segunda-feira, 29 de março de 2010

Electing to fight: why emerging democracies go to war

Electing to fight: why emerging democracies go to war

Marcelo ValençaI

Edward D. Mansfield e Jack Snyder. Cambridge, MIT Press, 2005, 300 páginas.

A teoria da paz democrática defende a proposição de que países democráticos não entram em guerra com outras democracias, criando assim um cenário internacional propício ao estabelecimento da paz. Este pensamento, comumente associado ao paradigma kantiano das Relações Internacionais, remontaria ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando o então presidente norte-americano Woodrow Wilson associou a manutenção da paz internacional com a proliferação de países democráticos. Apesar de não haver consenso entre os acadêmicos sobre os motivos de esta paz acontecer, os defensores dessa tese afirmam que ela é empiricamente comprovada com base na observação das guerras internacionais nos últimos dois séculos (Russett, 1993). Esta teoria foi amplamente discutida, especialmente durante as décadas de 1980 e 19901, e hoje serviria como uma das diretrizes da política externa de diversos países, como os Estados Unidos da América (EUA). Por outro lado, "a idéia de que democracias estabelecidas não entram em guerras umas com as outras é por vezes descrita como a lei mais válida do campo das Relações Internacionais, quiçá da Ciência Política"2 (:282), e é algo arriscado de se afirmar, pois democracias são um elemento recente, de pouco mais de 150 anos.

Jack Snyder e Edward Mansfield participaram ativamente deste debate, discutindo a teoria e tecendo críticas a ela em diversos artigos ao longo das décadas de 1990 e 20003. Nestes artigos, os autores reconheciam a existência de uma paz entre democracias, mas apontavam que os Estados que passavam por processos de democratização estariam mais sujeitos a entrar em guerra do que aqueles considerados autocráticos ou em processo de se tornar autocracias. Esses, aliás, são conceitos de grande importância para a discussão realizada pelos autores: o processo de democratização acontece quando os Estados passam por uma transição democrática, em qualquer nível. Por transição democrática, entende-se a mudança do regime do Estado de autocracias para democracias, de autocracias para "anocracias"4 (nível intermediário de liberdade política) ou de anocracias para democracias. De modo análogo, o processo de transformação em autocracia refletiria a transição da democracia para a autocracia, da democracia para a anocracia ou da anocracia para a autocracia (:35-37).

No livro Electing to Fight, as críticas inicialmente apresentadas pelos autores em seus artigos são revistas e refinadas. Buscando descobrir quando e por que as democracias entram em guerra, Mansfield e Snyder apontam que a fraqueza das instituições políticas nos países em processo de democratização e nas democracias incompletas5 tornaria tais países mais suscetíveis a disputas internas decorrentes de apelos nacionalistas vindo de grupos domésticos, especialmente em Estados nos quais o governo não é centralizado. Receosos de perder o poder estabelecido com as transições democráticas e sofrer ameaças à sua segurança com uma possível mudança de poder, as elites destes Estados promoveriam ações para garantir seu status, buscando um adversário externo para unir a população em torno de sua causa. Para os autores, o fortalecimento das instituições democráticas diminuiria o risco desta violência acontecer, pois as partes envolvidas nas disputas políticas teriam conhecimento dos custos do conflito e dos benefícios decorrentes da obediência às regras e preceitos democráticos, nos níveis doméstico e internacional. Este argumento é desenvolvido ao longo do livro com base em análises quantitativas, de acordo com exames realizados em bases de dados como o Polity6 e o projeto Correlates of War (COW)7, e qualitativas, por meio de estudos de casos selecionados.

Podemos tomar o livro como tendo quatro partes: a primeira (capítulos 1 a 3) apresenta os argumentos e pressupostos teóricos de Mansfield e Snyder, expondo explicações alternativas para a teoria da paz democrática e afirmando a posição dos autores de que os Estados democraticamente incompletos entram em conflitos com maior freqüência. A segunda parte (capítulos 4 a 6) apresenta as estatísticas que sustentariam o argumento dos autores, com base em elementos verificadores de padrões democráticos analisados entre 1816 e 1992, marco temporal proposto. A terceira parte (capítulos 7 e 8) contemplaria os estudos de casos para demonstrar, não apenas estatisticamente, as motivações para a ocorrência de guerras entre Estados em democratização ou democraticamente incompletos, corrigindo eventuais erros advindos da análise estatística. No capítulo 9, finalmente, os autores expõem suas conclusões, retomando a discussão realizada nos capítulos anteriores e confirmando seu argumento principal sobre a necessidade de instituições fortes para que haja uma transição democrática estável.

Na primeira parte do livro, Mansfield e Snyder apresentam sua discussão teórica, baseados na premissa que sustenta a teoria da paz democrática: Estados democráticos não entram em guerra uns com os outros. Para os autores, a explicação para a paz democrática estaria na força que as instituições dos Estados democráticos possuem e que tornaria as guerras por demais custosas: "[...] as instituições fortes das democracias maduras e a responsabilidade do governante perante uma população consciente dos custos políticos de uma guerra são contrastantes com as instituições fracas das democracias incompletas, que se mostrariam mais favoráveis a entrar em guerras" (:37).

É também nessa primeira parte que se encontram as hipóteses que os autores se propõem a responder ao longo do livro. São seis: (1) democracias incompletas com instituições fracas entram em guerra com maior freqüência do que Estados governados por outros regimes, inclusive os autocráticos; (2) democracias incompletas iniciam guerras com maior freqüência que outros Estados; (3) Estados em processo de democratização que sofrem com instituições fracas e cuja elite se vê ameaçada com este processo entram em guerras com maior freqüência; (4) Estados que passam por um processo de democratização completa apresentam riscos moderados de guerra logo após a transição, mas, uma vez completa, a democracia garantiria a paz; (5) questões nacionalistas e militares dentro dos Estados em democratização aumentam o risco de guerras; e (6) democracias incompletas que iniciam guerras se comportam da mesma maneira, apresentando alguns ou todos estes elementos: nacionalismo exacerbado, grupos de pressão política, insegurança institucional, disputa entre facções, política externa dúbia e agressiva e uso da mídia para promover ideologias nacionalistas (:67).

Na segunda parte, é feita a exposição de dados quantitativos e estatísticos obtidos entre 1816 e 1992, marco temporal de análise do livro, buscando responder as hipóteses 1, 2 e 4. Estes dados ajudam a fundamentar os pressupostos teóricos dos autores e a definir os Estados com base na força de suas instituições domésticas, isto é, na competitividade do jogo político, nos constrangimentos impostos ao Poder Executivo e na possibilidade da entrada de novos grupos de atores nas arenas de discussão, bem como na incidência de guerras envolvendo estes Estados.

Conforme os resultados obtidos a partir de cada um desses índices, os Estados são classificados pelos autores como autocracias, anocracias ou democracias: a variação da posição dos Estados nesta escala ao longo do tempo, pendendo para o lado das autocracias ou das democracias, constituiria os processos de transformação em autocracias ou democracias mencionados anteriormente. Estas informações permitiriam aos autores demonstrar que a mudança de um regime de natureza autocrática para uma democracia fundamentada em instituições fracas potencializaria a ocorrência de guerras, independentemente da unidade de análise escolhida, seja o Estado individualmente considerado (capítulo 5) ou díades de Estados (capítulo 6). De maneira contrária, a mudança para uma democracia completa com as instituições políticas fortalecidas diminuiria a incidência de conflitos (:95). Mansfield e Snyder concluem que, durante os séculos XIX e XX, Estados com instituições políticas fracas que passaram por transições democráticas e se tornaram anocracias se envolveram em guerras com maior freqüência do que os Estados cujos regimes não se alteraram ou sofreram outros tipos de transição, mesmo que em direção a autocracias (:137).

Na terceira parte, os autores apresentam, de maneira sucinta, diversos estudos de casos envolvendo países em processo de democratização que entraram em guerra, dentro do marco temporal anteriormente referido (capítulo 7) e fora dele (capítulo 8). Dividindo o estudo de casos em dois padrões distintos – casos de guerras iniciadas por países em processo de democratização e de guerras envolvendo Estados em democratização cuja rivalidade histórica é acirrada –, são analisadas situações e contextos histórico-sociais diversos, por meio de uma observação que privilegiaria as dinâmicas internas dos Estados em questão. Esta terceira parte possibilita aos autores explorar todas as seis hipóteses mencionadas anteriormente, testando novamente aquelas respondidas nos capítulos estatísticos por meio da análise qualitativa e subjetiva dos dados.

No capítulo 7, são vistos os casos de Estados em que havia instituições fracas antes do processo de transição democrática – conforme os dados estatísticos apresentados nos capítulos anteriores – e nos quais a elite dominante se valeu de uma retórica nacionalista para assegurar seu poder. Foram estudados dez países8 e, com base neste estudo, os autores consideraram que seu argumento foi demonstrado, reforçando o argumento estatístico e cobrindo eventuais lacunas neste: democracias incompletas entram em guerra com maior freqüência que os demais tipos de governos. Apesar disso, Mansfield e Snyder reconhecem a ocorrência de casos falso-positivos (:227), isto é, aqueles casos em que as estatísticas apontam para um determinado cenário ou conjuntura sem que estes prognósticos estejam acontecendo de fato – no caso estudado, seria a falsa percepção de que um Estado em análise estaria passando por um processo de democratização.

O capítulo 8 apresenta seis estudos de casos não cobertos pelo marco temporal das bases estatísticas, mas que se justificam a partir das exposições causal e teórica apresentadas ao longo do livro9. Estes seis estudos de caso aconteceram entre os anos de 1992 e 2000. Apesar de podermos criticar a escolha destes casos por não se adequarem confortavelmente à idéia de conflitos internacionais, tal como mencionado quando da especificação do tipo de guerra a que os autores se referem, isso não parece ser um problema para a demonstração do argumento causal de Mansfield e Snyder. A crítica quanto à falta de argumentos estatísticos que aumentariam a confiabilidade da análise destes casos pode ser matizada pelo curto tempo entre a ocorrência dos casos e a época de seu estudo. Estes casos demonstram que a existência de instituições fracas é agravada com o aumento da participação popular na política, acarretando ondas de nacionalismo – étnico e contra-revolucionário10 – e violência.

Electing to Fight é um livro em que os argumentos são apresentados de maneira cuidadosa e ricamente justificados por dados e estudos de casos. A crítica desenvolvida aos processos de democratização promovidos por Estados em outras regiões do globo é contundente e proporciona ao leitor elementos para refletir sobre quando e como estes processos devem ser estimulados e que, uma vez iniciados, devem ser prosseguidos até o fim. Caso tais cuidados não sejam observados, o potencial de estes Estados entrarem em guerra, desestabilizando a região, pode aumentar. A análise dos dados e casos demonstra que, para os autores, os processos de democratização não devem ser vistos em apenas um momento, mas como parte integrante da dinâmica política de um Estado em médio e longo prazos.

Vale destacar também que, apesar de os autores ressaltarem que não é o objetivo de Electing to Fight tratar da democratização e sua relação com a ocorrência de guerras étnicas e civis (:7), os argumentos causais de Mansfield e Snyder podem ser usados para trabalhar estes tipos de conflito, tal como o exemplo da Rússia, no capítulo 8. As guerras a que os autores se referem são as internacionais, travadas entre Estados, como pode ser percebido a partir da análise dos estudos de casos e dos dados compilados pelos autores ao longo da obra, especialmente no seu Apêndice (:285-287). Contudo, nos Estados que sofrem com a instabilidade política doméstica causada por estas guerras internas, o fortalecimento das instituições também serviria como garantia aos grupos em conflito de que seus adversários obedecerão às normas e procedimentos políticos. Desta forma, cada um dos grupos em disputa poderia prever as ações de seus adversários e responder a elas com base nos mecanismos políticos existentes, evitando que aconteça o "dilema de Clausewitz às avessas"11 (Miall, Ramsbotham e Woodhouse, 1999). Portanto, a teoria desenvolvida em Electing to Fight pode guiar o estudo dessas novas guerras, que envolveriam elementos intra-estatais.

