terça-feira, 28 de abril de 2009

Made in USA


Luiz Renato Martins

o interesse deste livro começa de sua aguda atualidade. Ele colhe uma discussão acesa nos países centrais sobre a noção de modernidade e em particular sobre o crítico de arte norte-americano Clement Greenberg (1909-94). Sem reproduzir uma obra já existente, monta a coletânea à maneira de um círculo de debates -constando alguns textos que, até hoje, não haviam sido reunidos em livro nem mesmo nos EUA.
A tal ineditismo de iniciativa se soma o empenho de alargar o debate mediante amplo e minucioso material de apoio, coletado em revistas raras e cuidadosamente preparado pelas organizadoras. Cada texto se multiplica em notas com informações precisas, acerca do que precede e do que desdobra a discussão. No todo, considerando-se a largueza da fortuna bibliográfica e o pluralismo da coletânea, deparamos com um livro de modelo pouco comum, supra-autoral e quase interativo, em que concepção e execução priorizam a discussão aberta.
Fora tais contribuições, qual o debate? Discute-se o processo da modernidade e Greenberg é um autor central. Coube-lhe delinear com rara clareza um sistema da arte de vanguarda, com forte influência nos EUA. Além disso, no Brasil, ele veio a tomar o lugar de baliza da vanguarda antes ocupado pela crítica de Mário Pedrosa, nas décadas de 50 e 60. É tal concepção própria à cena artística do pós-guerra nos EUA que se manifesta em "Art and Culture" (1961) (1), nas críticas de ocasião e nos estudos dos mestres modernistas, de Manet em diante; sobressaem as análises de Monet e Cézanne, do cubismo e da colagem (que gera a escultura como construção), de Miró e Matisse como pós-cubistas que põem as matrizes para a pintura abstrata norte-americana pós-45.
Sem levar em conta fatores de ruptura histórica como o mal nazista, a corrida atômica, a nova divisão do mundo que se inicia com a ascensão dos EUA e da URSS, Greenberg, ao revés do existencialismo de Harold Rosenberg (1907-78), advoga no pós-45 a continuidade essencial da ordem cultural, confiando que as artes evoluam pela própria conta e à margem de fatos históricos, conforme a premissa de irredutibilidade transcendental do ato estético. Crê numa idéia de progresso parcial frente ao avanço da barbárie que denuncia quanto à cultura de massa. Assim sintetiza o"x" da questão modernista em postulados: a planaridade ("flatness"), a opticalidade, a depuração crescente e imanentista do meio ("medium", pintura, escultura etc) que leva à literalidade dos signos plásticos. Neste sentido, o melhor exemplo concreto no modernismo europeu de tal evolução antiilusionista, em convergência com a ciência moderna, seria o cubismo.
Nos EUA do pós-guerra, Greenberg é dos primeiros a bater-se pela nova pintura abstrata. Afirma: "desde os dias do cubismo não se v(ê) uma galáxia de pintores vigorosamente talentosos e originais como a formada pelos expressionistas abstratos...". Mas recusa o termo expressionismo abstrato e outros como "action-painting", e propõe em 1955 "pintura à americana". Ainda proporá em vão o termo "painterly abstraction" (abstração pictórica) entre 1962 e 64. Sempre para diminuir a importância do expressionismo alemão, eivado de influências extrapictóricas, e realçar o rigor cubista: o exemplo de auto-limitação ao plano.
Contra os que vêem um teor espontâneo ou expressionista na pintura americana do pós-guerra, como querem os críticos (Rosenberg, por exemplo) que se apoiam em categorias não pictóricas, Greenberg exige atenção cerrada só ao que está na tela. E seu argumento aí é de que a arte de Pollock, de Kooning, Hofmann, Gorky, Still, Motherwell, Rothko, Kline, Newman atualiza o desiderato maior do modernismo (de Cézanne, dos cubistas) de evidenciar o caráter planar da pintura, levando-a ao essencial; ou seja, rumo a uma "consistência científica", já vislumbrada na "insistência dos impressionistas no ótico". Com este grupo de pintores, os EUA entram na linha evolutiva da história da arte.
Correto ou não, tal conjunto de reflexões -que se quer radicalmente anti-especulativo na observância à literalidade dos fatos plásticos- cumpre com eficácia a tarefa da hora: sintetizar/superar o modernismo europeu. O que define o pioneirismo deste crítico na história da arte dos EUA. No mais o debate está aberto.
Greenberg, par frequente de Schapiro, ao contrário deste não se filiou a instituições acadêmicas. Limitado ao jornalismo ou a palestras e eventos episódicos, destacou-se como autor ao escrever em periódicos sobre as grandes retrospectivas dos mestres europeus nos EUA e sobre livros de arte ou temas afins. Sua obra crítica comporta assim um quê de enigmático ou lacunar diante da firmeza e da convicção de seus juízos, que, embora apoiados na qualidade da atenção visual ímpar e no raciocínio estruturado e coerente quanto à história da arte, só fugazmente podem expor premissas e corolários.
Ora, no presente livro, a primeira seção traz os raros textos teóricos de Greenberg em que tem ocasião de expor mais razões e refletir sobre seus juízos. Surge o crítico do crítico e o teórico que vê a arte moderna como essencialmente autocrítica ou como aquela que, segundo Kant, configura-se (esta a "mais plena expressão" da autocrítica kantiana, diz Greenberg) como ciência, na medida em que se autolimita e expõe o próprio princípio como um dado universal. Anunciava Greenberg, assim, o que hoje é mais corrente em várias áreas, pois o nome de Kant gira como um reforço positivo no eixo da agenda mundial das idéias estabelecidas, impulsionando as reformas da dita modernidade, conforme um sistema de padrão único ou que se supõe universal.
Na segunda seção, toma-se contato com textos de ângulos distintos quanto à atuação ou ao legado do crítico. São de cinco autores dos EUA e três da França, estes ligados à revista de arte contemporânea "Macula". Exceto Barnett Newman (1905-70) e Rosenberg, todos participaram do Colóquio Greenberg (Centro Pompidou, Paris, 1993). Constam textos do evento, mas não só; os de Rosenberg, Steinberg e Krauss testemunham confrontos com os critérios de Greenberg em horas históricas diferentes. Em 1961 o rival Rosenberg polemiza duramente com Greenberg, contestando tanto seu formalismo quanto suas implicações sociais e pondo um "eu ativo" como base da pintura abstrata que chama de "action-painting"; em 1968 Steinberg evidencia os limites do cânon de Greenberg diante da obra de Rauschenberg e Jasper Johns, que inicia a pop art nos anos 50, e também da pop art e da minimal dos anos 60; Krauss, em 1972, ex-discípula de Greenberg, apóia-se, neste texto de juventude, em idéias de Steinberg, para divergir do antigo mestre (para o mesmo fim, vale-se hoje do pós-estruturalismo francês). Destes textos de oposição, salienta-se o de Steinberg, apontando a ruptura com a idéia de plano pictórico vertical, vinculado à oposição entre consciência e natureza, em favor de uma opaca superfície operatória horizontal ("flatbed"), "aberta de novo ao mundo", concebida por Rauschenberg, mas já sugerida por Duchamp (artista recusado por Greenberg).
Já os demais textos, mais recentes e sem o calor do embate, fazem o inventário do legado de Greenberg. Sobressaem os estudos de T. J. Clark, (2) que critica a cientifização do modernismo e a idéia de vanguarda como atividade especializada, acima das fraturas sociais; e de H. Damisch, com o ônus da retórica tortuosa e frívola do heideggerianismo galicizado, típico de intelectuais franceses. Mas, ao elaborar a idéia de autodidatismo, Damisch tem dois bons momentos: primeiro, quando situa o autodidatismo de Greenberg como característica comum à dos ancestrais da crítica de arte: Winckelmann ("A História da Arte na Antiguidade", 1764), Diderot ("O Salão de 1765") e Lessing ("Laocoonte", 1766); segundo, quando conclui com um paralelo entre as perspectivas de Marx e Freud. Apresenta assim o autodidatismo como o modo de aprendizado da classe operária (ainda não sujeita a um partido-guia), e de Freud quanto à psicanálise.
A tradução de Maria Luiza Borges tem problemas localizados. Não comprometem o livro. Mas vale a pena saná-los proximamente para fazer jus ao elevado interesse didático desta realização. Para facilitar a consulta pontual e rápida, usual em obra didática, caberia incluir um índice remissivo, tal como o de "Arte e Cultura". Também seria útil dispor de reproduções, até em preto e branco, de trabalhos designados como casos cruciais e cujas imagens são menos acessíveis, seguindo-se o exemplo da edição Oxford (1975) do ensaio citado de Steinberg, "Other Criteria", com 12 ilustrações.
Notas:
1C. Greenberg, "Art and Culture" (Beacon, 1961), seleção de textos críticos, organizada pelo próprio autor. Para uma compilação bem mais abrangente, ver idem, "The Collected Essays and Criticism, 1939-69", J. O'Brian (org.), Chicago University Press, 1993. No Brasil, ver idem, "Arte e Cultura/Ensaios Críticos", prefácio de Rodrigo Naves, tradução de Otacílio Nunes, Atica, 1996.
2.Já publicado em "Novos Estudos Cebrap" (24, jul. 89), com tradução diferente, de Marco Gianotti.

Luiz Renato Martins é autor de "Conflito e Interpretação em Fellini" (Edusp/Instituto Italiano, 1994) e professor de estética do departamento de artes plásticas da Unicamp.

