História do Brasil guloso
Claude G. Papavero
Doutoranda em Antropologia Social no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP
História da Alimentação no Brasil. Luís da Câmara Cascudo. Global, 2004.
A reedição recente da: História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, trouxe de volta às prateleiras das livrarias uma obra pioneira sobre o tema da formação de uma dieta alimentar brasileira. Trata-se de uma análise das práticas alimentares dos povos que formaram o Brasil, leitura obrigatória para estudiosos interessados no surgimento de uma identidade cultural brasileira em terras do Novo Mundo.
Em seu estudo inaugural sobre a evolução de um jeito brasileiro de comer e viver, escrito entre 1962 e 1963 e publicado em 1967/ 1968 (contemporâneo, portanto, dos esforços de Fernand Braudel para incentivar as investigações históricas sobre manejos alimentares ilustrando condições de vida material associadas às representações sociais1), Câmara Cascudo, nascido em 1898, no Rio Grande do Norte, formado durante os anos 20 do século XX, e escritor ativo até meados dos anos 70, delineou os parâmetros brasileiros do novo campo de estudo.
Na primeira parte da obra prevalece um enfoque de cunho histórico. O famoso ensaio do naturalista von Martius2, escrito em 1844 para o concurso da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, serve de referência à organização dos dados. Recorrer ao tema das três raças formadoras da nacionalidade brasileira permitiu ao autor fundamentar a discussão do processo de elaboração de um paladar brasileiro a partir de uma seleção local de gêneros comestíveis e de hábitos alimentares tomados por empréstimo a diferentes etnias. Em três capítulos distintos: Cardápio indígena, Dieta africana e Ementa portuguesa, Câmara Cascudo examina, portanto, a fusão de usos e costumes que gerou uma sociedade mestiça.
Na segunda parte da obra o autor focaliza diversos aspectos da culinária brasileira, privilegiando um olhar sincrônico, sociológico. Contudo, a consciência da temporalidade dos hábitos de consumo nunca deixa de marcar presença ao longo da argumentação. Evidencia uma erudição invejável. O autor recorreu a enorme acervo bibliográfico de fontes primárias e secundárias para fundamentar seu estudo. Entrelaçou depoimentos de cronistas portugueses dos séculos XVI, XVII, e XVIII, descrições de viajantes europeus do século XIX, observações de pioneiros dos estudos etnológicos ou históricos e análises de americanistas. Causa impacto também, na leitura da obra, a versatilidade de seu conhecimento de campo. Entrevistou inúmeros informantes de diversas condições sociais: pescadores, filhos de ex-escravos, senhores de engenho e suas esposas.
Os primeiros capítulos desvendam temas coordenados: sociologia da alimentação, elementos básicos, técnicas culinárias e ritmo da refeição. Em seguida, o estudioso aborda um leque multifacetado de questões atreladas aos procedimentos alimentares. Parece ter se deixado guiar antes pela rica experiência de vida e pelo conhecimento dos significados sociais atribuídos aos hábitos alimentares, do que pela metodologia científica de seu tempo. A análise se desdobra entre diversos temas indiretamente correlacionados e a tarefa complexa de compor um panorama das práticas de nutrição brasileiras, escalonadas ao longo de diversos tempos e lugares, resulta numa obra um tanto heterogênea.
Por exemplo, no primeiro encontro entre portugueses e ameríndios em Porto Seguro, relatado por Pero Vaz Caminha, Câmara Cascudo apenas descreve a ementa oferecida aos índios que visitaram a nau de Cabral. Não comenta de forma crítica as reações dos indígenas frente aos alimentos estranhos. Certos usos alimentares derivados de preceitos de medicina hipocrática são apresentados como sobrevivência de superstições. E ainda, há os dados coligidos sobre alguns gêneros comestíveis importantes, que voltam à tona em diversos momentos da análise, diluídos no contexto de diferentes capítulos, o autor esquivando-se de aglutinar informações. Mas, paradoxalmente, tais recorrências, que poderiam lhe ser imputadas como falhas, atestam seu conhecimento dos critérios de manejo dos ingredientes. O lugar esparso, que os principais gêneros comestíveis ocupam no livro, sublinha a importância das conexões nativas existentes entre os diversos códigos de conduta social, configurando em conjunto as formas de consumo. O viés descritivo da redação encobre, assim, uma percepção etnográfica aguda das lógicas, que norteiam os procedimentos, e muitos fatos interessantes surgem nas entrelinhas, como no caso da presença discreta do feijão no cardápio colonial dos primeiros séculos, se afirmando posteriormente como alimento predileto. É, portanto, necessário debulhar o texto atentamente.