O trabalho de Mansfield e Snyder torna-se particularmente preciso e convincente quando tomamos em consideração a apresentação de casos tidos como falso-positivos. A ressalva da existência desse tipo de caso nos mostra que, dentro do período estudado – 1816 a 1992 –, os elementos estatísticos verificadores de democratização utilizados na comprovação da teoria podem nos levar a crer que guerras foram iniciadas por Estados que aparentam passar por um processo de democratização, quando de fato não passam por tal processo. Tal postura dos autores demonstra honestidade intelectual e a seriedade de seu trabalho, pois não há aproveitamento indevido de exemplos que fortaleceriam sua teoria em detrimento da veracidade da análise proposta. Assim, se por um lado Mansfield e Snyder diminuem o leque empírico apresentado que justificaria o seu argumento, por outro transmitem ao leitor a idéia de que os casos expostos são fortes o suficiente para sustentar a tese desenvolvida na obra.

Electing to Fight presta ainda uma grande contribuição à idéia institucional que sustentaria a teoria da paz democrática (Russett, 1993): para os defensores desta teoria, a existência de instituições políticas fortes e estáveis permitiria que os diferentes grupos políticos dentro do Estado cooperassem, buscando atingir melhores resultados. Tal esforço seria reconhecido por outros Estados democráticos, que estabeleceriam relações pacíficas uns com os outros. Mansfield e Snyder salientam a importância destas instituições, apontando que sem elas a lacuna entre o processo de democratização promovido especialmente pelos EUA em diferentes países do globo e a paz internacional seria cada vez maior.

Notas

1. Como exemplo dos diversos textos que trabalham esta teoria, ver Mansfield e Snyder (1995a) e, principalmente, as referências apontadas na nota 3 abaixo.

2. Todas as citações foram traduzidas do inglês para o português pelo autor da resenha.

3. Dentre os artigos escritos pelos autores sobre o tema, podemos mencionar: "Democratization and the Danger of War" (1995a), "The Effects of Democratization on War" (1995b), "Democratization and War (1995c)", "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End" (2001) e "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes" (2002). Porém, em Electing to Fight, os autores afirmam que não são contrários à idéia da paz democrática, mas sim aos mecanismos utilizados para atingi-la, sem que sejam observadas e respeitadas as particularidades de cada país (:283).

4. O termo "anocracia" – em português, um neologismo – veio substituir a expressão "regimes mistos" utilizada em seus artigos anteriores.

5. Democracias incompletas seriam aqueles Estados em que a transição de um regime de natureza autocrática ou mista (agora, anocrática) para a democracia – conforme nota 4 – fora interrompida antes da sua conclusão (:4).

6. A base de dados Polity é um projeto desenvolvido originalmente pelo professor Ted Robert Gurr e que atualmente está em sua quarta "versão" (Polity IV), cobrindo as transições acontecidas entre os anos de 1800 e 2004. A base de dados contém informações sobre regimes e características de governo para todos os Estados com população igual ou maior a 500 mil indivíduos. Os autores de Electing to Fight valeram-se da terceira "versão", Polity III, para os argumentos do seu livro, vindo daí o seu marco temporal de análise menor. Maiores informações sobre o Polity em (acessado em 6 de outubro de 2006).

7. O projeto COW foi iniciado em 1963 pelo professor J. David Singer, da Universidade de Michigan, e tem como objetivo compilar informações e dados sistemáticos sobre a guerra. Atualmente, ele é coordenado pelo professor Paul Diehl e constitui-se em uma das fontes mais confiáveis de dados sobre conflitos. Maiores informações em (acessado em 6 de outubro de 2006).

8. Estes países são: França, Sérvia, Prússia/Alemanha, Chile, Iraque, Argentina, Turquia, Guatemala, Estados Unidos e Tailândia.

9. As guerras envolvendo Armênia e Azerbaijão, Equador e Peru, Etiópia e Eritréa, Paquistão e Índia, a guerra do Kosovo e a guerra entre Ruanda e Burundi. Os autores também trabalham com o caso da Rússia e da Chechênia, mas não o consideram um conflito interestatal como os seis acima, pois seria um exemplo de conflito intra-estatal.

10. Edward Mansfield e Jack Snyder (:52) definem como nacionalismo étnico aquele que se identifica com sentimentos de cultura ou pertencimento a determinado grupo, seja ele estatal ou não-estatal. Este tipo de fidelidade é a forma que vemos como predominante desde a segunda metade do século XX. Por outro lado, o chamado nacionalismo cívico seria aquele demonstrado em relação a instituições políticas estatais.

11. Clausewitz apontava que a guerra é a continuação da política com a interposição de outros meios. Assim, o dilema de Clausewitz às avessas indicaria que a política adotada em um cenário de pós-guerra seria a continuação dos conflitos, mas por meio da violência não-militar. Sobre o assunto, ver Miall, Ramsbotham e Woodhouse (1999:188-189).


Referências Bibliográficas

MANSFIELD, Edward D. e SNYDER, Jack. (1995a), "Democratization and the Danger of War". International Security, vol. 20, nº 1, pp. 5-38.

____. (1995b), "The Effects of Democratization on War". International Security, vol. 20, nº 4, pp. 196-207.

____. (1995c), "Democratization and War". Foreign Affairs, vol. 74, nº 3, pp. 79-97.

____. (2001), "Democratic Transitions and War: From Napoleon to the Millenniums End", in C. Crocker, F. O. Hampson e P. Aall (eds.), Turbulent Peace: The Challenges of Managing International Conflicts. Washington, United States Institute of Peace Press, pp. 113-126.

____. (2002), "Incomplete Democratization and the Outbreak of Military Disputes". International Studies Quarterly, vol. 46, nº 4, pp. 529-549.

MIALL, Hugh, RAMSBOTHAM, Oliver e WOODHOUSE, Tom. (1999), Contemporary Conflict Resolution. Cambridge, Polity Press.

RUSSETT, Bruce. (1993), Grasping the Democratic Peace: Principles for a Post-cold War World. Ewing, Princeton University Press.

I Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Professor do curso de graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Pesquisador do Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon).

Revista Contexto Internacional - PUC-RJ

Neo-hegemonia americana ou multipolaridade? Pólos de poder e sistema internacional

Neo-hegemonia americana ou multipolaridade? Pólos de poder e sistema internacional

Cristina Soreanu PecequiloI

Paulo Vizentini e Marianne Wiesebron (orgs). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2006, 240 páginas.

Na última década, em especial neste início de século XXI, o processo de transição do equilíbrio de poder iniciado em 1989 caracteriza-se por uma série de oscilações que revelam as contradições associadas à reconfiguração da ordem mundial. Neste momento de incerteza, os Estados buscam reajustar prioridades estratégicas, visando seu reposicionamento nesta ordem, sendo simultaneamente confrontados por vulnerabilidades domésticas. O mesmo dilema é enfrentado pela potência hegemônica, os EUA, que também atravessam um ciclo de mudança em suas doutrinas externas e em seus paradigmas socioculturais internos.

Diante desse contexto, é essencial que existam análises que cubram a complexidade dessas diferentes dinâmicas como o livro Neo-hegemonia americana ou multipolaridade? Pólos de poder e sistema internacional, da Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), organizado por Paulo Vizentini e Marianne Wiesebron. Pertencente à Série Estudos Internacionais, fruto da colaboração entre a Editora da UFRGS e o Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais/Instituto Latino-americano de Estudos Avançados (Nerint/ILEA) da mesma Universidade, o livro reforça a tradição da UFRGS no lançamento de obras relevantes no campo das Relações Internacionais, já presente nesta mesma série e na Coleção Relações Internacionais e Integração.

Composto por uma coletânea de artigos, originados a partir de papers apresentados em seminário realizado pelo Instituto Clingendale de Relações Internacionais de Haia, o livro simboliza um abrangente esforço de colaboração internacional, reunindo especialistas das mais diversas instituições e origens, como Immanuel Wallerstein e Paul Marie de La Gorce (in memorian). Igualmente, o volume conta com contribuições de Kurt Radtke, Alexander Zhebit, André Gerrits, John Harriss, Paulo Vizentini e Greg Mills.

Estes especialistas, discutindo o futuro do sistema, procuram oferecer estudos específicos dos Estados que se relacionam e/ou se confrontam nessa fase de transição, buscando responder à pergunta-título do livro. Podemos identificar três blocos de reflexão que se complementam e interligam: EUA, Europa/Japão e emergentes, compostos por China, Rússia, Brasil, Índia e África do Sul.

Abrindo estes blocos, o artigo "A doutrina Bush: um ensaio interpretativo", de Immanuel Wallerstein, avalia a evolução das diretrizes estratégicas norte-americanas desde 1945, passando pelo fim da bipolaridade, e chegando até a ascensão neoconservadora do pós-Guerra Fria, culminando na elaboração da doutrina Bush de caráter preventivo. São avaliados os impactos do 11 de setembro de 2001 para a consolidação dessa estratégia e sua primeira aplicação concreta na Guerra do Iraque e seu encaminhamento entre 2002 e 2003.

Esses acontecimentos, associados à transformação da agenda norte-americana, são percebidos como prova de declínio dos EUA. Para Wallerstein, os neoconservadores, na busca da sua "neo-hegemonia", colocam em questão o futuro da própria dominação. Todavia, esse refluxo não é acompanhado por uma posição concreta de outros atores que poderiam desempenhar um papel mais relevante no cenário, como a União Européia.

Avançando essas discussões, Paul Marie de La Gorce em "A união européia face à unipolaridade e à multipolaridade" aborda especificamente a posição da Europa com relação à doutrina Bush. Indagando sobre a eventual possibilidade de a Europa, como bloco ou individualmente, assumir a responsabilidade de conduzir a ordem mundial, a análise é reticente. Embora de La Gorce reconheça que, positivamente, França e Alemanha tenham desenvolvido uma postura mais autônoma perante os EUA no caso do Iraque, os resultados mantiveram-se limitados a esta situação. O autor, inclusive, relembra brevemente iniciativas independentes de política externa já empreendidas, como o gaullismo, para demonstrar as dificuldades e descontinuidades da relação Europa/EUA e da busca de uma maior autonomia internacional.

Tanto as nações européias como as asiáticas, assim como os Estados emergentes, compartilham situação similar: muitas vezes desejam oferecer caminhos independentes aos da hegemonia norte-americana, mas, simultaneamente, dela dependem em dimensões político-estratégicas e econômicas. Estas nações e/ou blocos possuem vulnerabilidades domésticas que limitam sua projeção, havendo a permanência de desconfianças em relação a possíveis alternativas aos EUA, preferindo-se a manutenção do status quo. Estas situações são sentidas mais profundamente nos emergentes (e mesmo no Japão). Modificações graduais, contudo, surgiram no período recente em virtude das posturas neoconservadoras da Presidência Bush que minaram a legitimidade dos EUA diante dos seus aliados e nas organizações internacionais.

Abordando essa encruzilhada do ponto de vista do Japão e da China, Kurt Radtke oferecerá em seu artigo, "Leste Asiático em busca de segurança geopolítica (energética): conceitualização japonesa e chinesa em um mundo em globalização", uma análise bastante complexa da estratégia dessas duas nações. Radtke demonstra de que forma os dois países pensam a questão da segurança no pós-Guerra Fria, focando em suas dimensões globais e intra-asiáticas, somada à relação bilateral com os EUA.

Mesmo que de maneiras diferentes, China e Japão passam por um repensar dessas posturas, que indica a intenção de buscar caminhos mais autônomos, ainda que permaneçam dependentes dos EUA em certos setores. Cinco prioridades de segurança são identificadas: o acesso a recursos energéticos (a securitização da questão energética, nas palavras do autor); a garantia de mercados; a consolidação das identidades nacionais e a estabilidade interna; a transformação rápida da configuração estratégica regional (que inclui o entorno asiático, a Rússia e o Oriente Médio); e as tendências de ordenamento global que oscilam entre a uni e a multipolaridade.