Folha de São Paulo

A imagem congelada


Lúcia Nagib

o significado deste livro ultrapassa o fato de cristalizar a estrutura metodológica de Bellour, celebrizado sobretudo por seus textos nos "Cahiers du Cinéma". "Entre-Imagens" é também o diagnóstico fiel de um período da história do audiovisual, os anos 80, ao longo dos quais foram escritos os ensaios reunidos no volume.
Era então a época áurea da vídeo-arte -ou "do" vídeo-arte, como preferiu com razão a tradutora, fazendo prevalecer o masculino do "vídeo". É justamente com base no vídeo que Bellour desenvolve a noção de "entre-imagem", ou da imagem congelada, que produz uma interseção entre o cinema e a fotografia, num processo no qual o vídeo cumpriria o papel de "passagem".
Esse congelamento é pensado por dois prismas básicos, ou "gestos", segundo Bellour, que recusa o termo "análise". O gesto inaugural seria o do artista que insere imagens estáticas no "transcorrer" do tempo/movimento fílmico. Exemplo primordial: o fotograma congelado de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), no final de "Os Incompreendidos", de François Truffaut. O espelho desse primeiro gesto seria o do crítico ou teórico, paralisando a imagem fílmica ou de vídeo na mesa de montagem ou com o simples apertar de botão em seu aparelho de vídeo-cassete. Essa equiparação do gesto autoral com o crítico tem consequências decisivas na metodologia de Bellour, como espero deixar claro adiante.
Antes é preciso frisar o papel preponderante, mesmo de "avanço", segundo o autor, que desempenha o vídeo nessa configuração, em função "da especificidade indiscutível da imagem eletrônica". Não dependendo da foto estática ou do fotograma, ele é a própria definição da entre-imagem, já que, mesmo paralisado, é fluido, incapturável: "É a variação e a própria dispersão". O vídeo se compõe de "imagens-passagens", de "espaços em que é preciso decidir quais são as imagens verdadeiras".
Está claro que Bellour embarca na utopia do vídeo, que reinou nos anos 80 e que tão rapidamente esmoreceu no limiar dos 90. Com ligeira hesitação e contendo o excesso de euforia, afirma que "o vídeo relança uma utopia que vem acompanhando o cinema desde seu nascimento. A utopia de uma escrita inacreditável, nunca vista nem ouvida".
Não vale a pena entrar aqui no crepúsculo precoce e melancólico do vídeo-arte e da atração rapidamente volatizada de suas correspondentes instalações, nestes anos 90. Mesmo porque a base de Bellour é ainda e sempre o cinema. À parte os vídeo-artistas de sua preferência, Thierry Kunzel à frente de todos, sua escolha recai no velho panteão eleito pelos primeiros críticos dos "Cahiers": Hitchcock, Lang, Ophuls, Bergman, Rossellini e Godard, naturalmente. A base de análise constitui, como para os pioneiros dos "Cahiers", a literatura, de Mallarmé a Freud, de Henry James a Proust.
O "approach", no entanto, é inteiramente diverso da crítica tradicional dos "Cahiers". Foge-se sistematicamente de qualquer contextualização. Estamos longe das preocupações realistas e sociais do fundador da crítica cinematográfica francesa, André Bazin, citado no livro apenas como arcaica referência. Foi-se pelos ares também a teoria do autor, outrora acalentada pelos "Cahiers": os nomes de artistas aparecem como simples rótulos de atitudes, "gestos" congelados em imagens. Autor e história interessam pouco ou nada a Bellour, cuja preferência se direciona claramente para o experimentalismo, ou melhor, para o cinema experimental cuja evolução natural seria a vídeo-arte. Como consequência, rejeita a narratividade linear (ressoa, na pág. 38, a frase de Malarmé em "Coup de Dés": "Evite a narrativa"), em favor da sobreposição ou fusão de imagens que, de novo, resultariam na "pregnância" da imagem congelada.
Eis, portanto, o que interessa a Bellour no cinema: o que ele chama de "instante pregnante". Mas o que seria isso exatamente? A "aura" que Walter Benjamin encontrava no tempo passado e congelado na imagem fotográfica? Ou o "punctum" que, para Barthes, designava o fragmento de irracional inominável na fotografia? Bellour aflora esses dois autores, sem se encontrar em nenhum deles por inteiro. E estende-se em definições que têm por princípio não serem definitivas. Esta, por exemplo, a respeito do filme "La Macchina Ammazzacattivi", de Roberto Rossellini:
"Desses momentos em que o filme é assim penetrado pela fotografia, dir-se-á que se tornam instantes pregnantes. (...) O instante da fotografia, por mais comovente que seja, e por mais próximo que esteja da pose (...), sempre é, por força das circunstâncias, um 'instante decisivo', arrancado à realidade. Não se pode considerá-lo pregnante a não ser em relação à inversão do tempo e à inscrição da morte da qual ele se torna o índice, e que é o trauma, o assunto secreto que duplica seu assunto aparente".
A morte: bem, chegamos a algum lugar. "A morte do filme, que é o início da vida", completará Bellour. Mas de novo as questões abundam. O limite entre cinema-vídeo-foto e vida: seria esse o foco de interesse? Não, o autor não parece diretamente interessado na discussão da vida real. A imagem congelada como "parada", o "ékstasis", o gozo, enfim, do artista, que funde o paradoxo vida e morte? Bellour não vai até aí, embora se prolongue sobre os atos eróticos interrompidos de "Numéro Deux", de Godard, por exemplo. O gozo, então, do crítico, congelando a seu bel-prazer a imagem vídeo-fílmica, finalmente arrancada a seu contexto, individualizada, "privatizada", por assim dizer, para uso próprio do observador? Talvez...
Bellour é sem dúvida um virtuose da palavra, na boa tradição francesa. Seu texto flutua numa espécie de balé elegante sobre uma multiplicidade de assuntos que o fascinam pelo lustro da aparência, mas nos quais o autor não ousa mergulhar as mãos "até os cotovelos" (como recomendava o velho Sartre em "As Mãos Sujas"), talvez com receio de macular com rudezas concretas a harmonia estética das imagens que escolhe.
Na introdução ao livro, na qual seu estilo atinge o auge do brilho, procura definir as cinco partes em que pretendeu agrupar os ensaios: a primeira, explorando a intercomunicação cinema-vídeo-televisão, tendo por eixo os vídeos de Thierry Kuntzel; a segunda, dedicando-se à relação cinema-fotografia; a terceira, detendo-se na analogia fotográfica operada pelo vídeo; a quarta, refletindo sobre quatro vídeo-instalações; e a última, culminando com elaborações sobre o auto-retrato. A leitura sequencial, porém, não oferece propriamente fronteiras entre essas partes. O leitor tem a impressão de girar numa valsa envolvente, que retoma eternamente o mesmo tema sem jamais se deter ou chegar a uma resolução.
Tocados pela varinha mágica da linguagem virtuosa, artistas tão diferentes como Kuntzel, Antonioni, Hitchcock ou Terayama parecem estar tratando do mesmo assunto. Nenhum deles parece ter país ou língua de origem, história própria, preocupações sociais ou políticas. Tomado dessa maneira, o cineasta e dramaturgo experimentalista Shuji Terayama, por exemplo, em seu derradeiro trabalho "Video Letter", ressurge como se estivesse simplesmente envolvido numa "ego-trip" -quando na verdade seu questionamento da identidade individual está intimamente relacionado com a uniformização e coletivização da sociedade japonesa.
Se todos os artistas estão, no fim das contas, falando apenas de si, mas se eles mesmos, em si, não interessam, só se pode concluir que o que interessa é apenas aquele que deles fala. "Auto-retratos" é portanto o título acertado para o ensaio final desta obra extremamente auto-referente de Bellour, cuja proposta aparece não como a descoberta de autores ou obras, mas a revelação do olhar agudo daquele que os vê. Neste ponto, Bellour atingiu plenamente seus objetivos: a inteligência do crítico brilha acima de todos os seus objetos de estudo.

Lúcia Nagib é professora de cinema da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de, entre outros, "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).

Folha de São Paulo

O moderno como problema


Sônia Salzstein

Quer se queira quer não, a idéia de "moderno" mais profundamente enraizada e reconhecida na arte brasileira é aquela que se construiu e se irradiou a partir dos nomes de Emiliano Di Cavalcanti e Cândido Portinari, desde os primeiros anos da década de 30. É claro que há as presenças inaugurais de Anita Malfatti, Lasar Segall e Tarsila do Amaral, cujas obras tinham alguns anos antes (e cada uma a seu modo) plantado a questão moderna na incongruente paisagem brasileira. Mas essas obras não se demonstraram influentes o bastante para consolidar o paradigma cultural que ainda hoje faz com que Di e Portinari se apresentem para nós como os grandes emblemas de uma certa noção do "moderno". Esta comparece admiravelmente combinada, na pintura de ambos, a uma ideologia do "nacional", componentes que de resto se revelariam importantes não só na arte, mas também na configuração da imagem de uma cultura brasileira em geral.
Sabe-se que Anita e Tarsila, diante do apagamento precoce do ânimo renovador de suas obras, tocaram apenas fugazmente uma espacialidade moderna para a arte brasileira; Segall, por sua vez, havia forjado fora daqui a matriz moderna e verdadeiramente experimental de seu trabalho. O fato é que o que vingou e se estabeleceu culturalmente como emblema de uma arte moderna, e "brasileira", foram as obras mais longevas de Di Cavalcanti e Portinari (menos vulneráveis, também, às tensões culturais que logo arrebentariam a pintura de Tarsila), mesmo que em torno de Tarsila tenha se cultivado a mesma inquietante figura de modernidade, às custas, certamente, da elisão de todas aquelas tensões tangenciadas em sua obra.
Da fórmula "nacional/moderno" acabamos herdando, dessa maneira, uma noção bastante conservadora do que significou ou ainda pode significar uma experiência moderna para a arte brasileira. Em vez de ser percebido como marco na conquista de um horizonte experimental, contra o "bovarismo cultural" então reinante, o modernismo emblemático desses artistas foi sendo revestido de uma legitimidade "oficial", que ao longo dos anos nada fez senão encobrir os limites que o projeto moderno encontraria fora de seu centro, e que ainda hoje encontra, mesmo emergindo sob novas formas e modalidades, em meio ao mais recente surto internacional de modernização que alcança o país.
É esse sistema de lugares-comuns sobre o modernismo brasileiro, tão perfeitamente bem articulados entre si, e ainda bem ativos na atualidade, que o livro de Carlos Zilio ajuda a arruinar. Ao longo de três eixos principais de abordagem ("Introdução/Pressupostos à Conceituação"; "Surgimento do Espaço Moderno Brasileiro" e "O Estilo Modernista na Obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari"), o autor desenvolve uma cuidadosa análise dos modos como se obliteraram os compromissos conservadores presentes nas obras daqueles três artistas.
Dentre nossos três notáveis, talvez apenas Tarsila tenha tentado enfrentar a questão dos modelos ou da dependência cultural. É que o apelo nacional não se apresentava prescritivamente a ela -era uma questão interna do trabalho, movendo-se nele como um processo reflexivo, de autocompreensão de uma cultura que queria se atualizar no estrangeiro, mas segundo critérios próprios, e a partir de uma consistência cultural própria. Por isso, mesmo tendo associado a conquista de uma espacialidade moderna à exigência de uma consciência nacional, esta era vislumbrada de modo bastante heterodoxo por Tarsila: não a forma a priori da ideologia nacionalista, mas a instância de autoconhecimento e de "libertação de uma série de recalques literários, sociais, étnicos", que em sua obra seriam "trazidos triunfalmente à tona", para citar aqui o comentário que Zilio toma a Antonio Candido, a propósito do modernismo de 22.
Para Tarsila, então, tratava-se de assimilar a paisagem inculta, "as cores feias e caipiras que o ramerrão do gosto apurado da época" tinha condenado como estigmas do país sem tradição, para poder compreendê-las à luz dessa irrestrita liberdade de invenção que a arte moderna ensinava. Ao contrário das soluções de compromisso que a conciliação do "nacional" com o "moderno" deixava entrever na pintura de Di e Portinari, ao contrário do tom defensivo e compensatório com que o sentido do nacional condicionava o sentido do moderno na obra destes (como tão claramente apontam as análises formais encetadas por Zilio), a pintura de Tarsila sorvia a cultura moderna européia com descarada curiosidade, com a inocência desprevenida da nação jovem, sem pretender afetar a tradição culta da metrópole e, muito pelo contrário, irreverentemente relativizando-a e submetendo-a à particularidade do ponto de vista regional.
Dessa atitude desarmada resultou um olhar moderno brasileiro bastante peculiar, cheio de incongruências, cuja graça residia justamente em que não dissimulava, enfim, o punhado de contradições que a expansão modernizadora internacional da virada do século legava às bordas do sistema. Daí em Tarsila se realizar essa esquisita soma, da percepção naturalista com uma astuciosa inteligência analítica, desmontando e remontando a paisagem brasileira segundo as veleidades da nova ordem social que submetia, tal como faria a artista, "afetivamente", suas personagens domésticas e populares aos rigores da superfície planar e impessoal da nova paisagem industrial.
Aí está um campo de pistas, comentários e sugestões interpretativas sobre o período formativo de nossa arte moderna, certamente tributário da reflexão inaugural do ensaio redigido por Zilio em 1979, publicado pela Funarte em 1982 e agora relançado. E de fato o livro, que tem como subtítulo "A Questão da Identidade Brasileira: A Obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/1922-1945", pela primeira vez na história da arte brasileira descreveu o moderno como problema, isto é, desmanchou o discurso positivo que o envolve (e que elide as contradições que faz nascer na obra desses três artistas), mas sobretudo tratou-o em suas repercussões culturais mais sutis, sugerindo-nos que a questão moderna continua no centro de um processo de renovação e emancipação da arte brasileira, do qual o modernismo das gerações de 20 a 40 terá sido apenas uma etapa inaugural.
Isto não é pouco. Decorridos 15 anos da primeira edição desse livro, raras foram as iniciativas preocupadas em propiciar um quadro interpretativo abrangente da história recente da arte brasileira, em que a questão moderna -verdadeira ferramenta de análise da arte brasileira, em seus percalços na direção de uma densidade cultural própria- emergisse como motivo central.
Como motivo central: livre dos habituais enquadramentos ideológicos nacionalistas ou populistas que a retêm todas as vezes em que está em jogo um processo de ruptura cultural. Porque a questão moderna parece ser, para nós, a questão de todas as questões: pelo menos as duas gerações pioneiras do modernismo viveram-na intensamente, enfrentando-a no cerne mesmo de suas obras. Lembremos que são raríssimos, na história da arte brasileira dessas décadas iniciais, os artistas que conseguiram efetivamente construir uma obra moderna, ou melhor: plenamente moderna... Na maior parte das vezes esses artistas revelaram segmentos luminosos, seguidos entretanto de fabulosos retrocessos, concessões de todo tipo ao provincianismo dominante, diluições dos próprios achados e outras inconsistências. Assim foi com Tarsila, Di, Portinari, e mais tarde com artistas como Pancetti e Guignard. A reflexão de Zilio é um convite a que se investiguem as razões desse fenômeno.
A bem da verdade, tudo nesse campo parece ainda por ser feito; cabe mesmo admitir que ainda não constituímos uma bibliografia básica sobre arte brasileira moderna e contemporânea, não obstante trabalhos importantes tenham até aqui se produzido de modo pioneiro e estimulante. Sob esse aspecto, a originalidade da contribuição de Zilio é que seu texto se desenvolve como uma espécie de meta-história da arte brasileira, propondo-nos certas balizas metodológicas e pistas interpretativas para a constituição dessa história, procedendo a uma espécie de limpeza ideológica do sentido do "moderno". Abre-se assim, doravante, a possibilidade de escrever uma história que não a da modernidade epigonal, de artistas atormentados pelo fantasma da assincronia e da dependência cultural.
Nota:
1. Aracy Amaral, "Tarsila, Sua Obra e Seu Tempo" (1986).
Sônia Salzstein é crítica de arte.

