sexta-feira, 2 de abril de 2021

Casablanca no século XX: um porto, uma cidade, uma dominação




Casablanca in the 20th century: a port, a city, a domination


Cezar Honorato*
http://orcid.org/0000-0003-4212-7395


* Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói(RJ), Brasil. cezarhonorato@gmail.com




SUÁREZ BOSA, Miguel. Le port de Casablanca au XXe siècle. Paris: Editions Harmattan, 2019. 231 p.p.

RESUMO:

O livro em questão busca recuperar todo o processo de construção do porto e, consequentemente, da cidade de Casablanca, Marrocos, especialmente sob o Protetorado Francês (1912-1956). Para tanto, utiliza todo o referencial da história global e suas múltiplas determinações, incluindo àquelas atinentes ao colonialismo francês na África e os impactos políticos, econômicos, sociais e empresariais.

Palavras-chave: África; Portos; Colonialismo


ABSTRACT:

The book in question seeks to recover the entire process of construction of the port and, consequently, of the city of Casablanca, Morocco, especially under the French Protectorate (1912-1956). To do so, it uses the entire framework of global history and its multiple determinations, including those pertaining to French colonialism in Africa and the political, economic, social and business impacts.

Keywords: Africa, Ports; Colonialism


No final do ano de 2019 foi publicado na França o livro do Prof. Miguel Suárez Bosa referente à história do porto de Casablanca ao longo do século XX. Trata-se de uma importante contribuição aos estudos de portos e cidades portuárias. Isto porque, além de nos apresentar um excelente exercício de história global, busca trazer à luz as marcas fundamentais da dominação europeia na região do norte da África na confluência do oceano Atlântico e do mar Mediterrâneo.

Ao longo dos anos, o Departamento de História da Universidade de Las Palmas de Gran Canarias vem se firmando como o principal centro de pesquisa das relações entre o arquipélago espanhol e a África Ocidental. Os grupos de pesquisa liderados pelos irmãos Santana Pérez (Santana Pérez; Santana Pérez, 2014) relacionados ao período moderno, por Daniel Castillo Hidalgo (Castillo Hidalgo, 2015) e pelo Prof. Catedrático Miguel Suarez Bosa,1 enfocando os séculos XIX e XX, têm se transformado em referências internacionais quando se busca entender as atividades econômicas, os portos e as cidades portuárias.

No caso do livro em apreço, o enfoque principal é o de analisar o processo de construção e desenvolvimento do porto de Casablanca durante o período do Protetorado francês do Marrocos (1912-1956) num contexto de expansão imperialista e colonialista que marca a passagem do século XIX para o século XX. Neste caso, o expansionismo francês e espanhol na África no início do século XX.

Exatamente este é um primeiro aspecto a ser considerado: a disputa entre as nações imperialistas sobre o continente africano - franceses, ingleses, belgas, espanhóis e alemães, principalmente - e o fato dessa expansão estar não só ancorada no domínio político e/ou territorial, mas na montagem de uma infraestrutura econômica de articulação desses territórios dominados pelos interesses empresariais expansionistas. Nesse sentido, o livro já se justificaria por apresentar uma análise de um processo concreto de dominação colonialista de uma fundamental região africana.

Um aspecto importante é que o autor nos apresenta um excelente quadro das transformações históricas do Marrocos desde a segunda metade do século XIX até a assinatura do Tratado de Fez (1912) - dando continuidade aos Acordos de Algeciras (1906) - que definiu a parte do chamado Marrocos Atlântico (o território mais fértil) para tutela francesa, cabendo à Espanha a porção mediterrânea, mais pobre e tradicional.

Nos primeiro e segundo capítulos, o autor nos faz um impressionante balanço historiográfico acerca da história dos portos e das cidades portuárias atlânticas, além do desenvolvimento dos portos da África Ocidental. A construção de portos modernos, capitalistas, na expansão do imperialismo tornou-se básica por permitir, por um lado, a integração de várias regiões do globo e, por outro, o desenvolvimento de estruturas de transportes - ferrovias por exemplo - e comunicações que viabilizassem a exportação de commodities a baixo custo para os centros capitalistas e permitissem a chegada de produtos industrializados nas regiões mais longínquas com mais segurança, rapidez e menor custo.

A partir de então, o autor se dedica mais especificamente à análise do caso do Marrocos, demonstrando que o Protetorado francês aprofundou o caráter dual de sua economia. Analisando a formação econômico-social do Marrocos, o livro chama a atenção para a existência de uma economia tradicional e pobre que vai persistir com - e ampliar? -o projeto de desenvolvimento implantado pelos franceses de montagem de uma infraestrutura moderna de transportes, especialmente as ferrovias, e do porto de Casablanca.

Evidentemente, o desenvolvimento da infraestrutura de transportes com novas ferrovias e portos, principalmente o de Casablanca, num certo sentido, permitiu o desenvolvimento de uma agricultura modernizada, especialmente cereais, e um extrativismo para a exploração e exportação de fosfato, produto líder da pauta de exportação.

Ressalve-se que essas ferrovias tinham um objetivo único: facilitar a exportação de matérias-primas para o porto e, daí, para a França e levar para o interior os produtos industrializados provenientes da Europa para aqueles poucos que enriqueciam com esta modernização. Ao final do Protetorado, como bem aponta Suarez Bosa, o Marrocos estava marcadamente caracterizado pelo subdesenvolvimento. Aliás, nada diferente do que ocorria em outras regiões da África e mesmo da América Latina e Ásia.

Uma estrutura de poder na qual o sultão compunha um Conselho de Governo do qual fazia parte - aliás, no qual dominava - o comissário residente-geral, nomeado pela França, deu aos europeus o domínio de fato do país em que atuava. Mais ainda, funcionava como agente do grande capital francês, inclusive do Banco Paribas.

O livro nos apresenta o grande debate acerca de investimentos em vários pequenos portos em comparação com a construção de um grande porto (Casablanca), que marcou os primeiros tempos do domínio forâneo. Como a estratégia era de uma maior articulação da economia marroquina com o capitalismo central, a decisão acabou sendo a da construção de um grande porto em paralelo à criação de ferrovias do interior do país para o porto.

A análise realizada pelo autor sobre o impacto da construção do porto de Casablanca sobre o crescimento urbano da cidade é impressionante. A cidade, como bem aponta, tornou-se o grande polo industrial e urbano do Marrocos sob o domínio do Protetorado e, até hoje, é um dos mais importantes portos da África Ocidental, especialmente na articulação entre o oceano Atlântico e o Mediterrâneo.

Continuando na sua pesquisa, Suarez Bosa analisa todo o processo de construção do porto de Casablanca, desde suas características técnicas e tecnológicas, até as inversões de capitais realizadas para a sua implementação, com destaque para os interesses dos vários grupos empresariais de origem francesa.