Ainda que já abordada no artigo de Radtke, a partir da análise da posição chinesa, a defesa de uma ordem multipolar contraposta às vulnerabilidades dos países que a defendem será um dos elementos centrais dos artigos do terceiro bloco. Tais artigos terão como foco o estudo da postura externa e de segurança dos países emergentes, em busca de maior autonomia e de um reposicionamento internacional em suas relações estatais e nos organismos multilaterais.

O debate inicia-se com dois artigos sobre a Rússia. Escritos por Alexander Zhebit e André Gerrits, respectivamente intitulados "Repensar a Rússia: uma proposta sobre o reposicionamento da Rússia nas relações internacionais" e "Hegemonia americana e multipolaridade: o sistema internacional no século XXI", os textos abordam a trajetória russa de superpotência na era soviética à nação emergente, pertencente ao grupo denominado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).

Zhebit e Gerrits analisam a quebra da URSS e o começo de sua transição nas fases Gorbachev/Yeltsin, priorizando as estratégias de Putin. Na visão dos autores, a ascensão de Putin ao poder representou uma inflexão geopolítica, revertendo o quadro de inexorável declínio que parecia ter se estabelecido. Na busca da recuperação doméstica, Putin desenvolveu iniciativas direcionadas a diminuir a crise socioeconômica, tentando recuperar o Estado. No campo externo, o desenvolvimento de uma política externa pragmática ganhou destaque.

Tal pragmatismo se revela no equilíbrio das fragilidades e potencialidades russas, mantendo uma relação produtiva, mas não subordinada, com o Ocidente, a União Européia e os EUA (e também cautelosa, como no caso da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)). Apesar do desaparecimento do status de superpotência, da realidade de um mundo unipolar e dos pontos de estrangulamento referentes à economia, sistema político/democracia e modernização tecnológica, a Rússia preservou vantagens comparativas em termos de recursos de poder: "armas, energia e geografia", como menciona Gerrits na página 196.

Tais recursos permitem que a Rússia, mesmo sendo definida por Gerrits como uma potência de segunda ordem (p. 178), preserve relativa autonomia no sistema. Essa inserção mediada pode ser percebida pelo fato de que o país, em nenhum momento, abandonou seus interesses em seu entorno (a região correspondente ao antigo império soviético na Ásia Central); suas parcerias no Oriente, destacando-se o intercâmbio com a China; a atenção aos demais Estados emergentes como o Brasil; e sua atuação na Organização das Nações Unidas (ONU), pleiteando maior relevância no G8 e sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC). Mesmo assim, os autores concordam que essa ação de baixo perfil é acompanhada pela vocação natural russa de potência, existindo o risco de agendas revisionistas.

Continuando na análise dos emergentes, o texto de John Harriss, "Índia: os amargos frutos da ambição grandiosa", aborda a trajetória da Índia do Movimento Não-Alinhado (MNA) até o pós-Guerra Fria, apresentando uma perspectiva também da evolução da política interna e externa deste país. Bastante crítica, a avaliação de Harriss é de que a Índia, em busca da autonomia via nuclearização para contrapor-se ao Paquistão e à China, gerou uma situação de maior dependência perante os EUA. Em termos de relações internacionais, Harris identifica essa tendência, na passagem da autonomia do MNA dos anos 1960 à ambiguidade das décadas de 1970/1980, à reaproximação recente com os norte-americanos. Tal reaproximação é vista como uma limitação estratégica, assim como a compreensão parcial das mudanças regionais pós-11 de setembro, dos impactos Estados emergentes, como destacado na contribuição seguinte de Paulo Vizentini.

Um dos organizadores do livro, Vizentini, que também escreve a Introdução do mesmo (sendo a coletânea prefaciada por Wiesebron), contribui com o artigo "O Brasil e a integração sul-americana: força e fragilidade de um gigante periférico". O autor examina os dilemas do reordenamento do ponto de vista da diplomacia brasileira, atentando para as preocupações de segurança nacional (questão amazônica, riscos transnacionais, tríplice fronteira, vulnerabilidades socioeconômicas). Soberania e não-intervenção são temas igualmente analisados, relacionando-os às pressões exercidas pelos países desenvolvidos para a adesão às agendas do neoliberalismo e a regimes internacionais.

Os impactos dessas políticas são abordados, avaliando as respostas mais recentes a esses desafios, tendo como preocupação central a integração regional sul-americana, iniciada com a Cúpula de Brasília de Fernando Henrique Cardoso, até as ações da Presidência Lula no âmbito Sul-Sul, nas organizações internacionais e para a recuperação do Estado.

Fechando o livro, Greg Mills analisa, em "Pólos à parte? África do Sul, Iraque e o debate unilateralismo-multipolaridade", o direcionamento e agenda de política externa da África do Sul. Mills oferece uma crítica à política dos EUA com relação ao Iraque, examinando os impactos do unilateralismo para a reconfiguração do sistema e para os Estados emergentes. Além disso, o autor define as cinco prioridades estratégicas-chave da política externa da África do Sul, que revelam sua preocupação tanto com a projeção externa do país como com a administração de seus pontos de estrangulamento internos (direitos humanos, economia, melhoria do Estado, a construção de uma África e de um mundo melhor são os elementos listados na página 229).

Diversificado em suas contribuições, o livro Neo-hegemonia americana ou multipolaridade? Pólos de poder e sistema internacional é, portanto, uma relevante fonte de estudos para a área de Relações Internacionais no país, na medida em que fornece um panorama crítico-analítico do atual processo de reconfiguração do sistema internacional. Como bem destaca Radtke: "Discussões sobre polaridade refletem, mas ao mesmo tempo afetam profundamente as identidades de segurança dos países" (p. 69) "conceitos de segurança não operam no vácuo" (p. 138).

Ao preencher esse "vácuo", o livro traz ao leitor brasileiro uma série de debates que são pouco conhecidos sobre Estados como Rússia, Índia, China e África do Sul, que hoje são o foco da política externa. Estamos diante de um cenário em construção de neo-hegemonia, de multipolaridade, de escolhas e decisões estratégicas, que, no médio ou longo prazo, consolidará o novo perfil do sistema. E, para agir nesse mundo, é fundamental que conheçamos não só nossos próprios limites e potencialidades, mas também os de nossos parceiros, tanto ao Norte quanto ao Sul.
I Doutora em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP), professora pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisadora associada do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Nerint/UFRGS) e colaboradora da Rede Brasileira de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (Relnet /UnB).

Revista Contexto Internacional - PUC-RJ

Modern Afghanistan: a history of struggle and survival

Modern Afghanistan: a history of struggle and survival

Aureo de Toledo Gomes

Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: aureotoledo@gmail.com

Uma coleção de documentos do Departamento de Estado e de serviços de inteligência dos Estados Unidos da América (EUA) do período compreendido entre 1994 e 2000 teve seu sigilo recentemente quebrado. Tal gama de informações joga luz sobre um período da história contemporânea cujas reverberações atingiram os EUA em 11 de setembro de 2001: o relacionamento entre o governo do Paquistão e a ascensão do Talibã no Afeganistão, milícia que tomou o poder em 1996 e que deu abrigo à Osama Bin Laden e à sua Al-Qaeda. Os documentos, disponíveis no sítio do National Security Archive,1 deixam clara a preocupação da administração norte-americana com o estreitamento das relações entre Islamabad e o Talibã, destacando o fato de que o fortalecimento da milícia esteve sobremaneira ligado ao auxílio financeiro proporcionado pelo país vizinho.

Além das violações perpetradas pelo Talibã contra as minorias étnicas afegãs e contra as mulheres durante a vigência de seu regime (1996-2001), o Afeganistão ganhou ainda mais destaque na mídia internacional a partir do momento em que ficou evidente a ligação entre a Al-Qaeda e os dirigentes do país, os quais proporcionavam abrigo para o grupo terrorista. A partir de então, muitos analistas procuraram descrever como a situação no país degringolou a tal ponto de um grupo fundamentalista poder ascender ao poder, controlar quase 90% do território e ainda abrigar o terrorista mais procurado do planeta.

Muitas das análises arrolaram uma quantidade impressionante de dados, interligando a invasão soviética (1979-1989), o apoio dos EUA aos mujahidin (assim como de outros países, destacando-se Paquistão, Arábia Saudita e Irã)2 e, por fim, como o período de guerra civil (1992-1996) propiciou solo fértil para a emergência do Talibã. Todavia, o que muitos deixaram de lado, seja por opção metodológica, seja por optarem por um viés mais informativo, foi a construção do Estado no Afeganistão. Esse viés mais analítico é o ponto de partida de Amin Saikal.

Diretor do Centro de Estudos Árabes e Islâmicos, professor de Ciência Política da Australian National University e especialista em assuntos relativos ao Oriente Médio, Ásia Central e Rússia, Saikal, com a colaboração de Ravan Farhadi e Kirill Nourzhanov, abre sua obra com uma pergunta instigante: por que o Afeganistão teve um desenvolvimento histórico tão turbulento, permanecendo vulnerável à instabilidade doméstica e intervenções externas?

A hipótese apresentada pelo autor é a de que a construção do Estado no país desde 1747, a partir da criação da monarquia Durrani, foi afetada por três fatores que iriam perpassar sua história, quais sejam: a poligamia existente na elite real, interferências externas e extremismo ideológico.

Como tais variáveis se relacionaram e influenciaram a construção do Estado afegão? Segundo Saikal, o fundador do Afeganistão, Ahmad Shah Abdali, aproxima-se do conceito weberiano de domínio patrimonial, caracterizado pelo poder estar intimamente relacionado à pessoa do líder. Ademais, a política no Afeganistão era caracterizada por barganhas diretas entre clãs, tribos, populações regionais etc. Dentro desse contexto, a formação de instituições estatais tornava-se deveras problemática.

Nevrálgico nesse ponto foi o papel desempenhado pela poligamia entre a elite. Durante os séculos XVIII e XIX, os líderes da dinastia Durrani tomaram várias esposas, fossem elas de outras tribos ou grupos étnicos, objetivando ampliar as alianças políticas para a consolidação de seu domínio ou mesmo apenas por prazer. Além das quatro esposas autorizadas pelo Alcorão, as lideranças podiam ter um número ilimitado de concubinas. Destarte, o grande número de herdeiros, a confusão acerca do status dos mesmos e da ordem hierárquica culminou em um sem-número de conflitos entre meios-irmãos e seus parentes, impedindo a consolidação de instituições governamentais: o que era criado por um líder era subseqüentemente revogado pelo seguinte.

De outro lado, as interferências externas também tiveram grande peso na formatação do Estado afegão. Localizado no coração da Ásia Central, o país sempre esteve nos planos daqueles que pensavam em ampliar sua influência na região. Durante o período conhecido como Grande Jogo, no início do século XIX, os impérios inglês e russo tinham interesses distintos no Afeganistão. Enquanto o primeiro não queria ameaças à sua dominação no subcontinente indiano, o segundo visualizava o país como porta de entrada na Ásia Central. Espremido entre as duas potências, o Afeganistão tornou-se um Estado-tampão entre a Grã-Bretanha e a Rússia czarista. Uma das principais conseqüências do Grande Jogo para o Afeganistão foi a submissão de sua política externa à Inglaterra, ou seja, qualquer relacionamento externo do país deveria passar por Londres.