Folha de São Paulo

A bomba do juízo final


A.L.Da Rocha Barros
A. L. DA ROCHA BARROS
em agosto de 1953, em Semipalatinsk, na União Soviética, explode a primeira bomba de hidrogênio -a superbomba-, seis meses antes do teste da bomba H americana. O diretor do projeto atômico soviético, o físico Kurchatov, ficou muito abalado: "Foi uma visão terrível e monstruosa. Esta arma não deve ser usada jamais". O premier Khruschov descreveu suas reações: "Quando fui nomeado secretário-geral do Partido Comunista da URSS, tomei conhecimento de todos os fatos sobre o poder nuclear e não consegui dormir durante vários dias. Então fiquei convencido de que jamais poderíamos usar estas armas e, quando compreendi isto, consegui dormir de novo". Devido ao poder destrutivo quase ilimitado da bomba, Khruschov a chamava de "bomba do juízo final". Ele rejeitou a posição de Stálin sobre a inevitabilidade da guerra entre os países capitalistas, declarando: "A coexistência pacífica ou a guerra mais destrutiva da história. Não há terceira via".
As pesquisas referentes à bomba de hidrogênio nos EUA seguiam devagar. A idéia básica era usar uma bomba atômica de fissão para provocar a "ignição" de uma massa muito grande de combustível termonuclear, ou seja, a energia liberada na reação de fissão provocaria a reação de fusão ("queima" termonuclear). Na fissão, o núcleo de urânio 235, por exemplo, divide-se em dois núcleos menores, bário e criptônio; no processo de fusão, ao contrário, os núcleos leves de hidrogênio combinam-se para formar um núcleo de hélio. Em ambos os casos, a diferença entre as massas inicial e final equivale a uma grande energia, segundo Einstein.
Já em 1942, Fermi sugeriu a Teller que uma bomba de fissão poderia ser usada como estopim para uma bomba de fusão de hidrogênio. Neste mesmo ano, Roosevelt autorizou o início do esforço para a obtenção da bomba atômica americana de urânio 235. Logo que os EUA conseguiram obter a bomba atômica, Teller tornou-se um ardoroso defensor da "guerra preventiva", propugnando que os soviéticos fossem bombardeados atomicamente enquanto houvesse supremacia americana.
Quanto à bomba de hidrogênio, pensava-se que a alta temperatura gerada pela bomba de fissão provocaria a reação de uma mistura de deutério e trítio (isótopos de hidrogênio). No entanto, o matemático Ulam demonstrou que o cálculo de Teller estava errado e que seria necessária uma quantidade muito maior de trítio para uma reação auto-sustentada. A obtenção de uma bomba de hidrogênio parecia então quase impraticável. Mas Teller e Ulam conseguiram uma configuração na qual a espoleta de fissão (bomba de urânio 235 ou plutônio) estava fisicamente separada do combustível termonuclear, que deveria ser comprimido e aquecido (donde o nome "bomba de dois estágios"). O primeiro teste dessa configuração foi realizado num atol do Pacífico, em novembro de 1952, mas não se tratava propriamente de uma bomba. Era uma engenhoca grande, desajeitada, que não podia ser adequadamente transportada.
O projeto soviético foi muito mais satisfatório. Sakharov teve a idéia de colocar camadas alternadas de combustível termonuclear e urânio 238, pois os nêutrons de alta energia liberados na reação deutério-trítio fissionavam o urânio 238. Esse conceito, que deu origem à superbomba soviética, foi chamado de "bolo em camadas".
Contudo, para ter significado no contexto diplomático, as armas atômicas deveriam ser transportáveis. Em 1953, o Politburo do partido aprovou a idéia de desenvolver mísseis balísticos intercontinentais.
As duas superpotências esforçavam-se para manter o "equilíbrio do terror". Esta "guerra fria" teve início no fim da Segunda Guerra Mundial, logo após o estabelecimento do projeto Manhattan para a construção da bomba atômica americana, autorizado por Roosevelt em meados de 1942. Em Los Alamos foram projetadas e fabricadas as bombas de urânio 235 e de plutônio. Bohr, o grande físico dinamarquês que aí trabalhava, preocupado com uma possível corrida armamentista atômica que romperia a unidade dos Aliados, tentou persuadir Churchill e Roosevelt a informar Stálin sobre a bomba. Devido à receptividade da idéia por Roosevelt, Bohr escreveu para Kapitsa descrevendo o projeto Manhattan em linhas gerais e propondo um controle internacional sobre as armas atômicas.
Truman, sucessor de Roosevelt, não acatou tal opinião e a 6 de agosto de 1945, uma bomba de urânio 235 foi lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima, provocando a morte de 145 mil pessoas. Para alguns, o Japão já estava praticamente derrotado e não era necessário lançar a bomba atômica. Mas o que Truman visava era que o Japão se rendesse aos EUA, evitando assim a presença de tropas soviéticas de ocupação. Os soviéticos perceberam isso e, em 9 de agosto de 1945, Stálin ordenou que o Exército Vermelho atacasse os japoneses na Manchúria. Neste mesmo dia, os EUA lançaram uma segunda bomba atômica, desta vez de plutônio, na cidade de Nagasaki. O Japão finalmente rendeu-se aos EUA. Stálin então teria dito a Kurchatov que o equilíbrio entre os aliados tinha sido rompido e que deveria obter a bomba soviética o mais rápido possível. O primeiro teste com a bomba soviética foi realizado nas estepes do Casaquistão em 29 de agosto de 1949, quatro anos depois da bomba americana.
Holloway conta em seu livro, com grande riqueza de pormenores, a história da obtenção da bomba soviética, que envolve lances de espionagem e a presença do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD). Porém, ressalta que o êxito deveu-se sobretudo à grande competência dos físicos soviéticos, que se situavam entre os melhores do mundo.
A história começa com o Instituto de Ioffe, oficialmente conhecido como Instituto Físico-Técnico de Raios X do Estado. Ioffe, que foi discípulo de Rõntgen, o descobridor dos raios X, dizia que o instituto tinha sido criado com o objetivo de tornar a física a base da tecnologia socialista: a URSS tornou-se um dos principais centros de física do mundo, com profundos reflexos sobre sua industrialização. Muitos de seus membros adquiriram fama internacional, como Fok, Ivanenko, Landau, Frenkel, Kapitsa, Semenov, Artsimovich e Kurchatov. Também o físico teórico Gamow pertenceu a esse instituto e depois morou nos EUA. O físico brasileiro Mario Schenberg, da USP, trabalhou com Gamow nos EUA, na explicação do mecanismo explosivo das estrelas supernovas.
Os anos 20, com forte influência leninista, foram os anos dourados do Instituto de Ioffe, considerado o "berço da física soviética". Lênin afirmava que, tal como os bolcheviques, os cientistas lutavam em outra frente do progresso humano, merecendo assim, apesar das dificuldades da época, todo o apoio dos sovietes. Nos anos 30, começaram as pressões do stalinismo sobre os cientistas e, segundo Holloway, as escaramuças entre físicos e filósofos (melhor dizer, ideólogos). O uso que estes faziam dos escritos de Engels e particularmente do livro "Materialismo e Empiriocriticismo", de Lênin, irritou muito o físico Frenkel, que dirigia o departamento teórico do instituto.
Na realidade, era um abuso, um patrulhamento que atrapalhava o progresso científico, mas que tinha importância nas intrigas do carreirismo. A atitude desses ideólogos não lembrava Engels nem Lênin, mas antes o idealismo de Hegel, que na sua dissertação de 1801, "As Órbitas dos Planetas", demonstrava que não podia existir mais do que sete planetas; e, se isso contrariasse os fatos, pior para os fatos. Neste mesmo ano foi descoberto o oitavo planeta.
O assassinato de Kirov, secretário do Partido em Leningrado, em 1934, levou a um período de forte repressão, culminando com os processos de Moscou e o grande expurgo de 1937-38. Vários cientistas foram pegos pela máquina infernal da NKVD, inclusive Landau. Em 1938, Kapitsa escreveu a Stálin pedindo que Landau fosse solto, pois este era um dos maiores físicos teóricos do mundo, que tinha feito inimigos devido a sua irreverência e ao gosto de procurar erros nos outros, principalmente nos velhos acadêmicos. Foi solto um ano depois de ter sido preso e Kapitsa teve que se responsabilizar pela boa conduta de Landau junto ao temível chefe Beria da NKVD. Com a prisão de alguns de seus mais importantes cientistas, acusados de fantásticas conspirações contra o Estado, o stalinismo atrasou o esforço atômico soviético às vésperas da descoberta da fissão nuclear.
Quando Kurchatov deu início ao projeto da bomba atômica, pediu a Khariton que chefiasse um grupo de físicos e escolhesse o local onde seria construído o laboratório de pesquisa conhecido como Arzamas 16, logo apelidado de Los Arzamas, lembrando seu equivalente americano Los Alamos. Sakharov, que começou a trabalhar na superbomba termonuclear, mudou-se para Arzamas 16 em 1950 e dizia na ocasião acreditar que seu trabalho era absolutamente necessário para se atingir o equilíbrio no mundo.
Alberto Luiz da Rocha Barros é físico teórico e professor do Instituto de Física da USP.

