sábado, 31 de janeiro de 2009

A POESIA DE BRECHT E A HISTÓRIA - LEANDRO KONDER


O fácil tão difícil de se fazer

Marcus Mazzari
LEANDRO KONDER

Entre as grandes obras líricas do século 20, a de Bertolt Brecht, nascido em 1898, é possivelmente aquela que com mais intensidade se defrontou com a história dessa "era dos extremos". A Primeira Guerra Mundial, marcando sua estréia literária, inspira-lhe o pacifismo que tomou forma antológica na balada expressionista "Lenda do Soldado Morto", a qual lhe valeu o honroso 5º lugar numa "lista negra" preparada em 1923 pelos adeptos de Hitler. Ao acirramento dos conflitos ideológicos, no decorrer dos anos 20, sua poesia reage com a adesão crescente ao marxismo e, em consequência, ao movimento comunista. Depois, ao longo de 12 anos, têm-se os poemas que tematizam as angústias e esperanças do exilado obcecado com a resistência ao nazismo e que acompanha, de maneira exasperada, os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial; e, por fim, o retorno em 1948 à Alemanha dividida, seguido do engajamento na construção de um estado socialista.
Essas as experiências históricas moduladas em sons e ritmos, plasmadas em imagens de força inexaurível, de tal forma que Adorno, no mais votando tão pouca simpatia ao homem Brecht, menciona o seu nome, na "conferência sobre lírica e sociedade", como sendo o do "lírico contemplado com a integridade da linguagem, sem que para isso tenha rendido tributo ao esotérico". Poemas mais longos, de cunho narrativo, como o dedicado "Aos que Vão Nascer" ou a "Lao-Tsé a Caminho da Emigração", ilustram esse juízo, mas também aqueles poemas em que sentimento e reflexão (que em Brecht jamais se separam) adensam-se na mesma proporção em que a linguagem se despoja, como em "Percepção", de 1949: "Quando eu retornei/ O meu cabelo ainda não estava grisalho/ Então fiquei contente.// Os esforços das montanhas ficam atrás de nós/ Diante de nós ficam os esforços das planícies".
Portanto, a proposta de enfocar a poesia de Brecht e a história estará adentrando em terreno dos mais fecundos, em vista tanto de uma obra que se universalizou pela sua dimensão estética como de acontecimentos vivenciados com paixão no mundo todo. Consciente do risco de rebaixar a poesia brechtiana à condição de mero documento da história, Leandro Konder postula de imediato a necessidade de atentar para a especificidade dessa linguagem, "a força das suas imagens, de seus recursos rítmicos, da sua sonoridade, das suas metáforas". Isso o leva a apresentar traduções próprias dos versos citados (uma vez que traduzir significa também interpretar), mas seguidas do texto original, para que o leitor possa acompanhar as opções do tradutor e, eventualmente, "divergir" de suas propostas.
Se algumas opções passíveis de discussão podem justificar-se pelos critérios assumidos, há um ou outro "cochilo" indiscutível: a palavra "Adler", por exemplo, na estrofe abaixo (que faz parte da peça didática "Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas") é traduzida por "nobres", o que parece decorrer da semelhança com o adjetivo "adlig" e o substantivo "Adel", nobreza; o correto, porém, é "águias", o que também faz mais sentido no contexto de analogias zoomórficas: "Já tivemos muitos amos:/ Amos-tigres, amos-hienas/ Águias e porcos-dezenas!/ E a todos alimentamos./ Seus coturnos? Quem viu um/ Viu todos... Não comparamos./ Não queremos novos amos: Não queremos amo algum!".
Caberia observar aqui que Konder recorre não poucas vezes a versos inseridos nas peças teatrais. Acontece, porém, que não é nesse contexto que a expressão lírica alcança suas maiores realizações. Pois atrelada mais diretamente ao projeto de conscientização política, em especial nas peças didáticas, a poesia brechtiana perde o tom reflexivo e contido que atravessa os seus grandes símbolos, alija-se muitas vezes das qualidades estéticas que Konder enfatiza na "Introdução" e se propõe a considerar em sua especificidade. Concretizar essa proposta implicaria certo aprofundamento crítico na estrutura linguística dos poemas escolhidos (e que fosse mediante as opções da tradução), a elucidação, ainda que parcial, dos procedimentos que criam poesia tão forte e complexa a partir de meios aparentemente tão simples (não teríamos aqui, também, "o fácil tão difícil de se fazer", como o poeta diz no "elogio do comunismo"?).
A "integridade" lírica de Brecht se evidenciaria numa análise mais detida de um poema como "Tudo Se Transforma", comentado apenas em linhas gerais; ou então -rompendo a relação direta com a história- "Recordação de Marie A.", que Brecht escreveu aos 22 anos e em sua dialética de lembrança e esquecimento (o rosto da amada esgarçado na memória e a evocação intensa de uma nuvem que "floresceu" apenas por breve instante) é considerado um dos mais belos poemas de amor em língua alemã. A análise imanente poderia ainda revelar ao leitor brasileiro algo mais da canção "Jenny dos Piratas", que Ernst Bloch não se cansava de admirar, enxergando nela, como relata o próprio Konder, uma mescla de "ambiente de alegre restaurante ordinário com algo do clima de uma solene catedral", mescla na qual "os temas jazzísticos jocosos combinam com um "ritmo em quatro tempos, que se transforma -tão facilmente- em marcha fúnebre'±".
Infelizmente, porém, o estudo de Konder esquece-se muitas vezes da proposta explicitada de início, limitando-se a comentários que convertem a lírica brechtiana em notas de rodapé de uma história de vida em si admirável (a despeito de suas contradições), pois marcada pela solidariedade incondicional com os "de baixo" e empenhada ao mesmo tempo na construção de um mundo em que se possa ir tão longe -como formulado no tom elegíaco do poema "Aos que Vão Nascer"-, "a ponto de o homem ser um apoio para o próprio homem".
Contudo, mesmo sem aprofundar-se na dimensão estética da lírica de Brecht, o livro de Konder não deixa de ser uma boa introdução (sobretudo para um público jovem) ao tema explicitado no título. Mais ainda: contextualizando essa poesia nos embates de seu tempo, Konder contrapõe-se a muitas simplificações grosseiras que escamoteiam as circunstâncias históricas que levaram milhares de pessoas a engajar-se na causa comunista. Essa abordagem da trajetória de Brecht busca então sua síntese final na perspectiva esboçada no poema "Perguntas de um Trabalhador que Lê". Assim o autor incorpora ao próprio estudo a postura indagante, inconformista, sempre lúcida, que atravessa toda a obra brechtiana, manifestando-se por fim no tom melancolicamente irônico das "Elegias de Buckow" (1953), que desvendam o descompasso crescente entre as aspirações acalentadas ao longo de toda uma existência e os rumos tomados pelo "primeiro Estado alemão dos operários e camponeses", como dizia o discurso oficial.
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP.

Folha de São Paulo

ENGENHEIRO AARÃO REIS: O PROGRESSO COMO MISSÃO

Racionalização do sonho

Tereza A. P. De Queiroz
HELIANA ANGOTTI SALGUEIRO

Heliana Salgueiro trabalha com a construção material de idéias, com a racionalização do sonho, com a passagem da abstração à matéria. Em vários de seus estudos, examina os sentidos da transferência e da transformação de modelos europeus no Brasil, sobretudo das representações urbanas e arquiteturais francesas nas cidades brasileiras.
Em "Engenheiro Aarão Reis", para detectar o processo imaginário que se traduz concretamente na criação da cidade de Belo Horizonte, a autora vale-se de uma reflexão histórica centrada na biografia intelectual. Mediante a análise pormenorizada das idéias e práticas de Reis, responsável pelo projeto urbanístico da capital mineira, envereda por domínios da história sociocultural. Associa normas e valores coletivos à singularidade de uma formação profissional específica e de suas estratégias na consolidação de um plano, que se revela inteiramente ancorado na historicidade. Logo, reconhece a ação individual, mas sempre em sua interação com o coletivo.

Dentro dos moldes da micro-história italiana e da história sociocultural dos "Annales", H. Salgueiro delineia igualmente o campo de ação mental e prático próprio aos engenheiros politécnicos do século 19; os modelos de racionalização territorial e urbana, o discurso baseado nas necessidades do moderno, do sanitário, da centralização administrativa, de novas redes de comunicação e de embelezamento dos espaços públicos; a preocupação com os "desafios nacionais".
Como ferramenta básica de aprofundamento nas representações, no ideário, na captação da visão da técnica e do progresso no século 19, francês e brasileiro, encontra-se uma ampla documentação escrita e um considerável acervo de imagens. Essas fontes, sobretudo os escritos de Aarão Reis, surgem minuciosamente exploradas no corpo do trabalho. Com muita argúcia, Heliana Salgueiro reconstitui uma epistemologia cultural da profissão de engenheiro.
A questão das transferências culturais é analisada em profundidade, no paradoxo entre o colonialismo cultural -a preponderância das idéias francesas- e o nacionalismo implícito/explícito, por vezes romanticamente exacerbado, dos textos de Reis. Segundo H. Salgueiro, não se trata mais de falar de "influências", "reflexo" ou "derivação" no discurso e na práxis do oitocentismo brasileiro: "A dimensão histórica e as condições locais de leituras e práticas permitem-nos colocar a questão sob o ângulo dinâmico da apropriação, que supõe, na comparação, as diferentes experiências de cada "case study', em termos das competências dos atores sociais e das condições de possibilidade dos contextos em que atuam".
Os interesses de base do engenheiro Reis desvelam o tratamento particularizado de temas gerais característicos do século 19: a instrução pública e profissional, o estudo da eletricidade, das estradas de ferro, do abastecimento de água, da matemática, da geometria, do direito administrativo e da economia política.
No substrato dos textos de Reis situa-se a defesa da civilização industrial, do progresso das cidades, a filosofia de Augusto Comte. Uma opção pessoal por uma luta em prol de uma "missão civilizadora" no Brasil, "do estudo das belas artes sobre as crenças religiosas, a moralidade e as idéias políticas, um ensino profissional (voltado) para as artes mecânicas, o comércio, a indústria e sobretudo para as ciências do engenheiro, o ramo mais importante do ensino". Mas também a busca da brasilidade na ciência, na literatura e na arte, além do mimetismo francês; "a noção de um patriotismo ligado à natureza ou aos elementos da paisagem natural do País"; e igualmente uma inquietação com problemas sociais de distribuição de renda no Brasil.
À maneira dos positivistas, no entanto, Reis vê a política com reservas; acredita que o poder deveria ser exercido pelos sábios, pela moralidade: "Que as preocupações sinceras pelo bem público e pelos reais interesses nacionais sobrepujem as lutas estéreis de paixões ruins (...); é mister, primeiro, que reconstruamos os alicerces do edifício nacional sobre as sólidas bases da ordem material e da disciplina mental". Seu discurso, típico do século 19, ainda pode ser ouvido na boca daqueles que, hoje em dia, se proclamam "modernos" e bradam em prol da "neutralidade" tecnocrática e apolítica. No mesmo registro destes, Reis vê na parceria do Estado com a iniciativa privada uma saída para acelerar o andamento de obras públicas.
O texto de H. Salgueiro, sempre claro e articulado, nos permite uma reflexão sobre os caminhos utópicos do imaginário das elites brasileiras. E suas relações ou distanciamentos com o cotidiano, com as tramas das resistências daqueles que ignoram os sistemas teóricos das racionalidades impostas de cima para baixo. Sobretudo permite vislumbrar o Brasil como sujeito permanente das apropriações possíveis de culturas exóticas, sempre ditas como modernas ou civilizadas. No século 19, da cultura européia, francesa. No século 20, da cultura da globalização.
Tereza Aline Pereira de Queiroz é professora de história da USP.

