes níveis de segmentação e dão sustentação e continuidade ao projeto empresarial em sucessivas gerações. As práticas de distinção são reproduzidas nos aprendizados que fazem parte do "processo de constituição" das pessoas familiares, desde suas experiências de formação nas unidades sociais primárias.

Há um diálogo com a história em dois níveis distintos no capítulo 3. De um lado, na valorização, por parte das famílias, de uma história que inclui uma lenda sobre o fundador, as relações constantemente presentificadas entre gerações e a passagem intergeracional de um patrimônio econômico e simbólico "compósito" – posse de genealogias impressas, memorização de relações genealógicas, objetos, fotografias, nomes, casa da família, jóias de família, férias, livros de história produzidos. A ênfase na profundidade genealógica associa-se à organização patriarcal da família, à valorização da primogenitura, à exibição de símbolos e títulos de nobreza, à importância da transmissão por via varonil. Nesse sentido, a história, tomada como memória de um passado associado à aristocracia real, é positivada e presentificada como conteúdo de distinção.

Todavia, esses valores, na Portugal pós-74 – portanto frente à história que aquelas famílias compartilham com outros agentes –, são marginais aos valores hegemônicos da sociedade. Neste momento a "história" daquelas famílias não é positivada. Será por isso que Pina Cabral caracterizará como de "marginalidade superior" a posição dessas elites que, de um lado, valorizam suas histórias, e, de outro, são constrangidas pela associação de suas histórias a sistemas políticos sociais e econômicos considerados ultrapassados e autoritários. Entretanto sua condição de marginalidade superior não lhes tira do jogo da competitividade. Constituindo sua distinção, inclusive de outros grupos de elite, por meio da valorização da história da família, esses grupos lançam mão, privilegiadamente, das mais novas e seguras inovações tecnológicas e administrativo-financeiras. É na condição de antigas, que as grandes empresas – com o uso de tecnologias modernas – se distinguem de modernas empresas sem passado.

Através do estudo das alianças matrimoniais e das formas de sucessão (processo sincrônico) e herança (diacrônico), os capítulos 4 e 5 apresentam algumas estratégias de distinção usadas ao longo do século XX pelas elites analisadas. Reconhecendo a homogamia (capital econômico e simbólico) como característica do contexto europeu, o estudo das alianças mostra a materialização de solidariedades, já estabelecidas entre as famílias lisboetas, sem deixar de tratar dos dissensos marcados nos casos de divórcio.

A análise das situações de dissolução de aliança matrimonial incorpora o exame de aspectos aparentemente incongruentes que participam da constituição das práticas ideais. Assim, notam-se as manipulações agenciadas para dar conta dos ideais destas elites na análise das contradições expressas entre sócios e parentes; entre a valorização da linha agnática e a articulação das redes extradomésticas com base uxorilocal; entre o particularismo de valorização de suas famílias e a disposição universalista marcada em práticas de caridade; entre o ancoramento em valores aristocráticos e a organização empresarial moderna; entre a força do distanciamento genealógico que se constitui com a passagem do tempo e o compromisso da grande família de continuar a grande empresa.

Se essas manipulações servem, externamente, para marcar distinções com os demais setores, internamente, implicam um esforço coletivo e compartilhado de forma complementar. O patrimônio material e simbólico, que constitui o capital "compósito" dessas famílias, é efeito de desiguais formas de produção e distribuição de acordo com gênero, a ordem de nascimento e o contexto sócio-histórico. O estudo deixa ver que as hierarquias se reproduzem por meio de processos de embodiment das marcas diferenciais e, também, que esse patrimônio familiar será distribuído desigualmente nos processos sucessórios que se fazem articulados às exigências legais de igualdade da herança.

O último capítulo mostra a correspondência entre os critérios que participam do processo sucessório e o contexto histórico. Ao retomar os dois contextos de funcionamento da história econômica do século XX em Portugal, a autora ilustra dois tipos distintos de sucessão. No primeiro, correspondente ao Estado Novo, o valor está associado à experiência empresarial conquistada pelo aprendizado na prática; no segundo, pós-74, à formação profissional.

A análise empírica mostra que as empresas se adaptam aos padrões exigidos pela competitividade sem abrir mão dos valores dinásticos. Além disso, o estudo dessas grandes famílias de grandes empresas lisboetas contraria a teoria que concebe que esse tipo de organização sucumbe no terceiro processo sucessório, desafiando a lei das três gerações. Se as mudanças que decorrem da Revolução dos Cravos marcam a perda de capital econômico, elas também fortalecem os empenhos em favor da "continuidade dos grupos". Acompanhando a crítica de Bestard e de Strathern, entre outros, Pedroso Lima mostra que, em processos contemporâneos, o parentesco também serve como mola impulsionadora em projetos que associam mudança e continuidade (Bestard, 1998; Strathern, 1988). A análise dos elementos constitutivos das identidades familiares e de sua transmissão ao longo das gerações está atravessada pelas múltiplas interseções entre o mundo da família e da empresa (25).

V. Destaco ainda de minha leitura aspectos da composição do texto. Para sustentar o seu argumento Antónia oferece gradualmente, em cada capítulo, um conjunto diferenciado de informações. As histórias das famílias, à medida que são incorporadas nas das empresas, apresentam-se de acordo com os temas em debate. Em função disso, em cada capítulo movimentos distintos se processam por meio de reflexões que dialogam com a literatura etnográfica, com o trabalho de campo, com a literatura histórica, com a introdução de dados específicos, com a identificação de dados quantitativos, com as reflexões, questionamentos e hipóteses.

Para finalizar cabe dizer que, desde o ponto de vista de uma antropologia formada em uma ex-colônia portuguesa e do olhar de uma pesquisadora que estuda outros ex-colonos - indianos em Moçambique -, impõem-se duas interrogações sobre a relação entre os processos contemporâneos e a situação colonial.

A primeira questão diz respeito ao fato de que a tese apresenta as lendas familiares de inspiração meritocrática, as quais divulgam os mitos de formação das fortunas familiares. Mas, de um ponto de vista analítico, não há relação entre essas narrativas e o processo mais amplo, que permita compreender o lugar ocupado pela formação daquelas fortunas em momentos decisivos da composição das hierarquias econômicas e políticas dominantes na contemporaneidade. A análise, recortada na metrópole e no século XX, não dá luz aos correlatos e interdependentes processos que configuraram o terceiro império português.

Em segundo lugar, a leitura da tese de Antónia sugere perguntar sobre os possíveis diálogos com o estudo de Capranzano na África do Sul, ou seja, entre a situação produzida por um antropólogo americano sobre as elites brancas sul-africanas do apartheid e aquela produzida por uma antropóloga conterrânea da elite estudada, como é o caso do trabalho aqui apresentado. Nos dois casos os antropólogos são representantes dos valores dominantes, embora economicamente subalternos em relação aos seus "objetos". Interessa saber dos entretecimentos entre essas posições relacionais; afinal, toda margem está em relação a determinados centros, sendo o isolamento (e a meritocracia) pretensão emic, criticável de um ponto de vista analítico.

Olhando a reflexão européia sobre família em processos contemporâneos, nota-se com ânimo o fôlego de um estudo etnográfico. Orientado pela tradição antropológica, este estudo sobre grandes famílias de grandes empresas na Lisboa contemporânea, tal como o seu objeto, dá continuidade a um projeto que permanentemente o modifica.



Referências bibliográficas

BESTARD, Joan. Parentesco y modernidad. Barcelona, Paidós, 1998.

BOURDIEU, Pierre. Le sans pratique. Paris, Les Editions Minuit, 1980.

COHEN, Abner. The politics of Elite Culture: Explorations in the Dramaturgy of Power in a Modern African Society. Berkley, University of California Press, 1981.

COLLIER, J. S. & YANAGISAKO, S. (eds.) Gender and Kinship. Essays towards a unified analysis. Stanford, Stanford University Press, 1987.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Los Nuer. Barcelona, Editorial Anagrama, 1977.

MARCUS, George E. Lives in Trust. The fortunes of Dinastic Families in Late Twentieth- Century America. San Francisco/Oxford, Westiview Press, 1992.

PEDROSO LIMA, Antónia. Grandes Famílias, grandes empresas: ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003.

PINA CABRAL, João. Os Contextos da Antropologia. Lisboa, Difel, 1991.

__________ e Pedroso Lima, Antónia. Como fazer uma história de família: um exercício de contextualização social. Revista Etnográfica, Volume IX, Número 2, 2005.

PISCITELLI, Adriana. Jóias de Família. Gênero em histórias sobre grupos empresariais brasileiros. Tese de doutoramento, IFCH/Unicamp, 1999 [publicado pela Editora da UFRJ, 2006]

STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift. Berkeley, University of California Press, 1988.

TOREN, Cristina. Making the chief: An examination of why Fijian chiefs have to be elected. In: PEDROSO LIMA, Antónia e PINA CABRAL, João. Elites, Choice, Leadership and Succession. Oxford, Berg, 1999.

YANAGISAKO, S. Capital and Gendered interest in Italian Family Firms. In: KERTZER, David e SALLER, Richard. (eds.) The Family in Italy. From antiquity to the present. New Haven/London, Yale University Press, 1991.


Resenha do livro de Maria Antónia Pedroso Lima, Grandes Famílias, grandes empresas: ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa (2003).
1 Foram os seguintes critérios utilizados para definir as famílias analisadas: 1. As famílias tinham que ser proprietárias titulares de grandes empresas; 2. As empresas tinham que existir na mesma família há pelo menos três gerações; 3. Tinham de pertencer ou já ter pertencido à lista das cem maiores empresas de Portugal (cf. Pedroso Lima, 2003:22).
2 Cf. Evans-Pritchard, 1977; Cohen, 1981; Bourdieu, 1980; Marcus, 1992; Collier e Yanagisako, 1987; Piscitelli, 1999; Yanagisako, 1991.
3 Para o conceito de "unidade social primária" e "identidades continuadas", ver Pina Cabral, 1991; para o conceito de "processo de constituição", ver Toren, 1999:113-129.
4 Para "história de família", ver Pina Cabral e Pedroso Lima, 2005: 355-390.

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Epiderme em cena: raça, nação e teatro negro no Brasil


Epiderme em cena: raça, nação e teatro negro no Brasil

Luiz Gustavo Freitas Rossi

Doutorando em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Bolsista Fapesp). lgusfrossi@hotmail.com


Pode-se dizer que os estudos dos mecanismos do maquinário social, através do qual certos símbolos se "universalizam" e passam a elaborar códigos supostamente expressivos de identidades e culturas nacionais, se valeram, em grande medida, da mobilização de materiais provenientes dos mais diversos gêneros da produção cultural. No Brasil, em particular, não seria arriscado afirmar que a literatura e o pensamento social ofereceram um dos pontos de apoio privilegiados para apreender as representações "do nacional". Na análise exaustiva da história literária e intelectual, importantes trabalhos devassaram os anos de 1920 e 30, entendidos como os momentos catalisadores para a construção e projeção de uma identidade nacional mestiça e, em particular, devedora aos elementos culturais reconhecidos como "negros". Entretanto, neste período em que símbolos – tais como a malandragem, o samba e a mulata – passaram a aglutinar sentidos renovados de brasilidade, intelectuais, cientistas e literatos não foram os únicos a desempenharem um papel vigoroso na manipulação e divulgação destes símbolos.