Folha de São Paulo

Perplexidades da esquerda


Celso Frederico

O novo livro de Emir Sader, reunindo diversos ensaios publicados nos últimos anos, é um painel vivo da atormentada política latino-americana e um convite persuasivo à reflexão e à ação. Intelectual dedicado e veterano militante, Emir Sader impõe uma coerente lógica ao que escreve, e o faz de maneira clara e elegante, própria de quem quer se dirigir ao grande público sem resvalar para o simplismo. Não é gratuita a lembrança de Russel Jacoby e de seus comentários sobre as modificações na intelligentzia norte-americana: o fim do intelectual ligado à cultura pública, seu confinamento na academia, o recurso à linguagem cifrada nas especializadas e desinteressantes monografias. Contra esse estilo, amplamente consolidado, o autor reitera sua coerência ao refletir sobre questões de interesse geral, questões com que ele próprio se debateu e continua a se debater na militância política.
A análise das sucessivas derrotas da esquerda na América Latina, nas últimas quatro décadas, as perspectivas da resistência solitária de Cuba, os impasses da esquerda após a desagregação do socialismo real, a questão democrática, a trajetória do PT etc., fazem-se acompanhar de textos sobre as referências teóricas que fascinaram o autor e toda a sua geração: Rosa Luxemburg, Ernest Mandel e Che Guevara.
"Nós Que Amávamos Tanto 'O Capital'±", originalmente publicado na revista "praga", testemunha o cruzamento da visão retrospectiva do militante com o analista político. E isso porque Emir não só participava das discussões teóricas travadas pelas organizações de esquerda, como também integrava um dos grupos de leitura, formados pelos professores da USP, para estudar "O Capital".
A interpretação de Emir sobre o "seminário de Marx" não economiza elogios à necessária busca de rigor nas ciências sociais efetuada pelo grupo: desse esforço concentrado de leitura saiu depois um conjunto significativo de obras que renovaram o pensamento acadêmico. Mas a sua militância o impedia de encerrar-se na torre de marfim e desprezar as outras vertentes de pensamento verdadeiramente afinadas com o movimento social da época.
A contraposição entre o rigor metodológico, perseguido pelos intelectuais paulistas, e o esquematismo, atribuído pelos uspianos à intelectualidade carioca agrupada em torno do Iseb, é vista numa perspectiva crítica. O ensimesmado e provinciano pensamento uspiano, encastelando-se no rigor metodológico, permaneceu imune às tempestades que se abatiam sobre a sociedade brasileira. Além disso, padecia de uma visão preconceituosa e maniqueísta, alheia à profunda renovação cultural que se processava no Rio de Janeiro em torno de Ênio Silveira e da editora Civilização Brasileira, bem como à intervenção cultural realizada por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, visando diversificar os registros teóricos do marxismo, as propostas educacionais de Darcy Ribeiro etc.
Analisando esse capítulo municipal da recepção de Marx, o autor polemiza com Roberto Schwarz, que afirmou que "o contexto imediato do seminário não era a esquerda e a nação, mas a Faculdade de Filosofia". O olhar militante de Emir constata que a descoberta de Marx pelos intelectuais uspianos tem a sua explicação última no rumor das ruas, no intenso movimento popular impulsionado pela frente nacionalista, cujos ecos, finalmente, fizeram-se ouvir na academia. O encontro com "O Capital" não resultou, diríamos nós, da evolução imanente da consciência filosófica uspiana que, após percorrer Kant e Hegel, debateu-se com a dissolução do hegelianismo para, enfim, chegar a Marx...
Emir polemiza ainda com Schwarz, que aponta a "ascendência intelectual e política" de Fernando Henrique Cardoso, um dos participantes do seminário, "no interior da esquerda". Emir contesta a afirmação, enumerando os autores que a esquerda lia na época. A "teoria da dependência", desenvolvida por FHC, passava ao largo das discussões travadas na esquerda, ao substituir a noção de imperialismo pelos "condicionamentos externos" do desenvolvimento econômico. Com a derrota da esquerda, FHC operou a passagem da "teoria da dependência" para a "teoria do autoritarismo", ideologia amplamente influente que presidiu a transição para a Nova República, hegemonizada pelo grande capital em oposição ao Estado. Não houve, conclui o autor, nenhuma incoerência na evolução intelectual de FHC. O presidente, sentindo a estocada, dispensou o "elogio" e criticou o texto de Emir numa entrevista à Folha (13/10/96).
Outro ponto alto é o texto que dá nome ao livro. Enfocando as perspectivas do PT, o autor faz um balanço das experiências revolucionárias do século 20 centradas na concepção de que a tomada do poder resume-se, basicamente, à tomada do aparelho de Estado. O exemplo mais dramático vem da experiência chilena: "A defesa física e simbólica do Palácio da Moneda por parte de Salvador Allende foi a cena final da concepção que levou o governo popular a ficar cercado dentro do aparelho de Estado, transformado em armadilha: a concepção de que sua tomada seria o objetivo estratégico central do novo poder. Foi subestimada a construção do poder apoiada em novas bases sociais, na articulação dos elos do aparelho estatal -recuperáveis para a estratégia popular- com os novos embriões de poder que surgiam nos bairros, nas fábricas, nas empresas, nos campos, nas escolas, nos meios de comunicação".
O poder não é uma coisa a ser tomada, mas uma relação social. O exemplo da tragédia chilena é evocado para se pensar o destino do PT. As ilusões eleitorais, transformadas em derrotas e desânimo, repõem a discussão sobre a estratégia política a ser seguida e a necessidade de formar contrapoderes no interior da sociedade. Mas aí começam os problemas, postos pela realidade, que acabam invadindo as páginas do livro e criando indecisões paralisantes:
a) afinal, qual é o caráter da revolução brasileira? Esta questão, que havia sido o divisor de águas da esquerda desde fins da década de 50, volta à cena no novo contexto. A perspectiva socialista, que sempre norteou a trajetória do autor, parece debater-se com formulações imprecisas: "revolução democrática", instauração de "democracias sociais", criação da "esfera pública", ênfase nos "direitos da cidadania" etc. Propostas vagas para um projeto ainda indefinido que pretende "inventar uma nova democracia, de caráter social", "uma democracia radical, solidária e humanista";
b) a "alternativa de poder centrada na força dos trabalhadores" convive, assim, com a extensão dos direitos civis da cidadania e um público socialmente heterogêneo. Por isso, o que sobe para primeiro plano é "a democracia na propriedade da terra, na questão habitacional, nos serviços de saúde, de educação, de seguridade social", seguida da "democracia nos meios de comunicação", "direitos das minorias de decidirem autonomamente o seu destino, começando pelo direito ao aborto pelas mulheres", terra para os indígenas, "igualdade para todas as raças" etc. Justas reivindicações, mas que poderão ser absorvidas e neutralizadas pelo capitalismo moderno;
c) sem um claro projeto a guiar a ação dos agentes sociais, o risco maior é o corporativismo selvagem. Se o drama de Allende consistiu na criação da "dualidade de poderes dentro do aparelho de Estado", o corporativismo, por sua vez, também estabelece uma dualidade entre as representações particularistas da sociedade e a representação universal pretendida pelo partido político. E esse dualismo, nos momentos em que o partido reflui, exacerba as pressões dos grupos particulares e dos "lobbies" sobre o Estado, inviabilizando a própria permanência da democracia formal;
d) finalmente, o apelo aos movimentos "de base" ocupam o lugar de uma questão maior ausente nas reflexões de Emir: a revolução técnico-científica em curso e seus efeitos devastadores sobre a classe operária. O olhar do autor volta-se para o passado para dele retirar elementos de estratégia para o presente; mas as tendências, que lenta, mas inexoravelmente, se desenham, projetam um futuro em que nada será como antes.
Sintoma das perplexidades da esquerda contemporânea, o livro de Emir Sader é um convite à reflexão sobre a história vivida e um desafio à imaginação para aqueles que sabem que a história não acabou.
Celso Frederico é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de "O Jovem Marx" (Cortez).