Merece um destaque especial a própria gestão, realizada pela Administration des Travaux Publics, com um diretor-geral que administrava as obras, os recursos e as grandes definições da operação portuária, assessorada pelo Comitê de Coordenação, presidido pelo próprio inspecteur général de Ponts et Chaussées e composto também pelos representantes do Ministério de Trabalhos Públicos, da Câmara de Comércio, da Aduana, da Polícia, da Compagnie Manutention Marocaine, Compagnie Chemins de Fer e dos agentes marítimos.

Analisando o porto de Casablanca como um barômetro da economia marroquina, o autor analisa a função comercial e os próprios intercâmbios com suas conexões internacionais, especialmente as rotas e empresas que com ele operavam. Pela profusão de dados apresentados no livro é possível percebermos, não só as formas de atuação do colonialismo francês, mas, principalmente do próprio imperialismo, dando concretude àquilo analisado pelo contemporâneo Lenin.

Mais ainda, ao recuperar os dados da movimentação do porto de Casablanca o Prof. Miguel nos apresenta um quadro importante do seu impacto sobre o hinterland e sobre a exploração de fosfato e cereais, inclusive em termos de uma logística que privilegia a produção “para fora”, em detrimento do desenvolvimento regional.

Continuando, Suarez Bosa dá destaque à administração portuária, às empresas e aos trabalhadores. Neste particular, primeiramente analisa as várias empresas diretamente envolvidas na atividade portuária como, por exemplo, as empresas de transportes e as seguradoras.

Em seguida, o foco se desloca para a análise das grandes empresas que utilizavam o porto e suas agregações corporativas de interesse, como é o caso do Office Chérifien de Phosphates (OCP), da Chambre de Commerce et d’Industrie, a gestão dos silos e a Manutention Marocaine (MM) e a presença do grande capital que operava no porto de Casablanaca através de suas filiais como a Compagnie Delmas-Vieljeux-Maroc, Paquet-Maroc, Compagnie Marocaine de Transit et d’Affrètements, Compagnie Générale Transatlantique, Messageries Maritimes, Compagnie Chérifienne d’Armement, filial de la S.A.G.A (grupo Rothschild), além das empresas de reparo naval como a Damestoy, Genestal-Afrique, Ateliers de Chantiers du Maroc y Chantiers Galinari, Compagnie Franco-Chérifienne de Navigation e Société Marocaine Charbonnière et Maritime.

Buscando olhar a questão do trabalho, a obra analisa o proletariado industrial e portuário em Casablanca considerando as suas características antes e depois do Protetorado e da construção do porto com relação à atuação da Manutention Marocaine - que passou a monopolizar toda a operação portuária sob o Protetorado - com características similares ao que ocorria em outros portos do mundo, como o de Santos e do Rio de Janeiro, nos quais observamos a combinação de trabalhadores fixos com os avulsos por tarefa, especialmente os carregadores e estivadores.2

Ao longo do tempo, como também ocorre em várias partes do mundo, os conflitos nas relações de trabalho vão surgindo, especialmente com a atuação da Confederação Geral do Trabalho exigindo melhorias salariais, especialmente na década de 1940, quando o próprio Protetorado começava a apresentar os primeiros sinais de esgotamento, que ocorreria na década seguinte. Embasando parte desses movimentos, temos a análise das condições de vida dos trabalhadores portuários.

Como historiador de escol e um dos maiores especialistas europeus em história dos portos e das cidades portuárias, o Prof. Miguel Suarez Bosa dedica um capítulo inteiro à análise da relação entre o porto e a cidade de Casablanca, demonstrando seu profundo domínio também da análise territorial ao longo do tempo, considerando, inclusive, questões étnicas e religiosas em consonância com a dinâmica do porto e de seus negócios.

Temas como a mão de obra nativa, a imigração de trabalhadores e a localização dessa população na cidade, além das articulações e embates entre as minorias fassi e soussi, nos dão uma excelente visão da complexidade social que Casablanca adquiriu devido ao porto, incluindo o projeto de reordenação urbana proposto por Michel Ecochard na década de 1940 e sua consolidação como a grande cidade industrial do Marrocos após a Segunda Guerra Mundial.

Muito poderíamos ainda dizer sobre as enormes virtudes do presente livro, mas, devido ao espaço permitido a uma resenha, sou obrigado a apenas apontar suas características gerais para, finalmente, implorar aos editores brasileiros que o publiquem por ser uma obra fundamental para todos aqueles que estudam os portos, a realidade contemporânea africana e, principalmente, a dinâmica colonial e imperialista francesa desde o final do século XIX até - e principalmente - do século XX!

Finalmente, a riqueza das fontes, dos dados econômicos e da bibliografia compulsada é de extrema importância para aqueles que se dedicam à análise do mundo contemporâneo, do impacto do imperialismo e colonialismo europeu na África e ainda para os que se interessam pela história dos portos e das cidades portuárias. Tudo faz da obra Le port de Casablanca au XXe Siècle, de Miguel Suarez Bosa, um trabalho seminal.




REFERÊNCIAS



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SUÁREZ BOSA, Miguel. Le port de Casablanca au XXe siècle. Paris: Editions Harmattan, 2019. [ Links ]



1Dentre outras atividades, o Prof. Miguel Suarez Bosa coordena o projeto de pesquisa “Global South. Puertos y Desarrollo Económico y Social en el Atlántico Meridional (1850-2010)” e a Acción de Red Excelencia “La gobernanza de los puertos atlánticos. Siglos XV-XXI”, além de uma produção bibliográfica internacionalmente reconhecida.


2Nos portos brasileiros, eram conhecidos como “bagrinhos”, por não serem trabalhadores formais da empresa, não terem nenhuma garantia trabalhista e trabalharem por demanda.
Revista Tempo - UFF

A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa




Pode a história da África Antiga ser contada através de autores greco-romanos


Can classical authors tell us about Africa’s ancient history?


Rennan Lemos*


* University of Cambridge, Department of Archaeology and Emmanuel College, Cambridge, UK. rdsl3@cam.ac.uk

FURLANI, João Carlos. A África Antiga: possibilidades de ensino e pesquisa. Serra, ES: Milfontes, 2019. 271 p.p.

RESUMO:

O livro coletivo parte do pressuposto de que textos de autores greco-romanos podem ser utilizados como fonte para escrevermos a história da África na Antiguidade. A resenha busca problematizar esse pressuposto, com ênfase na diversidade de experiências humanas complexas, em sua maioria ágrafas, no continente africano na Antiguidade.

Palavras-chave: África; História Antiga; Diversidade cultural


ABSTRACT:

The chapters of this edited volume aim to create historical narratives of Africa in Antiquity based on Classical works. The present review criticises this assumption at the same time it emphasises a diverse range of complex human experiences left out of external textual accounts.