Como mostram com bastante competência os livros dos historiadores Orlando de Barros, Corações de Chocolat, e Tiago de Melo Gomes, Um Espelho no Palco, no Rio de Janeiro, em meados da década de 1920, não era preciso ficar antenado na produção intelectual para se perceber que novas maneiras de representar o Brasil estavam sendo formuladas. Para tanto, bastava estar em contato com as oportunidades de entretenimento oferecidas à época, na então capital federal. No manejo minucioso de farta e ampla documentação, Barros e Gomes se lançam na recuperação do circuito de divertimentos cariocas, no período Pós-Primeira Guerra – com seus cabarés, cafés-cantantes, cinemas e teatros –, numa chave de leitura que enfatiza as inscrições destes espaços na produção e veiculação, a um público amplo e segmentado, de imagens de um Rio de Janeiro e um Brasil "mestiços".

Desse modo, não surpreende a proximidade entre Corações de Chocolat e Um Espelho no Palco, principalmente, no que diz respeito aos eixos de sustentação de suas análises. De um lado, remontam as engrenagens de funcionamento daquilo que foi um dos entretenimentos mais populares do período: o teatro de revista, gênero teatral musicado e "leve", estruturado essencialmente pela encenação cômica das "novidades" e acontecimentos sociais e políticos do momento. De outro, esquadrinham as implicações sociais e ideológicas mais amplas condicionadas pela atuação de uma companhia teatral em particular: a Companhia Negra de Revistas.

Corações de Chocolat, de Orlando de Barros, é um trabalho impecável de reconstrução do itinerário da Companhia Negra de Revistas, em seu processo de formação, ascensão e declínio, entre os anos de 1926 e 1927. Embora curta, a existência desta companhia exaltou os ânimos da cena do entretenimento carioca, levando aos palcos não apenas uma trupe composta quase inteiramente por artistas negros e mulatos, mas também espetáculos nos quais as referências à epiderme e à cultura afro-brasileira foram uma constante. Afinal, mesmo não sendo uma novidade, pois não havia muitos obstáculos ao fato de que "músicos negros tocassem nas orquestras dos teatros, ocultos no fosso, ou à parte, sem destaque nem foco de luzes" (13), levar ao centro dos palcos um empreendimento artístico coletivamente concebido nos termos de um "teatro negro" não deixou de provocar comentários e constrangimentos de várias ordens.

Idealizado por João Cândido Ferreira (1887-1956) – ele próprio um artista mulato e, nesse sentido, conhecido no mercado revisteiro por "De Chocolat" –, a companhia teve como referências mais imediatas modelos cênicos do teatro norte-americano que, com o final da primeira guerra, nos últimos anos da década de 1910, lograram grande êxito na Europa e, em particular, na França. Espetáculos envolvendo artistas afro-americanos atingiram em cheio o gosto do público parisiense, ao mobilizar elementos bastante arraigados no imaginário colonial francês traduzidos nos palcos em performances que estilizavam uma África primitiva e exótica e, como não dizer, erótica. A Revue Nègre, um desses empreendimentos mais bem sucedidos, realizado em 1925, consagrou o "negrismo" como a "grande moda" do momento com suas peças ágeis, suas danças "selvagens", embaladas pelo ritmo "frenético" do jazz, e a energia "bárbara" dos rodopios e requebros "sensuais" das black girls. Uma das mais famosas, Josephine Baker, conquistou notoriedade internacional apresentando-se na Revue Nègre com seus vestuários "primitivos" de tanga de penas e frutas como adereços, lembrando em tudo, como chama a atenção Orlando de Barros, o estilo "negro" com o qual se consagrou mais tarde Carmen Miranda. Sempre de olho em Paris, não demorou muito para que a elite e a imprensa cariocas criassem certas expectativas de que algo semelhante surgisse no Brasil. Contudo, se o negro e o africano podiam ser percebidos pelos franceses num registro distanciado, como elementos seguramente estrangeiros à sua vida social e cultural, no Brasil, a presença mais ampla da "gente de cor" nos espetáculos ganhava nuanças particulares. Em boa medida, significava aceitar e incorporar como elementos de destaque no entretenimento um segmento de sua população que há tempos era percebido como um dos principais entraves ao progresso e à modernização da nação.

Assim, Corações de Chocolat não trata apenas da história singular de uma companhia teatral. À medida que vai articulando os episódios "miúdos" da Companhia Negra de Revistas, Orlando de Barros revela a significação mais ampla de seu objeto, não só para a compreensão das convenções do teatro de revista, mas também para o entendimento adensado dos sentidos práticos e cotidianos atribuídos à "raça negra" e às relações raciais brasileiras nos anos de 1920. Num momento em que discursos preconceituosos e idéias de inferioridade racial circulavam livremente, os debates críticos que se seguiram às encenações das peças de De Chocolat (Tudo Preto, Café Torrado, Carvão Nacional, entre outras) foram representativos dos "desarranjos" que essas revistas negras causaram no sistema de valores da elite carioca, ao ver suas fantasias de branquitude serem minadas. O reconhecimento dessas revistas negras, embora logrados pelos seus aspectos técnicos – marcações bem feitas, cenários luxuosos, músicas ágeis e dançantes –, não conseguiu fugir ao expediente da cor como seu principal eixo controlador. Paradoxalmente, "a cor" funcionou como um marcador que, ao mesmo tempo, valorizava e depreciava os empreendimentos da Companhia Negra de Revistas. Os juízos favoráveis à companhia, no limite, acabavam se convertendo em móvel de ideologias racialistas, através das quais se formulavam argumentos de toda espécie sobre as limitações biológicas e culturais e os "devidos lugares" do negro na sociedade brasileira. Enquanto em "Paris exibiram-se pretos artistas; aqui se exibiam os nossos copeiros e as nossas cozinheiras... havia uma pequena diferença" (105).

Embora nada elogiosa, e talvez a contragosto, a crítica recolhida pelo autor acertava um alvo preciso: o Brasil estava longe de ser a França. Por aqui, a importação do teatro negro – ainda que trouxesse o carimbo de qualidade dos "ultracivilizados" franceses – forçou de maneira incômoda um debate sobre as próprias representações da nação. No confronto entre aquilo que se percebia como "nosso" e "estrangeiro" nas peças da companhia, Orlando de Barros mostra como os críticos passaram a enfatizar os momentos "bem brasileiros" das peças. Na música, em meio aos ritmos internacionais variantes do jazz, como o one-step e o charleston, a atenção recaiu sobre o "brasileiríssimo" Pixinguinha que, com sua "flauta mágica", encantou as platéias executando seus choros, sambas e maxixes. Nos palcos, o colorido todo nacional estava garantido pela figura estilizada da "baiana" ou mesmo pelo quadro Mãe Preta, o último da revista Tudo Preto, apreendida como a representação sintética da "ama de leite", cujos seios alimentaram os rebentos da elite patriarcal brasileira. O ápice dessa discussão se deu quando, em meados de 1927, após acumular seguidos sucessos por outros estados (São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul), surgiram rumores de uma possível apresentação da Companhia Negra, em Buenos Aires. Foi neste momento que se revelou toda a fragilidade dos trunfos conquistados pela trupe.

Apropriado para a diversão e o consumo interno, mas condenado como produto de exportação, o país enegrecido da companhia foi entendido como um "atentado aos foros de nossa civilização" (230). Talvez, com um pouco de exagero, Orlando de Barros acredite que "houve uma verdadeira conspiração contra a trupe negra" (232). Isto porque, com os rumores da excursão ao estrangeiro, iniciou-se uma campanha, envolvendo inclusive os poderes públicos e o próprio Ministério das Relações Exteriores, no sentido de impedir tal "propaganda" do país. De certo modo, já frágil por uma série de conflitos internos, o episódio foi decisivo para a dissolução da Companhia Negra de Revistas. Contudo, ainda que impedida de mostrar aos argentinos um país negro, as peças da companhia já apontavam para o esgotamento social, cultural e político das apostas num projeto de Brasil branco. Mesmo desprezados e considerados cidadãos de segunda classe, os afro-brasileiros não podiam mais ser ignorados como elementos formadores da sociedade, da cultura e da "civilização" brasileiras.

Portanto, estava nítido que a incorporação de símbolos negros na produção de um repertório sobre a nacionalidade começou a borrar a máscara branca – para inglês ver – do Brasil. O mundo do entretenimento acabou por se transformar num eficaz espelho, com o qual o país se enxergava. Não por acaso, esta é a idéia que encerra o título do livro de Tiago de Melo Gomes: Um Espelho no Palco. Contudo, enquanto Corações de Chocolat empreende uma análise "microscópica" da Companhia Negra, Um Espelho no Palco toma a trupe de De Chocolat como um material de potencial heurístico mais amplo, estabelecendo um confronto sistemático com outras revistas do período. De maneira articulada, Tiago de Melo Gomes mostra com desenvoltura como raça, classe e gênero funcionaram como marcadores sociais expressivos, nos palcos do entretenimento carioca, para estruturação de linguagens, performances e categorias de percepção da modernidade na década de 1920. Revestindo de comicidade e graça os temas palpitantes ou controversos do momento, o teatro de revista converteu-se num reservatório farto de impressões sobre uma série de mudanças na vida cotidiana, essencialmente entendidas como decorrentes dos "novos" hábitos e estilos de vida modernos. Como destaca Gomes, uma questão central nas peças do período era "a reestruturação de identidades tendo como pano de fundo a velocidade da vida moderna" (204). O automóvel inundando a paisagem urbana, os banhos de mar, as novas danças que permitiam uma maior "liberdade do corpo", a moda dos cabelos curtos para mulheres (ou à la garçonne), a percepção de uma maior presença feminina no espaço público, bem como suas iniciativas mais ousadas nos flertes e nas relações amorosas, todos esses elementos foram referências recorrentes na diagramação dos enredos e quadros teatrais.