Folha de São Paulo

PORTUGAL NA ÉPOCA DA RESTAURAÇÃO


O homem barroco português

Evaldo Cabral De Mello
EDUARDO D'OLIVEIRA FRANÇA

Os livros se encantam ou porque nunca chegaram a ser escritos ou porque deixaram de ser publicados. Este último é o caso de "Portugal na Época da Restauração", desencantado por obra e graças de Fernando Novais. Apresentado como tese de cátedra à USP, em 1951, ocasião em que apenas se imprimiram os cem exemplares de praxe, ele permaneceu fora do alcance dos estudiosos durante mais de 40 anos. Eu mesmo procurei-o em vão até em antiquários de Lisboa. Só agora, portanto, pude lê-lo.
Ora, ao contrário das grandes obras literárias, que nem envelhecem nem morrem, os bons livros de história envelhecem, mas não morrem. No quase século e meio transcorrido desde a publicação do ensaio de Burckhardt sobre "A Civilização do Renascimento na Itália", o conhecimento do tema aumentou em proporção geométrica, mas ele continua a ser editado em várias línguas e a ser lido com prazer e proveito. À proporção que o tempo passa, um estudo como o do historiador suíço aproxima-se da grandeza da obra literária. É o que imodestamente tinha em vista Dumézil ao afirmar que, se um dia os especialistas alcançassem a conclusão de que suas análises da cultura indo-européia estavam equivocadas, seria apenas o caso de deslocar seus livros da estante de ciências humanas para a de literatura.
O que procuro dizer é que o longo prazo decorrido entre a redação da tese do professor Oliveira França e a sua publicação, embora tenha naturalmente afetado muitas de suas páginas, não comprometeu sua importância nem sua condição de obra a muitos títulos original e indispensável a quem quer que se aventure pela história luso-brasileira de Seiscentos. Ela comporta, aliás, pioneirismos inegáveis, sobretudo na tentativa de descrever o homem barroco português. Ao fazê-lo, Oliveira França transitava da história cultural para a história das mentalidades, transição que, na época, apenas se esboçava. A própria opção pelo tema da restauração portuguesa revelava uma disposição singular em meio à historiografia brasileira da época, toda voltada para os temas considerados, desde Capistrano, canonicamente nacionais, como se o Brasil tivesse realmente começado em 1500.
Oliveira França tem também o mérito de haver escrito sua tese, quando, em Portugal, onde via de regra o tema só servia para as declamações patrioteiras de 1º de Dezembro, só se dispunha do esclarecedor, mas breve, ensaio de Jaime Cortesão. Desde então e malgrado o aparecimento de estudos valiosos, como "1580 e Restauração", de Vitorino Magalhães-Godinho, e como as investigações relativas à história das idéias políticas do período, ainda não se conta com um estudo de conjunto que seja a contraparte, a oeste, do livro magistral que nos anos 60 J. H. Elliott dedicou à revolta dos catalães. É de esperar que Stuart B. Schwartz cumpra a promessa de escrevê-lo.
A organização de "Portugal na Época da Restauração" é transparente: a uma análise introdutória da cultura do século 17, seguem os estudos do que o autor designa por "o homem da restauração" e das condições materiais e dos ideais políticos do movimento. Quem é este "homem da restauração"? Ele é basicamente a versão lusitana do homem do barroco europeu e peninsular, donde a necessidade da parte introdutória que permitiu ao autor escapar à armadilha de categorias a-históricas, como a de caráter nacional ou de uma irredutível originalidade lusitana "vis-à-vis" da Espanha e da Europa. O português da restauração que o livro nos descreve não é o português em geral, mas o fidalgo; e isto não por opção elitista do historiador, mas em consequência da coincidência historiográfica de que a classe, cuja mentalidade a literatura e a documentação da época dos Filipes permitem aprofundar com exclusão das demais, foi também a grande promotora do movimento autonomista.
Este fidalgo português de Seiscentos é, em primeiro lugar, um indivíduo que foi ruralizado à força pela perda da independência em 1580, que aboliu o papel de corte de Lisboa, transferido para Madri, reduzindo a velha cidade de Ulisses a mera praça comercial. Madri não atraía, contudo, os novos vassalos dos Habsburgo, embora um punhado de membros da alta aristocracia aí se fixassem, inclusive no desempenho de cargos públicos. Ora, sem falar que, na época, a corte exercia o papel fundamental de domesticação da nobreza que constituiu até o século 18 o "sine qua non" da construção de estados monárquicos europeus, a fidalguia lusitana tornara-se há mais de século especialmente dependente dos favores régios sob a forma das oportunidades geradas pela expansão ultramarina.
É certo que havia as "cortes de aldeia", do título da obra coeva de Rodrigues Lobo, inclusive a própria corte do duque de Bragança em Vila Viçosa, a que o professor Oliveira França dedica todo um capítulo; e é certo também que houve as visitas reais de Felipe 2º e Felipe 3º (mas não de Felipe 4º) aos seus domínios lusitanos. Nem umas nem outras eram capazes, contudo, de dissipar a frustração aristocrática. A existência sonolenta nas quintas havia muito pouco a oferecer: o exercício venatório, a música sacra, a leitura de obras religiosas, de história, cavalaria e de poesia, sobretudo épica. Ruralizado, provincianizado, o fidalgo português tornar-se-á um anacronismo ambulante nas idéias e nas modas; e quando, a partir da restauração, afluir maciçamente a Lisboa à procura das benesses da nova dinastia, será o objeto preferencial do escárnio dos cosmopolitas como D. Francisco Manuel de Melo. (O tema do fidalgo ingênuo que sucumbe às tentações da corte ainda servirá a Camilo Castello Branco para escrever "A Queda de Um Anjo").
A inexistência de corte significará a redução drástica das oportunidades materiais ao alcance da nobreza. Arrancar favores em Madri era socialmente penoso e financeiramente oneroso, em vista da grande competição entre os súditos do rei católico oriundos da Espanha e dos domínios da Itália e de Flandres. A carreira das armas fora a vocação histórica da nobreza e a hegemonia castelhana na Europa abria às ambições um largo campo. Mas só poucos nobres portugueses se aproveitaram, inclusive por falta de recursos suficientes com que aviar-se para uma profissão dispendiosa, mal paga e assim mesmo com atraso; o próprio D. Duarte, irmão do duque de Bragança e futuro D. João 4º, desistiu do projeto de servir Felipe 4º, preferindo alistar-se sob a bandeira do seu primo austríaco, o imperador.
Havia o ultramar, cuja administração permanecera portuguesa, oferecendo as oportunidades de lucro lícito e ilícito do comando militar. Mas "os fumos da Índia" dissipavam-se sob o impacto da expansão colonial dos Países Baixos e da Inglaterra e, para o Brasil, apesar da guerra holandesa, seguiam sobretudo homens de extração subalterna, dispostos às tarefas pouco nobres de debelar índios, administrar negros, arrotear sesmarias, fundar canaviais e erguer engenhos de açúcar. As oligarquias ultramarinas tinham origem bem diversa e a atmosfera colonial era, por conseguinte, hostil ao nobre, salvo quando vinha na condição passageira de governador. Com razão, adverte Oliveira França: "Inda não se insistiu o bastante sobre o absenteísmo da fidalguia na colonização".