Apenas após a Revolução Bolchevique de 1917, com as disputas entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a Inglaterra persistindo na região, é que as lideranças afegãs conseguiram alguma margem de manobra e alcançaram a independência do país pelos tratados de 8 de agosto de 1919 e de 22 de novembro de 1921. Conquanto independente, o país ainda era suscetível a interferências externas das potências em questão, principalmente quando os assuntos em pauta eram vultosos financiamentos para o país. Outrossim, durante a Guerra Fria até aproximadamente 1992, as interferências de outros países impactaram substancialmente o país. Conforme aponta Saikal, as interferências externas permitiram que as lideranças afegãs implementassem, parafraseando Jackson (1990), um quase-Estado moderno, no qual a renda oriunda das potências possibilitava a supressão de grande parte da população e disfarçava a natureza fragmentada do país. Todavia, com o a débâcle da URSS em fins de 1991, assim como o corte dos recursos norte-americanos para o país, qualquer vestígio de um aparato governamental centralizado no Afeganistão, outrora financiado por outros países, desapareceu.

Por fim, a última variável apresentada pelo autor, o extremismo ideológico foi utilizado constantemente pelas lideranças para justificar sua dominação. Segundo Saikal, a maior parte dos conflitos políticos na história do Afeganistão não se iniciou de debates envolvendo desenvolvimento econômico, crenças religiosas, cidadania, entre outros; o objetivo final sempre fora a centralização do poder via patrocínios externos. Fosse o Constitucionalismo de Amanullah Khan, o Gradualismo dos Musahiban, a "Nova Democracia" de Zahir Shah e até o Fundamentalismo dos Talibã, as ideologias elaboradas sempre foram levadas ao limite para justificar os atos de seus perpetradores.

Uma vez expostos os marcos conceituais, o autor aventura-se na história do país, desde o período em que este se constituía por uma confederação tribal, passando pelas guerras com os britânicos e com a luta pela independência do país, chegando ao período da invasão soviética e, mais contemporaneamente, até os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Em cada momento histórico, o autor procura destacar como as três variáveis supracitadas influenciaram a formatação do Estado no país e como permitiram que o mesmo tivesse uma história tão conturbada.

Durante a leitura, é possível notar que as três variáveis atuaram paralelamente e por vezes em conjunto na história do país. No entanto, com a saída do rei Zahir Shah, em meados de 1973, a poligamia deixou de ter o mesmo peso que outrora havia tido. A partir de então, o extremismo ideológico ganha mais importância, enquanto podemos notar que as interferências externas continuam a ter grande influência no país.

O viés analítico proposto pelo autor é de grande valia para pensarmos o Afeganistão e a construção do Estado no país, assaz artificial. Tendo-se em mente este processo histórico, torna-se mais clara a resposta para a pergunta que abre o livro de Saikal. Se o país teve um desenvolvimento tão turbulento, sempre vulnerável à instabilidade doméstica e às intervenções externas, tais acontecimentos se devem sobremaneira à forma como o Estado foi erigido no país. E, nessa construção, as variáveis apresentadas pelo autor tiveram papel primordial.

Dois pontos, no entanto, precisam ser levantados. A metodologia empregada pelo autor conjuga-se muito bem para explicar a história do país. Todavia, um dos problemas da obra é que, ao adentrar no período mais contemporâneo do país, especialmente após a invasão soviética, a análise do autor torna-se um tanto quanto rasa, e uma gama de acontecimentos importantes como a guerra civil, as disputas entre os grupos mujahidin, a ascensão do Talibã e a intervenção norte-americana no país são tratados em um mesmo capítulo. Quiçá um dos motivos para tal fraqueza esteja no fato de que as variáveis apresentadas pelo autor se prestam para a análise de períodos temporais mais longos, o que ainda não seria possível. Ou mesmo que algumas delas, como a poligamia, não mais se encaixam na atual realidade do país, uma vez que o que se vislumbra no momento é a construção de uma democracia representativa e que o fator mais importante no momento seja a atuação das potências externas.

O segundo ponto a ser destacado relaciona-se com algumas informações arroladas pelo autor no decorrer da obra. Ao abordar a influência dos Deobandi na formação ideológica do Talibã, o autor argumenta que tal escola de pensamento muçulmano, surgida na Índia, recebeu influência Wahhabi, ideologia predominante na Arábia Saudita. É um ponto controverso, uma vez que Rashid (2001) e Rubin (2002), importantes estudiosos sobre o Afeganistão, não apresentam tal dado. Ademais, o autor deixa claro durante o texto a sua admiração por Ahmed Shah Massoud, um dos principais oponentes do Talibã, afirmando ser este um dos principais líderes da história do país. Não questionamos a sua competência; contudo, a Aliança do Norte, facção liderada por Massoud, também foi acusada de desrespeitar os direitos humanos. Segundo a Revolutionary Association of the Women of Afghanistan, organização criada em 1977 e cujo objetivo é lutar pelos direitos humanos e por justiça social no país, a Aliança do Norte tampouco apresentou grandes inovações vis-à-vis a situação feminina no país, o que em nenhum momento é citado no livro.

Ainda que o livro apresente tais problemas, o seu grande mérito é jogar luz na construção do (quase) Estado no Afeganistão enquanto fator explicativo para suas vulnerabilidades. Não devemos apenas entender a situação no Afeganistão no que se refere a problemas criados por políticas de governo equivocadas e por seus relacionamentos com o sistema internacional; para irmos mais a fundo na compreensão, devemos direcionar nossa visão para processos mais profundos. E isso Saikal faz muito bem.

Notas

1. . Acesso em: 15 ago. 2007.

2. Dentre as melhores análises, destacam-se as de Rashid (2001), Coll (2004) e Wright (2007).


Referências Bibliográficas

COLL, Steve. Ghost wars: the secret history of the CIA, Afghanistan, and Bin Laden, from the soviet invasion to september 10, 2001. New York: Penguin Books, 2004.

JACKSON, Robert. Quasi-States: sovereignty, International Relations and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
RASHID, Ahmed. Taliban: the story of afghan warlords. London: Pan Books, 2001.

RUBIN, Barnet. The fragmentation of Afghanistan. New Haven: Yale University Press, 2002.
WRIGHT, Lawrence. O vulto das torres: a Al-Qaeda e o caminho até 11/09. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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A necessidade é a maior virtude: o pensamento realista nas Relações Internacionais

A necessidade é a maior virtude: o pensamento realista nas Relações Internacionais*

José Alexandre Altahyde Hage

Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Faculdade Trevisan, Escola de Negócios. E-mail: alexandrehage@hotmail.com

Avaliar a atualidade do pensamento realista em Relações Internacionais tem sido um exercício intelectual constante. Poucos estudiosos são indiferentes ao realismo, mesmo aqueles que o negam para valorizar outras correntes ou vetores mais integrados ao campo liberal. Termos como razões de Estado, balança do poder, interesse nacional e outros são parte da investigação que busca analisar a atualidade ou o relativo desuso do realismo.

Dentro desta perspectiva de estudo é que surge no Brasil livro de grande envergadura teórica para estudar o pensamento realista. Trata-se de A necessidade é a maior virtude: o pensamento realista nas Relações Internacionais, escrito pelo professor da Universidade de Cambridge, Jonathan Haslam. O trabalho de Haslam é econômico na quantidade de capítulos para um livro de 434 páginas. São cinco capítulos denominados: 1. Razões de Estado; 2. O equilíbrio do poder; 3. A balança comercial; 4. A geopolítica; e 5. Da realpolitik ao neo-realismo. Todos integrantes do poder político.

Haslam faz um levantamento clássico e histórico para estudar a origem ou o momento em que o conceito de razões de Estado ganhou grande impulso, já que poderia haver algo semelhante na Antiguidade greco-romana, nos conflitos entre Atenas e Esparta, como salienta o autor ao estudar a obra de Tucídides ou de Cícero. No entanto, o autor dedica mais tempo para defender a idéia de que as razões de Estado são fruto do gênio intelectual e político de Maquiavel em seu O príncipe, que dá o ponto de partida sobre a necessidade da centralização de poder do Estado e seu manuseio sem limites de ordem moral.

Mas Haslam não faz uma investigação dos conceitos que desembocam no realismo sem levar em consideração seus oponentes. Ao contrário disso, o autor dá espaço às correntes dos séculos XIV, XV e XVI para saber qual era o conteúdo de crítica que autores mais ligados ao desejo de um Império Universal tinham em relação às razões de Estado. E por Império Universal o autor entende também seu espírito, de governabilidade mundial; daí os desdobramentos encontrados na Liga das Nações ou nas Nações Unidas.

Haslam segue o mesmo modelo de análise em todo o livro. O autor também prefere ir aos clássicos e viajar na cronologia até o século XX. Ele faz um estudo em que deixa claro o papel da Grã-Bretanha na defesa da balança do poder na Europa e seu cinismo em trocar o equilíbrio europeu pelo imperialismo africano ou asiático. Quer dizer, na Europa eles são favoráveis ao equilíbrio, mas na África e Ásia exercitam disputas. Mesmo dentro da política britânica o autor lê as criticas de políticos que não desejam a balança de poder por achá-la predisposta ao conflito desnecessário, caso de Gladstone. Contudo, acaba ganhando o partido do conservador Disraeli, que critica a ascensão da Alemanha de 1871 sem que Londres tomasse uma atitude para, justamente, manter o equilíbrio europeu. Daí por diante é só esperar pela escalada do poder alemão no continente.

As características da balança comercial também chamam a atenção. Nela há a impressão de que havia um tour de force no continente europeu entre dois competidores importantes. De um lado, os partidários da opinião de que não há livre-comércio em essência, mas sim o desejo de poder dos grandes Estados que usam as trocas mercantis para frisar poder. Sob este ponto, encontram-se o ministro de Luís XIV, Colbert, que muito fez pelo mercantilismo, e a influência que esta corrente teve para seus frutos intelectuais.

De outro lado, havia os seguidores do livre-cambismo, da liberdade de comércio e defensores da idéia de que permitir o laissez-faire seria aprovar o enriquecimento do Estado e o bem-estar da população. Embora pudesse haver quem pensasse desta forma na Europa Continental, o lugar mais prodigioso para divulgar tal pensamento foi a Grã-Bretanha. Terra de Adam Smith e Adam Ferguson, produziu idéias que lideraram mundialmente a pregação do livre-comércio e a qualidade que a balança comercial pode ter com ele.

No fundo, havia uma questão não despercebida por Haslam. Se o comércio é substrato de poder nacional, então os Países Baixos o têm em grande número. Isto porque não há país europeu que não dependa, de alguma forma, dos mercadores de Amsterdã. E daí vem outra questão. Por que os demais países europeus não aproveitaram os benefícios do comércio? Porque tais países estavam afundados em guerras civis ou religiosas; e não por preconceito ou falta de estima pelo assunto. Claro, havia quem não gostasse do livre-comércio em virtude de preconceitos religiosos, talvez caso da Espanha ou de Portugal após a guerra contra a primeira. Mas Haslam não se preocupa muito com a cultura da contra-reforma que havia na Península Ibérica.

Outra questão ligada com o aspecto do poder era saber se a qualidade comercial de um Estado não seria essencial para um bom grupo de guerreiros. Maquiavel havia entrado nesse tema. O acúmulo de riqueza não era, para o florentino, razão primeira para se obter bons guerreiros, mas sim coragem e determinação na arte da guerra. Mesmo que pudesse haver quem concordasse com Maquiavel, a tese contrária a ele saiu vitoriosa.

No decorrer do texto, Haslam prefere buscar o que o realismo pede: efetivamente o acúmulo de riqueza pelo comércio é condição essencial para se construir uma política de poder. O autor chega a frisar que guerras do final do século XVIII e de todo o XIX foram feitas para ampliar o comércio britânico e, por seu turno, aumentar seu poder nacional. Cita-se a Guerra dos Sete Anos, na qual Londres ampliou seus domínios na América do Norte, tomando a maioria do Canadá. Essa atitude britânica fez com que o intelectual conservador Edmund Burke percebesse que o intento da Coroa era centralizar todas as operações comerciais com a grande colônia e extrair maior peso do mercado mundial.