Trazendo em seu socorro um número variado de fontes (memórias, recepções críticas e o próprio conteúdo substantivo das peças), Gomes desvela os efeitos perturbadores que os novos comportamentos exerceram nas mentalidades de certos grupos sociais. Cronistas e membros da elite não deixaram de expressar sua preocupação com a perda do "recato" e do "decoro" das senhoritas da alta sociedade que, expostas aos valores da modernidade, estavam à beira da ruína moral. A "melindrosa", personagem comum do teatro de revista da época, buscava tipificar a afetação das jovens "chiques", afeitas às aventuras amorosas e às performances corporais que sugeriam certa disponibilidade sexual, aproximando-as perigosamente dos padrões de valores e posturas freqüentemente associados às prostitutas, mas principalmente, à figura da "mulata". O "cruzamento entre gênero, raça e sexualidade" foi central para a "estruturação de algumas percepções mais refratárias à modernidade" (264). Uma modernidade que, como faz questão de enfatizar Gomes, aparecia enegrecida. Contudo, se, de um lado, a "civilização" parecia encaminhar "jovens senhoritas" a adotarem posturas sexualmente condenáveis, semelhantes àquelas que modulavam o imaginário social em torno da "mulata", de outro, a presença do elemento de "classe", articulada à raça, acabava por funcionar como contraponto aos efeitos tidos como perturbadores da modernidade. Antítese do "artificialismo" das melindrosas e dos almofadinhas, os personagens representados como pobres e negros no teatro de revista ganhavam relevo por suas características "desafetadas", o jeito honesto de ganhar a vida e "recatada" no plano moral. Nesse sentido, essa é uma das hipóteses aventada por Um Espelho no Palco para explicar que

a associação de tipos afro-brasileiros com a nacionalidade tenha sido o desejo de espelhar a nação em termos antimodernos (...) de modo a se contrapor às novidades vistas como desagradáveis que desfilavam nos ambientes chiques da capital federal diariamente (267).

Em grande medida, portanto, Tiago de Melo Gomes enxerga na Companhia Negra de Revistas o empreendimento teatral que, quando surgiu em 1926, melhor explorou e sintetizou a relação entre a questão racial e a nacionalidade brasileira. As peças da companhia não apenas reivindicavam um orgulho racial – afinal, como dizia um personagem de Tudo Preto: "o preto é que est[ava] na moda" –, mas também defendiam a idéia de um Brasil "mestiço", onde era possível a boa convivência racial. Sem dúvida, Gomes traz subsídios novos ao tema da representação "mestiça" da nacionalidade brasileira, repensando a "tese de que a idéia foi criada por intelectuais e políticos, seja ou não para fins de dominação" (324). Muito pelo contrário, tratava-se de idéias e conceitos negociados quase que diariamente no "polissêmico" mundo do entretenimento. Apenas é de se lamentar, em Um Espelho no Palco, uma ausência que, presente em Corações de Chocolat, daria um outro potencial à análise: elementos visuais. As fotos e charges que deram conta da trajetória da Companhia Negra, veiculadas nos jornais da época, sintetizaram de modo singular os sentimentos ambíguos despertados por suas peças.

Ora, como mostram Corações de Chocolat e Um Espelho no Palco, as representações de um Brasil enegrecido apareciam como uma daquelas imagens tão desconcertantes e escandalosas que apenas conseguiam ser evocadas como paródia ou caricatura chistosa da realidade social. Revestida pelo riso, objetivo máximo do teatro de revista, a Companhia Negra foi capaz de chamar a atenção para um Brasil que, talvez, não seria bem recebido ou levado a sério se afirmado, ou melhor, "visto" de outra forma ou em outros contextos.



Resenha dos livros de Orlando de Barros, Corações de Chocolat: a história da Companhia Negra de Revistas (1926-27) (2005) e de Tiago de Melo Gomes, Um Espelho no Palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos de 1920 (2004).

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As maravilhas do sexo que ri de si mesmo*


As maravilhas do sexo que ri de si mesmo*

Larissa Pelúcio

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. larissapelucio@yahoo.com.br


"Não foi a minha maneira de pensar que me desgraçou, foi a dos outros", escreveu Sade a certa altura de sua vida polêmica e emblemática. Corria o século XVIII, época em que o poder exercia-se explicitamente sobre a carne e os suplícios públicos, impostos às pessoas infratoras, era da ordem do espetacular. O Marquês, com sua "desgraçada" maneira de pensar, tecia críticas a esse poder que se realizava pela submissão completa do outro até seu esgotamento, e que assim podia ser, pois a nobreza tinha tanta certeza de sua superioridade quanto de sua impunidade.

Apesar de sua verve crítica, o nobre e controverso autor de A Filosofia da Alcova se popularizou não por seu requinte filosófico, mas pela propalada crueldade em relação aos usos dos prazeres do sexo. Foi mais fácil classificá-lo como libertino do que ver em sua prosa a relação intrínseca entre sexo, poder, submissão e controle. Relação esta que Michel Foucault esmerou-se em desnudar em História da Sexualidade – A vontade de Saber. A sexualidade, sendo ela mesma uma construção, tem uma história que não pode ser contatada sem que se fale das instituições de poder e dos discursos de saber que formularam verdades sobre o sexo.

Se a sexualidade tem sido sempre alvo de regramento e esmiuçamento por parte das instituições, o corpo feminino tem sido o lócus privilegiado do exercício desses poderes. Esta poderia ser uma das teses defendidas por Jorge Leite em Das Maravilhas e Prodígios Sexuais – a pornografia "bizarra" como entretenimento. O livro, publicado em 2006, traz os resultados da pesquisa de mestrado em antropologia defendida por Leite na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nele, o autor oferece um panorama histórico e analítico que coloca o sexo a nu, mostrando que este, mesmo quando feito entre risos, sempre foi sério, politicamente sério. "Humor e sexo juntos compõe, uma fórmula perigosamente transgressiva que os poderes da religião e da ciência procuram exorcizar", escreve Eliane Robert e Moraes na apresentação de Das Maravilhas (13).

O riso e os corpos "maravilhosos" são as duas linhas principais pelas quais o autor irá nos conduzir ao mundo do sexo como espetáculo e da pornografia "bizarra" como negócio. O autor inicia esse trajeto por uma questão conceitual: o que é pornografia e o que a diferencia do erotismo. A resposta para estas questões pode ser sintetizada na frase do escritor francês Robbe-Grillet citada por Leite, "a pornografia é o erotismo dos outros" (33). O antropólogo se vale das reflexões de outro francês, Pierre Bourdieu, para adensar a discussão. Leite propõe que o debate que dicotomiza termos e prazeres "pode ser visto como uma luta simbólica pela legitimidade das representações e práticas sexuais" (34). Para os detentores do gosto legítimo a pornografia resume a crueza literal das classes populares e seus gostos "vulgares". "A pornografia é considerada perigosa porque é o erotismo das massas e estas são sempre vistas com receio" (38). Esta associação, segundo o autor, deixa claro o cunho político do sexo e os tantos discursos que se pretendem legítimos sobre ele e o que se faz dele. Há toda uma estética do sexo que separa os "doentes" e "perigosos" dos "sadios" e "respeitáveis", como mostra o pesquisador.

Das Maravilhas traz o que Foucault chamou de "toda essa vegetação da sexualidade" e explicita a associação entre sexo e transgressão, controle e excitação. Na indústria do sexo como entretenimento, o "bizarro", o "não-convencional", está sempre associado aos discursos médicos, morais e, atualmente, aos publicitários. Assim, alguns comportamentos, práticas e, mesmo, estilos corporais, que há pouco tempo não seriam classificados como transgressivos – como a gordura corporal e o tabaco –ganham cada vez mais espaço na produção pornô. Fumar enquanto se faz sexo, exibir um corpo adiposo e praticar o sexo anal prazerosa e repetidamente é, de alguma maneira, brincar provocativamente com a visão higienista que prega a "qualidade de vida" como a forma ideal de existência do sujeito contemporâneo, aquele composto a partir do sutil controle de uma vida de privações alimentares voluntárias, de vigilância permanente sobre si e de abdicações de prazeres finamente calculados.

O sexo vem sendo tratado como coisa muito séria e, como tal, necessita ser apartado dos risos e da exibição lasciva das carnes. Falar de sexo, não de prazeres. Discursar sobre sexo, não exibí-lo. Em Das Maravilhas, Jorge Leite opta justamente pelo prazer e pela exibição.

O livro é comercializado com uma tarja preta onde se lê em letras brancas: "venda proibida para menores de 18 anos". A recomendação se justifica não só pelo conteúdo – que trata explicitamente de sexo, não de qualquer sexo, mas daquele que Gayle Rubin categorizou como o "mau sexo"1 –, como traz fotos de "corpos que fazem maravilhas" e de "corpos que são maravilhas". Anões, travestis, xifópagas, mulheres muito gordas ou com seios enormes são algumas personagens que ilustram corpos que são maravilhas, enquanto os corpos que fazem maravilhas aparecem em fotos que comprovam a capacidade elástica de alguns orifícios ou de algumas pessoas para suportar a dor sem desassociá-la do prazer, do gozo e do riso.

As fotos são essenciais2, afinal se trata de pornografia: representação do sexual, do erótico, dos atos e corpos. É preciso, então, ver, saborear ou se escandalizar pelo olhar.

Logo nas primeiras páginas, Jorge Leite adverte que trabalha apenas com pornografia legalizada e com sexo consentido, desse modo, seu estudo não contempla zoofilia, necrofilia e pedofilia. Seu foco é o sexo como entretenimento, diversão, negócio e espetáculo.

Assim, procuramos mostrar as origens culturais de determinados elementos que, ao unirem-se e formarem estes produtos, os tornam sinônimos de "degradação" e "perigo". Nesta produção conhecida genericamente como pornografia "bizarra", o sexo, as risadas e os corpos e práticas incomuns são o tema central desta curiosa linha de espetacularização da vida moderna (17).

O pesquisador valeu-se de vídeos, filmes, sites e revistas especializadas em pornografia bizarra como material para suas observações, somando a essas fontes uma variada bibliografia que vai de Sade a Bakhtin, de Freud a Foucault, contemplado, ainda, estudos brasileiros sobre sexualidade, transgressão, riso e consumo.

A pornografia como entretenimento adulto não pode ser entendida fora da produção de uma cultura de massa que passa pela popularização da imprensa, pela invenção da fotografia, do cinema até à expansão da internet. Leite apresenta como, a partir da difusão e comercialização de imagens de pessoas nuas, de órgãos e atos sexuais, foi se constituindo uma indústria que gera lucros tão especulares quanto aquilo que vende. Apesar de deixar de fora algumas discussões importantes sobre cultura de massa e mesmo sobre a história da pornografia (por exemplo, a aids não aparece em nenhum momento como um elemento que desestabiliza e até mesmo pauta outras práticas no mercado do sexo), essas passagens apressadas são recompensadas pelo texto saboroso do autor que, se deixa de se aprofundar em algumas análises teóricas, fornece aos leitores e às leitoras um panorama expressivo de um universo desprezado pelas ciências sociais e dominado (no duplo sentido) pelas ciências psi e médicas.

A partir da crítica aos olhares classificadores e normalizadores sobre o sexo, Leite escreve o melhor capítulo de Das Maravilhas – o IV–, constituindo uma espécie de cronologia tipológica das figuras desviantes. O monstro é apresentado como um ancestral dos "perversos" e dos "anormais". Genealogia estabelecida em raízes históricas e que nos levará às personagens do sexo "bizarro", não sem passar pelo bufão e sua estética do grotesco e pelos freaks em suas mais diversas expressões.