Keywords: Africa; Ancient History; Cultural diversity


Quando começa a história do continente africano? Diante da recente expansão de pesquisas e projetos pedagógicos em história da África no Brasil, sobretudo a partir da promulgação da lei n. 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história da África em escolas do país, o livro coletivo ora resenhado pretende suprir uma lacuna; especificamente, aquela relativa à Antiguidade africana. Para os autores dos diversos capítulos, um problema, identificado logo no início da obra coletiva, no prefácio e no capítulo introdutório, é a predominância de estudos sobre passados africanos mais recentes, em detrimento da Antiguidade. Mas talvez isso se deva simplesmente ao fato de que há maior número de pesquisadores, em departamentos de história e áreas afins no Brasil, dedicados ao estudo de outros recortes cronológicos. Assim, por exemplo, há diversos trabalhos recentes no país sobre a história da África que não ignoram a Antiguidade do continente e, algumas vezes, nem mesmo sua pré-história (ver Macedo, 2008; Costa e Silva, 2011; Macedo, 2014; Souza e Mortari, 2016; Frizzo, 2016; Sagredo, 2017; Vieira, 2017). De qualquer maneira, a publicação de um volume dedicado exclusivamente à Antiguidade da África - ou a certa versão dessa Antiguidade - é, sem sombra de dúvidas, muito pertinente.

O livro coletivo pode ser considerado como um todo coerente, na medida em que é resultado de uma disciplina de pós-graduação ofertada na Universidade Federal do Espírito Santo; portanto, nesta resenha, a obra será abordada como uma unidade, em vez de optar por descrever capítulos individuais. O livro busca, seguindo certa postura pós-colonial, incluir a África em narrativas brasileiras sobre a Antiguidade, com base na identificação do papel ativo de populações africanas capazes de produzir sua própria história, e que foram silenciadas por discursos coloniais antigos e modernos. O volume também busca oferecer subsídios para a integração entre essas pesquisas e o ensino de história da África, embora esse aspecto acabe sendo secundário na obra.

Coletivamente, os capítulos desta obra buscam levar adiante sua proposta com base em documentos textuais produzidos por autores greco-romanos, mesmo que o organizador, no capítulo introdutório, afirme “enganar-se quem acredita que distintos povos, culturas, tradições, línguas, religiões e instituições políticas tenham sido inteiramente normalizadas por uma cultura maior e soberana” (p. 17). Ora, sabemos, por exemplo, que os egípcios do Reino Novo (c. 1550-1070 a.C.) utilizaram amplo aparato textual e iconográfico para, ideologicamente, caracterizar os núbios como bárbaros e inferiores - uma tentativa de justificar o imperialismo e a colonização egípcios da região (Smith, 2003; Anthony, 2016; Vieira, 2018). Ou mesmo César, que, em seus Comentarii de Bello Gallico, utilizou uma série de estratégias discursivas para caracterizar ideologicamente seus oponentes de maneira que seu poderio político pudesse sobressair (Webster, 1996; Riggsby, 2006; Rosa, 2007). Um método como o de Le Bart (1998), que identifica as invariantes do discurso político, pode nos ajudar a descortinar estratégias político-ideológicas que sustentam discursos imperialistas/coloniais que buscam simplificar o “outro”. Para que o livro pudesse cumprir efetivamente sua proposta de escrever uma história da África com base em documentos greco-romanos - alguns escritos por autores clássicos originários do norte da África, porém o que não os fazia menos greco-romanos, uma vez que faziam parte de círculos das elites imperiais, como Apuleio (capítulos 8 e 9)1 - seria preciso que o livro incluísse, seja na introdução geral ou de forma diluída em cada capítulo, uma discussão sobre método. Afinal, é possível abordar contextos africanos na Antiguidade com base em documentos produzidos externamente a esses contextos? Como entender a diversidade sociocultural da África Antiga com base em discursos elaborados por estrangeiros, membros de elites imperiais, com uma visão de civilização que garantia ao “outro” um status inferior e bárbaro? Pode a história da África na Antiguidade ser contada através de textos greco-romanos?

O livro coletivo ora resenhado propõe que sim, é possível escrever uma história da África na Antiguidade com base em fontes clássicas. Porém, ao lado da falta de uma discussão metodológica que explique como tais documentos permitem ao pesquisador abordar contextos socioculturais mais diversos e amplos do que os tratados preconceituosamente por autores clássicos no continente africano, o livro parte de uma visão de civilização que é igualmente excludente de realidades materiais diversas por toda África Antiga. Trata-se de uma visão que é, em grande medida, atrelada a um pressuposto status superior conferido a documentos textuais, garantia de “civilização”, entendida por Ventura (Capítulo 2) como:


Uma sociedade que apresenta, em primeiro lugar, uma organização política formal, que costumamos identificar como Estado, um polo da sociedade que detém o monopólio da coerção física e é responsável pela coordenação de projetos coletivos-construção de monumentos, templos, necrópoles - e pela arrecadação dos excedentes, o que, em geral, pressupõe a existência de um sistema de escrita (p. 23).

Tal definição exclui experiências passadas antigas como as das populações nômades dos desertos ao redor do vale do Nilo no Egito e no Sudão, que estabeleceram redes complexas de interação entre diversos grupos nômades, e entre estes e a população assentada no vale do Nilo (Barnard e Duistermaat, 2012; Weschenfelder, 2014; Manzo, 2017); ou grupos ocupantes de regiões no sul do Sudão, na parte subsaariana da África, cujos sítios arqueológicos, como Jebel Moya, oferecem subsídios para que entendamos as relações entre grupos pastoris, e entre estes e o Estado meroítico (Brass et al., 2018). Contextos como esses são ignorados tanto por documentos clássicos quanto por definições tradicionais de civilização; ao contrário, uma definição mais ampla pode ajudar, em termos teórico-metodológicos, a abordar as inúmeras experiências materiais humanas na África na Antiguidade: “a capacidade das sociedades de formar uma comunidade moral -um campo estendido de trocas e interações -apesar de diferenças étnicas, linguísticas, de crenças ou de filiação territorial (Wengrow, 2018, p. XV; ver igualmente Edwards 2019).

Grandes compêndios como o Cambridge history of Africa (Clark, 1982) e o Oxford handbook of African archaeology (Mitchell, Lane, 2013) concordam que a Antiguidade africana pode ser traçada até mesmo à origem da espécie humana no continente -uma ideia que aparece também no capítulo de Ventura (p. 23). Porém, o foco em civilizações que produziram Estado e escrita, aliado ao corpus documental clássico como base para caracterizar amplamente a África Antiga, talvez seja excessivamente excludente da “incrível diversidade e riqueza das experiências africanas em produção de alimentos, complexidade social, urbanismo, arte, formações estatais e comércio internacional através dos últimos 10.000 anos” (Mitchell, Lane, 2013, p. 3; ver também Costa e Silva, 2011). Dessa maneira, o foco do livro coletivo ora resenhado é restrito, e não é representativo da diversidade sociocultural da África Antiga, seja porque acaba limitando o objeto de estudo ao que pode ser abordado a partir de documentos escritos - produzidos externamente aos contextos abordados - ou devido à própria noção de civilização veiculada no capítulo 2, sobre o Egito Antigo, e que pode ser extrapolada como um todo para a obra coletiva.