Esta é a tônica do livro. Haslam incursiona por temas que não deixam de ser, necessariamente, pertinentes ao pensamento realista. Assim ele chega à geopolítica ao compreender que espaço é elemento de maximização do poder. O trabalho tem um lado pedagógico na medida em que apresenta em linguagem corrente a formação e os pontos centrais das idéias versadas. Por isso, o autor de A necessidade é a maior virtude apresenta a gênese do pensamento em geopolítica com Ratzel, Mackinder e outros teóricos da área.

A geopolítica, área de estudo que passou por certa propaganda negativa por causa dos princípios de Haushofer na Alemanha nazista, é estudada inclusive pelo interesse que ela despertou em Kissinger, que, de acordo com o autor, não abriu mão de seu legado. Certamente isso não deixa de ser um incentivo ao estudante brasileiro do assunto, já que o desenvolvimento do Brasil contemporâneo não escapa das explicações geopolíticas.

O livro de Haslam não quer "reinventar a roda". Sua leitura é largamente amparada nos clássicos da ciência política e das Relações Internacionais, sendo boa parte deles rarefeita no Brasil. Seria o caso de Pufendorf, de Suarez e outros mestres do passado. Este é o mérito do autor, debater classicamente pontos que ainda são pertinentes na atualidade, mas sem ser hermético para os interessados. Certamente isso é uma qualidade.

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Coalizões Sul-Sul e negociações multilaterais

Coalizões Sul-Sul e negociações multilaterais

Pedro Feliú Ribeiro

Mestre em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni) da USP. E-mail: pfeliu@uol.com.br

OLIVEIRA, Amâncio; ONUKI, Janina (Org.). Coalizões Sul-Sul e as negociações multilaterais: os países intermediários e a coalizão IBSA. São Paulo: Mídia Alternativa, 2007, 224 páginas.

O livro Coalizões Sul-Sul e as negociações multilaterais: os países intermediários e a coalizão IBSA, organizado por Amâncio Oliveira e Janina Onuki, busca compreender fundamentalmente a iniciativa IBSA (sigla, em inglês, para Índia, Brasil e África do Sul), além de contribuir para o entendimento das coalizões entre países em desenvolvimento de um modo geral. O foco central do livro está no fator interesse e não convergência de identidades, produzindo análises por meio da teoria dos jogos, processo decisório político-burocrático e ação coletiva e formação de coalizões. Este aspecto conduz os argumentos em uma linha claramente institucionalista, pouco abordada no tema, sendo talvez esta a principal contribuição do livro para os estudiosos do assunto, na medida em que abordagens cujo cerne é a estrutura de poder do sistema internacional ou a construção social de identidades internacionais já possuem um conjunto maior de trabalhos. O livro é uma coletânea e está organizado em cinco capítulos de distintos autores.

O primeiro capítulo centra sua análise na coalizão IBSA. A constituição desta coalizão internacional conformada por Índia, Brasil e África do Sul possui um caráter visivelmente contra-intuitivo na medida em que Brasil e Índia possuem preferências substantivamente divergentes na agenda multilateral, fundamentalmente quando o assunto é agricultura. Enquanto Brasil e África do Sul possuem uma postura ofensiva (liberalizante) em temas agrícolas, por exemplo, a Índia revela um posicionamento muito mais defensivo (protecionista).

Na excelente revisão da literatura elaborada pelos autores, encontramos diversas variáveis explicativas para a formação de coalizões de distintas matrizes teóricas. Dentre elas, destacam-se: a coesão ideológica dos membros, a assimetria e simetria de poder entre os membros, coalizões motivadas por um tema específico, coalizões motivadas por temas mais abrangentes, compartilhamento de interesses, capacidade de ofertar incentivos seletivos, o tamanho do grupo, a emergência de um empresário político capaz de arcar com os custos da ação coletiva e o grau de interdependência entre as partes acordantes. A questão central no estudo das coalizões internacionais do tipo Sul-Sul seria detectar as bases estruturais das mesmas, em outras palavras: há propriamente uma agenda internacional do Sul? Se há, ela é normativa (princípios) ou amparada substantivamente pela convergência de interesses?

A pergunta a ser respondida pelos autores neste capítulo é: a coalizão IBSA inscreve-se em uma rationale institucional-liberal, fundamentada na interdependência econômica dos membros e convergência de interesses ou em uma rationale de cunho mais estratégico-ideológico? A resposta a esta pergunta se centra na análise empírica do posicionamento (preferência revelada) dos três países na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização Mundial do Comércio (OMC), em um período de onze anos (1994 a 2004). Utilizou-se, para medir o grau de convergência ou divergência das preferências, o índice de correlação bivariada entre dois países.

A análise empírica deste estudo revela que os interesses internacionais de países-chave do mundo em desenvolvimento (IBSA), embora acomodáveis, são significativamente distintos. Assim, como argumentam os autores, os dilemas da ação coletiva desta coalizão são superados graças à equalização de elementos exógenos e defensivos, no âmbito tanto do comércio internacional quanto da segurança internacional.

A problematização central do segundo capítulo é responder a seguinte pergunta: qual foi o fator determinante para a mudança de posicionamento da Índia acerca das negociações na OMC pré-Doha e pós-Doha? A resposta oferecida por Surupa Gupta, autora do capítulo, encontra-se na análise dos fatores domésticos indianos, mais especificamente o jogo político-burocrático e a nova relação que se estabeleceu entre o Ministério do Comércio e Indústria e os grupos de interesse indianos.

Para compreender a mudança no posicionamento negociador indiano na OMC, faz-se necessário um olhar mais atento ao principal organismo governamental negociador: o Departamento de Comércio (DPC) ligado ao Ministério do Comércio e Indústria. Como ressalta Gupta, o DCP possuía, no início dos anos 1990, um mandato liberalizante. Assim, com a implantação de acordos firmados na Rodada Uruguai, além de medidas liberalizantes tomadas no início da década de 1990, os produtores indianos passaram a vivenciar a concorrência internacional de maneira substancial pela primeira vez desde a independência. A falta de contrapartida por parte dos países desenvolvidos (PDs), expressa pela contínua concessão de subsídios agrícolas, aumento das barreiras comerciais não tarifárias e ações antidumping contra exportadores indianos, fez crescer o sentimento pessimista em relação ao sistema multilateral de comércio, considerado demasiadamente enviesado em favor dos países desenvolvidos.

Com a consolidação de um sentimento anti-OMC em diversas esferas governamentais e societais da Índia, o DPC passou a ser desprestigiado, visto como um órgão que não defendia os interesses indianos. Neste contexto de falta de credibilidade, o DPC modificou a sua postura inicial liberalizadora e passou a apresentar uma postura muito mais defensiva nas negociações da OMC. Assim, em 2001, a Índia apresentava-se indisposta a negociar a Rodada de Doha da OMC. Entretanto, como demonstra Gupta, modificações institucionais no processo decisório da política comercial indiana reverteram este posicionamento excessivamente defensivo, recolocando a Índia na mesa negociadora da Rodada de Doha. Ademais, as informações e demandas emanadas dos grupos de interesse, governos estaduais e outros ministérios tornaram a posição indiana na OMC mais clara, complexa e fiel às necessidades do país.

As principais mudanças no posicionamento indiano advindo da maior abertura do processo decisório comercial restringiram-se à predominância de interesses defensivos no que tange a agricultura sob a forte influência do Ministério da Agricultura, ainda que existam alguns setores agrícolas ofensivos, e a ofensividade do setor de serviços indianos, dada a sua alta competitividade. Ademais, destaca-se o elemento contra-intuitivo de a proteção agrícola ser fruto da ação do Ministério da Agricultura e não de pressões protecionistas, assim como a vontade indiana de cooperar entre países do Sul, em virtude da percepção de assimetria e baixa vontade dos ricos em cooperarem para que os países em desenvolvimento (PEDs) atinjam resultados melhores.

O principal objetivo do terceiro capítulo é realizar um mapeamento das coalizões internacionais formadas por PEDs na OMC. O ponto de partida das autoras é o pressuposto institucionalista liberal, ou seja, o de que um elevado grau de interdependência entre os Estados conduz os mesmos a cooperarem. Esta interdependência, entretanto, não produz resultados homogêneos; pelo contrário, apresenta-se de forma assimétrica. Assim, em um cenário de profundas assimetrias de poder como o atual, os países em desenvolvimento (mais vulneráveis) são aqueles cujo interesse pelo fortalecimento das regras e instituições internacionais é ainda maior.

Isso porque há um elemento comum a todos os PEDs: a fragilidade de suas posições derivada de um baixo poder de barganha, medido pelo tamanho relativo dos mercados domésticos. Este posicionamento desprivilegiado se reflete, sobretudo, na formulação das regras da OMC, fazendo dos PEDs receptores de regras. É justamente neste contexto que emerge um forte incentivo aos PEDs formarem coalizões dentro da OMC na tentativa de reverter este cenário.

De um modo geral, a formação de coalizões entre os PEDs representa uma força conjunta com a qual é possível pensar uma agenda negociadora na OMC alternativa àquela lograda pelos PDs. Ao todo, foram constatadas 35 coalizões na OMC. Destas, quinze puderam ser classificadas como coalizões de bloco, ainda que algumas destas coalizões acomodem características temáticas. O achado mais interessante talvez resida na constatação de que apenas dois países considerados desenvolvidos (Eslovênia e Coréia do Sul) compõem uma coalizão do tipo bloco. Deste modo, verifica-se que os PDs atuam predominantemente em coalizões temáticas, muitas vezes restringidas a temáticas específicas, como a liberalização de serviços relacionados à computação, por exemplo.

Outra importante verificação empírica diz respeito à predominância de coalizões formadas por PEDs na OMC. Além disso, os menores PEDs são aqueles que mais participam de coalizões, reforçando o argumento central defendido pelas autoras do capítulo: as assimetrias de poder e as deficiências em relação ao poder de barganha conduzem os PEDs, via formação de coalizões, a tentar contornar os constrangimentos a que estão sujeitos.

Compreender as razões que conduziram Brasil e Índia a liderarem a coalizão G-20 na OMC é o objetivo central do quarto capítulo. Para tanto, os autores privilegiam a análise da ação de atores racionais em um ambiente determinado por regras e práticas de negociações comerciais. No que diz respeito ao contexto institucional da OMC, destacam-se, para o caso analisado, as regras do consenso e single-undertaking, assim como o processo de negociação de uma rodada.

Essas duas regras fazem com que qualquer membro da OMC seja capaz de bloquear as negociações, tornando a tomada de decisões complexa e de difícil alcance. Uma alternativa foi criada para minimizar as dificuldades emergidas deste método decisório: a concentração de parte substancial das negociações nas mãos de uma pequena porcentagem de membros reunidos no chamado Green Room. Assim, a principal conclusão advinda deste cenário institucional é a baixa capacidade dos países menos desenvolvidos em influir nos resultados das negociações.

Neste ambiente institucional, o jogo negociador em questão foi um acordo de liberalização agrícola. Neste jogo seqüencial, Estados Unidos da América (EUA) e Comunidade Européia (CE), ao divulgarem seu documento conjunto e contarem com o respaldo do secretariado da OMC, "jogaram primeiro", cabendo ao Brasil e Índia responderem a esta primeira ação. Dada a preferência da CE, uma ação conjunta com os EUA era a melhor opção, já que dividiria a responsabilidade com os últimos de um eventual não-acordo, como também aumentaria a possibilidade de aprovação da proposta modesta em agricultura, destravando a agenda. O que ambos os países não previram foi a emergência de uma coalizão liderada por PEDs capaz de contrapor a iniciativa dos EUA e da CE: o G-20.