Outro ponto importante por ele destacado e confirmado por estudos mais recentes é o da porosidade das fronteiras entre a fidalguia e o povo, o que permitia grau razoável de mobilidade social. Contra Oliveira Viana, o autor compreendeu que a ilusão da presença de numerosa fidalguia no Brasil resulta da identificação entre fidalgo e homem bom e que a chamada "nobreza da terra" nada tinha a ver com a nobreza metropolitana, de espada ou toga. E, contudo, foi este nobre português, "herói frustrado", "artificial", "melancólico", que devolveu a seu país a independência alienada 60 anos antes.
Desta empresa ocupa-se a terceira parte da obra, a qual se inicia pela análise da ideologia da restauração, em que se confunde o profetismo, sobretudo na sua versão sebastianista e bandarrista, que a casa de Bragança tratou de instrumentalizar em causa própria, mediante inclusive a retórica de Antônio Vieira. A aclamação de D. João 4º propunha aos juristas do reino uma questão premente de legitimidade, que se resolveu mediante o recurso às concepções contratualistas da escolástica, que tiveram um renascimento vigoroso neste período. A partir deste ponto, o autor amplia o raio da análise para abarcar os movimentos populares que precederam a restauração: as conspirações sebastianistas, os protestos nacionalistas, as revoltas fiscalistas como o motim das Maçarocas no Porto e sobretudo as célebres alterações de Évora (1637), que se frustraram devido à falta de apoio da nobreza, ainda indecisa sobre como reagir à política de liquidação dos particularismos peninsulares levada a cabo pelo valido de Felipe 4º, o conde-duque de Olivares.
Daí que, a despeito do proselitismo dos jesuítas, as camadas subalternas tenham se mantido desconfiadamente à margem do 1º de Dezembro, golpe de Estado asséptico, sem participação popular, sequer a da grande burguesia de cristãos-novos, suspeitas de inclinações castelhanas devido a seu interesse nos circuitos da prata espanhola essencial ao comércio das especiarias. Beneficiada pela proteção dos reis castelhanos, ela olhou inicialmente com reserva a nova dinastia; e a conspiração pró-espanhola de 1641 contou com a colaboração de alguns dos seus membros eminentes. Atitude, porém, que veio a se modificar rapidamente, na medida em que o novo regime logrou obter a simpatia de comunidades sefarditas no exterior e a cooperação da praça de Lisboa, que terá um papel financeiro vital não só no apresto da armada do conde de Vila Pouca de Aguiar, que levantou em 1647 o bloqueio holandês do Recôncavo, mas sobretudo dois anos depois na criação e funcionamento da Companhia Geral de Comércio do Brasil.
Que a publicação de "Portugal na Época da Restauração" desperte o interesse da nova geração de historiadores que se prepara nas universidades para os temas da história portuguesa e hispânica. Tenho a impressão de que, neste particular, o Brasil sofre um déficit alarmante de conhecimento, com o resultado, entre outros, que o estudo da história européia se reduz a uma obrigação tristonhamente curricular, como se fosse tão estranha às nossas vicissitudes quanto a história da China. Para ficarmos no exemplo da restauração portuguesa, ela foi um episódio tão importante para nós quanto para Portugal, entre outras razões, e escuso-me de puxar a brasa para a própria sardinha, pelo fato de ter permitido a insurreição pernambucana contra o domínio holandês em 1645. Sem a independência do reino cinco anos antes, ela não teria sido possível ou não disporia de condições internacionais para vingar. Isto porque, como em 1648 a Espanha ver-se-á obrigada pelo tratado de Münster a ceder o Nordeste aos Países Baixos, a decorrente consolidação do Brasil holandês teria estilhaçado a América portuguesa, se para melhor ou para pior não vem agora ao caso. Por sua vez, a restauração portuguesa não se teria podido consolidar, se é que teria sido deflagrada, sem as condicionantes internacionais do período, a Guerra dos 30 Anos, a luta secular entre a Espanha e a França, o antagonismo entre os interesses britânicos e neerlandeses, para só mencionar as principais.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de "Rubro Veio" (Topbooks), entre outros.

Folha de São Paulo

REMEMÓRIA - ENTREVISTAS SOBRE O BRASIL DO SÉCULO 20


FLAMARION MAUÉS

Radicalidades

Dainis Karepovs
Estão reunidos nesta coletânea entrevistas e perfis publicados nos últimos dez anos na seção "Memória" da revista "Teoria & Debate", editada pelo Partido dos Trabalhadores. Sua organização em livro propicia aos leitores um painel da história da esquerda brasileira, sugerindo um rico caudal de questões sobre o passado, o presente e o futuro de nosso país. Com uma vantagem: o formato de entrevista torna a leitura agradável, mesmo quando os temas são complexos.
Trata-se de depoimentos de personalidades de primeira grandeza da história brasileira deste século que têm um ponto em comum: a convicção socialista. Não importa se o entrevistado é católico, maoísta, social-democrata, stalinista, trotskista etc., ou mesmo se não pertence a estes mundos, como é o caso do jurista Goffredo Telles Júnior e do fazendeiro e agrônomo José Gomes da Silva. Todos tiveram e ainda têm, usando uma definição dada por D. Pedro Casaldáliga em sua entrevista, "uma inclinação para a radicalidade, para as causas maiores da vida", que os impulsionou a lutar por uma sociedade democrática, humana e justa.
Junto com o relato de trajetórias, pessoais ou de organizações políticas, o livro fornece ricos retratos dos meios sociais em que os entrevistados se formaram: alguns em berços esplêndidos, como Vladimir Palmeira e Goffredo Telles Júnior; outros, muito pobres, como Florestan Fernandes e a camponesa Elizabeth Teixeira; alguns marcados por culturas particulares, como a judaica, de Clara Charf e Jacob Gorender, ou por setores específicos, como o da intelectualidade universitária, representada por Antonio Candido e Florestan Fernandes.
Todos os depoimentos são, sem dúvida, relevantes. Alguns, como os de Fulvio Abramo, Armando Mazzo, Madre Cristina, Florestan Fernandes, Betinho, Paulo Freire, Isaac Akcelrud e José Gomes da Silva, que já não estão conosco, tornam-se mais preciosos ainda. Outros, embora posteriormente tenham publicado memórias, como Apolônio de Carvalho, Armando Mazzo, Elizabeth Teixeira e Lélia Abramo (1), não se tornaram redundantes, pois em "Rememória" abordam outras questões. Isso vale especialmente para Apolônio, cuja entrevista sobre sua trajetória do período pós-1945 acaba sendo mais substanciosa do que a versão oferecida em sua autobiografia.
Narram-se ali tanto ações coletivas, personificadas nos entrevistados, quanto epopéias pessoais. No primeiro caso, entre as várias, cito a de Fulvio Abramo, personagem-chave no enfrentamento armado entre a esquerda, reunida em frente única, e a direita integralista na Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934. Sem a perseverança e o empenho pessoal de Abramo, na liderança da Frente Única Antifascista, não haveria a união das esquerdas e nem tampouco seria abortada a tática fascista, internacionalmente disseminada, de "conquista das ruas", o que acabou obrigando os integralistas a buscar o caminho das conspirações com o ditador Vargas. Já no campo pessoal, seguramente se destaca a luta de Clara Charf, pouco depois vitoriosa, pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado no assassinato de seu companheiro Carlos Marighella.
Sua disposição em prosseguir, desta vez na luta pelo "resgate, nos livros escolares, da verdadeira história dos homens e mulheres que lutaram contra a ditadura militar", coloca uma questão que perpassa de certa maneira todos os depoimentos. Trata-se da ausência -ou, então, das "versões" que se oferecem- de muitos dos episódios narrados em "Rememória", em várias edições das chamadas "histórias" do Brasil oferecidas aos jovens na sala de aula ou na mídia (em forma de fascículos encartados). Não é compreensível, por exemplo, que versões comprovadamente desmentidas sobre o suposto assassinato de oficiais legalistas adormecidos por membros da Aliança Nacional Libertadora, no levante comunista de 1935, ainda sobrevivam nesses "artefatos culturais".
Trata-se, enfim, apenas de considerar a esquerda como um dos componentes vivos e atuantes da história brasileira, dando-lhe o seu devido lugar, com suas boas e más contribuições, sem hiperdimensioná-las, nem subdimensioná-las. Nesse sentido, "Rememória" fornece um painel vivo da história brasileira do século 20 que permite ao leitor, pelo menos, indagar-se: como é mesmo esta história?
Nota
1. Lélia Abramo, "Vida e Arte", São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo/Editora Unicamp, 1997; Apolônio de Carvalho, "Vale a Pena Sonhar", Rio de Janeiro, Rocco, 1997; Armando Mazzo, "Memórias de um Militante Político e Sindical no ABC", São Bernardo do Campo, Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes, 1991; Lourdes Bandeira et alii (orgs.), "Eu Marcharei na Tua Luta - A Vida de Elizabeth Teixeira", João Pessoa, Editora Universitária/Manufactura, 1997.
Dainis Karepovs é doutorando em história na USP.

Folha de São Paulo

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A Questão Ancestral: África Negra - Prefácio

Fábio Leite
Fabio Leite conhece música, tem sensibilidade. Aprendeu a escutar os tambores, percebeu que as escalas e divisões musicais pouco tinham a ver com a estrutura da música ocidental. Entrou na linguagem, primeiro no Brasil, depois em África. E mais, os tambores, as suas batidas, uma forma de comunicação, não foram tomadas como fator da estrutura e de função religiosa.

Um estudo profundo em torno de categorias que refletem aspectos centrais do universo africano de raiz tradicional antiga nasceu, há mais de três dezenas de anos, em torno da preparação e dos comentários sobre o programa mensal dos concertos da Orquestra da Universidade de São Paulo, conduzida pelo maestro Camargo Guarnieri. Dos temas de Vila Lobos, às modinhas paulistanas, às composições de Guarnieri, aos clássicos, à preparação da excursão do coral da USP a países africanos, sob a batuta criativa de Benito Juarez, passamos a trocar idéias sobre temas da cultura africana.

Fábio da Rocha Leite escapava da rotina imposta pelo seu cargo, dando asas a um primado espiritual de certa maneira sufocado. Orlando Marques de Paiva, o reitor da USP, que criou a Orquestra uspiana, José Roberto Franco da Fonseca, jurista e humanista, foram essenciais ao desenvolvimento dos estudos africanos na USP, que na fase de arrancada tiveram o apoio de Eurípedes Simões de Paula, Miguel Reale, Ruy Andrade Coelho, Vicente Marota Rangel, Dirceu Lino de Matos, além de um grupo de jovens estudantes africanos, hoje espalhados pelo mundo, e enquanto alguns ficaram em São Paulo, o Carlos Serrano, o Kabengele Munanga.

Hesitei em abordar este esmiuçamento de uma relação de atores da afirmação universalista do continente africano, uma determinante, entre outras, da criação do Centro de Estudos Africanos da USP, mas é, sem duvida, esclarecedora de um projeto.

Fábio libertou-se da agenda tão ambicionada por muitos e parte para a Costa do Marfim, terminados seus estudos preparatórios para o doutorado, acumulando a figura de Leitor na Universidade de Abidjan. Atendeu e desenvolveu o Leitorado sem o impedir de iniciar longas viagens ao interior do país, onde surge a pesquisa vivida. Periodicamente enviava notícias, longas cartas onde falava dos seus novos amigos participantes, da África profunda, jovens e velhos, estes senhores da memória coletiva de um povo, na concepção do Fábio. Umas vezes respondia prontamente, outras vezes não. Fábio vinha a férias, rápidas, e aí comentávamos a sua visão do universo africano. Tínhamos interesses comuns no mundo sudanês, eu no eixo entre Dakar e Bamako, particularmente em Timboctou que, anos mais tarde, uma “neta”, Denise Dias Barros, no dizer de Fábio, esquadrinhou.