Entretanto, isso não quer dizer que a obra não apresente elementos promissores, que abrem caminho para pesquisas interessantes e, ao mesmo tempo, para pensar o potencial educativo do corpus documental escolhido em relação à África. É preciso ter muita cautela ao se empregar documentos textuais clássicos para abordar contextos socioculturais diversos e, em sua maioria, ágrafos, porém não pouco complexos. Esse é um tradicional debate em egiptologia, que por muito tempo utilizou-se de documentação puramente textual e iconográfica - produzida pelas elites egípcias em todos os períodos de sua história - para generalizar regras sociais para toda a população (Kemp, 1984). Ao contrário, hoje em dia, com a escavação de contextos associados às não-elites no Egito e no Sudão (ver Kemp et al., 2013; Spencer, 2014), nossa visão sobre a sociedade egípcia é muito mais diversa e complexa, uma vez que a arqueologia oferece acesso direto a populações mal representadas em textos produzidos por aqueles que as dominaram. A aplicação de dados arqueológicos na abordagem crítica de fontes textuais pode abrir interessantes caminhos de pesquisa, sobretudo quando aliada a perspectivas pós-coloniais (ver Costa e Silva, 2011; Smith, 2010).

Alguns capítulos desta obra seguem por esse caminho. Por exemplo, Carvalho, ao tratar do segundo reino Núbio (Meróe) a partir de Heródoto e Diodoro da Sicília, enfatiza a parcialidade e preconceito de autores clássicos ao descrever costumes na Alta Núbia, sobretudo aqueles relacionados à morte. Em contraste com dados arqueológicos provenientes de escavações em Meróe, à autora foi permitido identificar estratégias discursivas, baseadas no estranhamento dos autores clássicos, para simplificar práticas locais complexas, reveladas pelas escavações. Trata-se de um exercício analítico muito interessante que, caso expandido, pode gerar resultados relevantes. Entretanto, tais resultados dependem da cultura material, que permite aos pesquisadores abordar a diversidade de práticas locais, enquanto fontes textuais tornam-se limitadoras da abordagem da diversidade. Igualmente, Soares deixa claro que os textos clássicos estavam “a serviço de um ideal de civilização, não constituindo, desse modo, uma descrição fidedigna dos hábitos e costumes dos povos africanos” (p. 90).

No geral, vários capítulos mostram possibilidades interessantes de pesquisa, mas que acabam sendo limitadas pela documentação clássica utilizada como base. A obra oferece exercícios e caminhos interessantes de pesquisa, sobretudo ao desafiar os textos clássicos e sua visão deturpada dos contextos dos quais tratam. Porém, isso não é suficiente para se abordar a “África Antiga” em sua complexidade e diversidade. Ao contrário, autores clássicos nos permitem contar a história da África Antiga tal como ela não foi. Dessa maneira, textos se tornam fontes secundárias nas adaptações metodológicas que pesquisadores devem fazer ao abordar inúmeras realidades históricas, em sua maioria ágrafas, na África Antiga. Tal como há muito apontado por Ki-Zerbo (2010) na introdução geral da História geral da África, é impossível entender a história da África, sobretudo na Antiguidade, com base somente em um tipo de documento. Fontes textuais produzidas por sociedades complexas africanas na Antiguidade são raras, com exceção do Egito e, muito posteriormente, da Núbia meroítica. Por mais que os autores do livro ora resenhado tenham apontado para a necessidade de enfatizar o caráter exógeno dos textos clássicos, o resultado, que é dependente de uma noção de civilização que é excludente e da falta de uma discussão metodológica clara, é uma história parcial da África na Antiguidade. Afinal, como já havia dito Costa e Silva no prefácio à primeira edição de A enxada e a lança, “para os povos do norte da África, as paisagens além do Saara e a oeste do Mar Vermelho sempre estiveram distantes e sempre foram exóticas”. O livro ora resenhado consiste numa análise parcial, que não representa a vastíssima história das experiências humanas no passado antigo da África, justamente porque não se pode contar a história da África Antiga com base em autores greco-romanos.




REFERÊNCIAS



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1Quando mencionados, capítulos específicos seguem minha própria numeração, já que não foram numerados pela editora.
Revista Tempo - UFF

Ser humano: político por natureza?




Ser humano: político por natureza?

Human being: political by nature?


Sérgio da Mata*


* Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Mariana(MG), Brasil. sdmata@ufop.edu.br

PLESSNER, Helmuth. Poder y naturaleza humana: ensayo para una antropología de la comprensión histórica del mundo. Edición de Kilian Lavernia y Roberto Navarrete. Traducción de Kilian Lavernia, Madrid: Guillermo Escolar Editor, 2018. 128p.p.

RESUMO:

Busca-se, nesta resenha, realizar uma apreciação histórico-crítica da tradução espanhola do clássico ensaio de Helmuth Plessner Macht und menschliche Natur (1931).

Palavras-chave: Helmuth Plessner (1892-1985); Natureza humana; Antropologia política; Teoria da história

Abstract:

The objective of this review is to develop a historical-critical appraisal of the spanish translation of Helmuth Plessner’s classical essay Macht und menschliche Natur (1931).

Keywords: Helmuth Plessner (1892-1985); Human nature; Political anthropology; Theory of history


No abarrotado gabinete de Reinhart Koselleck, em frente às pastas com o material empregado num seminário sobre os campos de concentração, ministrado entre 1968 e 1969, repousava uma foto sua. Não por acaso: ele elucidara parte das razões ­profundas que haviam levado seu país ao caminho de destruição do qual aqueles dois homens, um na condição de perseguido e outro na de combatente, só por pouco se salvaram. Koselleck (2014, p. 335, 347) enalteceu publicamente a sofisticação de suas análises histórico-sociológicas, a “visão extraordinária do passado e do futuro” que contém e sua aversão a toda forma dualista de pensar, própria de épocas em que prevalece a “tentação de seguir trilhas ideológicas baratas, que podem ser percorridas sem nenhum custo”.