O fato de a proposta EUA-CE sugerir uma reinterpretação do Mandato de Doha que levasse menos em conta as demandas do Terceiro Mundo facilitou a aproximação entre brasileiros, indianos, chineses etc. Ademais, a preocupação com a liberalização agrícola por parte do Brasil poderia se somar aos anseios indianos por tratamento especial na Rodada de Doha, minimizando a disparidade entre as preferências comerciais de ambos (ver capítulo 1). Vale ressaltar que, para a Índia, a proposta modesta não se constituía um quadro tão desvantajoso, tornando o Brasil o país mais prejudicado por uma eventual aprovação da proposta modesta. É esta necessidade que explica a iniciativa brasileira de se aproximar da Índia, assim como de adequar a sua proposta à da Índia, posicionando o G-20 de maneira ofensiva quando se tratava de liberalizar os mercados dos PDs, e defensiva quando o assunto eram os mercados dos PEDs. Deste modo, fica claro que atores racionais, com a estrutura de preferência destes países, teriam criado uma aliança como o G-20. Além disso, evidencia-se que o Brasil teve que se mover em direção à preferência da Índia e não o contrário.

No momento em que o Brasil rejeitou a proposta conjunta dos EUA e da CE e articulou, posteriormente, uma coalizão com outros países em desenvolvimento, uma questão foi prontamente levantada: tal ação foi racional ou ideológica? No quinto capítulo, por meio da utilização da teoria dos jogos, o objetivo central é responder a esta pergunta, interpretando o processo negociador de Cancun. A resposta dada pelo autor caracteriza a ação diplomática brasileira em dita negociação perfeitamente racional, rejeitando a suposição de uma ação ideológica por parte dos negociadores brasileiros.

Apesar das simplificações necessárias para a abordagem proposta pelo autor, o modelo construído a partir de um jogo repetido, mas finito (dois períodos), produz resultados que auxiliam a compreender a realidade. Nestes resultados, verificou-se que uma avaliação razoável da negociação de Cancun gerava taxas de juros tão altas que a perda do Brasil resultante de esperar mais um período não era tão significativa comparativamente. Assim, no jogo proposto, seria difícil imaginar que o Brasil lograria aprovar uma proposta que gerasse quatro vezes mais benefícios do que a proposta norte-americana. O raciocínio brasileiro de arriscar esperar mais um tempo, em vez de aceitar uma proposta norte-americana ruim aos interesses brasileiros, pode ser considerado racional com razoável segurança.

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Os Think Tanks e sua influência na política externa dos EUA - a arte de pensar o impensável


Os Think Tanks e sua influência na política externa dos EUA - a arte de pensar o impensável


Maurício Santoro

Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e membro da carreira do funcionalismo federal de especialista em políticas públicas e gestão governamental. Lecionou Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV), na Universidade Candido Mendes e na Academia Militar das Agulhas Negras. E-mail: msantoro@iuperj.br

TEIXEIRA, Tatiana. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, 268 páginas.

Estima-se que existam cerca de 1.500 think tanks nos Estados Unidos da América (EUA), com forte influência sobre as políticas públicas, mas o fenômeno ainda é tão mal compreendido que sequer há uma definição consensual do que são essas organizações. O livro Os think tanks e sua influência na política externa dos EUA - a arte de pensar o impensável, da jornalista Tatiana Teixeira, preenche importante lacuna nas pesquisas realizadas no Brasil. A obra é fruto da Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais defendida pela autora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e laureada pela embaixada norte-americana com o Prêmio Franklin Roosevelt 2007, concedido a trabalhos sobre os Estados Unidos.

Tatiana Teixeira aborda primordialmente o papel dos think tanks neoconservadores norte-americanos na conjuntura política pós-11 de setembro - oportunidade privilegiada para compreender as disputas por poder e influência na formulação da política externa dos EUA. O medo disseminado após os atentados criou a oportunidade para a implementação de uma agenda diplomática formulada em grande medida em instituições como Heritage e Project for the New American Century, que há anos refletiam sobre assuntos como o combate ao terrorismo e pregavam a derrubada de regimes políticos no Oriente Médio, quando estes fossem hostis aos Estados Unidos.

Contudo, o livro de Tatiana Teixeira vai muito além desse aspecto e examina o surgimento e o desenvolvimento dos think tanks, mostrando as transformações pelas quais passaram ao longo do tempo. A autora começa com um sumário das abordagens teóricas sobre o papel das idéias e dos intelectuais na ação política, recorrendo a Pierre Bourdieu, Karl Mannheim e Michel Foucault, entre outros. Examina o "poder simbólico" exercido pelas idéias nos conflitos de interesses, mas também ressalta o quanto o pensamento pode ser manipulado para referendar decisões que já haviam sido tomadas de antemão.

Em seguida, examina os diversos papéis que os especialistas acadêmicos podem desempenhar nos think tanks, identificando seis tipos principais (p. 71-72). Os mais importantes são os scholar-statesman, que ocuparam altos cargos no governo, no Conselho de Segurança Nacional, no Departamento de Estado ou no Pentágono. Em seguida, vêm os policy specialists, cuja área de atuação está restrita a um nicho particular das políticas públicas e em geral estão envolvidos sobretudo com pesquisa acadêmica de longo prazo. A autora distingue-os dos policy consultants, que trabalham no curto prazo e estão mais voltados ao atendimento de seus clientes do que ao diálogo com o público em geral. Os government experts usam seus cargos burocráticos para participar no debate político a partir de uma posição de poder. A autora também examina os policy interpreters, que "buscam espaço nos editoriais dos jornais, telejornais ou programas de entrevistas. Os veículos de comunicação dependem desses especialistas para dar uma aparência de profundidade, diversidade, equilíbrio e isenção a sua cobertura diária" (p. 71). Por fim, há os policy enterpreneurs, dedicados à criação de instituições e à fundação de think tanks.

Assim como os intelectuais exercem diversas tarefas nos think tanks, essas instituições também desempenharam funções distintas na cena pública ao longo do século XX. Tatiana Teixeira avalia que existem quatro ondas principais na história dessas organizações (p. 86-95). A primeira acompanha a "era progressista" do início do século XX e é marcada pela ascensão dos Estados Unidos ao papel de grande potência, com a criação de think tanks como Council on Foreign Relations e Brookings Institution. Funcionavam como "universidades sem alunos", e destacava-se sua pesquisa acadêmica de alta qualidade.

A segunda dá-se no bojo do surgimento do complexo industrial-militar norte-americano na Segunda Guerra Mundial e no início da Guerra Fria, quando "fez-se necessária a emergência de analistas capazes de entender, prever e dialogar com um mundo em transformação e cheio de incógnitas a serem respondidas" (p. 87). O think tank clássico dessa fase é a RAND Corporation.

Já os anos 1960 e 1970 são marcados pela cisão da elite norte-americana, com os conflitos em torno da Guerra do Vietnã, dos problemas sociais dos EUA e dos embates políticos e culturais entre esquerda e direita. Marco dos chamados advocacy think tanks, assim caracterizados pela autora: "A partir de uma espécie de 'filosofia Wal Mart', com idéias expostas como as mercadorias na prateleira de uma grande loja, os advocacy think tanks seguem um programa ideológico preciso com recomendações operacionais para influenciar quem é influente" (p. 137). São dessa época o Heritage, o Cato e o Center for Strategic and International Studies (CSIS).

Por fim, a quarta onda nasce com o fortalecimento dos conservadores no governo Reagan e nela se destacam instituições como Bradley e Smith Richardson. Os advocacy think tanks passam a dedicar-se cada vez mais ao marketing de idéias, com ampla capacidade de influenciar a agenda pública, seja por contatos no governo, seja pelos meios de comunicação.

Os think tanks exercem diversas funções. A mais conhecida é pautar o debate político por meio da publicação de estudos, artigos de opinião e da participação de seus membros na mídia. A mistura entre pesquisa e advocacy faz deles a ponte entre conhecimento e poder. No sistema político altamente fragmentado dos Estados Unidos, os think tanks assumem tarefas de representação de diversos grupos de interesses, embora muitas vezes com pouca transparência com relação a como são financiados. O discurso de que defendem o "interesse público" não se sustenta diante dos nexos existentes entre essas organizações, conglomerados econômicos ou partidos políticos. Seu poder é ilustrado por citação bem-humorada do jornalista Steve Waters: "Como você muda o mundo? Bem, existem os caminhos óbvios, como tomar o poder, ser absurdamente rico ou trabalhar pesado por meio do processo eleitoral. E existem os atalhos, como o terrorismo ou formar um think tank" (p. 105).

Tatiana Teixeira chama a atenção para a função de "incubador ou reciclador de talentos" exercida pelos think tanks ao funcionar como "um local de entressafra para que aqueles que deixaram o poder tenham onde formular, elaborar e difundir suas idéias, mantendo-se na ativa, sem cair no esquecimento, e trocando experiências com os membros permanentes dessas organizações" (p. 117), observando também que "é raro hoje alguém chegar ao primeiro e segundo escalões do governo, nas áreas de política externa e segurança nacional, sem já ter passado ou estar vinculado a algum think tank" (p. 119).

O tipo de rede de contatos pessoais formada a partir desse tipo de instituição é conhecida como revolving door:

O processo de exercer influência é interessante, porque tem efeito circular. Chega-se ao ponto de onde se saiu. Laconicamente os passos dados são: escrever livros, depor no Congresso, conseguir contatos informais no Capitólio ou na Casa Branca e na imprensa, fazer conferências e aparecer na mídia, onde os integrantes dos think tanks são reconhecidos como autoridade legítima para comentar questões políticas. (p. 149).

Uma vez examinados esses elementos gerais, a autora estuda o caso dos neoconservadores no governo George W. Bush. Ela narra a história da formação dessa corrente ideológica, começando pelos progressistas desiludidos com os rumos da esquerda, a partir dos anos 1960/1970. A autora aponta que suas decepções os levaram a defender a retomada de valores conservadores, como maior espaço para a religião na vida pública, e analisa sua convergência e divergência com outras tendências da direita norte-americana, em particular os movimentos cristãos. Destaca-se o maior ativismo dos neoconservadores com a promoção da democracia no exterior e suas posturas mais flexíveis com relação à economia - não compartilham, por exemplo, da adesão ao livre-comércio que caracteriza a ideologia conservadora nos EUA.

A autora afirma que o casamento entre os neoconservadores e os outros ramos da direita norte-americana foi celebrado durante o governo Reagan. Contudo, nas administrações seguintes, os neoconservadores afastaram-se dos cargos mais importantes, embora tenham se dedicado a aperfeiçoar suas ferramentas de luta política:

Embora tenham ficado afastados do poder nos anos 90, tanto no governo de George H. W. Bush (de 1989-93), quanto no de Bill Clinton (1993-2001), os neocons aproveitaram esse período para construir e consolidar um eficiente método voltado para a batalha das idéias, graças a uma densa infra-estrutura intelectual, com nomes de alto calibre, da qual os think tanks fazem parte. (p. 166).

Em seguida, Tatiana Teixeira examina em detalhes o funcionamento dos principais think tanks dos neoconservadores como Heritage, American Enterprise Institute e Project for the New American Century. Ela questiona a qualidade da pesquisa desenvolvida por essas instituições, afirmando que muitas vezes se trata mais da reafirmação de posições políticas, com forte visibilidade na mídia: "Os críticos afirmam que se trata, na verdade, de uma loja de conveniência de idéias, com material de qualidade duvidosa, mas com incontestável e incrível capacidade de marketing" (p. 210).

Jornalista experiente, com passagens pelo jornal O Globo, pela Agência EFE e atualmente na France Press, a autora discute o perigoso papel que a mídia desempenha na ponte entre os think tanks e as políticas públicas, mostrando como muitas vezes repórteres com prazos apertados sucumbem à pressa e preferem dar voz aos articulados membros dessas organizações, em vez de estimular a reflexão cautelosa e ponderada sobre os temas internacionais. O recurso exagerado aos media doctors empobrece o nível das reflexões e dá margem à captura da agenda pública por parte de camarilhas políticas atentas à importância de influenciar os meios de comunicação.