Talvez tenha sido esta peculiar associação de descrições particulares e de valores culturais, marcante na escrita de Câmara Cascudo, que incentivou José Reginaldo Santos Gonçalves a enfatizar o caráter etnográfico da escrita dotada de forte viés nativo3. O estudioso afirma: "Não por acaso, Cascudo jamais veio a ser reconhecido como um "cientista social" em sentido estrito. Ainda que fosse um folclorista reconhecido nacional e internacionalmente, sempre ocupou uma posição marginal no sistema acadêmico brasileiro". Mais adiante, Gonçalves acrescenta: "Em seus escritos etnográficos, é possível reconhecer não o clássico "eu estive lá" dos antropólogos sociais ingleses e dos antropólogos culturais norte-americanos, mas alternativamente, o "eu sempre estive aqui", próprio do etnógrafo nativo".
De fato, a perspectiva analítica de Câmara Cascudo se aproxima muito das teias de significações que os homens tecem e nas quais enredam suas vidas, de Clifford Geertz4, com significados anotados em campo e descritos em textos "densos" por observadores que "estiveram lá". Na medida em que a obra de Geertz prolonga a metodologia culturalista de Boas e de discípulos como Robert Lowie ou Margareth Mead citados por Câmara Cascudo, o comentário procede. Porém, curiosamente, além de promover um estudo culturalista da alimentação brasileira, centrado nas peculiaridades do sistema instituído e de considerá-lo por um prisma difusionista apropriado a incorporações de práticas alimentares herdadas de diversos povos, há algo que prevalece na abordagem dos temas: é a intuição de Câmara Cascudo, que parece antecipar o uso atual dos conceitos de "fato social total" e de "homem total" de Marcel Mauss5 nas análises de fenômenos alimentares (perspectiva analítica recente de antropólogos da alimentação como Claude Fischler6). Com efeito, Mauss, etnólogo pouco lido no Brasil, antes de Lévi-Strauss reivindicá-lo como precursor do estruturalismo, mesmo sem ser citado, se faz quase presente na História da alimentação no Brasil, quando Câmara Cascudo ressalta a importância do ponto de vista sociológico para a constituição de regras sociais, modelando formas de satisfazer a fome fisiológica, e repercutindo na manutenção ou na transformação dos hábitos culinários. Vale a pena escutá-lo quando declara:
"A Fome em si mesma determina um complexo sociológico, político, econômico, artístico, literário, lírico, pictórico, sem modificação no próprio status carencial que pertence aos problemas da nutrição, suficiente e racional. Um sistema de círculos concêntricos amplia a projeção dessa "consciência", articulando-a a todos os corpos doutrinados decorrentes das necessidades imediatas e naturais do homem"7.
Entremeando, pois, princípios de sociologia, de fisiologia e de psicologia, o folclorista "marginal no sistema acadêmico brasileiro", mais parece afinal um precursor sem instrumental teórico para fazer valer seu profundo conhecimento do objeto de estudo. Mas consegue, a despeito das limitações da metodologia disponível, delinear em seus escritos os modos brasileiros e nordestinos de ser à mesa e à vida, compondo uma obra de leitura agradável, que permanece atual e merece ser lida, saboreada e assimilada.
1 No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores ar No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores artigos sobre o tema da alimentação e incluiu alguns ensaios em cada número da Revista das Annales publicado durante aquela década.
2 Schwarcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças São Paulo, Companhia das Letras, 2000. p. 112.
3 Gonçalves, José Reginaldo Santos. "A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luís da Câmara Cascudo", Estudos Históricos, Vol. Alimentação, 33, pp. 40-55, Janeiro/ Junho, Rio de Janeiro, Fundação G. V., 2004.
4 Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas, LTC, Rio de Janeiro, 1989.
5 Mauss, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas sociedades arcaïcas" e "As técnicas do corpo", Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
6 Fischler, Claude. L'Homnivore, Paris, Poche, Odile Jacob, 2001.
7 Cascudo, Luís da Câmara. Op. Cit., p. 342.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Claude G. Papavero
Doutoranda em Antropologia Social no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP
História da Alimentação no Brasil. Luís da Câmara Cascudo. Global, 2004.