O personagem da foto era Helmuth Plessner, cujas obras principais enfim começam a ser publicadas em inglês, francês e espanhol. Seu nome está indissociavelmente ligado à antropologia filosófica, uma corrente teórica que pretende responder à questão que, dizia Kant, encerra todos os grandes problemas da filosofia: o que é o ser humano? Se, formalmente, o papel de pioneiro coubera a Max Scheler, é consensual que em Plessner a antropologia filosófica atinge um patamar inteiramente novo. Depois de se familiarizar com neokantianos de prestígio como Max Weber (cujo círculo chegou a frequentar) e Paul Hensel, de acompanhar os cursos de Edmund Husserl em Göttingen e realizar sua livre-docência em Colônia com o filósofo da biologia Hans Driesch, Plessner estava como que predestinado a elaborar uma resposta radicalmente nova à pergunta pelo humano. A partir de Kant e de Dilthey, ele propõe uma rearticulação entre natureza e cultura na qual o humano não aparece como animal simbólico, nem, como infelizmente se tornou comum, mero epifenômeno de algum determinismo neuronal. Para Plessner, o humano, quando sistematicamente comparado às formas de vida vegetal e animal, não se revela como superior, mas como excêntrico: está simultaneamente além e aquém da natureza; tem um corpo e sabe que é um corpo. Graças à sua posicionalidade excêntrica, o ser humano pode ser considerado “constitutivamente apátrida” (Plessner, 1975, p. 310), isto é, incapaz de produzir sucedâneos culturais capazes de compensar plena e duradouramente esse desenraizamento constitutivo de si mesmo. “Quem quiser ir para casa, para a pátria, para o aconchego, tem de sacrificar-se à fé. Já aquele que se aferra ao espírito, porém, não retorna” (Plessner, 1975, p. 342).

Nas primeiras linhas de Poder e natureza humana, o autor afirma que a questão central da antropologia política é a de saber “até que ponto a política (…) pertence à essência do ser humano” (Plessner, 2018, p. 33). Para Plessner não há como desvincular entre si as questões do político e da historicidade, e seu argumento é construído a partir de uma tripla interlocução: uma negativa (a ontologia de Heidegger) e duas positivas (a teoria do político de Carl Schmitt e a epistemologia vitalista de Georg Misch). Em absoluto se trata, como veremos, de realizar uma síntese entre as perspectivas dos dois primeiros autores, que, aliás, reagiram imediatamente ao livro de Plessner. Na segunda edição de O conceito do político, de 1932, Schmitt (2018, p. 184) evoca Poder e natureza humana, considerando-o “uma antropologia política em grande estilo”. Estudos recentes (Ott, 2012; Grossheim, 2018) mostram que, embora tenha omitido o nome de Plessner em tudo o que publicou, Heidegger não apenas leu seus livros como reviu, em razão deles, algumas de suas próprias posições, incorporando conceitos cunhados por seu jovem crítico.

O objetivo de Plessner, como foi dito, é sustentar a tese de que o político e o humano estão inscritos um no outro, de maneira que a aversão à política, secularmente difundida nos setores médios da sociedade alemã, assentaria numa incompreensão profunda da natureza humana. A antropologia política não privilegia o nosso suporte biológico, nem se confunde com uma abordagem de tipo idiográfico (Peirano, 1998). Como subcampo da antropologia filosófica, para Plessner ela “abarca tanto o psíquico como o espiritual, o individual como o coletivo, tanto o coexistente num dado lapso temporal como o histórico” (p. 41).

Mas como chegar ao entendimento da essência do humano sem cair na armadilha das autoprojeções, por óbvio cultural e historicamente situadas? De uma sociedade, a europeia, que ao longo dos séculos desenvolveu uma porosidade considerável em relação à alteridade, e cuja ciência estava ao menos formalmente atravessada pelo sentimento de igualdade “de tudo o que possua um rosto humano”, dever-se-ia esperar que fosse capaz de se abster da própria absolutização (p. 42). Tal dificuldade não é a única e talvez nem mesmo seja a principal. Mais decisivo é saber se a questão da essência do humano deve ser perseguida empiricamente ou aprioristicamente. Ambos os caminhos encerram dificuldades próprias. Bem familiarizado com o pensamento de Husserl, Plessner sabia que “uma teoria empírica da essência é um absurdo” (p. 46). O procedimento a priori não é menos problemático. Scheler e Heidegger haviam tentado estabelecer ou identificar uma relação estável entre a essência do humano e determinadas estruturas formais e/ou dinâmicas. O primeiro, sabidamente, não foi capaz de livrar-se de premissas metafísico-religiosas. Submetida à prova da interculturalidade, também a “analítica do Dasein” se revela uma autoprojeção não apenas ocidental, mas cristã do humano (de resto evidente em sua antropomorfização da escatologia). Embora tenha pretendido “manter-se aberta face à vastidão de culturas e épocas”, a teoria de Heidegger redunda na verdade em um “estreitamento de seu campo visual como consequência de seu apriorismo metodológico”. A consequência necessária é uma “absolutização de determinadas possibilidades humanas” (p. 52-53; grifo nosso).

Plessner percebe que a tentativa de se chegar à essência do humano forçosamente leva a um autoenredamento. Aqui, ele acrescenta algo novo ao conceito de “posicionalidade excêntrica” desenvolvido em seu livro de 1928 (Plessner, 1975) sobre Os níveis do orgânico e o ser humano: o que é mais característico do ser humano não é propriamente uma essência, mas sim uma disposição fundamental. Ele é uma forma de vida “aberta”. Para encontrar uma unidade qualquer por detrás de toda sua imensa diversidade cultural, não haveria caminho outro senão o de pensá-lo a partir da categoria da insondabilidade (cunhado por Misch, o termo Unergründlichkeit significa algo como inescrutabilidade ou “infundamentabilidade”). O que significa dizer que o humano é insondável? Plessner recorre a Dilthey, no qual busca nem tanto o avesso do “fanatismo da exatidão”, mas a forma específica por meio da qual as ciências humanas formulam suas questões. Diferentemente das ciências naturais, que estão por assim dizer condenadas a responder suas perguntas - qualquer que seja o experimento empregado, a hipótese de trabalho inicial será confirmada ou refutada -, o mesmo não aconteceria nas humanidades. As ciências do homem não dispõem de quaisquer garantias de que atingirão seu fim cognoscitivo último; suas perguntas são e permanecem abertas. Seus objetos são insondáveis “por natureza”, e suas perguntas, perguntas em aberto. O constante deslocamento de seu horizonte cognoscitivo as impede de atingir o mesmo grau de estabilidade das ciências naturais. O que para estas seria renúncia - renúncia a oferecer respostas “definitivas” - é nas humanidades renúncia criativa, única atitude epistêmica apropriada para o tratamento de “realidades inconclusas” (p. 74).

Quando o olhar prospectivo se desloca momentaneamente para trás, a abertura humana para o agir se converte numa espécie de poder sobre o passado. E dado que “cada geração atua de maneira retroativa sobre a história”, o passado se converte em algo “inacabado, aberto e eternamente renovado”. Plessner vê no princípio da insondabilidade “a concepção ao mesmo tempo teórica e prática do ser humano como ser histórico e portanto político” (p. 76; grifo nosso). Ao dar-se conta da própria historicidade, o pensamento se enreda num duplo movimento - ele se sabe produto de uma história e, ao mesmo tempo, uma potência que reincide sobre ela e é capaz de reconfigurá-la.

Ver na “infundamentabilidade” o fundamento da condição humana implica, note-se bem, “abdicar da posição de predomínio do próprio sistema de valores e categorias” (p. 78). Segundo Plessner, tal movimento não deve ser visto como uma perda, mas, antes, como algo próprio de sociedades seguras de sua capacidade de futuro. A pergunta pelo ser humano deve permanecer em aberto, mantendo-se a salvo da tradicional inclinação de nos projetarmos enquanto critério e medida universais.