Fábio Leite não viajou só pela Costa do Marfim. Passou várias temporadas no Togo, Benin, Ghana e Nigéria, pesquisando as instituições ancestrais nas sociedades Iorubá, Agni e Senufo, a partir dos conhecimentos profundos dos cultos africanos no Brasil e de leituras de clássicos. Tento não usar o termo “religiões africanas” por uma razão muito simples. Durante mais de dez anos pesquisei e estudei o tema das artes africanas, analisando as principais coleções nos museus europeus e no campo, o que me levou a estudar filosofia africana. Intuí e percebi uma certa relação entre a simbologia de motivos repetidos em grande número de peças – o ziguezague, as formas em espiral e/ou helicoidais – como que simbolizando uma permanente relação com os antepassados comuns, percorrendo uma noção de tempo(s). Uma outra constatação diz respeito àquelas sociedades com estruturas “avançadas” quanto ao poder que, em relação aos cultos, criaram a figura do intermediário(s) na relação entre homem e os antepassados comuns, surgindo um panteon hierarquizado, tal como na sociedade Iorubá, contrapondo-se a outras sociedades em que o homem aprendeu a se comunicar diretamente com os antepassados, devidamente inserido na sua comunidade de origem, mais comum na África Bantu.

Nunca me senti à vontade com o tipo de leituras que pretendiam configurar duas Áfricas: a “tradicional” e a “moderna”. Fábio Leite também não. Apesar do esforço de alguns autores a divisão, termos opostos, não só é de natureza linear como insuficiente enquanto modelo de explicação. Além do mais essa metodologia leva a uma certa ambigüidade à divulgação de idéias ligadas a interesses que negam a identidade africana. O ponto fundamental é, sem dúvida, a busca da identidade africana em um quadro universal e não redutor em busca de particularismos que passam a ter várias leituras, normalmente distantes da condição humana.

Por exemplo: falar do feiticismo como algo de especificamente africano é um erro. Encontramos a figura do feiticeiro em todos os cantos do mundo, mormente na literatura ocidental, ligada a um conceito de bem e mal que, aliás, não espelha o pensamento africano, refletindo mais uma prática típica de momentos agudos de ruptura social ocorridos em todas as épocas e lugares.

Um último fator, decorrente dos anteriores, emergiu de leituras antigas e das práticas judiciais atuais, ao novamente intuir que dos sucessivos conflitos exógenos e endógenos, ao longo da colonização, levaram a uma mutação do papel de certas figuras, como o do tradicional “adivinho”, sufocado pelas estruturas do poder tradicional em ruptura, que se transformou em uma figura lida por uma parte da literatura ocidental, como a do “feiticeiro” exprimindo posições que se afastam da razoabilidade, da flexibilidade e do justo. Estudos de caso, em uma perspectiva temporal, em situações de rupturas sucessivas, vão neste sentido.

Na primeira metade do século XVI, Francisco de Vitória (1492-1546), em suas aulas na Universidade de Salamanca, evidenciou que o tratamento do Sujeito, da Pessoa Moral, tinham fundamento universal e não particular, da então Comunitas Orbis, ou seja o mundo ocidental, face aos povos que passaram a ser conhecidos. Para Vitória todos tinham a sua orbis, sua organização própria e não havia por que tratar o outro em condição caracterizada por uma capitis deminutio. Vitória , a quem dediquei um estudo introdutório às suas lições, Relectiones de Indis Priore em De potestas civili (no prelo: Fundação Alexandre de Gusmão), afasta-se da interpretação extensiva do conceito de tutela, alargando os direitos subjetivos a todos os povos. A controvérsia é antiga, o problema é que ainda se mantém, passando da salvação à civilização, à cooperação.

Um ponto fundamental é o fato de que o texto de Fábio Leite não é um trabalho sobre religião mas trata, sim, de identidade. Curiosamente pilhei reações ao manuscrito nesse sentido, o que mostra o peso de idéias-força, tão aceitas, mas mal fundamentadas. Este é um ponto crucial que o leitor deve levar em conta para melhor aproveitar a contribuição do autor. Outro exemplo: o Censo Populacional brasileiro, pelas colocações que oferece, acaba por induzir o declarante, quando é o caso, a assinalar as “religiões afro-brasileiras”, o espiritismo, na categoria de “religião”, aliás posição assumida por muitos praticantes em busca de uma certa legitimação, o que reforça essa zona cinzenta do entendimento que, no fundo, é uma maneira de tratar com o poder. Para entender a obra de Fabio Leite, caro leitor, temos de nos afastar de preconceitos, ou melhor, ler seu trabalho utilizando como posição primeira, o véu da ignorância criado pelo jusfilósofo do Direito, John Rawls, ao tratar da proposição de um pacto social – Uma Teoria da Justiça –, ou em uma posição de “simpatia” com o outro, na concepção clássica de Adam Smith.

Teria uma sugestão a fazer ao Fábio e aos seus discípulos: pesquisar e analisar o papel que o curso de Iorubá lecionado durante vários anos no CEA/USP, que coordenou, teve em relação à pratica de cultos afro-brasileiros, principalmente em São Paulo, na medida em que boa parte desses alunos, oriundos dos terreiros, tomaram conhecimento da língua Iorubá confrontando-a com a linguagem utilizada nesses cultos. Certamente teremos muitas surpresas.

As numerosas e longas leituras que fiz – hoje estou, de certo modo voltando ao tema, na forma de um estudo sobre o Direito Africano, o chamado “direito tradicional”, analisando segundo uma metodologia jurídica e escapando das leituras antropológicas, com exceção, entre outros de Bronislaw Malinowski (Crime and Custom in Savage Society) – na perspectiva do paradigma do justo, poderá permitir a emergência de uma relação, como fonte de direito, ao relacionar essas fontes com o moderno Direito Constitucional. Fabio, que no intimo certamente lamentava o fato de eu ter passado a estudar as sociedades modernas, em torno da formação e evoluções do Estado moderno africano, certamente ficará satisfeito, mas com restrições ao papel das novas constituições. Vamos continuar a “brigar” em silêncio.

E a obra de Fábio Leite? Indagar-se-á o leitor. Afinal qual é o papel do prefaciador? Chegou à altura de falarmos dela. Contudo tínhamos de pôr em relevo a figura do autor – um artista musical (pianista) – impelido para tarefas administrativas de que se libertou com a sua nova função de pesquisador.

Com os recursos da sua formação acadêmica, com o apego à pesquisa de campo participativa, com a presença de sua formação cultural, passou das instituições à construção de conceitos. A Sociologia, a História, a Antropologia e a Filosofia – influenciado pela obra de Lukács – permitiram-lhe aprofundar a reflexão sobre a pesquisa e propor uma leitura original, a qual embora se utilize de uma ampla bibliografia, esta não foi determinante. Opção perigosa, certamente, mas que permitiu pôr em evidência, por intermédio de uma construção metodológica adequada à proposta, evidenciar conceitos descolonizados. Tarefa árdua que levanta obviamente divergências criativas. Na nossa troca de idéias ao longo do trabalho, Fábio Leite esquivou-se de utilizar certos autores. Insistiu em trabalhar e re-trabalhar os seus dados de pesquisa participativa como as melhores fontes, sem se deixar influenciar por algumas obras já clássicas neste campo. Era um direito seu e, finalmente, assim o levou a termo, e bem.

Uma última palavra sobre a temática e estruturação de sua tese.

Em seus estudos sobre os ancestrais em sociedades africanas, Fábio desejou objetivar mais concretamente esse conceito o qual considerava pouco aprofundado embora utilizado com freqüência. Para isso, necessitou examinar, nas três sociedades que citei antes, em primeiro lugar a noção de pessoa, para possível definição da controvertida figura do ancestral, examinando os elementos constitutivos do ser humano. Encontrando pontos comuns nas três sociedades, viu-se obrigatoriamente diante da questão da morte, fator que permite a passagem do homem de sua existência terrestre à sua condição de ancestral. Vencidas essas etapas, finalmente examinou alguns fatores e instituições sociais de natureza ancestral captados naquelas sociedades, mostrando a interação material estabelecida entre elas e seus antepassados. Esses pressupostos, a metodologia e os procedimentos adotados constam com detalhes na introdução de 1982 à sua tese.

O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.



O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.

Fernando Augusto Albuquerque Mourão
Professor Titular, USP
www.casadasafricas.org.br

O Filho Eterno - Cristovão Tezza

Filho pródigo
Pertinente auto-análise e objetividade pontuam com qualidade corajoso livro de Cristovão Tezza
por Diego Braga Norte
[06/01/2009]


Ganhador dos prêmios Portugal Telecom, Bravo!, APCA [Associação Paulista dos Críticos de Arte] e Jabuti [categoria Melhor Romance], O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, chega coberto de louros. “Tezza dá ao romance do Brasil uma maturidade há muito desejada e pressentida”, diz a Carta Capital. “Condenável no cotidiano, a crueldade pode ser uma virtude literária. Ela é a grande qualidade de O Filho Eterno”, palavras da Veja. “Isento de qualquer traço de sentimentalismo ou comiseração, o discurso do narrador sobre o pai deste filho-eterno surpreende”, Estadão. Já para o Le Monde Diplomatique, “O equilíbrio faz desse livro uma jóia de beleza e sensibilidade, algo muito positivo”.

Poderíamos passar um bom tempo pinçando na imprensa elogios ao romance. Há muitos, no exterior inclusive. Já publicado em Portugal e na Itália, o premiado filho eterno mostra-se também rebento pródigo no mundo editorial. O livro será lançado, agora em 2009, na França, Espanha, Austrália, Nova Zelândia e Holanda. São poucos os atuais escritores brasileiros que andam levantando tanto interesse dos leitores estrangeiros. Com seu blockbuster, Tezza entra num seleto grupo.

Afirmar que o livro é sobre a difícil relação de um pai com um filho com síndrome de Down é um reducionismo preguiçoso que não consegue, nem de longe, abarcar a complexidade da narrativa. A história, de fato, nasce junto com a criança deficiente. Na década de oitenta, a síndrome de Down, causada pela trissomia do cromossomo 21, era um conceito restrito aos círculos médicos. Para a sociedade, e para o pai, o garoto era mongolóide, retardado. Partindo do choque causado pelo nascimento de Felipe, Tezza faz uma auto-análise biográfica e literária de sua vida. O romance é, antes de mais nada, corajoso.