Folha de São Paulo

A lógica do preferível


Angélica Chiappetta

Chaim Perelman é, muitas vezes, considerado um dos principais responsáveis pelo renascimento da retórica ou, como ele mesmo afirma, pelo estabelecimento de uma Nova Retórica. Se a retórica pôde renascer, ou se uma Nova Retórica pôde ser estabelecida, é porque desde aproximadamente o final do século 18 o termo "retórica" passou a indicar o discurso vazio que procura substituir com expedientes medíocres a falta de idéias. A retomada pode ligá-la ao raciocínio, terreno onde tem que se defender da lógica, ou às figuras de estilo, onde disputa com a poética, mas, nos dois terrenos, destaca-se a linguagem como realidade comum.
Pode-se passar da retórica como raciocínio não formal à retórica como inferência de um sentido dito figurado e daí para o reconhecimento das intenções do orador como critério de sentido além do literal. Tais deslizamentos e sobreposições são parte do campo retórico e ajudam a defini-lo.
Assim, o plural, "Retóricas", no título do livro de Perelman, é oportuno em vários sentidos. Trata-se de uma coletânea de artigos e conferências anteriormente publicados e agora (a primeira edição belga é de 1989) agrupados em quatro grandes temas. A primeira parte, "A Linguagem: Pragmática e Dialógica", lembra que, apesar da diferença de significados atribuídos ao termo "dialética", este sempre pressupõe um juiz ou alguma instância de julgamento, externa e prévia, que garanta a verdade das proposições.
A dialética platônica faz aparecer um saber que assenta numa realidade estável, feita de verdades preestabelecidas e imutáveis, as Idéias, que são apenas reveladas pelo diálogo que as pressupõe. Perelman, retomando noções aristotélicas, reforça a participação do interlocutor: o ponto inicial de uma argumentação dialética não consiste em proposições necessárias, válidas em toda parte e sempre, mas sim em proposições efetivamente aceitas em dado meio e válidas só nesse meio.
A segunda parte, "Lógica ou Retórica?", segue criticando as noções de univocidade pretendidas pela filosofia platônica que, separando convicção de persuasão, impõe um ideal de rigor que confunde progressivamente a lógica e a lógica formal. Para que uma mensagem seja formalmente analisada é preciso reduzi-la à univocidade, mas o próprio formalismo só é "evidente" por convenções de aceitação. Qualquer linguagem, mesmo formal, dirige-se a alguém e, se pode convencer a todos, sendo formal, é por não agredir ninguém com um conteúdo que questiona este ou aquele valor. A Nova Retórica, opondo-se a tal platonismo, é "o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao assentimento". Seu cuidado primordial é o do lógico às voltas com o real social.
Na terceira parte da coletânea, "Filosofia e Argumentação, Filosofia da Argumentação", Perelman faz uma distinção entre o que chama de "filosofias primeiras" e uma proposta "filosofia regressiva". As filosofias primeiras, dogmáticas, fundam-se numa metafísica que determina os princípios absolutamente primeiros e empenham-se em provar que esses constituem a condição de qualquer problemática filosófica. A filosofia regressiva, por outro lado, lida com princípios que, em vez de serem iluminados por alguma intuição que preceda os fatos e seja independente deles, são esclarecidos pelos fatos que permitem coordenar e explicar.
Os princípios regressivos são como que efeitos de suas consequências. Essa filosofia, Perelman avizinha da retórica antiga de Aristóteles, e principalmente da parte de sua "retórica" relacionada à "tópica". No entanto, afirma que a meta de sua Nova Retórica, ou sua "lógica do preferível", é mais limitada que a da retórica aristotélica, pois não se interessa por todos os fatores que influenciam o assentimento, mas apenas pelas "argumentações pelas quais somos convidados a aderir a uma opinião e não a outra". Segundo Perelman, argumenta-se para conseguir a adesão de um auditório que, no caso do filósofo, é o "auditório universal", abstração, idealizada pelo orador, que regula os problemas relativos à eficácia da retórica. A argumentação racional deve pretender à universalidade expressa por esse auditório, histórica e socialmente determinado, situado num meio de cultura e variando com este.
Na última parte, "Teoria do Conhecimento", Perelman faz referência à sociologia do conhecimento, "ciência da determinação do saber e do conhecer pela existência social". Sem considerar a constituição histórica e social do auditório, a teoria do conhecimento, ligada às ciências formais, segue a concepção cartesiana que diz ser a ciência constituída por verdades evidentes, que não variam e não dependem da figura do pesquisador. No entanto, lembra Perelman, mesmo as ciências tiveram um desenvolvimento argumentativo e muitas razões que fundamentam as decisões dos cientistas são opiniões consideradas prováveis e elaboradas graças a raciocínios que não se prendem à evidência nem à lógica analítica. Uma teoria da argumentação poderia auxiliar o exame dos limites do cartesianismo e propor procedimentos para ultrapassá-los.
Tendo sido apontado como um valorizador e quase salvador da retórica, Perelman foi também, muitas vezes, acusado de trair a causa.
A. Plebe e P. Emanuele fazem severas objeções ao fato de ele ter reduzido a retórica antiga a uma parte da "invenção" e de apresentar um Aristóteles "com o propósito enganoso de identificar a retórica com a dialética"(1). B. Cassin afirma que o projeto de Perelman é platônico e tenta satisfazer o "Fedro" graças à "Retórica" de Aristóteles, apropriada, assim, como a "boa retórica"(2). Segundo a autora, o "auditório universal" de Perelman coloca o problema do valor da retórica no campo das intenções, enquanto esse só poder ser retoricamente discutido no campo dos efeitos. M. Meyer diz que a Nova Retórica ainda está restrita ao campo da proposição como suporte mínimo da verdade, quando talvez se devesse passar para o campo dos problemas e das questões, campo em que a retórica seria "a negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema"(3). De qualquer forma, Perelman deixa claro que se apropria da retórica aristotélica com o interesse do lógico insatisfeito com as restrições que o cartesianismo tem imposto aos raciocínios.
NOTAS:
1. "Manual de Retórica", de Armando Plebe e Pietro Emanuele, Martins Fontes, 1992.
2. "Bonnes et Mauvaises Rhétoriques - De Platon à Perelman", de Barbara Cassin, in "Figures et Conflits Rhétoriques", org. por Michel Meyer e Alain Lempereuer, Université de Bruxelles, 1990.
3. "As Bases da Retórica", de Michel Meyer, in "Retórica e Comunicação", org. por Manuel Maria Carrilho, Asa, 1994.
Angélica Chiappetta é professora de língua e literatura latina da USP.

Folha de São Paulo

As ambiguidades de Laclos


Paulo Vieira Neto

Raquel de Almeida Prado enfrenta a difícil tarefa de tentar reconstituir as cores originais com que foi pintada a paisagem ética das "Ligações Perigosas" de Laclos. Os motes desta restauração se encontram, de um lado, no aparente deslocamento da advertência do editor e do prefácio do redator com relação ao corpo da obra, de outro, no próprio desfecho final e no destino que Laclos concede aos seus personagens.
Segundo Raquel, contudo, o verdadeiro problema de interpretação das "Ligações" ainda não aparece quando posto apenas nestes termos. As diferenças entre o tom do discurso do editor, do redator, da narração propriamente dita e, por consequência, do tom assumido ao apresentar o destino final dos personagens são apenas a ocasião de um diagnóstico mais delicado: a narrativa das "Ligações Perigosas" não é um meio absolutamente diáfano que se anula ao deixar transparecer a trama e o destino objetivo dos seus personagens. Contrariamente a isso, a autora irá mostrar que a forma da narração interferirá e mesmo constituirá o sentido mais adequado -isto é, o sentido moral- do desenvolvimento do romance.
Esta opção de leitura exige uma atenção especial dirigida ao gênero de discurso do narrador e, por meio dele, do sentido que vão adquirindo os fatos narrados. Evidentemente este parece ser um cuidado que todo leitor deve guardar com relação a toda e qualquer narrativa. Entretanto, no caso específico das "Ligações", esta tarefa não se mostra tão fácil e tão imediata quanto a simplicidade da máxima parecia sugerir.
Com efeito, quando a forma da narração se imiscui também na forma de constituição dos fatos, o romance daí resultante passa a ter que resolver, passo a passo, a difícil convivência entre a convencionalidade do discurso e a sua precisão descritiva. Mais do que isso. Gera-se, de imediato, uma tensão constante entre o descrever e o julgar. É isto, talvez, que a autora veio a identificar como uma certa ambiguidade estrutural que atinge o coração das "Ligações Perigosas".
Vejamos então quais os lugares em que, segundo a autora, manifestava-se aquela ambiguidade. Em primeiro lugar haverá a ambiguidade na constituição do gênero retórico do discurso pelo qual o autor nos apresenta o enredo e o sentido das "Ligações". Ela se resumirá, nesse caso, na adoção do gênero judiciário, presente nos prefácios, e do gênero deliberativo, presente no desenvolvimento da obra. Aqui devemos levar em conta a advertência da autora que, com razão, não considerará essa mudança de tom como uma ruptura pura e simples.
O tom judiciário do prefácio lança uma sombra de suspeita sobre todo o desenvolvimento posterior do romance, despertando desde logo uma atenção especial sobre o conteúdo moral do que será narrado. A força moral do gênero judiciário não será amenizada pelo gênero deliberativo que o sucede. Muito pelo contrário, aquele primeiro gênero irá adquirir um valor hiperbólico justamente pelo seu contraste com o gênero adotado no restante da obra.
A próxima figura da ambiguidade, ainda segundo Raquel, surge no interior da estratégia própria à narração do romance. Esta última, por certo, reflete exatamente uma articulação teatral -tema tão caro aos estetas e aos moralistas setecentistas. Mas o ambiente teatral permite que o leitor assuma a peripécia do romance por duas perspectivas diferentes. A primeira mimetiza a posição concernente ao palco concreto onde se dá a ação, isto é, se confunde com a perspectiva dos personagens que assistem (ou são vítimas) das manobras de Valmont e de Merteuil.
Por ser próxima demais, esta perspectiva esconde os detalhes da ação e incorre ainda no risco de permitir a interferência dos juízos contingentes e casuais dos personagens no juízo do leitor, na medida em que este vai assistindo ao desenvolvimento da trama. A segunda, mais distante e mais apropriada para revelar os segredos de bastidor e as verdadeiras intenções dos atores, será reservada para os leitores que se colocaram, desde logo, do ponto de vista da platéia. O ponto de Raquel, neste caso, consiste em mostrar que somente no trânsito entre a platéia e o palco, trânsito levado a cabo pela imaginação do leitor, será possível refletir sobre o significado completo da história e julgar efetivamente a conduta dos personagens.
O último foco de ambiguidade se concentra sobre o próprio narrador. Dado o caráter epistolar do romance, o seu narrador será muito mais um campo de forças -com o perdão da metáfora- do que uma personalidade individualizada e determinada. Isto, no entanto, não impediu a autora de identificar, convincentemente, o papel fundamental do redator na constituição deste campo. Mas não devemos nos esquecer que, segundo a autora, todos os personagens das "Ligações", inclusive o redator, são entes retóricos -sua substância é feita apenas pela matéria dos seus discursos, isto é, da elocução dos seus valores e dos seus sentimentos.
O discurso do redator, mesmo interferindo no discurso que narra, não passa de uma posição a mais, que precisa ser julgada, isto é, assentida ou rejeitada. Se quisermos recuperar alguma substância por trás da narração das "Ligações Perigosas", teremos que ter em mente, o tempo todo, de onde e para quem as coisas estão sendo ditas. Aqui, novamente, a autora demonstra a tarefa delicada envolvida na leitura das "Ligações". É preciso desconfiar da transparência do discurso e adivinhar as modulações do seu poder de revelação ao longo de quase toda a narração.
Acompanhando a autora até este ponto poderíamos dizer que Laclos resolve a tensão entre o mote e a coisa, entre o discurso e o fato narrado, por meio dessa ambiguidade muito peculiar que foi sendo construída junto com a elocução da trama das "Ligações Perigosas". Resta ainda levar em consideração que esta figura não envolve nenhuma confusão. Ela, de fato, fornecerá a exata medida em que se transita do gênero judiciário ao gênero deliberativo, da platéia ao palco e em que podemos identificar a substância do que está sendo apresentado naquela obra. Em outros termos: a ambiguidade, por si mesma, fornece a convenção pela qual ela deve ser desvendada.
O simples fato de o leitor poder julgar todos os personagens da obra já aponta para uma solução importante do ponto de vista da apropriação crítica das "Ligações". Com efeito, a figura daquela ambiguidade pode desenvolver-se até dois limites extremos que falsificariam o seu valor para a compreensão da estratégia de Laclos. No primeiro limite, ela poderia redundar em uma anfibolia, isto é, na simples confusão de gênero, de posição e, por fim, no próprio juízo do leitor. No outro limite, ela poderia transformar-se numa antinomia, isto é, numa contradição cujo sentido seria apenas o de evidenciar uma dificuldade intransponível para transitar entre os gêneros, entre as perspectivas possíveis para a compreensão da obra e, enfim, para que o leitor possa julgar os fatos. O que Raquel nos mostrou foi que estas duas formas de compreensão daquela figura pecam por não lhe concederem o caráter positivo, e portanto esclarecedor, que ela irá adquirir quando efetivamente somos capazes de julgar Valmont e Merteuil.
Ora, e aqui vai a justificação desta leitura estrutural da "Perversão da Retórica", isto que Raquel irá determinar como sendo uma forma de ambiguidade positiva na obra de Laclos será precisamente o motivo pelo qual poderemos reincorporar aquele autor no quadro de uma discussão muito mais ampla. O que Raquel encontrou especificamente em Laclos foi o sintoma claro de uma solução literária cujo diagnóstico tem por fim reincorporá-lo ao iluminismo literário-filosófico, num sentido bem mais amplo. Isto é: Raquel nos ensinou a interpretar mais uma figura pela qual se pode pensar a sociabilidade do século 18, a partir das suas próprias convenções.
Paulo Vieira Neto é doutorando no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