Incapaz de esclarecer o próprio fundamento, o ser humano é “possibilidade”, se reconhece “condicionante da história e condicionado por ela” (p. 82). Ao desenvolver sua consciência histórica, ele se dá conta de que é poder. Ver a si mesmo como poder significa para Plessner “necessariamente lutar por ele”. A alteridade, porém, não se resume ao inimigo nem pode ser claramente delineada. A fronteira entre identidade e alteridade, amigo e inimigo, não pode ser fixada. Para além de Schmitt e muito antes de Foucault, Plessner conclui que o político “atravessa todas as relações humanas” (p. 86). Assim, e como necessidade que brota “da constituição fundamental do ser humano”, o político torna-se seu “destino secreto”. Em “suas milhares de formas” possíveis, o adversário poderia ser definido como qualquer um que seja nocivo a meus interesses (p. 87). O ser humano vive cindido entre a necessidade de ser audaz e o temor ante ameaças que parecem brotar de todos os lados. Ele é poder, mas uma espécie de poder incapaz de atingir um porto inteiramente seguro. É força, mas sabe que é “artificial ‘por natureza’” e que “nunca está em equilíbrio” (p. 90). Decodificar o humano a partir do princípio da insondabilidade implica, enfim, dar pleno relevo ao “primado do político para o conhecimento da essência do ser humano” (p. 92), sem com isso cair no equívoco - ou na tentação - do essencialismo.

Poder e natureza humana não é apenas a ampliação das descobertas feitas em Os níveis do orgânico e o ser humano. Este ensaio pode ser lido como uma refutação das pretensões de uma filosofia, a de Heidegger, de se colocar na condição de filosofia primeira. Plessner a considera autocontraditória (p. 96), e mais, “perigosa e nociva” (p. 97). A “radicalização do conceito de sujeito” em Heidegger prolonga a tradição do dualismo cartesiano, não obstante sua pretensão de “destruir” toda tradição. Trata-se de uma reatualização do gnosticismo e, como tal, avessa à necessidade de salvaguardar a realidade do que é externo a nós mesmos. Plessner vê na “analítica do Dasein” um erro de princípio, o de tentar tornar fechada a pergunta pela essência do humano. O jargão da autenticidade revela incapacidade de se admitir o fato de que o humano bem pode optar pela impotência. Caso queira estar à altura do humano, a filosofia precisa reconhecer que, enquanto homo duplex, não raro nos inclinamos pela paradoxal negação de nossas próprias possibilidades. Pois o humano, diz Plessner, é também e sempre “o outro de si mesmo” (p. 115; cf. Plessner, 2009).

Resta saber como se dá o salto que leva dessa disposição intrínseca à formação das associações políticas, ou seja, como esse fato antropológico fundamental adquire expressão societária. Inegavelmente marcado pela pesada atmosfera de inícios da década de 1930, Plessner afirma que tal vinculação se dá por meio do pertencimento a um “povo”, e, por fim, à sua organização em bases nacionais.

Ao leitor que considere essa teoria como especulativa do início ao fim, convém lembrar que aquele que a concebeu, zoólogo de formação, não minimiza em momento algum sua crítica ao dualismo cartesiano: “Toda teoria, seja ontológica ou hermenêutico-biológica, que queira investigar o que faz do ser humano um ser humano, e que em seus métodos ou em seus resultados ignore a dimensão natural da existência humana, ou que a minimize como o não autêntico (…), considerando-a secundária para a filosofia ou para a vida, é falsa, porque demasiado frágil em seu fundamento, demasiado unilateral em seu desenho e dominada, em sua concepção, por preconceitos religiosos ou metafísicos” (p. 119). Cindido entre natureza e cultura, o ser humano está condenado a conduzir sua existência “sem saber qual dos lados acaba prevalecendo” (p. 120). Sua gradativa organização em comunidades políticas ou Estados visaria compensar essa fragilidade constitutiva, mitigando seus efeitos.

Plessner chega à conclusão de que o político está inscrito na própria condição humana, e isso bem antes que autores importantes da época (pense-se no caso de Hannah Arendt) realizassem seus respectivos political turns. Ele percebeu que um dos problemas centrais de Ser e tempo estava em legitimar uma já antiga tendência ocidental-cristã à subjetivação excessiva, em que a interioridade do ser aparece como o polo antagônico de uma “esfera pública degenerada”, e cujo resultado último é o indiferentismo político (p. 123). Uma das causas da tragédia alemã, cujo explosivo potencial Plessner evidentemente não podia antecipar em 1931, quando publicou seu livro, era o que ele chama de “a indiferença dos intelectuais face à política e sua trivialização através da filosofia” (p. 124).

Uma simples resenha não pode ter a pretensão de realizar uma discussão aprofundada das possibilidades e dos eventuais limites de uma antropologia filosófica do político como a proposta por Plessner, mas bastará assinalar aqui um ou outro aspecto que consideramos dignos de nota. Não se pode deixar de encarar com certa dose de ceticismo a tendência, volta e meia presente na argumentação, a se desontologizar o passado. A manutenção do fosso metodológico entre ciências humanas e ciências naturais não indica, ainda que num plano distinto, a tremenda resiliência daquele mesmo dualismo cartesiano que Plessner pretende ultrapassar? Soaria absurdo subscrever, hoje, a ideia de que perguntas científico-naturais sejam inteiramente “fechadas”, e muito menos que nas ciências humanas a demanda por explicação tenha se tornado uma relíquia epistemológica. Se de fato o político está inscrito na natureza humana, não será exagerada a preocupação com o indiferentismo? O processo por meio do qual o político gradativamente se institucionaliza não nos parece fundamentado o suficiente por Plessner; nem é fácil entender como se dá, em sua obra, uma inflexão significativa a respeito do humano, que no livro de 1928 aparece como “constitutivamente apátrida”, e em 1931 como “vinculado a um povo”.

Concluamos esta lista, que já vai longa. Dentre as patologias do político não será a hipertrofia tão grave quanto a neutralização? E nem falamos de totalitarismo, mas de algo que pode, talvez, se revelar igualmente perigoso. Uma deformação que nada tem de extracotidiana, que não raro é positivamente valorada e, assim, legitimada nos meios intelectuais: o radicalismo, fenômeno ao qual Plessner dedicou algumas páginas notáveis nos primeiros anos da República de Weimar. “O característico do radicalismo é a falta de prudência, sua perspectiva é a infinitude, seu pathos o entusiasmo, seu temperamento o ardor”. Dualismo cego e orgulhoso de sua cegueira, ele significa “a aniquilação da realidade dada em nome da ideia, seja racional, seja irracional” (Plessner, 2012, p. 31, 35).