Além de corajoso e sincero, a narrativa é bem escrita e habilmente construída. Narrando em terceira pessoa para falar de si mesmo, o autor confessa seus pecados e virtudes ao longo do seu percurso para se tornar escritor e pai. Tezza recentemente admitiu que Juventude, romance autobiográfico de J.M. Coetzee, o inspirou. Nessa obra, o escritor sul-africano também se utiliza da narrativa em terceira pessoa para falar da própria vida.

Ao descortinar os pensamentos do protagonista, o narrador nos mostra um escritor consciente de seu potencial, no entanto, um pouco inseguro, cínico e prepotente. Como pai, o protagonista revela-se ora cruel e sádico, ora incapaz e irresponsável e ora diligente e apaixonado pelo seu filho especial, uma eterna criança aprisionada em seus próprios limites intelectuais.

Ao decorrer dos capítulos, as peripécias e dificuldades do pai para criar e conviver com seu filho são a menor parcela. A parte preponderante do livro é a vida do escritor, esta também repleta de peripécias e dificuldades para se firmar. Da juventude num grupo de teatro alternativo à temporada na Europa, trabalhando clandestinamente em Portugal e na Alemanha, tudo se apresenta com um prólogo para o que estaria por vir: a carreira literária. Em Curitiba, entre bares, mudanças e perrengues financeiros e emocionais, o protagonista consegue, enfim, a estabilidade ao passar num concurso para professor universitário. Antes, o escritor alternava períodos entre pequenos trabalhos [correções, revisões e artigos] ou sendo sustentado pela sua mulher – retratada com extrema discrição.

Seca, fria e desprovida de sentimentalismo, a história ganha corpo e cresce em momentos importantes e pontuais. Seja nas evocações do passado do escritor ou nas pertinentes observações sobre pequenos atos cotidianos de seu filho, somos tentados a ler para saciar nossa curiosidade. O filho cresce. O escritor também. Ganha o leitor.


O Filho Eterno
.........................
Por Cristovão Tezza
Record
224 págs

Revista Paradoxo

O Africano - J. M. G. Le Clézio

A condição do tempo
Nobel de Literatura em 2008, Le Clézio encara o passado e recria imagem do pai em O Africano

por Itamar Cardin
Editor
[13/01/2009]

A memória é complexa. Apaziguadora, sonante, conclusiva, traiçoeira. Surge de pequenos sentimentos desconexos e esparsos, ganha corpo na aleatória seleção natural de vivências, amadurece como molde dos pequenos atos cotidianos e projeta-se por fim naquilo que é o homem. A memória também se induz como pequeno joguete dos desígnios humanos. Relação complementar e contraditória. O que existe de essência e de absoluto nessa projeção de sombras vistas da caverna?

É partindo dessa conflituosa relação que Jean Marie Gustave Le Clézio, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2008, esmiúça seu passado em O Africano – mais especificamente, no passado de seu pai, o africano cujo título do livro se refere. Como ressaltou a academia sueca ao premiá-lo, o escritor francês possui múltipla formação cultural, tendo já vivido em diversos países e continentes. E durante a infância, Camarões foi sua morada, acompanhando o pai que trabalhava como médico europeu enviado pela Metrópole.

Desse período conturbado e conflitante, Le Clézio guardou um sonho que o acompanhou durante anos, onde a mãe [de pele clara] era negra e responsável por entremear sua ligação com o continente. Foi somente décadas depois, quando o pai se aposentou, deixou a África e voltou a morar com a família na França, que o escritor de fato descobriu: o ‘africano’ na família sempre fora o pai. Assim, surge o livro. Um resgate no tempo para compreender - ou descobrir – esse passado esquecido, esse personagem de caráter tão marcante e tão sublimado pelo filho.

Parte dos louros de O Africano está na própria complexidade do pai, um médico aventureiro e humanista enviado a Camarões após ter fixado residência em três continentes distintos. Jovem e idealista, aprecia por anos seu envolvimento com a África. Mas a 2ª Guerra chega, a mulher precisa se afastar, os filhos nascem distantes, a violência aumenta entre os africanos. Em meio a esse cenário, seus ideais vão tombando. É quando termina a guerra que lhe ocorre uma verdade até então despercebida, segundo o escritor, que definitivamente o endureceria e transformaria no pai tão temido e respeitado: mais do que médico responsável em zelar pela saúde dos camaroneses, ele é um boneco da Metrópole utilizado como agente de controle social.

Se é sonoro o trabalho de reconstrução histórica e psicológica do pai, este não é o único, como o próprio Le Clézio deixa claro no início do livro. “Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças [...], provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós”. As descobertas abrigam-se como num espelho, onde a imagem reconstituída e projetada do pai acaba refletida no próprio escritor.

Nesse aspecto, é fundamental a maneira como o retrato é composto. Le Clézio foge das conclusões precipitadas. Parece sentir que o próprio esquecimento é, sobretudo, uma condenação inconsciente. Por meio desta imparcialidade, o livro se movimenta e fortalece: para resgatar o pai e recompor sua própria memória, o escritor sabe que não deve julgar. A capacidade em entender e interpretar os sofridos sentimentos de seu africano é não só notória como crescente com o transcorrer das páginas, como se a reabilitação com o passado lhe trouxesse mais e mais de uma admirável maturidade emocional.

Contribui para tanto a escrita fluida e sem muitos rodeios, quase elegante em sua objetividade. A simplicidade cai bem a Le Clézio. No entanto, o escritor parece se amedrontar com ela – medo esse tão recorrente na literatura contemporânea – e tenta inúmeras vezes transformar as frases curtas e contidas em construções poéticas e transcendentais. O recurso é recorrente, digno, belo quando em mãos mestras – Juan Rulfo e Graciliano Ramos foram gênios nessa arte. No caso do francês, a tentativa sempre soa equivocada. Aparenta pressa, falta de naturalidade, descuido, revela até certa contradição com o escritor que se enveredou por tão digna busca.

Mas a contradição permanente e sempre pungente é mesmo a do pai, tão bem representada e respeitada – aqui no bom sentido – no livro. Do marido livre ao pai disciplinador, do europeu humanista ao africano imperialista, do jovem realizado ao idoso soturno, a complexidade acompanha-o firme e insólita ao longo de cada página, de cada passagem de sua vida aventurosa. Bonito retrato, grandioso personagem. Faz esquecer por um instante o maniqueísmo hoje reinante.


O Africano
...................
Por J. M. G. Le Clézio
Cosac & Naify
$ 42
122 págs

Revista Paradoxo

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A REBELIÃO DOS MARINHEIROS

O fantasma de 64

João Roberto Martins Filho
LITERATURA; A REBELIÃO DOS MARINHEIROS
AVELINO BIDEN CAPITANI


Erico Veríssimo que nos perdoe, mas faltou um personagem em seu "Incidente em Antares" (1971). Neste romance, estavam presentes sete mortos ressuscitados: a fazendeira Quitéria Campolargo, o advogado Cícero Branco, o artista Menandro Olinda e o intelectual João Paz, além de Barcelona -o anarquista- e dos dois boêmios Pudim de Cachaça e Erotildes. "A Rebelião dos Marinheiros" parece provar, no entanto, que os mortos-vivos de Antares eram, na verdade, oito: faltou o marinheiro Avelino Biden Capitani. Gaúcho, como os colegas acima, o ex-líder da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 25 de março de 1962, morreu pelo menos duas vezes e recebeu até homenagem póstuma, na música "Charles, Anjo 45", de Jorge Ben.
Capitani foi colega do legendário cabo Anselmo -agitador de talento e depois traiçoeiro agente dos órgãos de segurança- na organização do mítico sindicato dos marinheiros e esteve no centro do furacão que arrastou aquela entidade, depois de 25 de março de 1964.
O autor foi preso e torturado pelo Cenimar em 1964 e conseguiu fugir da prisão; exilou-se no Uruguai, treinou guerrilha em Cuba e voltou ao país, em 1966, para participar da trágica guerrilha do Caparaó; foi preso novamente, em 1967 (desta vez, pelo Exército e não houve tortura), até fugir, dois anos depois, integrando-se às organizações da luta armada e vivendo no Chile e Argentina; de volta ao Brasil, militou clandestino antes da anistia de 1979. Finalmente, ingressou no PT.
O belo livro de Capitani ressuscita uma das mais agitadas epopéias pessoais, de todas as que inspiraram as memórias de esquerda até aqui publicadas. Sem ódio ou rancor, o ex-marujo e guerrilheiro dá uma contribuição importante à historiografia sobre o pré-golpe e a resistência ao regime militar.
Ao contar os acontecimentos que presenciou de perto, com quase 30 anos de distância, retira os marinheiros do limbo em que foram colocados, quer pela historiografia que os culpa pelas "loucuras" que levaram ao golpe, quer pela própria instituição a que pertenceram, pois a Marinha recusou-se a aceitar a extensão da anistia aos 963 marinheiros e fuzileiros navais punidos depois de 64.
Entre os historiadores que trataram do assunto, J. F. Dulles dedica àqueles episódios sete páginas e seis fotografias de seu livro "Unrest in Brazil, Political-Military Crises, 1955-1964" (University of Texas Press, 1970). Mas é um relato conservador, no qual o movimento parece não ter vida própria e os marujos e sua associação surgem apenas como massa de manobra de comunistas e governistas.
A mesma visão vem à luz em uma página do livro "A Revolução e o Governo Costa e Silva" (Guavira, 1979), do general Jayme Portella. Aí, o ex-chefe do Gabinete Militar de Costa e Silva reforça a idéia da manipulação. Por sua vez, o respeitado almirante Mário César Flores, num artigo que escreveu para a "História Naval Brasileira" (Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985), é capaz de rever alguns dos dogmas da Guerra Fria, ao criticar a dependência do Brasil frente aos EUA, mas restringe-se a apontar a "deterioração dos valores da hierarquia e da disciplina, produzida por motivações político-ideológicas alimentadas por várias fontes" como raiz dos males que aquela força sofreu em 1963-64.
Certamente, infiltrações e manipulações fazem parte da política, e não foram, naqueles tempos de Guerra Fria, privilégio dos movimentos de esquerda. Importa ressaltar que esse viés historiográfico tem impedido reconhecer e discutir as inquietações próprias dos marinheiros e por que aquele setor se mostrou tão disposto a desafiar a rigorosa disciplina de navios e quartéis, de forma coletiva e apaixonada.
Ao mesmo tempo, esconde-se que a radicalização dos marinheiros deve ser inserida no clima geral que então envolvia o país, as Forças Armadas e, especialmente, a Marinha. Nesse sentido, depoimentos publicados no livro "Visões do Golpe - A Memória Militar Sobre 1964" (Relume Dumará, 1994) lembram que a situação nos navios da Marinha era muito específica, dada a presença de poucos oficiais, isolados entre muitos marujos. Como resultado, na expressão do general Moraes Rego, diante da subversão, "a Marinha entrou em pânico".
Nesse quadro, "A Rebelião dos Marinheiros" expõe as motivações de uma categoria militar oriunda, em sua maioria, do campesinato ou das classes trabalhadoras, que não via na Marinha da época a mínima flexibilidade capaz de serenar seu ânimos rebeldes.
Ao mesmo tempo em que descreve o momento em que os marinheiros romperam o limiar da hierarquia, Avelino retrata as condições de disciplina, moradia, alimentação e soldo que geraram o motim, condições essas bastante piores que as dos soldados do Exército e da Aeronáutica na mesma época. Se não o fossem, não teriam sido objeto de modificação depois de 1964.
Na minha opinião, o melhor capítulo do livro é o que se intitula "O Golpe", um relato em primeira mão das tentativas de resistência e da desilusão que se seguiu à fuga de Jango e Brizola. Sem líderes e sem diretrizes, sem armas e perspectivas, os marujos ficaram entregues à própria sorte. Esses acontecimentos estão na raiz de numerosas adesões posteriores à luta armada.
Só há a lamentar que o autor tenha se esquecido de datar alguns acontecimentos fundamentais que, apesar do rigor na recapitulação, ficam perdidos no tempo. Enfim, vale lembrar que, no livro todo, a voz do narrador só fica embargada uma vez, quando toca na questão da anistia jamais concedida aos marujos de 1964 e na da tenacidade da Marinha em evitar que se cicatrize, enfim, essa ferida.
Quase uma década depois do fim da Guerra Fria, talvez já seja hora de fechar esse capítulo histórico. Quando esse dia vier, a anistia aos marinheiros rebelados apenas estenderá um direito que não foi negado a ninguém, vencidos ou vencedores. Quem sabe, assim, os mortos de Antares possam viver em paz e seus vivos morrer dignamente.
João Roberto Martins Filho é professor de política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e autor de "A Rebelião Estudantil, 1968 - México, França e Brasil" (Mercado de Letras).