Em busca de seu duplo


Andrea Lombardi

O ensaio "O Humorismo", publicado originalmente em 1908, reúne palestras que Luigi Pirandello ministrou na Universidade de Roma no início do século. Mais tarde, após uma polêmica com Benedetto Croce, Pirandello acrescentará outros capítulos para uma nova edição, em 1920. Como observa Aurora Benardini na introdução à edição brasileira, este longo ensaio pode ser considerado o produto de uma vida. Pirandello -e não poderia ser diferente- procura criar uma genealogia para sua própria concepção da arte, esboçando uma interpretação da tradição literária italiana, a partir de sua visão do humorismo.
De fato, é contra a herança romântica e naturalista que Pirandello luta, para se desvencilhar da tradição e conquistar um espaço próprio.
Estabelece parentescos ilustres com sua concepção do humorismo, cujos motivos nem sempre ficam claros. Estão dentro desta tradição Maquiavel, Luigi Pulci, os escritores anticlassicistas da Renascença, Giordano Bruno, Alessandro Manzoni e Giacomo Leopardi.
É a partir deste último que ele critica os românticos alemães e que se contrapõe a F. Schlegel, segundo quem "a ironia consiste em não se fundir nunca completamente com a própria obra, em não perder, nem mesmo no momento do patético, a consciência da irrealidade das suas criações (...), em sorrir do leitor que se deixará prender ao jogo, e também de si mesmo, que consagra a própria vida a jogar".
Nesta releitura da tradição literária italiana ele exclui, porém, escritores como Boccaccio, por defender uma visão unilateral do cômico, e Ariosto, autor do hilariante "Orlando Furioso", por afirmar uma visão demasiado distanciada, reflexiva, sem a participação do sentimento.
A época da publicação do ensaio de Pirandello está marcada por dois ensaios de peso sobre o tema, diametralmente opostos entre si: o de Bergson ("Le Rire - Essai sur la Signification du Comique", escrito em 1899) e o de Freud ("O Chiste e sua Relação com o Inconsciente", de 1905). Se, para Freud, a ênfase está na liberação, por efeito do chiste, de mecanismos inconscientes, de forma semelhante ao efeito do sonho, para Bergson é o mecanismo social do riso que tem uma função terapêutica -revelar um comportamento mecânico, uma rigidez no fluxo da vida.
Como enfatiza A. Bernardini, Pirandello está próximo de Bergson, embora nada prove que ele conhecesse esse texto do filósofo francês. A afirmação de Bergson -"Não há nenhum inimigo do riso maior do que a emoção"- parece, na verdade, apontar para uma possível influência, "às avessas", sobre Pirandello: o humorismo, afirma este, acrescenta a um mecanismo de distanciamento (próprio do cômico e da ironia) uma participação emocional ("o pranto, a indulgência, a simpatia"), de forma a alcançar como efeito final um estado de "perplexidade entre o pranto e o riso".
A consciência tem um papel fundamental, na medida em que representa um "espelho interior no qual o pensamento se mira", mas o humorismo é o "sentimento do contrário", ou seja uma complexa mistura entre cômico e trágico, uma ambivalência irreconciliável destinada a representar o mundo atual em sua duplicidade.
Desta forma, segundo Pirandello, a obra de arte se apresenta aberta a múltiplas interpretações futuras. "Nas obras-primas do gênio humano -afirma ele- vive escondida uma mais-valia futura que se desenvolve apenas por si mesma, independente dos próprios autores". O humorismo torna-se, assim, mais do que um conceito; é postura artística e existencial, apta a caracterizar uma época inteira, quase uma continuação do romantismo e do naturalismo.
Efeito dos temas paradoxais de Pirandello é uma polaridade constante entre o conceito de realidade, herança de sua formação naturalista, e a reflexão ou auto-reflexão, caminho da consciência (ou de suas personagens) em via de se tornar completamente independente, mostrando sempre que o limiar entre os dois mundos é muito precário. Será justamente no teatro que o "sentimento del contrario" encontrará sua realização e, particularmente em "Seis Personagens à Procura de um Autor", de 1921. Os protagonistas desta peça foram produzidos pela mente do escritor, mas já não lhe pertencem mais. No prefácio, de 1925, Pirandello identifica o parto da fantasia do escritor com um parto natural: "O mistério da criação artística é idêntico ao do nascimento natural". Os personagens estarão na frente de seu criador "tão reais que os podia tocar, tão vivos que lhes ouvia a respiração... Nascidos vivos, queriam viver".
A duplicidade das personagens é não apenas uma declaração da poética de Pirandello, mas também de sua visão existencial. A relação entre cômico e trágico é subvertida, na medida em que um está no outro e aquilo que os seis personagens percebem como trágico (a relação incestuosa entre o pai e sua enteada) torna-se algo de cômico ou absurdo para a companhia teatral que deve representar seu drama, pois diferentes níveis se superpõem, tornando impossível uma visão unitária da realidade.
Neste mesmo prefácio Pirandello divide os escritores em duas categorias: os escritores cuja natureza é "histórica", cujo objetivo é representar personagens "pelo simples prazer de representá-los" e escritores "cuja natureza é mais propriamente filosófica". Estes últimos, aos quais Pirandello afirma pertencer, "não aceitam representar figuras, casos e paisagens que não estejam embevecidos por um sentido particular da vida".
A ambiguidade, esta luta contínua entre dois lados da natureza dos personagens, representantes da vida real e, ao mesmo tempo, figuras completamente autônomas, pura espiritualidade, criação, fantasia, impõe ao leitor aquele "sentimento del contrario". Uma participação, um "pathos", que permite ver os dois lados do cômico, ou seja, a duplicidade que ele define enquanto essência do "humorismo".
Nas linhas finais do ensaio, porém, Pirandello deixa transparecer sua relação contraditória com o romantismo alemão e sua concepção da ironia: "Nas representações cômicas medievais do diabo, encontramos um escolar que, para escarnecer dele, lhe pede para agarrar a própria sombra no muro. Quem representou este diabo não era, certamente, um humorista. Quanto valha uma sombra o humorista sabe bem: o 'Peter Schlemihl' de Chamisso o diz".
Peter Schlemihl, protagonista da história maravilhosa do escritor romântico Adalbert von Chamisso, vende a própria sombra ao diabo, um senhor vestido de terno cinza, em troca de uma inesgotável bolsa de ouro, por meio da qual ele se torna riquíssimo.
A ausência de sombra, porém, sua "anomalia", o torna socialmente marginalizado. Entretanto, Schlemihl consegue, inesperadamente, reconquistar a sombra e evita perder a alma, recuperando a identidade plena, pois sua existência permanece confinada ao mundo da ficção literária. Os personagens de Pirandello, ao contrário, estão condenados a viver entre realidade e fantasia, num mundo irremediavelmente cindido.
Andrea Lombardi é professor de literatura italiana na USP.

Folha de São Paulo

O século de Bobbio


Milton M. Do Nascimento

não é sempre que temos a oportunidade de ler e sentir o prazer da leitura, como se estivéssemos ouvindo ao pé de uma árvore as belas histórias de um amigo já velho, carregando consigo a experiência de um século. Foi assim que me senti ao ler esses dois últimos livros de Bobbio.
A temática da reflexão sobre os intelectuais, sobre seu papel, suas responsabilidades etc. ganha aqui uma clareza extraordinária, principalmente porque esse velhinho irascível ou iracundo, como gosta de se ver, com seus quase 88 anos, ao falar dos intelectuais, traça o seu próprio perfil, olha-se no espelho e narra sua própria experiência.
Quanta simplicidade nos textos que tratam da velhice em "O Tempo da Memória"! Mesmo o que nos parece banal, ganha ali um vigor e uma dimensão novos, como nesta passagem: "O tempo da memória segue um caminho inverso ao tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram. Cumpre-nos saber, porém, que o resíduo, ou o que logramos desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de nossa vida. Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver". A memória torna-se o caminho para a construção da própria identidade, isto é, a de um intelectual por vezes acusado de paradoxal, de não tomar partido em questões políticas nas quais se exigia que se assinassem manifestos de apoio, ou de não aderir a candidatos aos quais se esperava que todo intelectual deveria aderir e assim por diante.
Herdeiro da tradição ilustrada do século 18, mas sem o otimismo de um Condorcet ou de um Voltaire, Bobbio não faz uma análise sociológica ou história dos intelectuais, mas procura estabelecer o que deveriam ser ou fazer. Essa distinção fundamental entre o dever ser da atividade intelectual e a condição histórica e sociológica de sua inserção na ação é fundamental para a compreensão da trajetória de Bobbio.
Não podemos separar -por isso recomendo a leitura conjugada das duas obras acima referidas- a reflexão de Bobbio sobre os intelectuais da visão que ele tem de si mesmo e das confusões que seus críticos fazem ao tratarem do trabalho dele como intelectual. E tais confusões advêm da superposição que muitos fazem entre o fato e o dever ser, dois níveis do discurso inteiramente distintos. "Digo isso porque a maior parte dos discursos sobre os intelectuais que lemos dia após dia nos jornais e revistas são discursos prescritivos, que exprimem os desejos e as esperanças de quem os faz, mas são apresentados como discursos analíticos, como discursos sobre o que os intelectuais efetivamente fazem, e portanto são equivocados de cima abaixo".
Isso é importante também para a caracterização dos diversos tipos de intelectual. Bobbio define-se como um intelectual dualista, isto é, como aquele que opera sempre a distinção entre o fato e o direito, entre a análise e a prescrição. Os que sobrepõem esses dois níveis seriam os intelectuais monistas, mas é fácil perceber que tanto numa categoria como na outra existem vários tipos ou matizes. Quando Bobbio trata, em "O Tempo da Memória", dos grandes pensadores que são suas referências constantes, indica-nos, dentre os dez primeiros, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, considerados por ele como os "maiores filósofos políticos da era moderna", e Croce, Cattaneo, Kelsen, Pareto e Weber, os contemporâneos mais importantes. Exatamente aqueles que sempre tomaram o plano do dever ser como indispensável ou como condição de possibilidade para se observarem e se pensarem o fato e a história.
Quando Bobbio se autodefine como iluminista pessimista, sua referência poderia ser Rousseau, também acusado de contraditório, de inconsequente, de estabelecer uma falta de sintonia entre a teoria e a prática. O outro autor, aliás preferido de Bobbio, é Hobbes. Tanto este quanto Rousseau, quando tratam do Estado, não se referem a um Estado determinado, mas aos princípios que devem regular o seu bom funcionamento. Para eles, outra coisa é a política doméstica dos Estados em particular, mas cuja compreensão não pode ser feita sem o recurso aos chamados "princípios do direito político".
A figura do intelectual apresentada por Rousseau, tomando a si mesmo como referência, é a daquele que, acima de tudo, possui um compromisso com a verdade. E esse trabalho, segundo Bobbio, exige paciência, consideração de vários aspectos do problema, os prós, os contras, com frequência reformulação de certos pontos tomados como certos, requer também a dúvida metódica e o espírito de investigação constante. Quando o filósofo analisa os fatos, dessa maneira, sempre à luz dos princípios do direito, ele não pode curvar-se aos imperativos da história ou da realidade factual, objeto de sua análise, mas pode interrogá-la, questioná-la e sobre ela emitir um juízo de valor. O compromisso com a verdade não pode significar fuga ou escamoteamento da realidade. Pelo contrário, é esforço de aproximação contra as ilusões do dado empírico.
A pergunta a que Bobbio tenta responder de maneira nova, isto é, a do sentido da ação do intelectual, daquele que não trata de coisas, mas de idéias, não lida com máquinas, mas com símbolos, aparece aqui também reformulada já por esses pressupostos. O que significa, por exemplo, pedir que o intelectual assuma uma determinada posição política, ou que ingresse num partido político? Simplesmente que ele coloque seu instrumental de reflexão a serviço de alguma coisa que tenha uma apelação imediata. Pede-se, com frequência, o aval dos intelectuais para ações políticas determinadas e se eles se recusam a fazê-lo, são tachados de "alienados" que não querem deixar a torre de marfim e tantas coisas mais.
Essa exigência de engajamento dos intelectuais, segundo Bobbio, não pode interferir na sua função específica que envolve aquele compromisso com a investigação ponderada, com a crítica. O mergulho na ação, por outro lado, não permite a reconsideração. Para o homem de ação, ponderar os prós e os contras pode dar a entender insegurança, falta de coragem, falta de programa e, consequentemente, provoca a perda do poder.
O poder dos intelectuais não é um poder político. No plano das idéias, a reformulação constante dos rumos da teoria significa espírito de investigação atenta. A crítica deve provocar um fervilhamento de idéias novas, significa criação constante. Essa é a função política dos intelectuais. Seu poder é acima de tudo moral e se faz exercer por persuasão, nunca por correção.
Não nos esqueçamos de que Bobbio foi também um homem de ação, na resistência contra o fascismo. Seu compromisso com a liberdade, com a igualdade, que o caracteriza como um homem de esquerda, um socialista liberal, fez dele um militante contra todas as formas de totalitarismo. Nunca admitiu a divisão européia entre o leste e o ocidente, simbolizada pelo muro de Berlim, combateu o stalinismo, mas soube admirar Gramsci e manteve um diálogo constante com os intelectuais do Partido Comunista italiano, o mais liberal dos partidos comunistas europeus.
A postura de Bobbio assemelha-se à de Voltaire no combate ao fanatismo. "A quem um dia me perguntou com que trecho de meus escritos eu me definiria, apontei a conclusão do prefácio de 'Italia Civile': 'Da observação da irredutibilidade das crenças últimas extraí a maior lição de minha vida. Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E porque estou com disposição para as confissões, faço mais uma ainda, talvez supérflua: detesto os fanáticos com todas as minhas forças' ".
Milton Meira do Nascimento é autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).