Resta evidente que tais dúvidas, como outras que possam surgir de um escrutínio rigoroso do livro de Plessner, tendem antes a confirmar o caráter indiscutivelmente aberto de todas as perguntas que digam respeito ao humano, a impossibilidade de chegarem a seu termo, enfim: sua Unergründlichkeit. Uma das virtudes inegáveis da antropologia filosófica de Plessner, à medida que admite a ambiguidade constitutiva do ser humano, está em trilhar um caminho intermediário, ou antes conciliador, entre extremos. Não há por que optar entre universalismo e perspectivismo, seja este ameríndio ou não. Diante do atual esgotamento teórico e político da tendência pós-estruturalista à sobrevalorização da linguagem e do “anything goes”, diante dos riscos representados tanto pelas ambições desmedidas da neurociência quanto pelo assim chamado pós-humanismo, a senda aberta por Poder e natureza humana mantém-se, como poucas antes e depois dela, teoricamente robusta e intelectualmente produtiva.




REFERÊNCIAS



GROSSHEIM, Michael. Inspirierende Irritation: die Bedeutung der Anthropologie Helmuth Plessners für das Denken Martin Heideggers. Deutsche Zeit­schrift für Philosophie (Jena). v. 66, n. 4, p. 507-531, 2018. [ Links ]

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2014. [ Links ]

OTT, Konrad. “Man muss sich einschalten”: wie Plessner Heidegger aufforderte, politisch aktiv zu werden. Zeitschrift für philosophische Forschung(Frankfurt am Main). v. 66, n. 3, p. 448-459, 2012. [ Links ]

PEIRANO, Mariza. Antropologia política, ciência política e antropologia da política. In: PEIRANO, Mariza. Três ensaios breves. Brasília: UnB, Série Antropologia n. 230, 1998, p. 17-29. [ Links ]

PLESSNER, Helmuth. Die Stufen des Organischen und der Mensch. Berlin: Walter de Gruyter, 1975. [ Links ]

PLESSNER, Helmuth. O problema da monstruosidade. Artefilosofia(Ouro Preto).v. 7, p. 145-151, 2009. [ Links ]

PLESSNER, Helmuth. Límites de la comunidad: crítica al radicalismo social. Madrid: Siruela, 2012. [ Links ]

PLESSNER, Helmuth. Poder y naturaleza humana: ensayo para una antropología de la comprensión histórica del mundo. Edición de Kilian Lavernia y Roberto Navarrete. Traducción de Kilian Lavernia. Madrid: Guillermo Escolar Editor, 2018. [ Links ]

SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen: synoptische Darstellung der Texte. Berlin: Duncker und Humblot, 2018. [ Links ]
Revista Tempo - UFF

História & Ensino de História




Resenhas História do ensino de História no Brasil: uma retomada plural*

Helenice Aparecida Bastos Rocha

Professora das séries iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II; professora-assistente do DCH da FFP/UERJ; doutoranda do PPGE/UFF. E-mail: helenicerocha@uol.com.br


Thais Nivia de Lima e Fonseca, História & Ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2003, 120 p.

História & Ensino de História é o sexto livro da coleção História & Reflexões, da Editora Autêntica, lançado em 2003. Apesar do intervalo entre seu lançamento e a apresentação desta resenha, a obra mantém-se atual por sua qualidade, temática e contribuição à ampla área constituída pela História da Educação, ensino e história do ensino de História. O texto conciso consegue descortinar parte importante da problemática da história do ensino de História no Brasil e trata do tema apresentando o percurso da História como disciplina escolar e sua realização como pesquisa até as últimas décadas do século XX. Por conseguinte, sua leitura é de interesse do amplo público formado por professores e pesquisadores da área.

O acerto do empreendimento somente seria possível a alguém que conhecesse bem o território a ser desvendado. Thais Nivia de Lima e Fonseca, pesquisadora em História da Educação da UFMG, participa de projetos sobre práticas culturais e educativas em diversos períodos, especialmente o colonial. O resultado de suas pesquisas contribui para o adensamento do texto com documentos e sua análise. Na escrita do livro, transita no território interdisciplinar da pesquisa em História e em Educação, cuidando de fontes documentais e preocupando-se com a mediação cultural, seja na escola ou fora dela. A amplitude de sua inserção está indicada no diálogo com um amplo leque de referências bibliográficas.

O livro se divide em quatro capítulos. Já na introdução, Thais anuncia que o ensino de História se insere na problemática da disciplinarização dos conhecimentos, podendo ser abordado a partir de diversos ângulos, o que vai realizar privilegiando a dimensão histórica.

No primeiro capítulo, a autora define a disciplina escolar a partir de referencial amplo e contemporâneo. Esclarece que não irá em busca de "genealogias enganosas" para o ensino de História, endossando advertência de Dominique Julia.1 Procura mostrar que, ao longo do século XX, os estudos sobre as disciplinas escolares estiveram demarcados ora pela Sociologia, ora pela História da Educação. Ainda evidencia a importância da noção de transposição didática aplicada à disciplina escolar História a partir de diversos autores, mostrando pontos de convergência e divergência entre eles. A importância deste saber ou conhecimento histórico escolar específico, que não se confunde com o saber acadêmico, vai orientar o percurso da autora ao longo da obra.

Na breve visão panorâmica acerca dos trabalhos sobre as disciplinas escolares até a década de 1970, há um registro que merece funcionar como alerta para os pesquisadores do ensino de História. É a tendência a enxergar a instituição escolar, as políticas educacionais e o pensamento pedagógico como contextos explicativos privilegiados para os conteúdos e os métodos ensinados nas escolas. A autora diagnostica este movimento vinculado a uma tradição historiográfica que via o Estado como o centro do processo histórico. Sua afirmação nos pode alertar para análises das disciplinas pautadas principalmente ou apenas nas formulações curriculares, em função dos pressupostos pedagógicos ou de políticas públicas.

Na segunda metade deste capítulo, começa a se desenvolver efetivamente a história do ensino da História. Neste sentido, a obra aprofunda o que é apresentado em algumas outras, como no antológico texto de Elza Nadai2 ou nos Parâmetros Curriculares Nacionais.3 Mostra que, na longa duração, a trajetória da História ensinada nas escolas não cor-responde necessariamente à da História como campo do conhecimento, já que a história sagrada e de caráter providencialista ocupou lugar significativo inicialmente nas escolas.

Na seqüência, o texto incorre em um movimento comum às obras do gênero: atribui à história do ensino de História da França um espaço maior do que possivelmente ocupa, ou seja, generaliza para um todo indistinto, europeu talvez, aquilo que é conhecido para esta história, exaustivamente estudada. Diversas pesquisas históricas, como as da própria autora, começam a evidenciar que, na América colonial portuguesa, as coisas não se passaram tal como François Furet afirma em A Oficina da História.4 Estas pesquisas indicam que é mais provocador apontar onde há lacunas ou levantar hipóteses relativas ao ensino da História no Brasil Colonial que assumir para este espaço/tempo uma história por extensão à da França moderna.