Nesse resgate original, vemos como o monstro assustador e cômico, próprio do imaginário medieval, foi perdendo seu aspecto corpóreo e fabuloso até se tornar o monstro potencial e subjetivo que qualquer um pode guardar dentro de si. Se o monstro corporal amedronta, causa fascínio e faz rir, o monstro secreto da psiquiatria do século XIX não tem graça nenhuma. Nas mãos biologizantes da sociedade nascente, as deformidades corporais e as estranhezas comportamentais perdem sua aura de encantamento e tornam-se "casos" médicos ou de polícia.

O freak, que ainda achava espaço nos espetáculos baratos para as massas, vai cedendo lugar ao pervertido. Este já não se mostra, ao contrário, precisa ser retirado de cena, não sem que todo um discurso sobre ele se torne fartamente exibido. O anormal, o "monstro pálido", é digno de pena; o pervertido, cujo desvio ameaçador é, sobretudo, sexual, merece ser penalizado.

O corpo educado da nobreza cortesã, mimentizado e disciplinado pela burguesia ascendente, tornou-se, por fim, o modelo da civilização. Entre os excessos corporais controlados, a gargalhada, "que até então poderia ser causada pela visão da deformidade, torna-se lentamente ela mesma uma deformidade" (191). A burguesia, como os santos medievais, sorri. Enquanto o populacho e os loucos gargalham.

O capítulo sobre o riso é o mais extenso e talvez seja o que mais abre flancos para críticas, não pela qualidade das análises, mas por algumas ausências. Os leitores e as leitoras, familiarizados com os estudos históricos sobre o riso, podem sentir falta de autores como Dominique Arnould, Bernard Sarrazin, Jeannine Horowitz, entre outros. Lacunas que o autor parece ter procurado preencher a partir de trabalhos como o de José Rivair Macedo (2000). Ainda assim, Leite faz uma espécie de exegese dessa história para conduzir os leitores ao que de fato lhe interessa – o riso na pornografia –, procurando mostrar do que se ri quando o assunto é sexo.

Seguindo os argumentos de Leite, o potencial crítico e político do sexo irreverente perde sua verve contestatória, na medida em que a representação da pornografia vai se tornando um negócio. Humor e capital parecem não combinar. Assim, quanto mais a pornografia se rende ao mercado, mais o riso debochado ou desafiador se transformará em "simpatia burguesa. Simpatia entendida como aprovação secreta do sexo visando ao divertimento, ao entretenimento e à capitalização desta nova forma de espetáculo" (139). É como se o mercado domesticasse até mesmo as práticas e os corpos mais rebeldes, tornando sério o negócio do sexo e o sexo como negócio. Mais à frente, nesse mesmo tópico, Leite parece resistir à sua própria tese, propondo que o humor é ainda um elemento importante nas produções pornográficas. Assim, o autor abdica do caminho teórico sem surpresas, o de tomar o mercado como único elemento "pasteurizador" do potencial transgressivo das sexualidades disparatadas, buscando argumentos mais sofisticados e corajosos para enfrentar essa questão.

No capítulo V, onde as maravilhas e prodígios sexuais são apresentados e discutidos, Leite situa a pornografia "bizarra" como um reduto de resistência à domesticação e normalização dos corpos e das sexualidades. Nada de corpos magros, bronzeados e bonitos, tampouco o higienismo presente na maior parte das produções pornográficas convencionais. Excrementos, fluídos, excessos de toda ordem compõem o material excitante do "bizarro". Assim, o socialmente proibido e culturalmente interdito parece encontrar no ramo dissidente da pornografia "soft" um lugar de expressão. Porém, os "corpos que são maravilha" acabam encapsulados nesse espaço, mantendo uma associação ancestral entre anões, gordos e travestis com o burlesco, nas melhor das hipóteses, e com a perversão, sendo alvo de controle médico e/ou condenação social. A pornografia bizarra não consegue (até mesmo porque não pretende) deslocar essas pessoas do plano da abjeção, do não-humano, para o do socialmente viável. Ao contrário, mantém-se como um dos limites necessários que fazem da "normalidade" o modelo desejável. Desse ponto de vista, o papel transgressivo e contestador da pornografia "bizarra" torna-se questionável, uma vez que certos corpos e prazeres só serão legítimos como aberração e nunca como outras possibilidades de existência.

Ainda que, de certa forma, reconheça esse encapsulamento, o autor afirma que a sexualidade não-convencional tende a escapar da armadilha do mercado, assombrando mais do que gerando lucros. Daí a necessidade de "repaginar" os freaks shows, espetacularizando, via programas televisivos, "dramas" familiares ou corpos indomados (ou, ao contrário, tão controlados que se tornam aberrações), como se o enquadramento via show business expurgasse o perigo evidenciando o ridículo, salvaguardando a ordem vigente. Se o espetáculo das maravilhas e prodígios sexuais é capaz de desafiar o hegemônico, cabe aos leitores e às leitoras decidirem.

Jorge Leite arremata seu estudo voltando-se para o corpo-síntese da travesti. A discussão sobre gênero e corporalidade encontra aqui seu espaço. Sempre provocativo e irreverente, Das Maravilhas centra-se no corpo "dúbio" das travestis para descontruir o sexo e problematizar o gênero:

a figura da travesti prostituta encarna tudo que foi estudado até aqui: o comércio do sexo, a pornografia, o riso transgressivo, a associação com a delinqüência, a feminilidade obscena, o corpo "maravilhoso" e o conseqüente incômodo social que estes elementos provocam (272).

Se não há indiferença possível diante da travesti, figura emblemática desse estudo, tampouco há possibilidade de passividade na leitura do livro de Leite, que, na sua teratologia (do grego: narrativa de coisas maravilhosas), incita nosso vouyerismo e, como não poderia deixar de ser, instiga o riso. Um riso que bem poderia vir do deboche sadeano, mas que aqui é também provocado pelo prazer de uma boa leitura.



Referências bibliográficas

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Vol. 1. 15ª ed. São Paulo, Graal, 2003.

MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre/São Paulo, Ed. UFRGS/Editora Unesp, 2000.

RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In ABELOVE, BARALE, HALPERIN et alii. (eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. London/New York, Routledge, 1992.



* Resenha de LEITE Jr., Jorge Das Maravilhas e Prodígios Sexuais – A Pornografia "Bizarra" como Entretenimento. São Paulo, Annablume/ Fapesp, 2006.
1 Rubin, em Thinking Sex (1984), defende que a ideologia sexual popular mescla a idéia de pecado à de inferioridade psicológica, anticomunismo (observo que o texto foi publicado pela primeira vez em 1984, antes do colapso socialista, portanto), histeria de massa, acusações de bruxaria e xenofobia. A mídia, segundo ela, corroboraria esse sistema de estigma e preconceito, favorecendo e fixando uma hierarquia de valor sexual, na qual, à "ralé sexual" caberia a segregação e o infortúnio. No sistema de valores sexuais, o sexo "bom" seria aquele feito entre um homem e uma mulher, preferencialmente casados, monogâmicos, que visam fins procriativos e, assim, fazem um sexo não comercial. Sendo o "mau sexo" o avesso dessa cadeia.
2 A dissertação que deu origem ao livro Jorge Leite valeu-se de centenas de fotos e ilustrações, porém, por questões de custos de edição, a maior parte não pode ser utilizada, levando o autor a selecionar as imagens a partir do critério de representatividade em relação ao conjunto do material levantado e dos temas abordados, bem como pela qualidade gráfica.

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Matando a escrava que vive em nós*


Matando a escrava que vive em nós*


Marília Novais da Mata Machado

Doutora pela Universidade Paris Norte; professora da Faculdade Novos Horizontes, Belo Horizonte, MG. marilianmm@terra.com.br


Preconceito contra a "mulher" é livro tão complexo, sério e denso quanto a questão da qual se ocupa. Resenhá-lo é, assim, um risco, é criar outro discurso, calcado no primeiro, ao qual se deseja ser fiel, mas é, também, um desvio, uma interpretação, uma fala feita de outro lugar, também feminino, também sem pretensão à verdade, intencionalmente, tão pouco unívoco quanto o que o gerou.

O livro de Sandra Azerêdo é aberto, poético, desafiante, e convida à aventura, a trilhar e desbravar caminhos ainda desconhecidos, a redesenhar fronteiras, a re-significar cotidianos, sem garantia e sem intento de chegar a certezas. Pequenos sinais e sugestões já apontam para questões importantes, construções e desconstruções em ato. Assim, as aspas no título sinalizam uma fronteira nova que deixa de fora a busca da mulher como essência e se abre à polissemia do feminino. A menção à diferença, também no título, aponta para "um dos poucos caminhos para a igualdade" (35), frase que sugere que há, contudo, outros caminhos: a poesia, a arte, a coragem, a escrita, o desafio, a visualização de limites a serem ultrapassados.

Três temas organizam o livro: (1) o tratamento do preconceito como um conceito construído histórica e discursivamente e a importância da afirmação da diferença como instrumento/arma para desmontar essa construção; (2) os meandros da fabricação dos conceitos de mulher e de diferença sexual em fragmentos da filosofia ocidental; (3) a teoria feminista e o conceito de mulher.

Tratando o primeiro tema, Sandra Azerêdo acentua o papel da linguagem na constituição das coisas. Muito cedo na vida, em cada lugar e em cada época, a linguagem ensina e naturaliza certa diferença sexual, em cada caso puramente imaginária. Junto à diferença, a linguagem cria também uma certa mulher, um certo homem e, embora não necessariamente, o preconceito. Entre nós, cria um lugar privado para a primeira (as fronteiras da casa, a proteção da família), público para o segundo (a rua, a experiência da liberdade), uma posição de domínio, independência e autonomia para ele, a sujeição, dependência, alienação e submissão para ela. Cria dicotomias: a mulher de verdade (esposa abnegada que vive para o marido e o lar) / a outra (a consumista, a puta); o macho com a prerrogativa do intelecto / a fêmea enclausurada no próprio corpo que é o que a define.

Sobre dicotomias como as citadas, o preconceito se instala. Um protótipo pode ser representado pelo triângulo pai provedor, mãe dona-de-casa, a puta da outra. Esse triângulo é parte do imaginário de cada um, de forma que poucas coisas são mais ultrajantes, para uma mãe/mulher de verdade, que ser chamada de puta pelo pai provedor. Para os três, o triângulo representa lugares naturais e identidades compactas, graníticas, como a do macho insaciável, da mulher honesta e daquela que não presta. Reinando, o homem; quanto a elas, sujeitas à consciência hospedeira do opressor, para utilizar a expressão criada por Paulo Freire.

São justamente essas identidades compactas que a autora pretende quebrar, re-esculpir, desnaturalizar, produzindo um outro saber (crítico e responsável), outro imaginário radical (instituinte), questionando, buscando ser capaz de, cada vez mais, fazer perguntas pertinentes, numa linguagem agora libertadora, apontando a polissemia das palavras, tecendo novas conexões.