Folha de São Paulo

A Consciência de Svevo


Aurora Bernardini

Depois de "Uma Vida" (l892), "Senilidade" (l898) e "A Consciência de Zeno" (l923), veio à luz esta pequena obra-prima de Italo Svevo (l86l-l928), escrita em 1926 e publicada pela primeira vez em 29. A edição brasileira ora lançada traz um prefácio do tradutor, um depoimento-entrevista (l985) da filha de Svevo, Letizia Fonda, e alguns textos sobre o escritor no Brasil, a começar pelo de Otto Maria Carpeaux (l946).
Embora Joyce soubesse de cor a passagem final de "Senilidade"', tanto gostara do segundo livro do amigo, o grande "tour de force", a referência máxima do escritor, o livro que o tornou imediatamente famoso no estrangeiro é, sem dúvida, "A Consciência de Zeno".
E não só pelo fato de nele estarem contidos os reflexos dos dois acontecimentos "verdadeiramente literários" que se deram na vida dele (a longa e rica amizade com Joyce em Trieste e o encontro com as obras de Freud, que leu sofregamente), mas também, obviamente, pelo modo como ele os trata.
Em outros termos: a atualidade espicaçante do mundo descortinado por Freud -"um universo oculto que sugere os abismos prezados pela literatura do século 20"-(conforme diz Antonio Candido de Machado de Assis em "Vários Escritos")-, em que cada geração encontra um nível diferente; e o estilo de Svevo, ainda hoje tão intrigante e desafiador para nós, com seu tipo especial de ironia e seus curiosos "procedimentos".
Entre "Zeno" e "O Bom Velho" há duas diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, a época em que foram compostos. Quando começou o "Zeno", em l9l9, a primeira guerra tinha acabado recentemente e a volta de Trieste à Itália tinha sido recebida com grande euforia pelo círculo de Svevo. Este se reunia em volta do jornal italiano, criado em 1918, "La Nazione", para o qual o escritor, ainda obscuro apesar de já ter publicado dois livros, tinha colaborado logo com oito artigos satíricos sobre o "tramway de Servola" (o bonde mais lento do mundo) e uma série de longos artigos jocosos sobre Londres, onde tinha se refugiado a famíla dos sogros, durante a guerra, e onde Svevo tinha negócios por conta da fábrica de tintas submarinas que dirigia. "A máquina tinha sido azeitada. Em 19 sua colaboração ao jornal diminuiu drasticamente. É que ele tinha começado a escrever "A Consciência de Zeno". Foi um momento de inspiração forte e empolgante. Não havia salvação. Aquele romance tinha que ser feito. Certamente, podia-se deixar de publicá-lo, dizia. Finalmente os moradores da casa dele tiveram seus ouvidos poupados dos sons arrítmicos de seu violino" (1).
O livro, conforme se sabe, pretende ser uma biografia, ou auto-análise, que Zeno faz de si próprio, para vingar-se do seu analista, a quem sempre mentira. (Só a título de informação, curiosa foi a observação do médico E. Weiss, a quem o escritor enviou o livro, depois de publicado: "Não me é possível falar do livro, porque com a psicanálise ele não tem nada a ver"). O que importa, para o paralelo que se quer estabelecer, é que aqui o narrador (o livro é escrito em primeira pessoa) se expõe completamente, num processo que a crítica anglo-saxã chama "self-exposure" e num modo de que a tradição modernista brasileira encontra um eco feliz no "palhaço da burguesia" de Oswald de Andrade.
Já a conjuntura em que foi escrita "A Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha", apesar dos poucos anos passados, é completamente diferente. A essa altura (l926) Svevo já é um escritor famoso. Não só a crítica francesa e inglesa, graças à intervenção de Joyce, aplaude sua obra -Valéry Larbaud, Benjamin Crémieux, Bobi Bazlen cooperam para a publicação dela no estrangeiro-, mas este último apresenta os romances de Svevo a Eugenio Montale, o que marca o início do interesse por eles por parte da crítica italiana, até então ainda provinciana ou presa a conventículos literários. Em segundo lugar, Svevo, a esta altura, já se considera um "velho", ou seja, quem descobriu que a autonomia da consciência, a rigor, não existe e, "last but not least", o fato de escrever sua "Novela" em terceira pessoa muda sensivelmente o tom da narrativa. O humor, antes auto-dirigido, passa a ser indireto, o engraçado passa a ser irônico, o cômico -não fossem as peripécias da "consciência moral", que resgatam "in extremis" "O Bom Velho"- aproxima-se perigosamente do cínico. Falar dessa consciência moral, cuja procura afinal era uma, senão "a" preocupação máxima do autor (e daí hoje, a sua extrema atualidade), só é possível se entrarmos nas filigranas da linguagem e do estilo do último Svevo.
Aquelas marcas que no passado haviam sido, por parte dos puristas, objeto de censura, ainda estão lá: as frases longas de sintaxe germânica (o pai de Svevo era judeu da Renânia e ele próprio havia passado quatro anos estudando em Wurzburg), o léxico arcaizante, a pontuação toda particular (nesse aspecto é preciso ressaltar a habilidade do tradutor em saber mantê-las), mas também certos usos dialetais (não se esqueça que Svevo "traduzia" do triestino para o italiano) e deslocados, que causam estranhamento e abrem brechas, e que seria preciso acompanhar numa análise quase poética do conto. Tomemos um único exemplo.
Chegado aos seus 60 anos, o bom velho chega também à conclusão de que se, quando jovem, qualquer aventura semelhante àquela a que se dispõe "teria agitado em seu peito todos os problemas do mal e do bem", agora, velho, a aventura lhe é devida, "se não por outros motivos, pelo longo tempo que havia ficado privado de tamanha alegria". É sintomático o papel que, no processo da sedução, desempenha um elemento recorrente. Quando ocorre o encontro fortuito dele com a mocinha, no bonde, a jovem, literalmente, "mantinha o olho escuro fixo" etc. Logo depois, "o sorriso do velho era dirigido àquele olho, que lhe parece , ao mesmo tempo, travesso e inocente". Relembrando o encontro, mais tarde, "o velho pensou que fora o olho infantil da jovem a conquistá-lo". E finalmente: "No lampejo daquele olho havia-se revelado a malícia, como na voz dele, a ânsia. Tinha certeza que se haviam entendido. A mãe natureza, benignamente, concedia-lhe uma vez mais, a última, de amar".
Ora, não só em português o termo "olho" assim usado, quando caberia o abstrato "olhar" ou, ao menos, o plural "olhos", soa estranho e deslocado. No idioma original, tal uso de "olho" é próprio para designar-se uma caraterística animal, mais do que humana. Mas, verificando que em outras situações o autor usa convenientemente o termo "olhar", surge a desconfiança de que o emprego tenha sido voluntário. A desconfiança se transforma em certeza quando se descobre que o conto todo é montado na transformação contemporizante do jovem em velho, do psicológico em fisiológico, do saudável em doente, do abstrato em concreto, do elevado em rasteiro, da vida em morte, da expiação em ressarcimento e, por pouco, da consciência em contingência.
Nota:
1. Cf. "Vita di Mio Marito", de Livia Veneziani , a mulher de Svevo imortalizada por Joyce como Anna Livia Plurabella.
AURORA F. BERNARDINI é professora de teoria literária e literatura comparada da USP.