No segundo capítulo, a obra analisará a coerência entre as tendências apresentadas anteriormente e as pesquisas atuais sobre o ensino de História, concluindo que elas vêm privilegiando um curto recuo temporal. A maior parte dos estudos (em teses, livros e capítulos) se volta para currículos e programas atuais ou recuados no máximo ao período Vargas, e os confronta com a produção historiográfica, estabelecendo um valor relativo para este ensino.

Por conseguinte, a autora avalia que um enfoque histórico sobre o ensino de História é minoritário nos estudos e nas pesquisas e que muitos deles se sustentam fragilmente nas referências teórico-metodológicas contemporâneas, articulando estas referências de maneira vaga ou contraditória. Nesta crítica, é possível inferir uma contribuição da autora às pesquisas que se constroem no limiar da educação e da história. Para além dos problemas de consistência entre os referenciais teórico-metodológicos e a obra apresentada, os textos que tratam da justaposição ou da oposição entre ensino de História e historiografia muitas vezes produzem um efeito secundário: fortalecem um fosso simbólico entre a produção acadêmica e a escolar. Estabelecem, muitas vezes, sem pesquisar no campo da escola e da sala de aula, como ocorrem as práticas, determinando no discurso e no confronto com a historiografia uma prática inventada na teoria e ignorando que elas precisam ser conhecidas de fato e em sua historicidade.

No capítulo III, a pesquisadora vai tratar do ensino de História no Brasil. Nele, o texto vai coincidir em alguns aspectos com a produção existente, como já citado. Entretanto, busca ir além. Procura pincelar os traços de uma educação escolar antes do século XIX, indo em busca do que se aproximaria, àquela época, de um ensino de História. Sua análise de fontes do período pombalino contribui com a história do ensino da História já mais conhecida. O espaço entre os séculos XVIII e XIX apresenta lacunas que não são da obra e sim da pesquisa da área, ainda a ser feita. A autora procura preencher este espaço com dados contextuais e uma análise que interpreta o pensamento social relativo à educação escolar; como exemplo, a relação que estabelece entre o movimento intelectual do século XIX e a escravidão. Este é um dos territórios abertos ao interesse de pesquisas futuras.

A partir dos anos 30 do século XIX, o texto da autora muito contribui para o que está posto em circulação sobre o tema. Seu texto aprofunda a trilha já aberta, mergulhando em fontes diversas e determinando interessantes relações em livros didáticos como em materiais de ensino, textos de apresentação dos mesmos e a legislação pertinente. Quando chega ao XX, no regime militar, o texto consegue elaborar uma alternativa à apresentação de uma época de ouro anterior a este período de nossa história. Entretanto, chega ao limite do problema apontado pela autora no início do livro. Refiro-me à tendência a apresentar as políticas educacionais e o pensamento pedagógico como única origem para os conteúdos e os métodos ensinados nas escolas. Certamente, havia um Estado autoritário, mas ele não era o único centro do processo histórico de que o ensino de História fazia parte.

Assim, àquela época, o currículo e a legislação que interessavam ao regime militar impunham uma visão de sociedade harmoniosa. Com alguma semelhança, no que se refere à ambição de transformação através de instâncias centrais, os PCNs hoje propõem a formação de uma identidade sem muitos conflitos. E o ensino de História acontece na prática, em planos que se articulam mais ou menos a ideários ou ideologias presentes em propostas curriculares ou legislações de diferentes tempos. Basta perguntarmos a professores que realizam este ensino, como algumas pesquisas já têm feito, a respeito de pelo menos duas dimensões da realidade social: seu conhecimento sobre os documentos oficiais e o uso ou apropriação que conferem às orientações destes documentos. Não é fato novo a apropriação seletiva de orientações didático-pedagógicas, conforme indicam pesquisas da educação.

Caminhando para o final do século XX, a obra aponta a década de 1980 como o momento de elaboração de propostas curriculares ao nível estadual ou municipal, passando a analisar o programa curricular implantado em Minas Gerais, que seria considerado como síntese de expectativas por um ensino de História democrático e participativo. A autora problematiza como as mudanças trazidas pelo modelo mineiro, concretizadas nos livros e na apropriação de professores, substituiu uma teleologia da história por outra, de orientação marxista. A partir desta mudança, a disciplina escolar História teria acabado sem fato e sem sujeito, com categorias por demais abstratas.

Ao final deste capítulo, somos brindados com uma análise ancorada na História Cultural, contribuição da trajetória de pesquisas da autora. Thais articula a análise de livros e festas cívicas, em torno do tema da Inconfidência Mineira e de seu principal herói no imaginário coletivo, Tiradentes. Em período determinado, a autora mostra como as características do evento e do herói variam e até se deslocam de um pólo ao outro, de acordo com o seu ajuste ao interesse de conformação de certa imagem da nação e de seu povo.

De forma semelhante, no último capítulo, Thais faz um exercício de análise a partir do tema da escravidão entre os séculos XVI e XIX. Agora, seu objetivo "é averiguar as formas de apropriação do conhecimento histórico e suas permanências na memória coletiva, por meio de representações reconhecidas como verdades históricas comprovadas". Iniciando pela revisão historiográfica do final do século XX sobre o tema, a autora avalia como limitada a assimilação desta revisão pelo ensino. Realiza então um exame das fontes em livros didáticos do século relativos ao tema, evidenciando a permanência de concepções nas obras e na memória de ex-estudantes. Conclui pela validade de empreendimentos desta natureza em relação a outros temas, períodos e inclusive mídias, assim como registra o efeito de novelas de época na memória de depoentes das pesquisas citadas.

História & Ensino de História extrapola seu título e seu tamanho, passeando por aspectos do ensino de História e de sua pesquisa. Há uma contribuição adicional presente no conjunto da obra: o uso de temas mineiros em seus exemplos e análises, como a Inconfidência e os documentos de época, de um lado, e a análise da proposta curricular de Minas Gerais, de outro. Tendo em vista a concentração de publicações sobre o tema do ensino no pólo Rio de Janeiro–São Paulo, o surgimento de livros de qualidade a partir de outras regiões ou pólos anuncia um bom recomeço para a escrita da história do ensino de História em nosso país. Anuncia uma história que pode ser reescrita de uma perspectiva plural, portanto, mais complexa.

*Resenha recebida em abril de 2006 e aprovada para publicação em junho de 2006.

1 Dominique Julia. "Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação", Alice Casemiro Lopes & Elizabeth Macedo (orgs.), Disciplinas e integração curricular: história e políticas, Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p.37-71.
2 Elza Nadai, "O Ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva", Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, São Paulo, 1993.
3 Brasil, Secretaria de Educação fundamental, Parâmetros Curriculares Nacionais: história/ SEF –Brasília, MEC/SEF, 1998.
4 François Furet, A oficina da História, Lisboa, Gradiva, s/d.
Revista Tempo - UFF