Em suas considerações finais, Tatiana Teixeira destaca a internacionalização crescente dos think tanks, com o modelo norte-americano disseminando-se para outros países. Ela defende a ampliação do leque ideológico dessas organizações como uma garantia de que estimularão o debate democrático de idéias, observando com preocupação que seu caráter está cada vez mais voltado para advocacy do que para pesquisa objetiva. A autora observa que os think tanks cumprem funções democráticas positivas, como "sistematizar as idéias que circulam no meio político" (p. 225, em negrito no original). Entretanto, é preciso mais diversidade nas discussões:

Logo, a saída parece ser a variedade de instituições para democratizar o debate e fomentar a vitalidade intelectual, para que a Política Externa norte-americana rejuvenesça com novas idéias, ao contrário de reciclar de maneira contínua antigos conceitos, que claramente não se aplicam ao atual mundo em estágio transitório. (p. 225, em negrito no original).

No contexto atual dos Estados Unidos, tal diversificação significa questionar a hegemonia conservadora sobre a agenda pública. No que toca à política externa, Tatiana Teixeira chama a atenção para os impactos catastróficos da guerra do Iraque e as críticas internacionais que o conflito provocou com relação às estratégias de segurança nacional formuladas por Washington.
Revista Contexto Internacional - PUC-RJ

Subdesenvolvimento Sustentável

Subdesenvolvimento Sustentável*


Fábio Albergaria de Queiroz

Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). E-mail: fabioaq@hotmail.com

PROCÓPIO, Argemiro. Subdesenvolvimento sustentável. Curitiba: Juruá, 2007, 335 páginas.

Subdesenvolvimento sustentável: é assim que Argemiro Procópio sugestivamente descreve o modelo de desenvolvimento predominante na região amazônica compartilhada por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Ao longo de sua exposição, Procópio desnuda a realidade dos "oito amazônicos" ao apontar que a Hileia, em pleno século XXI, ainda carrega consigo vários problemas estruturais, herança de um longo passado colonial.

Neste contexto, o autor apresenta-nos a região como produtora de commodities e manufaturados com baixo valor agregado. Cita a mineração, a exploração madeireira e de metais preciosos, as redes do agronegócio da soja, da carne, do couro e, atualmente, da cana-de-açúcar como protagonistas do "continuum da sustentabilidade do subdesenvolvimento em novas versões da economia colonial nos oito países amazônicos" (p. 14).

O livro traz importante contribuição ao analisar o papel amazônico no dinâmico mundo dos ilícitos transnacionais, tema que vem ganhando crescente importância nas Relações Internacionais e cujos desdobramentos ainda não são plenamente conhecidos. Neste cenário, em que os dados concretos dos fatos apresentados no livro apontam a região amazônica como grande player, a cocaína destaca-se "como lídimo e maior produto da Hileia exportado com valor agregado" (p. 13), responsável pela inserção da região no competitivo mercado global dos ilícitos.

Procópio aponta as debilidades político-institucionais dos Estados amazônicos como um dos principais fatores responsáveis por tornar a Hileia uma espécie de buraco negro geopolítico, ou vazio de poder, segundo tipologia adotada pelo autor, em que prosperam as redes do crime organizado e dos ilícitos transnacionais. Dada a comum incapacidade de estes países exercerem plenamente a soberania e a autoridade sobre seus territórios amazônicos, o processo de state building na região, pelo autor denominada de "periferia da periferia", acaba assumindo uma importante dimensão de segurança, um componente essencial para a manutenção da ordem regional.

Esse é um dos pontos abordados que levam o leitor a refletir sobre a premente necessidade de se repensar o multilateralismo amazônico, principalmente quanto às várias dimensões da segurança regional. Na verdade, este tema se destaca como assunto central no livro: as inter-relações entre as dimensões energética, alimentar, hídrica e ambiental da segurança amazônica.

Quanto a esse aspecto, vale destacar o espaço dedicado no livro à análise da Bacia Amazônica no contexto da segurança regional. Não é difícil constatar que, para os países amazônicos, a Bacia é uma questão de envergadura nacional estreitamente vinculada ao desenvolvimento dos mesmos.

Sua importância estratégica torna imperativa a discussão de assuntos basilares das relações internacionais, como soberania, conflito e cooperação, dado que grande parte dos recursos hídricos amazônicos provém de rios compartilhados, o que destaca a importância de se contemplar a dimensão multilateral da segurança hídrica desta região, que abriga a mais extensa rede hidrográfica do planeta.

Como bem lembra o autor, recentemente o Brasil enfrentou dificuldades com a Bolívia em decorrência da nacionalização do gás natural. Outro ponto que pode ganhar vulto e aguçar tensões na vizinhança amazônica diz respeito aos projetos de construção de hidrelétricas para operar no Rio Madeira. A Bolívia já demonstrou, formalmente, seu descontentamento com o empreendimento, evocando em seu pleito a bandeira do ambientalismo e da mitigação dos impactos ambientais.

O paradoxo é que o Legislativo e o Executivo bolivianos já estudam a possibilidade de um empreendimento binacional, em que o Brasil seria o principal comprador da cota boliviana excedente, a exemplo do que acontece com Itaipu, entre Brasil e Paraguai. Desenha-se então, como descreve com perspicácia Procópio, um cenário de dependência energética que, além do gás natural, conta com a energia hidrelétrica como importante variável.

Argemiro Procópio dedica boa parte de sua análise aos efeitos ambientais do complexo agroexportador amazônico, que tem, na soja e, mais recentemente, na cana-de-açúcar, seus produtos exponenciais. Ele ressalta que a agricultura tem o potencial de viabilizar o desenvolvimento sustentável por meio da ação governamental eficiente na formulação e implementação de políticas setoriais de desenvolvimento rural aliadas à gestão dos recursos naturais, o que requer a devida aplicação da legislação ambiental e ordenamento territorial.

Contudo, no caso amazônico, mais especificamente no Brasil, os dados apresentados pelo autor apontam a expansão da fronteira agropecuária com vistas ao aumento da produção voltada para a exportação como grande responsável pela implantação de um modelo produtivo direcionado ao uso intensivo dos solos e ao desenvolvimento de grandes monoculturas. Como resultado, observa-se a conversão de áreas naturais em "agroecossitemas" para atender à crescente demanda mundial pela soja e, no caso da cana-de-açúcar, pelo biocombustível.

Há alguns pontos controversos abordados pelo autor que, propositadamente, convidam o leitor à reflexão. Em um deles, Procópio sustenta a assertiva de que a diversificação de matrizes energéticas baseadas em insumos utilizados na alimentação humana, mesmo integrando um projeto de produção energética renovável, ameaça a segurança alimentar e ambiental em várias frentes.

No caso da expansão canavieira, este quadro é a gênese do que ele define como dualidade estrutural "fome-etanol", situação em que a agroenergia tem o potencial de desestabilizar a segurança alimentar ao provocar o encarecimento de gêneros de primeira necessidade, à exceção do açúcar.

A expansão de latifúndios sucroalcooleiros e a implementação de programas de combustíveis renováveis sem sustentabilidade social a expensas de áreas anteriormente utilizadas na lavoura branca, principalmente na produção de feijão, mandioca, arroz e milho, têm provocado o encarecimento destes insumos e, concomitantemente, propiciado o aumento substancial do número de "subalimentados". Além disso, caso o etanol emplaque como modelo da matriz energética mundial, Procópio prevê a intensificação da destruição florestal nos oito países amazônicos.

Em outro ponto igualmente polêmico, neste caso voltado especificamente ao Brasil, o autor tece críticas a práticas amplamente tidas como sustentáveis, como a reciclagem. É sabido que o país evoluiu muito nos últimos anos no que diz respeito à reciclagem de materiais como plástico, papel e, principalmente, latas de alumínio.

Nesse último exemplo, o sucesso da reciclagem pode ser explicado, em parte, pelo elevado custo do alumínio, que faz com que as empresas optem por sua reciclagem à compra do metal que é extraído da bauxita. Consequentemente, a reciclagem de latas passou a ser a principal fonte de renda de um grande número de famílias das camadas sociais mais pobres. Esses fatores conjugados contribuíram para elevar o Brasil ao posto de integrante do seleto grupo dos maiores recicladores do mundo.

Na percepção do autor, a reciclagem, nessas condições, é um dos fatores responsáveis pela continuidade de um quadro paradoxal de "subdesenvolvimento sustentável", ao incentivar a perpetuação de um ciclo de pobreza e de exclusão social das pessoas que subsistem do extrativismo do lixo.

A partir daí, Procópio propõe que, ao invés dos produtos cada vez menos duráveis e mais descartáveis, sejam fabricados produtos com vida útil mais longa, compatíveis com adaptações e arranjos tecnológicos que possibilitem sua utilização em uma perspectiva temporal ampliada de forma a reduzir drasticamente os possíveis danos ao meio ambiente.

Ainda segundo o autor, "priorizar o ser ao invés do ter, transformar mentalidades e introduzir no vocabulário ambiental o verbo desmaterializar são filosofias de vida com as quais as inovações tecnológicas terão como impedir o sucateamento das coisas fabricadas hoje, após curto período de uso" (p. 158).

A partir dos argumentos postos, o leitor infere que a "ecologia industrial", nos exemplos citados, aflorou não como baluarte da proteção ambiental stricto sensu, mas como uma conveniência mercadológica que, por acaso, coincidiu com uma tendência amplamente divulgada como positiva em termos ambientais.

Em suma, Subdesenvolvimento sustentável destaca-se como importante referência aos que desejam entender e pensar o papel amazônico na dinâmica de um cenário ainda em mudança e cuja complexidade propicia espaço a novas possibilidades e conexões de ordens variadas. Nesse aspecto, o autor propõe uma releitura das relações internacionais amazônicas.

Por fim, merece menção o fato de o livro tratar acerca das várias dimensões do conceito de segurança, ponto ainda muito discutido no campo das Relações Internacionais, o que atesta a contribuição da obra à literatura

Revista Contexto Internacional - PUC-RIO

Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros


Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros*

Daniel Ricardo Castelan

Mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). E-mail: danielcastelan@gmail.com


CERVO, Amado Luiz. São Paulo: Saraiva, 2008, 297 páginas.

Já no início do livro, Amado Luiz Cervo deixa clara a dimensão do empreendimento que se propõe a fazer: estudar a formação dos conceitos que pautaram a inserção brasileira no ambiente internacional ao longo de sua trajetória. Desde o princípio, há que se chamar a atenção para a ideia implícita no título: mais do que estudar fatos, tratados, desavenças pelos quais teria o Brasil se aventurado nesses anos, Cervo busca analisar a forma como os pensadores brasileiros em política externa interpretaram tais eventos e circunstâncias e, a partir daí, sugeriram cursos de ação ao país por meio da construção de conceitos e paradigmas. Ao se ler o título, espera-se do historiador um trabalho de história dos conceitos, em que a força motora da história se encontra mais na mente humana e sua motivação do que em elementos materiais da realidade.

Cervo vai além. Busca, na corrente francesa de Pierre Renouvin e Jean Baptiste Durouselle (1964), o suporte metodológico ao status que confere às ideias em sua obra. Conceitos adquirem peso de "forças profundas", que explicam a linearidade da política exterior em momentos de transição de regimes, como na redemocratização e na instauração da República, quando, aos olhos incautos, esperava-se uma mudança em política exterior que acompanhasse a consolidação do novo regime. Dessa maneira, Cervo maneja um enorme passivo na literatura brasileira sobre política externa: como explicar as populares "linhas de continuidade" da instituição que Paulo Vizentini batiza, no prefácio do livro, de "Casa Rio Branco"?

O status metodológico que confere aos conceitos, ideias e paradigmas ajuda a entender a cautela que tem o autor diante de interpretações estrangeiras, que carregam desde sua formulação interesses, valores e concepções alheios aos problemas específicos da América Latina e do Brasil. Pelo fato de influenciarem e constituírem a ação política, conferindo-lhe linhas de força, Cervo ressalta a importância em se consolidar um pensamento nacional, cujo problema epistemológico central seja o desenvolvimento. As principais correntes de pensamento que o autor analisa são a Teoria do Desenvolvimento; a Teoria da Dependência e o Independentismo; e o Neoliberalismo e os Céticos da Globalização. Algumas dessas correntes possuem laços em países da América Latina, os quais implementaram políticas mais ou menos próximas dessas concepções em seus modelos de desenvolvimento.