Folha de São Paulo

TRABALHO E SINDICATOS - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL E NA INGLATERRA

O inv (f) erno sindical

Cicero Araujo
LITERATURA; NEOLIBERALISMO, TRABALHO E SINDICATOS - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL E NA INGLATERRA /LIVRO
RICARDO ANTUNES

A maior resistência talvez que o leitor oferecerá para percorrer essa coletânea diz respeito à sua edição um tanto desleixada. É o que indicam os problemas de revisão encontrados na maioria dos ensaios ou os sérios obstáculos à fluência da leitura num dos textos traduzidos do inglês. Além disso, quase nada se fala sobre a origem dos autores, seus trabalhos passados ou pesquisas mais recentes.
Superada a resistência, o leitor pode então desfrutar do conteúdo do livro. Mas aqui também o desempenho é bastante irregular. Há certamente muita informação preciosa no livro (pelo menos para quem, como eu, é leigo no assunto), cuja finalidade é analisar os efeitos das recentes transformações da economia mundial no "mundo do trabalho", em particular no movimento sindical do Brasil e da Grã-Bretanha. Porém, faltou um norte às informações e ao conjunto das análises. Esse norte bem poderia ter sido uma perspectiva de comparação. Não digo uma comparação de números em geral -do desemprego, do crescimento do setor de serviços e assim por diante-, porque isso também faz parte das informações contempladas no livro. Refiro-me a uma comparação em torno dos temas específicos abordados e das pesquisas empíricas realizadas. Um esforço nesse sentido talvez deixasse as análises menos "surdas" umas para as outras, e o leitor menos perplexo.
Entre os dois primeiros textos que abordam as transformações industriais e os sindicatos britânicos (de Huw Beynon e John Mcilroy, ambos de Manchester), e os dois últimos, que tratam da mesma questão no Brasil (de José Ricardo Ramalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Iram Jácome Rodrigues, da USP), há um texto do organizador, com intenções aparentemente mediadoras. Contudo, exatamente por situar-se num registro diferente dos outros -trata-se mais de um texto militante do que uma análise fria das pesquisas empíricas-, acaba pouco dialogando com eles.
Restará ao leitor encontrar pontos fortes nos ensaios considerados em si mesmos. O primeiro, de Huw Beynon, é uma tentativa de retratar as mudanças tal como elas aparecem na consciência dos trabalhadores britânicos. É abrangente no que diz respeito aos diversos subtemas do debate, crítico, mas sem deixar de explorar os aspectos contraditórios das transformações em foco, recuperando tanto percepções negativas quanto positivas.
O ensaio de John Mcilroy procura historiar as peripécias do sindicalismo britânico desde a ascensão de Thatcher, em 1979. O "inverno" dos sindicatos, no entender do autor, é também um esforço quase desesperado de recuperar suas glórias passadas, mediante um novo relacionamento com as bases e com o Estado, via Partido Trabalhista. A julgar pelo texto, os resultados foram pífios até agora, não só porque as bases já não são as mesmas -as lideranças simplesmente desconhecem maneiras adequadas de coletivizar trabalhadores que tendem a não mais se encontrar em grandes plantas industriais, que foram "terceirizados", que trabalham em suas próprias casas ou que são majoritariamente mulheres-, mas porque o Partido Trabalhista, também num esforço desesperado para manter-se em pé, vem tentando renovar seu laços com os eleitores por meio de um maior distanciamento com os sindicatos.
É curioso que esse distanciamento tenha requerido uma espécie de autocrítica de seu antigo "trade-unionismo". O chamado Novo Trabalhismo, que depois chegará ao governo pelas mãos de Tony Blair, foi levado a fazer um diagnóstico do seguinte tipo: a fim de falar para o conjunto da sociedade (leia-se: os eleitores que deixaram de votar "Labour"), o partido precisava tornar-se uma organização com predominância de políticos profissionais, depurando-se da excessiva influência sindical. Para reencontrar seu poderio eleitoral, os neotrabalhistas descobriram uma estranha maneira de misturar leninismo e americanismo. Quem não ficou bem nessa história foi o antigo parceiro: atacado impiedosamente pelo Partido Conservador, um tanto rejeitado pelo Trabalhista e perdendo vasto terreno em seu próprio campo, o sindicalismo na Grã-Bretanha é obrigado a jogar na retranca.
Um quadro não muito diferente nos oferecem os autores brasileiros da coletânea. Embora os sindicatos daqui tenham vivido sua "primavera", exatamente quando os britânicos começavam seu "inverno", já se sentia no final dos anos 80 que os ventos sopravam numa direção desfavorável. São observadas dificuldades semelhantes aos dos colegas do Norte para atingir os trabalhadores "precários", os terceirizados e os dispersos em inúmeras pequenas plantas, além de similar crise de identidade dos "blue-collars" e sua perda de combatividade diante de uma indústria que desemprega na proporção em que se reestrutura.
Lamentando ou simplesmente constatando o fato, os autores são unânimes em registrar que hoje há um forte impulso das lideranças sindicais na direção de uma atuação mais pragmática em suas relações com empresários, Estado e as próprias bases, como forma de responder aos novos problemas. Trata-se, por ora, de pura e simples estratégia de sobrevivência: os sindicatos sentem que estão mais fracos e tratam de recuar para a linha de defesa. Se e como serão capazes de transformar essa fraqueza em força, reconhecem os dos autores, é uma questão que só o tempo pode responder.
Cicero Araujo é professor do departamento de ciência política da USP