Ora, se a linguagem é capaz de construir discursivamente diferenças sexuais que são estereótipos e identidades graníticas vinculadas, na vida real, a preconceitos que no limite são violências contra a mulher – estupros, assassinatos, abusos, espancamentos, insultos, ameaças e desrespeitos a direitos, isso tudo em um contexto de grande dominação (capitalista, falocêntrica), ela é capaz também de construir o discurso libertador, no qual as diferenças, agora afirmadas, apontam para a multiplicidade de gêneros, raças e classes, para a polissemia do conceito de mulher, para a alteridade a ser reconhecida e não isolada e dominada.

Abordando o segundo tema, Sandra Azerêdo seleciona no pensamento filosófico ocidental herdado por nós exemplos de construção do conceito de mulher. Em Espinosa, encontra a mulher naturalizada, compactada, enquadrada, inferior ao homem, governada por ele no mundo todo e, só assim, para o filósofo, vivendo harmoniosamente (a autora disseca essa tese, apontando, entre muitos outros vieses, a sujeição da mulher nela implicada). Em Freud encontra a mulher invejosa do pênis, falando sempre de si a partir da referência masculina, mas – um avanço – figura enigmática que demonstra que existe um limite no saber psicanalítico. Em Nietzsche, claramente, a mulher é um conceito criado, construído, e esse pensamento é pertinente para uma teoria feminista. O importante insight de Beauvoir – "Não se nasce mulher, torna-se mulher" – abre-se também para uma teoria feminista; mas a reflexão desta filósofa, quando esmiuçada e desconstruída, mostra temores de avançar no sentido da liberdade, um acrítico querer assimilar-se ao homem, além de propostas implícitas de vanguardismo que, ao colocar mulheres intelectuais na linha de frente, aliena todas as outras. Já Foucault adota um pensamento múltiplo, filia-se metodologicamente à genealogia nietzschiana, dá ênfase à história e ao corpo e acusa a construção assimétrica, separando homem e mulher no que diz respeito à reflexão moral sobre o comportamento sexual.

O pensamento de Foucault, Deleuze, Guattari, Rolnik, Rancière, Haraway completa a própria reflexão da autora, colaborando na construção de uma teoria feminista em que a diferença sexual, de raça e de classe é afirmada, não em defesa de uma essência de mulher – alguém mais sensível, mais intuitiva, menos agressiva – mas para desconstruir essa suposta essência. Pois a busca de origens e essências constitui uma posição escorregadia, talvez mentirosa, discurso fundado na fala masculina, formador de identidades estereotipadas e, portanto, presas fáceis da opressão e do preconceito. Não há uma essência de mulher maciça, homogênea, mas mulheres singulares, múltiplas, capazes de exercer sua autonomia.

A teoria feminista é desenvolvida como terceiro tema. Sandra Azerêdo aponta para a singularidade das mulheres no mundo capitalista, falocêntrico e racista, assinala a necessidade de ousar teoricamente, afirmando a diferença, abrindo-se para a poesia, a literatura, a arte, usando a linguagem da construção/ desconstrução. A autora chama a atenção para a importância da contribuição das mulheres não brancas, muitas delas lésbicas, que foram capazes de criticar o racismo, a homofobia e o colonialismo nos escritos das mulheres intelectuais e brancas do Primeiro Mundo. Para tanto, essas mulheres usaram uma linguagem de resistência, inovadora, pouco canônica, polêmica, às vezes, à custa de serem isoladas nas suas universidades. Mas foi justamente esse tipo de produção – da qual são exemplos Anzaldúa e Irigaray – que permitiu desconstruir conceitos fundamentais à manutenção do preconceito. Quatro desses conceitos são tratados, no livro, com detalhes: gênero, identidade, diferença, experiência.

À medida que desenvolve seus argumentos, Sandra Azerêdo lança mão da poesia, da análise de romances e filmes e, especialmente, de informações de primeira mão, obtidas com sua pesquisa com mulheres vítimas de violência. Pouco a pouco fica claro que essas mulheres constroem suas subjetividades a partir da violência, fechando-se a re-significações do que vivem e a tudo que ameaça a hegemonia masculina. Para lidar com essas situações de total absorção do discurso dominante e enfrentar o preconceito contra a mulher e a violência que o acompanha, Sandra Azerêdo lança mão da noção de "amizade como modo de vida", proposta por Foucault, e realiza essa amizade em ato no grupo das faladeiras, constituído em uma delegacia de mulheres de Belo Horizonte. Cria, assim, uma metodologia de combate ao preconceito contra a mulher.

Resenhas (como a aqui apresentada) cobrem muito pouco da riqueza de uma obra. Assim, é bom insistir, Preconceito contra a "mulher" é leitura indispensável para todos aqueles que quiserem filiar-se ao movimento de combate a preconceitos e, sobretudo, para todas as que quiserem, parafraseando Mia Couto, matar a escrava que vive dentro de nós.



* AZERÊDO, Sandra. Preconceito contra a "mulher": Diferença, poemas e corpos. São Paulo,Cortez, 2007, 120p.

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Mulheres em movimento: histórias do feminismo pela fotografia*


Mulheres em movimento: histórias do feminismo pela fotografia*

Juliana PerucchiI; Karla Galvão AdriãoII

IPsicóloga, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e pesquisadora do Núcleo MARGENS/UFSC. jperucchi@hotmail.com
IIPsicóloga, doutoranda no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, sócia fundadora do Instituto Papai e pesquisadora do Núcleo MARGENS/UFSC. kgalvaoadriao@hotmail.com


A proliferação vertiginosa de ensaios fotográficos com foco nos movimentos sociais tem evidenciado a contribuição da fotografia não apenas para o registro histórico desses processos, mas, sobretudo, para que se possa rever certas posturas, suprir lacunas e legitimar estratégias de lutas. Ao mesmo tempo em que resgatam o cotidiano da militância feminista, onde as possibilidades se apresentam como bandeiras que buscam a unidade/pluralidade do sujeito "mulheres", enquanto estratégia política, o material histórico contemplado pela fotografia, remete a este lugar de pesquisadoras militantes feministas, em diálogo com o campo.

O acervo fotográfico reunido no livro Mulheres e movimentos, da fotógrafa Claudia Ferreira e da socióloga Claudia Bonan (que assina os textos ao longo da obra), lançado em março de 2005, reúne fotos que retratam a história dos últimos 15 anos do movimento feminista no Brasil e na América Latina, discutindo as relações de Gênero e como estas são representadas no cotidiano do movimento. A história do livro começa quando Claudia Ferreira fotografou o 8º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em 1989 em Bertioga, São Paulo. Fotógrafa e câmera começam ali sua trajetória na captura de imagens de mulheres no movimento feminista. Mas como relatam as próprias autoras, a história do livro começa antes, em 1975, quando, pela primeira vez, a ONU institui o Ano Internacional da Mulher e dedica a década seguinte às mulheres do mundo inteiro. Os registros da presença das mulheres na vida política e nas manifestações sociais do feminismo estão reunidos em 260 fotos que retratam as personagens, a militância, as reivindicações e bandeiras de luta, os encontros, seminários, protestos, enfim, momentos e pessoas importantes do feminismo nos últimos anos.

O livro parece mostrar um lado do feminismo que o grande público não conhece. A idéia de que o movimento feminista continua queimando sutiãs em praça pública, de que as feministas são mulheres mal amadas, recalcadas, chatas e mal humoradas ainda atravessa concepções do senso comum. O livro pretende mostrar que as reivindicações feministas, apesar de serem todas muito sérias, importantes e bem articuladas, são feitas e encaminhadas pelas militantes com bom humor e de maneira bastante criativa e festiva. Embora em preto e branco, as fotos retratam o colorido e o brilho do movimento. A estrutura do livro foi organizada de modo a fugir da maneira mais simplista de contar a história, que seria pela cronologia linear: o que aconteceu antes, o durante e o depois. O resgate fotográfico escapa brilhantemente dessa linearidade e transgride a cronologia.

O primeiro capítulo retrata o Movimento Feminista ao longo dos anos 90 na América Latina e no Brasil, tratando dos grandes temas da agenda feminista – direitos sexuais e reprodutivos, violência de gênero, acesso ao trabalho.

O segundo capítulo é dedicado aos encontros feministas brasileiros, apresentados e retratados como momentos de articulação e de convivência feminista, espaços de troca de idéias, de organização e articulação das reivindicações, retratados em sua seriedade, mas também em sua informalidade e intimidade. Ou seja, espaços de constituição de um ethos feminista, onde se aprende e se apreende as relações de desigualdade de gênero – desde as vivências intimistas de grupos de discussão, retomando a égide "nosso corpo nos pertence", até pautas da agenda transnacional de reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres.

O terceiro capítulo do livro retrata a participação das feministas nas conferências internacionais. Com a participação de aproximadamente 500 brasileiras, a conferência de Beijing ganhou representação especial, assim como a de Durban e a ECO92.

No quarto capítulo, as autoras apresentam as perspectivas para o terceiro milênio, dois grandes acontecimentos estão em foco: o processo de conferências organizado pela Articulação de Mulheres Brasileiras (importante rede nacional feminista, que articula os 27 fóruns de mulheres estaduais), que se iniciou em abril de 2000 e tinha como objetivo a realização de uma conferência nacional de mulheres que sintetizasse em uma plataforma a agenda feminista de longo prazo e que apresentasse as mulheres como sujeitos políticos no contexto eleitoral de 2002. Esta conferência ganhou destaque pelas lentes de Claudia Ferreira e pelo texto de Claudia Bonan, exatamente pela importância deste evento no panorama feminista nacional. Entre os vários desdobramentos, o principal resultado foi a Plataforma Política Feminista, construída no processo da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (CNMB), em Brasília, junho de 2002.

O livro retrata o movimento feminista que o grande público não conhece. A fotógrafa teve interesse especial em divulgar o movimento para além do público feminista, mas também para esse público, e retratar o que as feministas estão fazendo ao longo desses anos. Esta perspectiva, da própria fotógrafa e militante, deu visibilidade ao movimento. O livro não se pretende restrito às militantes feministas – protagonistas das fotografias reunidas na obra –, tampouco aos estudiosos das teorias feministas, talvez por isso tenha ultrapassado os limites do movimento, estendendo-se ao campo da produção artística, apesar de manter a referência teórica e histórica das lutas feministas.

Para além de atestar a existência de personagens, atos de militância, reivindicações, encontros, seminários, protestos, as fotos de Claudia Ferreira afirmam a presença do movimento feminista na realidade brasileira e latinoamericana de modo contundente há, pelo menos, mas não apenas, quinze anos. Os instantes capturados pela lente da fotógrafa permitem ler as peças de um quebra-cabeça que contempla os processos de construção democrática, articulação política, proposição de políticas públicas, mudanças na legislação, transformações nos arranjos sociais, enfim, dos desdobramentos que se processaram no Brasil ocasionados, não exclusivamente, mas muito fortemente, por situações e por pessoas ali retratadas.