Folha de São Paulo

O carrossel de Buzzati


Nilson Moulin

Em primeiro lugar, o que costuma merecer não mais que um último parágrafo: a tradução de Ana Maria Carlos é fluentemente linda. Linda tanto em nossa acepção de beleza quanto na italiana, significando um texto limpo, escorreito, como requer a psicologia e o estilo de mais esse "nobiluomo" que se dedicou profissionalmente às letras.
Dino Buzzati Traverso (Belluno, 1906 - Milão, 1972) foi jornalista, pintor, crítico de arte. Publicou o romance "Bàrnabo delle Montagne" em 1933 e, a partir daí, prolífico e mimado como era, encontrou sempre portas abertas para seguir escrevendo. Até mesmo sob a censura nazi-fascista: e sem aderir aos credos então dominantes. Totalizou 5 romances, 12 peças de teatro, 5 libretos para ópera e inúmeras coletâneas de contos, crônicas e poesias.
Contudo, durante bastante tempo, a recepção da crítica italiana não lhe foi muito favorável. Ao contrário, já na década de 50, na França, passou a ser acolhido como grande autor: Albert Camus traduziu diversos de seus textos. Os conterrâneos de Buzzati sublinham o caráter "nórdico", "gótico", enfim, "pouco italiano" da escrita desse friulano/milanês. Compará-lo a Kafka ou a Svevo não ajuda muito a entender um certo rechaço de seus compatriotas. Suas produções logram passar ao largo da maioria dos "ismos" que dominaram a cena literária da Itália e da Europa a partir da década de 30. Talvez por isso tantos críticos, sem conseguir enquadrá-lo com a camisa de força das correntes hegemônicas, acabassem por situá-lo em algum não-lugar. A amizade com Yves "azul" Klein, pintor promovido pelo crítico de arte Buzzati, determinadas ambientações e andamentos narrativos que fazem pensar em Paul Delvaux e em Magritte não bastam para classificá-lo como surrealista. "Realismo mágico", insistem outros: mais do que uma análise, faz pensar em reducionismos resultantes de leituras superficiais e fragmentárias. Todavia por que o festejado autor de "O Deserto dos Tártaros" seria tão "pouco italiano"?
Se atentarmos para o campo semântico de vários contos dessa antologia que circula com o título de "Il Crollo della Baliverna" (1957), talvez encontremos elementos que permitam evitar classificações apressadas.
Aviso de ruína, ruínas mortas, um homem arruinado, incapaz de esperanças, tocar o fundo, viver o vácuo, culpas abjetas, recaída, semanas devoradas, o tempo recomeça a esmagar, avalanche, aqui para minha ruína, lobotomia escolar, decrepitude, pesadelo, impotência, linchamento, morte: tudo isso é repetido e matizado em diferentes contextos, sem provocar náuseas nem o abandono da leitura. Por vezes, há um contraponto de montanhas brancas e puras, permeado sempre por muita ironia. Mas um conjunto similar seria mesmo "pouco italiano"? Se pensarmos na "angústia descritiva" do Manganelli da "Hilarotragoedia" talvez já tenhamos um nicho não-canônico a ser pesquisado...
Numa entrevista em que comentava seus "catálogos de ironias e sátiras", Buzzati reconhecia como mestres Pascal, Wilde e Poe. Mas um tal esboço de genealogia não basta para desqualificá-lo como "não italiano"...
Por outro lado, Domenico Porzio destaca como fundamental para captar as nuances dos refinados textos de Buzzati "o susto que emana de uma mínima e admoestadora ruptura da norma". Podemos constatá-lo em diversos contos desta intrigante "A Queda da Baliverna". Se somarmos a isso referências implícitas ao Sêneca de "Sobre a Brevidade da Vida", teríamos uma moldura mais flexível para ler Buzzati e, junto com ele, encarar nossa existência enquanto marcha inexorável para o nada, um dos temas recorrentes da obra em pauta. Eis um exemplo de variação temática: em "O Homem que Quis Sarar", vamos dialogar com Mseridon e Giacomo, patriarca de uma comunidade de leprosos. Este último "tinha pelo menos 110 anos e há quase um século a lepra o vinha corroendo".
Mseridon, o soberbo, teve a pretensão de sarar para poder sair do leprosário: sua cura, seguida de uma reviravolta desconcertante, provoca imensa alegria entre os doentes, que festejam a permanência de um companheiro no trabalho de espera. Aliás, o verbo "esperar" (não só a grande ceifadora) é uma das chaves para melhor captar as engrenagens do universo buzzatiano e a atualidade de personagens como Drogo/Dorigo.
O bestiário deste belo livro inclui: ratos escravocratas, vermes, aranhas gigantescas, homens feito larvas, corvos, porcos, Ubu Murru-gênio do mal, um cão que viu Deus, um gato de Deus, Giorgio-menino tirano e mais fauna que nos é estranhamente familiar. Quando o autor movimenta seu carrossel, alternando tais bestas como protagonistas, o absurdo, a ironia e o sarcasmo se misturam adquirindo um clima de cotidiano vivenciado, sem jamais resvalar para a banalidade. Uma bomba de hidrogênio entregue a domicílio ou uma gripe de Estado, "que ataca somente os pessimistas, os incrédulos, os opositores, os inimigos da pátria escondidos em todos os cantos...", tudo se faz realidade quase palpável, leitura de mídia deste ano de 1997, graças às artes do narrador.
Cerca de 40 anos de jornalismo, cobrindo o colonialismo mussoliniano na África, a Bienal de Artes de São Paulo (1969), naufrágio de crianças, catástrofes temperadas com fartura de sangue, conferem a Buzzati uma fantástica mestria narrativa. Ele é um autor capaz de conquistar leitores com um simples conto de três páginas. Mas quem se dispuser a ler vários deles certamente passará a dedicar-lhe um lugar especial na estante. Já publicados pela Nova Fronteira: "O Deserto dos Tártaros" (edição italiana de 1940), "Um Amor" (1963), "Naquele Exato Momento" (1955) e "As Noites Difíceis" (1971). A Companhia das Letras só dispõe de um título em catálogo: "As Montanhas São Proibidas" (1949).
Por fim, uma reavaliação recente de parte da crítica italiana: além de "O Deserto dos Tártaros" e de alguns contos breves, passou-se a considerar como obra-prima também "La Famosa Invasione degli Orsi in Sicilia" (1945), fascinante livro infantil ilustrado pelo próprio autor. Quem vai revelar esta outra dimensão buzzatiana ao leitor brasileiro?
E ainda, um problema editorial: a omissão do nome da tradutora, nesta edição da Nova Alexandria, constitui uma ironia à Buzzati ou não passa de um enésimo abuso contra os co-autores que somos e que nossos editores insistem em negar?

Nilson Moulin é tradutor.

Folha de São Paulo

Ícones de brasilidade


Annateresa Fabris

numa entrevista recente, Jacques Le Goff propõe uma série de etapas para a elaboração de uma biografia, que deveria compreender e explicar um indivíduo e, a partir dele, fornecer conhecimentos sobre uma época, um contexto, um conjunto de relações. Modelo de história total, a biografia afigura-se a Le Goff não como o cumprimento de um destino e, sim, como um feixe de casualidades, problemas, inversões que o historiador ordena, atento à produção da memória, ou seja, a todos os testemunhos elaborados sobre a individualidade em exame.
O modelo de biografia proposto pelo historiador francês não é muito usual nas monografias artísticas produzidas no Brasil, que se pautam por dois parâmetros fundamentais: um historicismo ingênuo, que se contenta em enumerar datas e fatos, como se estes bastassem para estabelecer um nexo significativo entre um autor e seu tempo; uma análise morfológica, não raro exacerbada, que só leva em conta a vida das formas, alheia a qualquer fator exterior.
"Antonio Henrique Amaral - Obra em Processo" apresenta problemas metodológicos oriundos sobretudo do modelo "historicista", embora haja diferenças sensíveis de capítulo para capítulo. Um dos primeiros elementos que salta à vista do leitor é a falta daquilo que Frederico Morais chama a "teoria das circunstâncias", que deveria propiciar um mergulho na "fenomenologia de criação do artista", tanto em sentido interno quanto em sentido externo.
Basta percorrer os três capítulos do livro para perceber que a circunstância é apenas um vago referencial, evocado, mas não explicitado e, muito menos, aprofundado. O significado político da série das bananas, por exemplo, é atribuído por Sullivan a um período em que "o país passou por grandes convulsões sociais, morais e psicológicas", ao passo que Morais estabelece uma relação entre esse tema recorrente e o tropicalismo graças à mediação de "O Rei da Vela". Maria Alice Milliet, por sua vez, fala de um artista que vai "ao encontro do imaginário social", mas tais referências rápidas em nada ajudam a situar o leitor num momento complexo da história do país, percorrido por tensões políticas, sociais e, ainda, artísticas e estéticas.
Se Maria Alice Milliet propõe uma análise pertinente e sofisticada para o apego do artista à figuração, lido à luz da noção de figural de Lyotard, sente-se, contudo, ao longo dos três capítulos a falta daquele embate nacional versus internacional, que marcou sobretudo a década de 70, e que se explicitou na contraposição entre suportes tradicionais e tendências desmaterializadas. Antonio Henrique Amaral foi um dos protagonistas centrais desse embate, ao ser constantemente associado à discussão sobre uma possível arte brasileira.
A evocação do clima cultural do período não impede que a obra de Amaral seja analisada nos termos propostos por Morais, que faz do tema "um pretexto para exercitar ao máximo as possibilidades oficinais e linguísticas da pintura -cor, matéria, textura, gesto". Se o conjunto da obra de Amaral permite concordar com essa afirmação, uma vez que o ofício do pintor se afina década após década, o tema, contudo, não é secundário, se for considerada a preferência do artista por imagens brasileiras ou conotadas ao Brasil. Em vários momentos, aliás, cria-se uma conjunção nada gratuita entre tema e estilo, sobretudo na série dos bambus e em algumas paisagens da década de 90, nas quais a questão da brasilidade se desdobra numa evocação de Tarsila do Amaral interpretada à luz do hiperrealismo.
Morais, que é autor do ensaio mais alentado do livro, no qual tema, estilo e forma vêm se imbricando gradualmente, reconhece a centralidade de um conjunto de símbolos que reaparecem circularmente na obra de Amaral, ao sugerir a idéia da auto-referencialidade. Num diálogo constante com a própria produção, o pintor pontua suas telas com símbolos e signos de derivação interna, o que não exclui outro tipo de diálogo, sublinhado pelo crítico mineiro, não tanto por meio de artistas singulares quanto pela adesão a determinadas vertentes pictóricas. O diálogo vislumbrado por Morais parece ser muito mais pertinente do que o verdadeiro passeio pela história da arte alinhavado por Sullivan, que dá vida a constantes evocações pessoais, motivado ora pelo tema, ora pela matéria intrinsecamente pictórica.
Realista por opção e convicção, Amaral emerge do livro como um artista que sonda constantemente a realidade. Trata-se, contudo, de um realismo de segunda geração, graças ao uso de recursos fotográficos, o que permite a Morais propor uma leitura estrutural do processo do artista, no qual detecta a presença simultânea de uma resposta aos meios de comunicação de massa e de uma vontade de forma, que se desdobra em metáforas plásticas corpóreas e sexuais. O de Amaral é, por fim, um realismo crítico, que se distancia da realidade para apreendê-la melhor, que fixa determinados momentos para poder analisá-los existencial e formalmente, num jogo de transgressões da aparência, no qual a deformação, a subversão espacial, a combinação de figurativo e abstrato são elementos determinantes. Talvez, a discussão sobre a "brasilidade" dos ícones de Amaral devesse começar por aí, nesta revisão que o livro esboça, mas não leva adiante com todos os desdobramentos desejáveis.
Annateresa Fabris é crítica, historiadora da arte e autora de, entre outros, "Monumento a Ramos de Azevedo - do Concurso ao Exílio".

Folha de Sã Paulo