Folha de são Paulo

IMPOSTURES INTELLECTUELLES


Quinze minutos de notoriedade

Bento Prado Jr.
FILOSOFIA DA CIÊNCIA; A.SOKAL /AUTOR/; J. BRICMONT /AUTOR/; IMPOSTURES INTELLECTUELLES

'Realismo', 'idealismo' etc., já são, de antemão, nomes metafísicos. Isto é, indicam que seus partidários acreditam poder declarar algo determinado sobre a essência do mundo."
"Na filosofia não podemos cortar uma doença do pensamento. Esta tem de seguir o seu curso natural, e a cura lenta é o mais importante (Eis por que os matemáticos são tão maus filósofos)". Wittgenstein
o panfleto de A. Sokal e J. Bricmont é escrito com fluência e não lhe falta graça (embora amiúde involuntária), para quem simpatiza com o estilo agressivo e iconoclasta, inevitável na prática da crítica da cultura. Ao contrário das pessoas, que são objeto de respeito por definição, os estilos culturais transformam-se em fetiches quando protegidos pela aura do respeito. Deixemo-nos levar, portanto, pelo verdor da verve juvenil e alegre (falo aqui apenas do estilo, já que ignoro a idade dos professores das universidades de Nova York e de Louvain), que torna tão fácil a leitura deste pequeno livro, mesmo para aqueles que ainda não abandonaram os bancos escolares.
Tudo começou (este livro é o último episódio de um espetacular escândalo intelectual, que ferveu na mídia internacional: "New York Times" , "Le Monde" etc.) com um formidável passa-moleque aplicado com muito senso de oportunidade por Sokal a uma respeitável revista americana de "cultural studies", "Social Text". Sob um título perfeitamente cômico ("Transgredir as Fronteiras: Em Direção de uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica"), que já de si implica em vários contra-sensos, publicou um ensaio em que parodia o estilo do pensamento "pós-moderno", de origem francesa, que teve mais eco nos "campi" norte-americanos do que no resto do mundo, produzindo intencionalmente um enxurrilho de sandices, onde os conceitos da física, da matemática e da lógica são sistemática e literalmente massacrados.
O mistério de como um texto visivelmente nulo foi aceito para publicação por uma boa revista (qualidade reconhecida por Sokal, isto é, pelo próprio autor do embuste que a expôs ao ridículo) permanece inteiro, a despeito das múltiplas declarações posteriores das partes em litígio, e não seria sensato tentar deslindá-lo aqui (1). O que nos interessa é tentar compreender o sentido e o alvo dessa impostura, a partir do que é exposto em "Imposturas Intelectuais" (2).
Qual o alvo visado pela paródia desmoralizadora? Sokal e Bricmont o definem como a "nebulosa pós-moderna". E é preciso reconhecer que essa empresa não é destituída de interesse (senão para a filosofia, pelo menos para a sociologia da cultura e das instituições pedagógicas). É impossível não reconhecer, na filosofia (e em seus efeitos nas ciências humanas) dos últimos 30 anos, a presença mais ou menos ubíqua de uma retórica sibilina e desconcertante. De fato, a incontornável obliquidade da linguagem filosófica (alusiva por essência) é elemento propício à proliferação da desenvoltura, do tom "grand seigneur" que se permite liberdade sem limite na manipulação de conceitos científicos, sem qualquer respeito pelas condições de seu uso preciso ou pela sua mera significação. O ridículo é frequente e a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada. O estilo da "dissertation française" (3) não é imune à diluição retórico-literária, como se vê na narrativa de Lévi-Strauss (em "Tristes Trópicos" ) da ruptura do jovem "agregé" de filosofia com o blablablá de sua disciplina de formação e sua conversão à pesquisa empírica na antropologia.
Isto dito, vejamos como é definido esse alvo. Se a expressão "nebulosa pós-moderna" é um bom achado literário e promete efeitos cognitivos, o alvo é definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa "pós-estruturalista" ou "desconstrucionista" (A. Bloom era mais preciso, falando de pensamento parisiense "pós-sartreano"). Mas a névoa é ainda mais espessa, já que inclui quase toda epistemologia e mesmo a filosofia de língua inglesa -o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a ciência do real e insulá-la numa esfera puramente linguística ou simbólica, abrindo curso à vaga do relativismo e do irracionalismo. Descobrimos que Quine é desconstrucionista. Com ele, entram na baila nebulosa, também, Merleau-Ponty e Bergson (um Bergson pós-moderno? só se for verdadeira a perspectiva pós-moderna que suprime a história). Tudo isso culminando -como numa sequência lógica- no abuso feminista de conceitos físicos para amparar uma teoria da diferença sexual que ataca o "falogocentrismo" de uma perspectiva emancipatória. Assim alinhados (4), os textos criticados (convenhamos, de natureza diferente e importância desigual) compõem uma espécie de "samba do crioulo doido". Mas o que é mais cômico? A pergunta de L. Irigaray: "A equação E = Mc2 é uma equação sexuada?". Ou essa arqueologia da Desrazão que explica o delírio epistemológico-cosmológico de um certo feminismo a partir dos "equívocos" lógico-semânticos de Quine? Aparentemente, de fato, há crise da Razão.
É o que se pode ver no momento mais sério e original (mas o mais fraco) do livro, isto é, o "intermezzo" filosófico do capítulo três, em que os autores exprimem sua '"filosofia da ciência", em contraposição ao que consideram o "relativismo" hegemônico na epistemologia. Pontuado pela evocação elegíaca do "racionalismo moderno" (que não seria nem elementarmente empirista, nem arrogantemente racionalista, mas algo de intermédio, próximo do bom senso comum) ou do espírito da "Aufklãrung", esse novo programa insiste em que o conhecimento científico deve, ao mesmo tempo, ter estrutura lógica e base empírica. Quem jamais disse o contrário? Nem Feyerabend.
O empirismo puro e bruto não poderia servir para quem pensa em física teórica, é claro. Mas Sokal e Bricmont nada podem conceder ao lado contrário, que insiste na construção lógica da teoria científica, já que os levaria, contra-vontade, na direção da melhor epistemologia. Daí recorrerem à transição "razoável" do conhecimento comum ao conhecimento científico: a ciência corta com o senso comum, mas não completamente. Mas brecando a tempo, pois nessa direção chegariam a uma perspectiva pragmatista, também suspeita de subjetivismo. A fórmula seria: um bom e saudável pragmatismo sem filosofia pragmatista, ciência sem pensamento. E, sobretudo, sem compromisso com a filosofia da lógica, que poderia nos afastar do mundo real com meros "jogos de linguagem" (curiosamente os inimigos da retórica francesa são, pelas mesmas razões, inimigos da filosofia analítica de língua inglesa).
Menos original (já que no início do século muita asneira foi dita no mesmo sentido) é o capítulo 11 que consagram a "um olhar sobre a história das relações entre ciência e filosofia: Bergson e seus sucessores". O que os autores não revelam (não sabem?) é que Bergson reconheceu que seus argumentos técnicos, contra a interpretação filosófica que Einstein deu à teoria da relatividade, estavam literalmente errados (5). E proibiu, em consequência, no início da década de 30, a republicação de " Duração e Simultaneidade". Falar, portanto, de um erro tenaz que se perpetua é simplesmente contraverdade ou falsificação. Seria, este caso, penso, pelo contrário, um exemplo de boa relação entre filosofia e ciência, ao contrário do que dizem os autores. Que, aliás, desencaminhados por seus informantes, não leram as melhores páginas que Merleau-Ponty consagrou à questão Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios "Bergson Se Fazendo" e "Einstein e a Crise da Razão". Aí poderiam ver que a questão, de que tratam Bergson e Merleau-Ponty, não é apenas a do mau uso da ciência pelos filósofos (embora tratem também e bem desse assunto), mas sobretudo do mau uso da filosofia pelos cientistas. Ou, pelo menos, de um certo dogmatismo que, por exemplo, leva Einstein a dizer: "Não há, portanto, um tempo dos filósofos" (6).
Numa palavra, este livro põe em ridículo, muitas vezes com razão, um uso obscuro da linguagem por parte de filósofos. De fato, águas turvas podem dar ilusão de profundidade. No caso deste livro, ao contrário, as águas claras não escondem seu fundo raso. Os autores queriam jogar um paralelepípedo no ventilador e acabaram botando fogo num rojão que deu chabu. Mas ganharam os 15 minutos de notoriedade que a sociedade do espetáculo garante democraticamente a todo mundo. No que confirmam o velho Hegel (que relegaram ao inferno do "irracionalismo") que identificava, no coração da dialética da "Aufklãrung" a luta mortal pelo reconhecimento ou pelo puro prestígio. Ou o próprio Nietszche -nome polêmico neste contexto- que elaborou uma fina fenomenologia do ressentimento.
Notas
1. Mas é razoável pensar que o "prestígio da física no mundo contemporâneo" que os autores sublinham em seu panfleto, não foi indiferente ao êxito do embuste. Prova de que não basta querer assumir uma postura de crítica face à cultura e à sociedade contemporâneas para se livrar de todas as formas de fetichismo.
2. Não sei se Sokal qualificaria sua própria artimanha para enganar os editores de "Social Text" de impostura intelectual. O dicionário Aurélio assim define a palavra "impostura": "1. artifício para iludir... 2. fingimento... 3. vaidade ou presunção extrema; falsa superioridade... etc.".
3. Pois é bem disso que se trata: o alvo dos autores é a filosofia francesa que, segundo eles, veio a corromper o bom funcionamento das universidades americanas na área das humanidades: eles não deixam de brincar com a fácil transição de "haute culture" ("alta cultura") para "haute couture" ("alta costura"). No fundo, as "humanidades" entendidas como frivolidade e luxo desnecessário, fustigadas por um espírito frugalmente puritano e pragmático.Trata-se de uma estratégia de defesa de território que não é nova. Já em 1987 Allan Bloom escrevia em seu "The Closing of American Mind": "A literatura comparada caiu amplamente nas mãos de um grupo de professores que foram influenciados pela geração pós-sartreana dos heideggarianos parisienses, em particular Derrida, Foucault e Barthes. Esta escola é chamada de desconstrucionismo e é o último, previsível, estágio da supressão da razão e da negação da possibilidade da verdade em nome da filosofia". A tese é a mesma, embora enunciada de uma perspectiva liberal-conservadora, numa atmosfera "high brow", enquanto a de Sokal e de Bricmont, que são de esquerda (o primeiro, com estadia militante na universidade da Nicarágua sandinista), soa um pouco "red neck" uma espécie de estilo monsieur Homais das montanhas rochosas.
4. Na verdade, os autores não são os únicos responsáveis pelo estabelecimento desse "corpus" estapafúrdio. Na abertura do livro, citam 64 nomes de intelectuais que os auxiliaram na compilação do "corpus" de referência. Nesse "corpus", onde Hegel está presente, notamos a ausência inexplicável de Kant. Referência indispensável para quem ataca a idéia de que a ciência não nos dá acesso às coisas em si.
5. Bergson jamais criticou, é claro, a teoria enquanto tal.
6. Que seguramente não é uma tese propriamente científica. Mas não faltava, certamente, espírito filosófico a Einstein, que via problemas onde nossos autores só vêm evidências. Penso no Einstein que dizia (contra uma epistemologia ingenuamente realista): "O incompreensível é que o mundo seja compreensível".
Bento Prado Jr. é professor de filosofia da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Alguns Ensaios" (Max Limonad).