Se a imagem que se tinha do movimento feminista, e das pessoas que dele fizeram parte ao longo desses anos, era carregada de concepções equivocadas, as fotos de Claudia Ferreira evidenciam outras existências neste movimento: pessoas felizes, festivas, comprometidas, sérias, porém, bem humoradas, que amam tanto suas bandeiras de luta, quanto suas companheiras de luta.

Talvez a característica mais marcante do livro, especialmente das fotografias, seja o impacto que elas têm no sentido de refutar concepções preconceituosas que comumente definem o feminismo. As fotos ali reunidas são testemunhos de algo que nós, feministas, já sabemos: o feminismo não é um movimento composto exclusivamente de mulheres, brancas, assexuadas, de camadas médias e da elite, intelectualizadas e urbanas. O feminismo é, acima de tudo, um movimento plural, que agrega diferentes pessoas, de diferentes camadas sociais, de múltiplas etnias, com diferentes crenças religiosas, de diversas orientações sexuais e oriundas de diferentes contextos territoriais. O feminismo não é sisudo, mal amado ou chato. Se nos arriscássemos a brincar com as autoras e colocássemos uma legenda geral para as fotos, poderíamos utilizar uma citação de Carmen da Silva, tirada do próprio livro: "Digam o que disserem, o Feminismo é uma festa!".

Esse debate também vem contribuir para as discussões na atualidade em torno de possíveis identidades feministas. Ou seja, quais referentes constituem as mulheres enquanto grupo-movimento reivindicatório. Ao mesmo tempo, coloca a discussão em torno de: se o que une as mulheres em torno de processos de desigualdade está marcado em seus corpos (se é que os corpos são atestado de concretude dissecada em uma binaridade natureza-cultura), então, é sobretudo essa concretude que as torna mulheres – sexo feminino – seres unidos neste mesmo conjunto-movimento reivindicatório.

Assim, as fotos que compõem o livro são de mulheres – corpos femininos. Mulheres diversas, em diversidade. São mulheres que fazem os movimentos feministas pós-terceira onda, onde a diferença faz-se presente dentro do próprio movimento. Processos de diferença demarcados através da existência de diversos grupos que buscam processos de igualdade, enfaticamente marcados nestas diferenças. Além de compor um belíssimo ensaio fotográfico, este livro aponta para um entendimento do percurso de nosso passado e reflexão de nosso presente, vislumbrando as pautas das contradições atuais e futuras do movimento feminista na América Latina.


* Mulheres e movimentos, Claudia Ferreira e Claudia Bonan, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005, 208p.

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As estruturas elementares da violência*


As estruturas elementares da violência*


Pedro Paulo Gomes Pereira

Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. pedropaulopereira@hotmail.com


Las estructuras elementales de la violencia é o título do livro de Rita Laura Segato, lançado em 2003 na Argentina, no qual a autora, em diversos e multifacetados ângulos de leitura, apresenta um modelo geral para compreensão da violência. Num projeto ousado, fruto de décadas de investigações e trabalhos sistemáticos sobre o assunto, nove ensaios se sucedem, submetendo ao leitor uma nova forma de perceber a violência em suas relações diretas com gênero.

O primeiro ensaio, "A estrutura de gênero e o mandato de violação", analisa as dinâmicas psíquicas, sociais e culturais que se relacionam com a violação. Para Segato, a violação é, antes de tudo, um enunciado. Desse modo, as análises que circunscrevem os atos de violação a patologias individuais ou a ação imediata e automática da dominação masculina acabam por olvidar uma dimensão fundamental: a violação é, fundamentalmente, um mandato que seria condição necessária para a reprodução do gênero como estrutura de relações entre posições marcadas pelo diferencial hierárquico, e instância paradigmática de todas as outras ordens de status. A autora assinala, então, o lugar da violação, como cobrança rigorosa, forçada e naturalizada de um tributo sexual, na reprodução da economia simbólica de poder cuja marca é o gênero. A violação, portanto, atua nos ciclos regulares de restauração desse poder.

Na busca de formulação de modelo capaz de dar conta da etiologia da violência – sempre pensada em sua associação direta às relações de gênero –, a autora assevera que a violência, no caso da violação, decorre da relação entre dois eixos interconectados – um eixo horizontal, formado por termos acoplados por relações de aliança e competição, outro, vertical, caracterizado por vínculos de entrega ou expropriação. O eixo vertical associa as posições assimétricas de poder à sujeição, ou seja, do perpetrador à sua vítima; o eixo horizontal associa o perpetrador aos seus pares, em relações que atuam objetivando a simetria. Esses dois eixos possuem ciclos que se articulam, formando sistema único cujo equilíbrio é instável e de consistência deficiente. O ciclo cuja dinâmica violenta se desenvolve sobre o eixo horizontal se organiza ideologicamente em torno de uma concepção de contrato entre iguais; o ciclo que se revolve em torno do eixo vertical corresponde ao mundo pré-moderno, e se refere ao universo do status. As esferas do contrato e do status, apesar de pertencerem a universos distintos, são coetâneas e se interceptam sistematicamente.

A manutenção do eixo horizontal, que prima pela relação simétrica entre pares, depende, para sua sustentação em simetria, da relação vertical com a posição subordinada. Esse processo origina uma relação de exação de tributo no eixo vertical, condição mesma da conservação da estabilidade do eixo horizontal. Essa exação de tributo resulta num fluxo afetivo, sexual e de outros tipos de subordinação que expressa a sujeição constante da posição do que se designa de mulher ou feminina. Como se pode deduzir, esse tributo é voluntário em condições de "normalidade", mas em períodos e conjunturas especiais pode ser coagido.

A violação é um enunciado que se dirige basicamente a colocutores presentes no cenário ou no panorama intelectual e afetivo do sujeito de enunciação. O estupro, seguindo esse raciocínio, decorre de um mandato que dimana da própria estrutura de gênero, e garante, em determinados casos, o preito que se acredita ter acesso. Este esquema forma o desenho do patriarcado e das estruturas de gênero, perfilando suas arquiteturas.

Todavia, se a tentativa é encontrar um modelo geral para a violência, e se a violência é coetânea ao gênero, como acessar a estrutura de gênero? A resposta a essa indagação – deveras importante para o argumento central do livro – é tecida da seguinte forma: O patriarca deve ser compreendido como pertencente ao estrato simbólico ou como estrutura inconsciente que conduz os afetos e distribui valores entre os personagens do cenário social, ocupando posição no campo simbólico. O domínio do patriarcado e sua coação se exercem como censura no âmbito da simbolização dessa fluidez; âmbito discursivo, no qual os significantes são disciplinados e organizados por categorias que correspondem ao regime simbólico do patriarcado. O discurso cultural sobre o gênero registra, limita e enquadra as práticas. Dessa maneira, a natureza hierárquica e a estrutura subjacente e inerente às relações de gênero – que não são nem corpos de homens nem corpos de mulheres, mas relações hierarquicamente dispostas – não podem ser alcançadas por uma observação simples, de matiz puramente etnográfica. O patriarcado não é, pois, somente a organização de status relativos aos membros do grupo familiar de todas as culturas e épocas, mas a própria organização do campo simbólico; uma estrutura que fixa e adsorve os símbolos por detrás da miríade de organizações familiares e de uniões conjugais. Para acessar a estrutura de gênero, se faz necessário, portanto, perscrutar através das representações, das ideologias, dos discursos elaborados pelas culturas e práticas de gênero. Somente esse procedimento permite visualizar a economia simbólica que instala o regime hierárquico e o reproduz.

Um dos grandes momentos do livro é aquele em que a autora faz dialogar Maurice Godelier e Jacques Lacan, ou melhor, os achados etnográficos do antropólogo e uma das proposições fundamentais do psicanalista. A etnografia de Godelier entre os Baruya da Nova Guiné é relacionada à teoria lacaniana, segundo a qual "a mulher é o falo, enquanto o homem tem o falo". Esse diálogo permite a autora demonstrar que o falo – em toda sua variação simbólica – é expropriado, e que o ato de expropriação é violento e se reproduz por meios violentos, de forma regular e cotidiana; permite, então, apreender a célula violenta que Lacan não viu.

Segato aborda, ainda, diversas outras dimensões da violência. Entre elas, ressalto: a) o exame da subjetividade dos sujeitos que utilizam a internet; b) e a apreciação da dimensão da violência moral em sua relação com as estruturas elementares da violência. No primeiro caso, a autora nos expõe, avaliando a economia do desejo na internet, como a interação virtual atua sob o sujeito moderno e como essa forma de estabelecer intercâmbios acaba por lhe conferir caráter onipotente. O processo de obliteração do corpo nas conversações na internet dá origem ao sentimento de autoridade absoluta e multiplica a agressividade dos sujeitos. No que se refere à violência moral ou psicológica, a autora indica o seu lugar na reprodução do regime de status – tanto na ordem de gênero como na ordem racial, já que esse tipo de violência não é percebido como espúrio nem dispensável à ordem de gênero, mas como inerente e essencial, exercendo papel ubíquo de atualização na ordem de status.

Diante da diversidade de abordagens, seria possível indicar a tese central do livro, aquela que permitiria a autora discorrer sobre assuntos tão díspares – como gênero e hibridismo na transnacionalização da cultura Yoruba; família, sexo e gênero no Xangô; além dos já mencionados temas, como violação, violência moral, economia do desejo no espaço virtual da internet – e, ainda assim, manter uma coerência e unidade na análise? Podemos pensar em duas teses centrais que percorrem toda a obra.

A primeira assinala que a exação do tributo de gênero é condição indispensável para a habilitação dos que aspiram ao status masculino e esperam poder competir ou se aliar, regidos por um esquema contratual. A violência tem papel fundamental na reprodução da ordem do gênero, sendo-lhe mesmo consubstancial. A articulação violenta é paradigmática da economia simbólica dos regimes de status, exercendo papel central na reprodução da ordem de gênero. Dessa forma, fica evidente que a moral e o costume são indissociáveis da dimensão violenta do regime hierárquico.

A segunda idéia – que imprime à obra feição bem particular – consiste na tentativa de obter e indicar caminhos possíveis para se afastar da história da dominação patriarcal. Daí a necessidade de Segato mostrar em diversas ocasiões no livro como um discurso híbrido, desestabilizador e irônico do códice afro-brasileiro, entendido como forma profunda de reflexividade, aponta uma "possível saída da humanidade em direção pós-patriarcal" (2003:19).

Um dos aspectos importantes do livro de Segato, percebidos logo na primeira leitura, reside na possibilidade de repensar as políticas públicas direcionadas à violência contra a mulher. Como vimos, a autora enfatiza questões cruciais, muitas vezes negligenciadas nas análises sobre violência de gênero: a dimensão expressiva e não apenas instrumental dos crimes contra as mulheres e a presença da interlocução entre os agentes – interlocução tanto ou mais importante que a conexão imediata entre agressor e vítima.