A reedição recente da: História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, trouxe de volta às prateleiras das livrarias uma obra pioneira sobre o tema da formação de uma dieta alimentar brasileira. Trata-se de uma análise das práticas alimentares dos povos que formaram o Brasil, leitura obrigatória para estudiosos interessados no surgimento de uma identidade cultural brasileira em terras do Novo Mundo.
Em seu estudo inaugural sobre a evolução de um jeito brasileiro de comer e viver, escrito entre 1962 e 1963 e publicado em 1967/ 1968 (contemporâneo, portanto, dos esforços de Fernand Braudel para incentivar as investigações históricas sobre manejos alimentares ilustrando condições de vida material associadas às representações sociais1), Câmara Cascudo, nascido em 1898, no Rio Grande do Norte, formado durante os anos 20 do século XX, e escritor ativo até meados dos anos 70, delineou os parâmetros brasileiros do novo campo de estudo.
Na primeira parte da obra prevalece um enfoque de cunho histórico. O famoso ensaio do naturalista von Martius2, escrito em 1844 para o concurso da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, serve de referência à organização dos dados. Recorrer ao tema das três raças formadoras da nacionalidade brasileira permitiu ao autor fundamentar a discussão do processo de elaboração de um paladar brasileiro a partir de uma seleção local de gêneros comestíveis e de hábitos alimentares tomados por empréstimo a diferentes etnias. Em três capítulos distintos: Cardápio indígena, Dieta africana e Ementa portuguesa, Câmara Cascudo examina, portanto, a fusão de usos e costumes que gerou uma sociedade mestiça.
Na segunda parte da obra o autor focaliza diversos aspectos da culinária brasileira, privilegiando um olhar sincrônico, sociológico. Contudo, a consciência da temporalidade dos hábitos de consumo nunca deixa de marcar presença ao longo da argumentação. Evidencia uma erudição invejável. O autor recorreu a enorme acervo bibliográfico de fontes primárias e secundárias para fundamentar seu estudo. Entrelaçou depoimentos de cronistas portugueses dos séculos XVI, XVII, e XVIII, descrições de viajantes europeus do século XIX, observações de pioneiros dos estudos etnológicos ou históricos e análises de americanistas. Causa impacto também, na leitura da obra, a versatilidade de seu conhecimento de campo. Entrevistou inúmeros informantes de diversas condições sociais: pescadores, filhos de ex-escravos, senhores de engenho e suas esposas.
Os primeiros capítulos desvendam temas coordenados: sociologia da alimentação, elementos básicos, técnicas culinárias e ritmo da refeição. Em seguida, o estudioso aborda um leque multifacetado de questões atreladas aos procedimentos alimentares. Parece ter se deixado guiar antes pela rica experiência de vida e pelo conhecimento dos significados sociais atribuídos aos hábitos alimentares, do que pela metodologia científica de seu tempo. A análise se desdobra entre diversos temas indiretamente correlacionados e a tarefa complexa de compor um panorama das práticas de nutrição brasileiras, escalonadas ao longo de diversos tempos e lugares, resulta numa obra um tanto heterogênea.
Por exemplo, no primeiro encontro entre portugueses e ameríndios em Porto Seguro, relatado por Pero Vaz Caminha, Câmara Cascudo apenas descreve a ementa oferecida aos índios que visitaram a nau de Cabral. Não comenta de forma crítica as reações dos indígenas frente aos alimentos estranhos. Certos usos alimentares derivados de preceitos de medicina hipocrática são apresentados como sobrevivência de superstições. E ainda, há os dados coligidos sobre alguns gêneros comestíveis importantes, que voltam à tona em diversos momentos da análise, diluídos no contexto de diferentes capítulos, o autor esquivando-se de aglutinar informações. Mas, paradoxalmente, tais recorrências, que poderiam lhe ser imputadas como falhas, atestam seu conhecimento dos critérios de manejo dos ingredientes. O lugar esparso, que os principais gêneros comestíveis ocupam no livro, sublinha a importância das conexões nativas existentes entre os diversos códigos de conduta social, configurando em conjunto as formas de consumo. O viés descritivo da redação encobre, assim, uma percepção etnográfica aguda das lógicas, que norteiam os procedimentos, e muitos fatos interessantes surgem nas entrelinhas, como no caso da presença discreta do feijão no cardápio colonial dos primeiros séculos, se afirmando posteriormente como alimento predileto. É, portanto, necessário debulhar o texto atentamente.