Entender a opção metodológica de Cervo, baseada na Escola Francesa, ajuda a compreender a forma como constrói seu argumento em torno da ideia de conceitos, paradigmas e "acumulados históricos". Sem embargo, o fato de reconhecer que toda teoria expressa a visão a partir de algum lugar específico não o impede de importar da Escola Francesa alguns pilares de sua obra. Além disso, toda a argumentação centra-se em certas premissas realistas de Relações Internacionais (no sentido de considerar o poder estatal como elemento definidor das relações entre os países), em que o Estado é visto não apenas como a arena onde se desenrola a política, mas também como o centro em torno do qual as identidades contemporâneas gravitam.1 O fato de abraçar o Realismo (originário da literatura anglo-saxônica) e contribuições da Escola Francesa levanta dúvidas quanto ao argumento inicial de que concepções teóricas de países do centro devem ser utilizadas com cautela porque estão imbuídas de valores e interesses do meio de onde surgem. Assim, Cervo elege quais escolas de pensamento estrangeiras contribuem para o interesse nacional (desenvolvimento da periferia) e quais servem ao interesse hegemônico (acentuação da dependência). Apesar da centralidade do Estado, não deixa de dedicar uma seção ao que chama de "relações intersocietárias", em que inclui turismo, migrações e cooperação técnica e científica.

Ainda na primeira parte da obra, Cervo dedica-se a explicar o que entende por paradigmas de política externa. Esse conceito comporta três elementos fundamentais: a) a ideia de nação que o povo - ou seus dirigentes - faz de si mesmo e do mundo; b) a percepção de interesses que o dirigente político projeta para a nação; e c) a elaboração política que se desenrola a partir do paradigma. Como se pode notar, sua concepção de paradigmas é próxima ao tipo ideal weberiano, conforme reconhece Cervo. Assim como os tipos ideais, os paradigmas não são perfeitamente encontrados nas ações dos dirigentes, mas podem servir como um parâmetro de comparação entre o típico-ideal e a realidade histórica.

Na política externa brasileira, quatro grandes paradigmas poderiam ser adotados para dar inteligibilidade à ação dos diferentes dirigentes até os dias de hoje: o paradigma liberal-conservador (1810-1930); o paradigma desenvolvimentista (1930-1990); o paradigma normal ou neoliberal (1990-2002); e o paradigma logístico. Justamente por considerar tênue a linha divisória entre política e teoria, Cervo não hesita em expressar suas preferências políticas, fazendo avaliações críticas dos homens que levaram adiante paradigmas que considera não terem atendido ao objetivo maior do desenvolvimento nacional. Mais do que tipos ideais (no sentido de existirem apenas nas ideias), Cervo propõe um ideal de política externa (que se aproximaria do Estado logístico) que serve de medida para o sucesso ou fracasso dos variados governos. Com essa postura, esbarra, entretanto, em alguns anacronismos. Munido de tal aparato conceitual, Cervo critica, por exemplo, a adoção do paradigma liberal-conservador, que não esteve voltado ao interesse nacional do desenvolvimento entre os períodos de 1810 e 1930, mas sim sujeito aos interesses de uma elite que imitava os padrões de consumo da sociedade europeia em expansão. Entretanto, deve-se reconhecer que, no Brasil, os conceitos de nação e desenvolvimento só foram agregar-se em torno de um mesmo ente - o Estado - a partir da atuação política iniciada no governo de Vargas e da formulação conceitual dos trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que colocou o desenvolvimento como objetivo primeiro da ação estatal, aliando-o a um projeto de nação orientado também pelo Estado. Portanto, é um anacronismo acusar a elite desse período de adotar uma "visão restrita" do interesse brasileiro, por não optarem pelo desenvolvimento nacional, quando essas ideias sobre nacionalismo e desenvolvimentismo simplesmente ainda não existiam no horizonte cognitivo dos formuladores de política. O próprio Cervo aponta a década de 1930 como o momento em que irrompe o paradigma desenvolvimentista, muito embora ideias industrialistas já estivessem presentes no debate brasileiro desde períodos anteriores.

Na segunda parte de sua obra, o autor propõe-se a tratar das relações do Brasil diante da globalização e da regionalização. Retoma os argumentos de Watson e Bull (1985) na obra The expansion of international society, para explicar a forma como a sociedade europeia do século XIX propagou-se pelo mundo, disseminando valores e interesses específicos da Europa pós-Revolução Industrial. Sob essa perspectiva, alguns elementos balizam sua argumentação. O principal diz respeito a como o Brasil garantiu seu espaço de autonomia diante dessa efusão de valores e interesses hegemônicos, e à forma como inseriu a busca pelo desenvolvimento periférico na agenda internacional.

Tendo em mente esses dois elementos, Cervo divide a atuação multilateral brasileira em quatro momentos: a) contribuições do Brasil à construção do sistema internacional pós-guerra, entre 1944 e 1949; b) esforços para reformar a ordem internacional, dos anos 1960 aos 1980; c) a perspectiva de atuar no sistema em vez de reformá-lo, entre 1990 e 2002; e d) o objetivo de estabelecer a reciprocidade entre estruturas hegemônicas e países emergentes a partir de 2003. Para o autor, o governo Lula teria alcançado um bom patamar na política exterior, justamente por defender os interesses nacionais diante da expansão da estrutura hegemônica (que deixou de ser, como no século XIX, oriunda da Europa e centrou-se nos Estados Unidos). Em suas palavras, o governo Lula pretende "não mais confrontar ou reformar, tampouco submeter-se de modo passivo, mas penetrar a ação das estruturas hegemônicas do capitalismo de modo a ser parte do jogo das reciprocidades internacionais, do comando e dos benefícios" (p. 103). Com essa atuação, seu ideal de política externa - o paradigma logístico - que durante a Era Cardoso não fora além de um ensaio, ganha corpo na esfera diplomática.

Uma mudança importante no bloco mental do governo Lula, responsável pela maior implementação do paradigma logístico, seria a reincorporação da visão cepalina dual de mundo - dividido em centro e periferia -, diante da qual o Brasil deveria aliar-se aos países emergentes da periferia para contrapor-se à criação de um ordenamento mundial que não lhes interessasse. Além disso, o paradigma logístico adotado pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim - "um estrategista das relações internacionais pós-neoliberais" (p. 25) -, teria inovado tanto por reconhecer as interdependências contemporâneas que ligam os países, quanto por centrar a atuação estatal no suporte à inserção da sociedade no plano internacional de maneira competitiva e madura. Essa foi a atuação que Amorim buscou, por exemplo, na Organização Mundial do Comércio (OMC), na Cúpula dos Países Árabes, na Comunidade Sul-americana de Nações, entre outras.

Se, por um lado, reconhece em Lula a possível consolidação do Estado logístico, ao longo do texto Cervo mostra uma atitude extremamente crítica com relação ao que chama de Era Cardoso, fundamentalmente pelo fato de os decisores em política externa do período terem aceitado a "globalização" como uma "força imperante". Diante do novo ordenamento mundial, nada mais restava ao Estado senão aceitar as regras colocadas pelo mercado. Entretanto, Cervo não se exime de tratar outra força como imperante na política internacional - a anarquia e sua lógica conflitiva -, restando aos Estados, no máximo, tentar construir instituições que possam "atenuar os efeitos da anarquia sobre o sistema internacional" (p. 96), conforme fez a diplomacia multilateral brasileira na construção do pós-Segunda Guerra Mundial. Com esse argumento, Cervo atribui à política internacional (assim como Cardoso havia atribuído ao mercado) a existência de leis inexoráveis ditadas pela anarquia. Diante da inexorabilidade das leis do mercado, Cervo propõe a inexorabilidade das leis da política. O governo de Fernando Henrique Cardoso, por não reconhecê-las, é caracterizado como "subserviente, regressivo e destrutivo" (p. 52).

Amado Cervo continua seu trabalho tratando de segurança e defesa na política exterior, e desenhando alguns traços sobre a postura brasileira diante da formação dos blocos econômicos. Pontos importantes desse capítulo dizem respeito ao período em que houve a nacionalização da segurança, principalmente sob o governo de Geisel, quando se definiu uma política de exportação de material bélico, firmou-se um acordo nuclear com a Alemanha, iniciou-se o programa nuclear paralelo e foi denunciado o acordo militar que o Brasil tinha com os Estados Unidos. Com esses passos, Cervo defende que o Brasil teria firmado sua autonomia em termos de segurança diante da possibilidade que existia de deixar-se estar sob a proteção norte-americana durante a Guerra Fria.

Outro argumento relevante, que vai contra grande parte da historiografia tradicional concernente à integração regional, diz respeito às origens da aproximação entre Brasil e Argentina. Cervo retira o foco da redemocratização e dos governos de Alfonsín e Sarney como variáveis determinantes para a aproximação entre esses dois países, como é correntemente postulado. Em vez disso, sugere um maior protagonismo dos governos militares, conscientes dos perigos oriundos de uma possível corrida nuclear. "Quando a perspectiva de domínio completo do ciclo nuclear apresentou-se a ambos, nos anos 1970, os militares tomaram a dianteira do processo de aproximação e entendimento para evitar o desvio armamentista" (p. 134). Ainda tratando da regionalização, o autor sugere a adoção de um novo modelo de aproximação, baseado no conceito de relações em eixo, que poderia pautar as relações entre Brasil-Argentina e Brasil-Venezuela.

Por fim, o último terço do livro é dedicado às relações regionais do Brasil. Aborda desde a interação brasileira com os vizinhos da América do Sul até a interação com a África e Oriente Próximo, passando por Estados Unidos, União Europeia, Japão, China e Índia. Em todos os casos, Cervo mantém a avaliação da medida em que serviram ou não ao interesse de desenvolvimento nacional.

Por fim, diante de um espectro amplo de temas, abordados de maneira tão pertinente pelo grande estudioso que é Amado Luiz Cervo, a obra Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros é indiscutivelmente uma valiosa contribuição ao estudo das relações internacionais do Brasil. O autor constrói e sugere, ao longo da obra, modelos de inserção, conceitos e paradigmas, tendo como fonte um profundo conhecimento da história. A grande afinidade com a política internacional deixa Cervo livre para sugerir formas de inserção internacional que melhor atenderiam ao desenvolvimento nacional. Diante da força argumentativa do autor, há que se ter cautela apenas para não tomar esse lado normativo do trabalho como um fato histórico, e sim como uma interpretação que, embora extremamente consistente, deve ser confrontada com tantas outras que por vezes nos são apresentadas.



NOTA

1. Dentre os críticos do Realismo, de particular relevância para o debate é Wendt (1999), que sustenta que a anarquia pode ser permeada por diferentes culturas, mais ou menos propensas à violência entre os Estados. Walker (1993) desenvolve uma perspectiva mais crítica, questionando o papel do Estado na política internacional e particularmente o tratamento concedido a essa instituição pelo Realismo. Segundo Walker, a concepção realista tende a perpetuar padrões limitados de ação política, ao considerar que a ordem, o desenvolvimento e o progresso só são possíveis dentro das fronteiras do Estado - único ator relevante das relações internacionais.


Referências Bibliográficas

RENOUVIN, Pierre; DUROUSELLE, Jean Baptiste. Introduction a l'histoire des Relations Internationales. Paris: A. Colin, 1964.
WALKER, R. B. J. Inside/outside: international relations as political theory. Cambridge: University Press 1993.
WATSON, Adam; BULL, Hedley. The expansion of international society. Oxford: Clarendon, 1985.
WENDT, Alexander. Social theory of international politics. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1999.

Revista Contexto Internacional