Essa ênfase possibilita pensar novos caminhos e fendas inexploradas. Quando as políticas públicas se centram mais no perpetrador, olvidando-se do intenso processo de comunicação do ato violento, com certeza, muito do essencial é deixado de lado, impedindo a eficácia das ações. A produção teórica de Segato demonstra mesmo quão relevante podem ser as análises desenvolvidas em Las estructuras elementales de la violencia, como se afigura em seus ensaios posteriores sobre crimes na Ciudad de Juàrez, feminicídio, relações entre território e corpo e sobre o Édipo brasileiro.

Outra contribuição da autora repousa na forma de construir seu olhar. Muitas das análises de gênero e de violência de gênero que se querem objetivas e científicas acabam caindo numa armadilha: ao espelhar a construção de sua narrativa numa estrutura epistemológica disciplinar cerrada, acabam replicando a voz de um sujeito branco, masculino, heterossexual e pertencente às elites. Creio que é na tentativa de fugir desta cilada epistemológica que devemos compreender a obra de Segato, daí a tentativa consciente de ultrapassar as barreiras disciplinares. A autora tem ciência de que escrever antropologia é estar no contexto de hegemonia disciplinar, e transpor essa hegemonia significa um tipo de conhecimento transdiciplinar. O diálogo estabelecido com a psicanálise por todo o livro, por exemplo, desestabiliza seu próprio discurso, fazendo com que a autora parta de muitas tradições, disciplinas, num pensamento liminar, para utilizar a expressão de Walter Mignolo (2003). Essa afirmação, contudo, precisa ser mais bem delimitada.

Ao relacionar os achados etnográficos de Godelier à teoria de Lacan, Segato assevera que as teorias são igualmente importantes e que não se deve conferir privilégio epistemológico ao Ocidente; em realidade, ela opera uma ruptura epistemológica quando percebe nos povos e culturas subalternas um potencial epistemológico. As páginas finais de Las estructuras elementales de la violencia apresentam claramente o potencial epistemológico do subalterno que conhece tanto a razão do senhor como a razão do escravo, enquanto que o senhor conhece apenas sua razão, mas não a do escravo.

Esse movimento possibilita a autora fugir das redes que aprisionam os pensadores exclusivamente ao legado europeu ou norte-americano, distanciando-se, assim, de uma visão monotópica, ou seja, de uma perspectiva de um sujeito cognoscitivo que se situa universalmente, um sujeito disciplinar – o conhecedor – não contaminado pelo outro que descreve.

O pensamento de Segato se posiciona sempre entre, uma posição que permite pensar pense entre línguas e tradições, traduzindo códices e sistemas de signos, relacionando histórias locais e projetos globais. Esse se situar entre assegura o caráter liminar do pensamento de Segato.

A autora parece ter ciência do caráter inaudito de suas análises e de sua ousadia, que pode ser percebida na sua preocupação em submeter suas idéias ao público (2003:13). Submeter os textos em busca de críticas, de dúvidas, de contribuições, numa procura de interlocutores, para que se avance no conhecimento e nas ações, e que possibilite um contra campo à violência. Se o ato de violência é um ato de comunicação, a própria comunicação – e o diálogo – poderá subverter essa cadeia constitutiva. Diante deste chamado e de um texto tão provocante, cada qual reage de determinada forma. Destaco duas observações.

Em primeiro lugar, Segato em diversas ocasiões relaciona soberania e vítima sacrificial. Giorgio Agambem (2002a, 2002b, 2004) vem trabalhando soberania, mas relacionando-a ao homo sacer – aquele ser que não é sacrificiável. O autor busca compreender os espaços em que o homo sacer se embate com o poder soberano. Soberana, para Agambem, é a esfera em que se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício, e sacra – matável, sacrificiável – é a vida que está atrapada nessa esfera. Como relacionar, então, as mulheres foracluídas do cenário nacional e o poder soberano? Devemos percebê-las dentro da esfera do sacer, entendida na concepção de Agambem, ou como vítimas sacrificiais? De que forma as vítimas sacrificiais se relacionam como o homo sacer? De forma mais geral, poderíamos indagar como a obra de Agambem se vincula às idéias de Segato?

Em segundo lugar, questiono-me sobre a definição de gênero de Segato e as relações que ela estabelece com autoras importantes como Judith Butler e com a teoria queer. Butler asseverou que a identidade sexual era resultado de práticas discursivas e performáticas de gênero; gênero seria uma ficção cultural, um efeito performático de atos reiterados, não havendo, assim, uma essência. Gênero é, pois, uma identidade instável, instituída por intermédio de repetições estilizadas e seu efeito se produz mediante a estilização do corpo. As repetições produzem ilusão de um gênero constante. O movimento que instaura as sexualidades normais advém de atos de violência e exclusão que, ao mesmo tempo em que criam os corpos e sexualidades normais, geram corpos abjetos e sexualidades anormais. A ênfase, portanto, está na performatividade e em como o contra-discurso ocorre na possibilidade de se reapropriar das normas e códigos, ressaltando a debilidade e fragilidade das estruturas heterocentradas. Daí a importância e o potencial subversivo que a autora confere aos atos de fala, bem representados na discussão queer.1 Para Segato, as relações de gênero devem ser entendidas no universo da estrutura patriarcal, sob a violenta coerção patriarcal; violência e gênero são consubstanciais. Na verdade, o gênero pode ser percebido tanto como estrutura de relações entre posições marcadas pela hierarquia, como na dominação patriarcal simbólica.

As duas autoras parecem coincidir nas estratégias de combate à violência. Como Butler, Segato afirma que, quanto mais ênfase se deposite em significantes expressivos na circulação e na mobilidade de gênero, mais nos distanciaremos da esfera patriarcal. Assim, no capítulo "Inventando a Natureza", o leitor vê surgir uma sociedade andrógina, na qual são irrelevantes termos como heterossexual ou homossexual, e que imprime uma maneira diversa de "inventar a natureza", se opondo às concepções ocidentais (2003; 2005). Contudo, se a proeminência de Butler está em assinalar o caráter performático de gênero e ressaltar as possibilidades de inversão, a ênfase de Segato indica a fluidez de gênero na tradição afro-brasileira, nas condições legais e institucionais para criar um contra-campo à dominação patriarcal, na discussão da lei como instância de transformação social.

Essa pequena digressão enseja perguntas como: Seria a posição de enunciação dessas autoras que as levariam a priorizar determinada visão de gênero e eleger temas específicos para abordar? Seria o locus de enunciação que permitiria a Butler aderir ao movimento queer, enquanto Segato ainda não sentiu a necessidade de se pronunciar sobre o assunto em seus textos? Em relação a esta última pergunta, devemos lembrar que Butler – talvez a mais importante formuladora da teoria queer – defende uma postura autocrítica que incida sobre o próprio sujeito queer, chegando a pensar na possibilidade de se abandonar o termo, em favor de outro(s) que produza(m) ações políticas mais efetivas (Butler, 2002:59-60). Já Segato, mesmo não nomeando sua teoria de queer, assume o trabalho de erosão das estruturas de gênero, manifesto na busca de contextos e experiências híbridas e fluídas que questionem as formas hegemônicas de configuração de gênero – o que a aproxima do pensamento queer. Seguindo esse raciocínio, podemos pensar no xangô-queer2 – cujo movimento conceitual coadunaria com as citadas preocupações de Butler sobre a necessidade de autocrítica permanente, além de expressar a procura de estar vigilante à história e à localidade de cada pensamento. Historicidade e localidade que nos incitam, ainda, a indagar: Até que ponto e de que forma as perspectivas originadas de sua posição de enunciação permitem a Segato romper com a visada exclusivamente eurocêntrica? De alguma maneira, seria também esse posicionar que parece limitar o pensamento de Butler a autores ocidentais? Sem querer responder questões tão difíceis, limito-me a concluir que uma comparação mais cuidadosa e atenta dos trabalhos de Butler e Segato pode ser bastante produtiva, tanto para compreendermos mais o alcance e a dimensão das propostas dessas autoras, como para entendermos mais da temática tratada.

Dadas a originalidade teórica, as questões que suscita e a necessidade de continuar este debate tão premente, fica evidente que o livro de Segato ainda não teve no Brasil o destino que merece. Publicado originalmente em espanhol, não alcançou o seu público neste país, e não causou o impacto que poderia – e com certeza ainda alcançará. A esperança é que uma edição revista e ampliada, em português, numa editora de projeção nacional, possa acelerar esse processo e vir a contribuir com as discussões sobre violência.



Referências bibliográficas

AGABEM, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo, Boitempo, 2004.

__________. Homo sacer: o poder e a vida nua. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002a.

__________. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo sacer III. Valencia, Pré-textos, 2002b.

BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York, Routledge, 2004.

__________. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M.M. (org.) Sexualidades transgresoras. Uma antologia de estúdios queer. Barcelona, Icaria Editoral, 2002.

__________. Boddies that Matter: On the discursive limits of sex. New York, Routledge, 1998.

__________. Excitable Speech. A politics of the Performative. New York, Routledge, 1997.

__________. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge, 1990 [Trad. brasileira: Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003].

MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais / Projetos Globais. Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Belo Horizontes, Editora da UFMG, 2003.

SEGATO, Rita Laura. Santos e Daimones: O Politeísmo Afro-Brasileiro e a Tradição Arquitipal. 2ªed. Brasília-DF, EDUnB, vol. 1, 2005, 515 p.

__________. Las estructuras elementales de la violencia. Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal, Universidad de Quilmes, 2003.


* Resenha do livro de Rita Segato – Las estructuras elementales de la violencia. Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal, Universidad de Quilmes, 2003.
1 Sobre as definições conceituais de gênero em Butler, ver principalmente os textos de 1990, 1998, 2004. Sobre atos de fala e a teoria queer, ver os de 1997 e 2002.
2 Termo de Segato em comunicação pessoal.


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Caetana e Inácia: duas histórias de mulheres na sociedade escravocrata brasileira*


Caetana e Inácia: duas histórias de mulheres na sociedade escravocrata brasileira*

Elciene AzevedoI; Mariana FrançozoII

IPesquisadora do Centro de História Social da Cultura – Cecult/Unicamp. elciene@terra.com.br

IIDoutoranda em Ciências Sociais - IFCH/Unicamp. mariana–f@terra.com.br


Lançado nos Estados Unidos em 2002, o mais recente livro da historiadora Sandra Lauderdale Graham trata de um tema tão relevante quanto polêmico. Autora de um estudo sobre a relação entre escravas e senhores no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX (Proteção e Obediência, Companhia das Letras, 1992), Sandra Graham analisa, desta feita, duas histórias de mulheres que viveram em fazendas de café na região do Vale do Paraíba entre as décadas de 1830 e 1860, e que a seu próprio modo questionaram as regras implícitas de um mundo social em que os homens ocupavam os postos de comando.