Talvez tenha sido esta peculiar associação de descrições particulares e de valores culturais, marcante na escrita de Câmara Cascudo, que incentivou José Reginaldo Santos Gonçalves a enfatizar o caráter etnográfico da escrita dotada de forte viés nativo3. O estudioso afirma: "Não por acaso, Cascudo jamais veio a ser reconhecido como um "cientista social" em sentido estrito. Ainda que fosse um folclorista reconhecido nacional e internacionalmente, sempre ocupou uma posição marginal no sistema acadêmico brasileiro". Mais adiante, Gonçalves acrescenta: "Em seus escritos etnográficos, é possível reconhecer não o clássico "eu estive lá" dos antropólogos sociais ingleses e dos antropólogos culturais norte-americanos, mas alternativamente, o "eu sempre estive aqui", próprio do etnógrafo nativo".
De fato, a perspectiva analítica de Câmara Cascudo se aproxima muito das teias de significações que os homens tecem e nas quais enredam suas vidas, de Clifford Geertz4, com significados anotados em campo e descritos em textos "densos" por observadores que "estiveram lá". Na medida em que a obra de Geertz prolonga a metodologia culturalista de Boas e de discípulos como Robert Lowie ou Margareth Mead citados por Câmara Cascudo, o comentário procede. Porém, curiosamente, além de promover um estudo culturalista da alimentação brasileira, centrado nas peculiaridades do sistema instituído e de considerá-lo por um prisma difusionista apropriado a incorporações de práticas alimentares herdadas de diversos povos, há algo que prevalece na abordagem dos temas: é a intuição de Câmara Cascudo, que parece antecipar o uso atual dos conceitos de "fato social total" e de "homem total" de Marcel Mauss5 nas análises de fenômenos alimentares (perspectiva analítica recente de antropólogos da alimentação como Claude Fischler6). Com efeito, Mauss, etnólogo pouco lido no Brasil, antes de Lévi-Strauss reivindicá-lo como precursor do estruturalismo, mesmo sem ser citado, se faz quase presente na História da alimentação no Brasil, quando Câmara Cascudo ressalta a importância do ponto de vista sociológico para a constituição de regras sociais, modelando formas de satisfazer a fome fisiológica, e repercutindo na manutenção ou na transformação dos hábitos culinários. Vale a pena escutá-lo quando declara:
"A Fome em si mesma determina um complexo sociológico, político, econômico, artístico, literário, lírico, pictórico, sem modificação no próprio status carencial que pertence aos problemas da nutrição, suficiente e racional. Um sistema de círculos concêntricos amplia a projeção dessa "consciência", articulando-a a todos os corpos doutrinados decorrentes das necessidades imediatas e naturais do homem"7.
Entremeando, pois, princípios de sociologia, de fisiologia e de psicologia, o folclorista "marginal no sistema acadêmico brasileiro", mais parece afinal um precursor sem instrumental teórico para fazer valer seu profundo conhecimento do objeto de estudo. Mas consegue, a despeito das limitações da metodologia disponível, delinear em seus escritos os modos brasileiros e nordestinos de ser à mesa e à vida, compondo uma obra de leitura agradável, que permanece atual e merece ser lida, saboreada e assimilada.
1 No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores ar No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores artigos sobre o tema da alimentação e incluiu alguns ensaios em cada número da Revista das Annales publicado durante aquela década.
2 Schwarcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças São Paulo, Companhia das Letras, 2000. p. 112.
3 Gonçalves, José Reginaldo Santos. "A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luís da Câmara Cascudo", Estudos Históricos, Vol. Alimentação, 33, pp. 40-55, Janeiro/ Junho, Rio de Janeiro, Fundação G. V., 2004.
4 Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas, LTC, Rio de Janeiro, 1989.
5 Mauss, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas sociedades arcaïcas" e "As técnicas do corpo", Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
6 Fischler, Claude. L'Homnivore, Paris, Poche, Odile Jacob, 2001.
7 Cascudo, Luís da Câmara. Op. Cit., p. 342.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Um comentário:
Muito interessante sua resenha!
Estamos estudando este livro em nosso curso de Gastronomia, tens ele disponível em PDF?
Postar um comentário