A primeira mulher que a historiadora nos apresenta é Caetana, escrava de 17 anos, pertencente ao dono da fazenda Rio Claro Luís Mariano de Tolosa, que em 1835 decidiu casá-la com um outro escravo seu. Até aí, nada especial – sabemos muito bem em que medida a vida dos escravos esteve sujeita às vontades, mandos e desmandos de seus senhores. O que é surpreendente nesta história é que Caetana não apenas negou os votos do matrimônio, como também conseguiu que seu senhor a ajudasse na tentativa de anular judicialmente o casamento. A segunda mulher é Inácia, ou melhor, Dona Inácia Delfina Werneck – que, como senhora branca da classe dominante, tinha direito a título, nome e sobrenome. Esta senhora, aos 86 anos, ditou ao redator de seu testamento o seu último desejo: após sua morte, a família de sua escrava Bernardina deveria receber, como herança, um determinado número de escravos – ato de generosidade, talvez, que certamente garantiria a sobrevivência material de Bernardina e seus filhos após a morte de sua proprietária. Ato incomum, sem sombra de dúvida, não só porque oferecia parte de seus bens justamente àqueles que, até então, faziam parte deste mesmo conjunto de sua propriedade material, mas sobretudo porque, ao libertar Bernardina e seus filhos e garantir-lhes a sobrevivência, Inácia desempenhava o papel masculino de provedora. Caetana e Inácia não eram somente mulheres com vontade própria num mundo governado por homens, mas antes de tudo mulheres que usaram dos meios de que dispunham para fazer sua vontade valer, negociando, nos termos correntes, com os homens aos quais deviam obediência.

Caetana diz não, portanto, é um livro sobre as regras de um mundo social específico – aquele da escravidão na região rural das províncias de São Paulo e Rio de Janeiro no século XIX – e como elas foram vividas por duas mulheres diferentes. Ao invés de aceitar a dominação masculina como um fato dado e reiterar o argumento simplista de que as mulheres, nesta história, não tinham vez, Sandra Graham mostra como é possível, desta vez, entender a história a partir das vidas singulares de mulheres. Num belíssimo trabalho de micro-história, a autora parte da petição de anulamento depositada no tribunal eclesiástico de Salvador para reconstruir os passos e assim a história de Caetana. Do mesmo modo, a partir do testamento de Inácia Werneck, e do de sua irmã, Francisca Lauriana das Chagas, Graham vai atrás de toda a genealogia da família Werneck para em seguida entender o sentido das ações desta filha de família de cafeicultores.

Sandra Graham consegue reconstruir com maestria as histórias de seus personagens e os cenários onde estas se desenrolaram. As fontes cartoriais – inventários, testamentos e processos judiciais – amparadas por almanaques, mapas de população, correspondências oficiais e pessoais, permitem que a autora transporte seus leitores para dentro das cercanias das fazendas de Tolosa e Inácia e acompanhem aspectos importantes de seus cotidianos. Mas, além disso, fontes privilegiadas para se observar as tensões e solidariedades geradas nas relações sociais, as fontes judiciais são também exploradas pela autora no que trazem de forma indireta: os sentidos e os significados das ações e escolhas dos sujeitos que nelas aparecem. Graham busca, assim, entender a dinâmica das relações sociais que perpassam esses documentos, olhando tanto para os aspectos miúdos da vida social que daí surgem, quanto para os significados dos inúmeros conflitos que expressam.

Além disso, a tentativa de recuperar e reconstruir a história destas mulheres com máxima precisão leva a um resultado muito frutífero. Em primeiro lugar, é evidente, o leitor ganha maior proximidade com os episódios narrados e pode apreciá-los a partir de um quadro mais completo. Em segundo lugar, justamente por ir a fundo nos detalhes, a autora permite que se localize uma série de questões que por vezes tangenciam sua narrativa, mas que são de central importância para seu argumento, como ela mesma deixa entrever.

No caso da história de Caetana, por exemplo, Graham levanta uma hipótese interessante quanto às motivações de Tolosa para querer casar a moça. Sendo ela uma escrava doméstica, estava em contato íntimo e permanente com os filhos e filhas do senhor. Assim, afirma Graham, Caetana poderia ser tanto uma má influência para suas filhas solteiras, "pelo exemplo de sua inevitável conduta sexual" ao permanecer solteira (p.76), quanto ser alvo dos desejos de seus filhos homens, que poderiam ter sua iniciação sexual com ela (p.77). Desgostoso com as duas possibilidades, Tolosa teria decidido casar Caetana e assim conter ou controlar sua sexualidade. A hipótese é bastante plausível, mas o que interessa aqui é que nestas duas páginas, isto é, neste pequeno trecho do livro, Graham tocou num ponto crucial para o entendimento das relações entre senhores e escravos: o da intimidade doméstica e da sexualidade – tema, aliás, do qual a autora tratou em seu primeiro livro, já citado. Como pensar o que significava e que papéis desempenhava uma escrava doméstica numa fazenda em que viviam filhos e filhas solteiras do senhor? Em que medida a sexualidade das escravas entrava em conflito ou compunha a trajetória de aprendizado de papéis sexuais numa sociedade tão marcada por relações violentas?

No mesmo sentido, na história de Inácia tem-se a descrição de um evento que pode chamar atenção para outra série de questões. Graham revela os desígnios de Inácia quanto ao seu sepultamento, indicando em que cemitério deveria ser enterrada, caso morresse em tal ou qual freguesia, e detalhando as esmolas que deveriam ser distribuídas aos duzentos pobres que deveriam acompanhar a procissão até o túmulo (p.127). Com tal descrição, Sandra Graham convida a uma reflexão sociológica à la Norbert Elias sobre o poder simbólico do ritual funerário e as implicações da morte para o mundo dos vivos.

Traduzido para o português com cuidado, mas pecando por algumas frases truncadas, o livro aparece no Brasil em boa hora. Na esteira de uma série de estudos sobre a história da escravidão que, desde o início da década de 1980, vêm questionando o lugar de vítima passiva geralmente conferido aos escravos nas interpretações sobre o período escravocrata no Brasil, Caetana diz não articula esta perspectiva à questão de gênero – que, por sua vez, também vem ganhando destaque e diferenciação no meio acadêmico brasileiro nas últimas décadas. Aliando a preocupação em revelar as histórias individuais, as ações, estratégias e escolhas dos sujeitos históricos com o olhar atento às relações entre homens e mulheres – ou melhor, às relações que constituem o que se entende por papéis masculinos e papéis femininos – o novo livro de Graham tem como recorte a historia da escravidão a partir do enfoque de gênero.

Esta escolha acertada da pesquisadora, contudo, conduz a alguns problemas. Como afirmado, trata-se de um estudo em que as relações de gênero têm papel central. Porém, as análises são feitas quase que única e exclusivamente a partir de relações de gênero. Sandra Graham parte do pressuposto de que a história do Brasil é marcada pela dominação masculina, pelo patriarcado. Pode-se concordar com essa afirmação, mas não sem que se pondere o que é este patriarcado e de que maneiras ele opera e se manifesta. Assim, não se pode concordar, no caso da história de Caetana, que tanto seu proprietário, Tolosa, quanto seu tio e padrinho, Alexandre, queriam que ela se casasse motivados por um mesmo sentimento ou temor: se Caetana não o fizesse, estaria infringindo as regras de dominação e o patriarcado estaria, deste modo, ameaçado. Ora, evidentemente não se pode comparar a relação de Tolosa e Caetana com a relação de Alexandre e Caetana – e, tampouco, a ligação entre Tolosa e Alexandre! Em outras palavras, por mais que o poder masculino estivesse sendo questionado, Alexandre insistia no casamento de sua sobrinha menos por medo da ameaça ao patriarcado e mais porque assim obedecia Tolosa, seu proprietário. O tio de Caetana, sendo um dos escravos privilegiados pelo senhor, não poderia ousar tomar o lado da sobrinha em detrimento daquele a quem ele devia obediência. Se o gênero é fundamental para entendermos o início e o desfecho desta história, não o é menos a relação de classe entre um senhor e seus escravos.

A história de Inácia fornece mais um exemplo de como o argumento do patriarcado, sozinho, não explica todas as questões levantadas. Sandra Graham transcreve e comenta, frase por frase, alguns trechos do testamento de Inácia. Em dado momento, compara-o com o de sua irmã, Francisca, e então passa a revelar um fato importante (p.136). Doze anos mais moça que Inácia, Francisca, como a irmã, nunca se casou, porém teve um filho e não apenas o criou como tal como fez questão de garantir, através de seu testamento, que ele seria seu herdeiro legítimo após sua morte. Segundo Graham, o fato de Francisca ter sido mãe solteira não foi motivo de discórdia entre a família. O filho, Felício, não só foi reconhecido como também se tornou um fazendeiro de sucesso e figura pública importante do município de Vassouras (p.137). Ora, como entender esse fato? Graham não vai adiante nas hipóteses. Porém, para o leitor surge uma questão: se, no caso da história de Caetana, sua sexualidade deveria ser controlada como forma de não ameaçar o patriarcado, como Francisca pôde ter um filho solteira? Sua sexualidade tinha status diferente daquele da de Caetana? Francisca não precisava ser controlada? Falta aqui o dado da posição social de cada uma dessas mulheres. Sendo parte de família rica, Francisca pôde ter seu filho e criá-lo para ser figura de destaque na sociedade. Talvez seja preciso pensar em que medida o status social, o capital material e a pertença à elite particularizavam as relações de gênero.

Na conclusão de seu livro, a autora afirma que

...a escravidão era uma rede, não apenas e nem mesmo principalmente de relações de trabalho (...), mas antes uma rede de relações sociais entre pessoas de condições legais, recursos, mobilidade, instrução e poder radicalmente distintas... (p.222).

Assim, por que não pensar também as relações de gênero articuladas com os outros tipos de relação que localizavam socialmente os indivíduos? As próprias histórias de Caetana e Inácia indicam que diferenças de classe e de raça, entre outras, davam o tom daquilo que uma mulher poderia ou não fazer naquela sociedade, bem como dos papéis dos homens na mesma.

Graças a uma pesquisa exaustiva, Caetana diz não apresenta os casos estudados num nível de detalhe que recria o contexto em que os personagens viveram com riqueza e complexidade. Não é por acaso que este livro figura em vários programas de disciplinas nos cursos de história de diversas universidades norte-americanas. Neste sentido, a edição brasileira da obra conta com um adendo que a torna especialmente profícua para o uso em sala de aula. Nas suas reflexões finais, Graham tece uma bela história da história – uma explicação de como e porquê a micro-história surgiu nos países mediterrâneos, bem como um balanço crítico da bibliografia brasileira com a qual ela dialoga. Assim, tem-se não só um didático mapeamento da literatura sobre o tema, como também uma sincera tomada de posição de Graham sobre suas escolhas teóricas e motivações de pesquisa.

Surpreendente pelas histórias que recupera, envolvente pela narrativa que apresenta, fundamental pelo tema que aborda, este é um livro para todos aqueles interessados na história da escravidão e na história das relações de gênero no Brasil.


* Resenha do livro: GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. Histórias de Mulheres da Sociedade Escravista Brasileira. São Paulo, Cia. das Letras, 2005, 289 pp.


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