Folha de São Paulo

A PAIXÃO PELO REAL - PASOLINI E A CRÍTICA LITERÁRIA


Um profeta da realidade

João Silvério Trevisan
CRÍTICA LITERÁRIA; PIER PAOLO PASOLINI; MARIA BETÂNIA AMOROSO /AUTORA/; A PAIXÃO PELO REAL - PASOLINI E A CRÍTICA LITERÁRIA

Muito frequentemente, o problema dos textos universitários (sejam eles teses ou obras didáticas especializadas) é seu difícil contato com a realidade contextual: a que público se dirigem, fora dos muros da universidade. Claro, pode-se dizer que existem múltiplas realidades, dependendo dos diferentes pontos de vista que as abordam. Um livro como este, de Maria Betânia Amoroso, professora de literatura italiana na Unicamp, certamente está de acordo com a realidade universitária, pelo rigor da pesquisa. Mas conviria perguntar qual sua relação com a realidade mais abrangente do Brasil.
Trata-se de um estudo sobre as resenhas literárias de Pier Paolo Pasolini, reunidas no pouco conhecido livro "Descrizioni di Descrizioni". Em toda a vasta obra do poeta, ficcionista, cineasta, ensaísta e crítico Pasolini, o ponto de partida é sempre a relação entre a criação e a realidade. Ora, o problema para o leitor brasileiro é que Pasolini falava de uma realidade específica: a italiana, sobretudo das décadas de 60 e 70. Isso se torna ainda mais crucial quando se constata que nem esse livro de Pasolini, nem boa parte das obras nele resenhadas, tiveram tradução em português. Assim, a discussão sobre o conceito de realidade torna-se intrincada porque passa por vários afunilamentos, antes de chegar ao leitor de um modo minimamente compreensível.
Seria fundamental perguntar de que realidade se trata. No entanto, a autora despende boa parte da obra especificando as correntes da crítica italiana anterior e contemporânea a Pasolini e só vai tentar uma definição de realidade num dos capítulos finais, ainda assim deslocando o conceito para o cinema. E conclui, citando Pasolini, que as regras da realidade repetem as regras da vida, ou seja, criam uma ilusão. Isso quer dizer que os termos da questão básica do livro ficam bastante incompletos, quando não inadequados, tornando sua leitura frequentemente muito árida.
Esse óbice, ainda que essencial, não impede que o leitor se aproxime de um dos intelectuais mais fascinantes do nosso tempo. Pasolini atacava duramente a crítica universitária, que considerava formalista e redutora, principalmente nas suas vertentes estruturalista e pós-estruturalista, fundadas em certezas metodológicas que a seu ver esterilizavam a obra de arte. Agora, é no mínimo curioso constatar que essa mesma universidade venha se debruçar sobre sua obra. Não importa se isso resulta de um gesto cooptador ou evidencia real inserção na contemporaneidade. O certo é que, com uma abordagem sempre rica em informações e nada reducionista, "A Paixão Pelo Real" cria um proveitoso diálogo entre Pasolini e a universidade.
Apesar das eventuais tentações de classificação burocratizante, vai-se traçando um quadro revelador da figura histórica de Pasolini, dentro da perspectiva de intelectual militante em que vida e obra se misturavam. Para tanto, estabelece-se uma fascinante rede de "diálogos" entre Pasolini e os intelectuais italianos, que o analisaram muitas vezes duramente, enquanto vivo e depois de morto. Assim, Franco Fortini, amigo e depois adversário intelectual de Pasolini, chama-o de perturbado mental que se fixou na infância e por isso vê o mundo pelas lentes de uma fantasia paradisíaca, fundada num quadro histórico regressivo.
Tais críticas revelam o Pasolini polemista plural, corajoso, comprometido e solitário, descobrindo nichos político-culturais em desacordo com a média dos seus contemporâneos. Elas são evidências do esforço de Pasolini em manter vida e criação no território da ambiguidade. Assim, cantava a tradição para integrá-la à modernidade, denunciava "avant la lettre" os riscos da globalização no capitalismo avançado, criticava a esterilidade da vanguarda, denunciava a falsa cultura da mídia, chocava-se de frente com o feminismo, abria fogo contra o movimento estudantil tanto quanto a esquerda ortodoxa e odiava autores de cunho político imediatista, como o recente Prêmio Nobel Dario Fo. Não por acaso, Pasolini transformou em problema filosófico de importância um tema que a esquerda de 68 usava como varinha mágica simplista: a realidade. Ao contrário, para Pasolini o compromisso com a realidade fundamentava todos os paradoxos da poesia. Não há fronteira clara entre o real e o simbólico. Em seu pensamento, digladiam-se o tempo mítico e o tempo histórico, numa contradição que ele pretendia manter viva como a própria realidade.
Se este livro parece ser de interesse muito restrito a exegetas de Pasolini ou estudiosos da língua de Dante, trata-se antes de tudo de um título bem-vindo no espaço rarefeito que o mercado editorial brasileiro outorga à literatura italiana. Por outro lado, num momento em que, reafirmando a antevisão pasoliniana, a crítica literária tornou-se mero apêndice do jornalismo cultural mais apressado, é reconfortante tomar contato com uma reflexão que, já nos anos 70, propunha a crítica literária como parte da antropologia. Se recordar faz parte da ilusão de viver, nunca é demais resgatar a memória dos profetas para indagar a realidade.
João Silvério Trevisan é autor de "Seis Balas num Só Buraco - A Crise do Masculino" (Record).

Folha de São Paulo

As raízes do Gulag


As raízes do Gulag

Paulo Sérgio Pinheiro
POLÍTICA; COMUNISMO; LE LIVRE NOIR DU COMMUNISME - CRIMES, TERREUR, RÉPRESSION /LIVRO

depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento do regime soviético nos anos 90, muitos estudos tentaram confrontar a realidade soviética e uma "ilusão comunista". Essa perspectiva reduz 70 anos da história de uma grande experiência humana a uma sombria conspiração de espiões e policiais, a história extraída de seu contexto real . Os autores do "Livro Negro" foram buscar sua fonte nos arquivos russos hoje abertos e indispensáveis a todos os historiadores que queiram lidar com a "ilusão" da história soviética. Mas o acesso às fontes primárias nem sempre pode ser garantia de precisão e complexidade.
O "Livro Negro", mesmo antes de ser publicado, já era motivo de querela entre seus autores, e entre estes e seu editor. De saída, o título já constituía um esforço demais chamativo para um conjunto de trabalhos que se pretendia consistente, valendo-se de fontes primárias. Hoje, na Europa e nos EUA, toda a historiografia da União Soviética e da Internacional Comunista (Comintern), a grande central coordenadora e organizadora dos partidos comunistas em todo o mundo, está sendo revista pelo acesso aos arquivos soviéticos. Entre os temas mais pesquisados estão a repressão, a violência, o terror, dissimulados pelo Estado soviético.
Os autores do "Livro Negro" pretendiam acertar contas com aquele tema tabu da violência, numa perspectiva nova, independente da antiga historiografia anti-soviética, que teve o mérito de chamar a atenção para fatos que uma historiografia mais à esquerda sempre tentou dissimular ou ocultar. A abordagem em si mesma já é razoavelmente problemática ao tentar isolar um tema -a violência e a repressão-, muitas vezes fora do contexto histórico. Pretensão maior era não limitar a comparação aos períodos históricos no interior da evolução da União Soviética e ampliá-la para a China comunista, aos países asiáticos, chegando aos antípodas na África e na América Latina.
O resultado, para dizer o mínimo, é desequilibrado. Felizmente, os dois mais longos ensaios do livro, o de Nicolas Werth, sobre a União Soviética, e o de Jean Louis Margolin, sobre a China, o Vietnã, o Laos e o Camboja, destoam pela qualidade e rigor em relação ao conjunto. Werth é bem-sucedido porque, desde o começo, enfrenta os paradoxos e mal-entendidos com a Revolução de Outubro. A revolução foi ao mesmo tempo uma tomada do poder político e uma revolução social. Num determinado momento, golpe de estado político e revolução social -escoadouro da decomposição das Forças Armadas e da mobilização autônoma, desorganizada, dos camponeses e dos operários, antes de divergirem em direção a decênios de ditadura, até a sua decomposição final. Em nenhum momento prevaleceu no poder a revolução popular espontânea, que começou na rua, e que foi acabar nos palácios com a deposição do czar e os primeiros governos socialistas. No curso das diversas revoluções de 19l7, o papel dos soldados-camponeses, uma massa de dez milhões de homens mobilizados, vai ser decisivo.
Pouco adianta repetir que se tratou de um golpe de Estado com pouquíssima participação de operários e camponeses, como o fez desde o começo Curzio Malaparte, entre muitos. Como desejava mesmo Lênin, o número de participantes diretos na grande revolução socialista de outubro foi quase limitado aos "técnicos" de que falava Trotsky, artífice da tomada do poder: alguns poucos milhares de soldados aquartelados, os marinheiros do Kronstadt, os guardas vermelhos do comitê militar revolucionário de Petrogrado (CMRP) e algumas centenas de militantes bolcheviques dos comitês de usina. Poucas vítimas, pouco sangue derramado, o que mostrava como a preparação do golpe tinha sido cuidadosa.
O que vai ocorrer logo é um esgarçamento, como bem mostra Werth, entre revoluções sociais e nacionais multiformes e uma prática política específica que excluía toda divisão do poder, que deveria rapidamente levar a um afrontamento, gerador de violência e terror, entre o novo poder e largas frações da sociedade. As vagas de violência e terror serão sucessivos acertos de contas com operários, camponeses, quadros do aparelho do Estado, intelectuais, até a liquidação dos próprios líderes revolucionários. No final dos anos 20, a coletivização forçada no campo foi na realidade "uma verdadeira guerra declarada contra toda uma nação de pequenos exploradores". Transformados em "colonos do trabalho", eles estarão reintegrados numa sociedade marcada por uma "penalização geral das relações sociais", na qual ninguém sabia quais seriam os próximos excluídos.
Na Rússia de 1917, como lembra Werth, a violência estava presente em toda parte. Os acontecimentos apenas serviram para fazer convergir as diversas formas de violência, presentes de modo latente: uma violência urbana "reativa" à brutalidade das relações capitalistas no meio industrial; uma violência camponesa "tradicional" e a violência "moderna" da Primeira Guerra Mundial, portadora de uma extraordinária regressão e uma formidável brutalização das relações humanas. A mistura das três formas de violência vai ter um efeito devastador na conjuntura da Rússia em revolução.
O terror vermelho posto em prática depois de 1918 foi diretamente coordenado pelos dirigentes e por Lênin: os arquivos disponíveis são absolutamente implacáveis para confirmar essas responsabilidades. Era a expressão do ódio contra os "inimigos de classe" -categoria que acabava de ser criada-, que poderiam ser os camponeses que se recusavam a colaborar ou logo depois os operários que se insurgiam.
Por ocasião do julgamento dos socialistas-revolucionários em 1922 , Lênin, ao comentar o novo projeto de Código Penal, afirma numa carta: "O tribunal não deve suprimir o terror, dizer isso seria enganar-se ou mentir; mas fundamentá-lo, legalizar seus princípios, claramente, sem enganar ou disfarçar a verdade". A "legalização da violência política" está portanto posta desde 1922. Quando o novo Código Penal é afinal publicado em 1924, a definição do crime contra-revolucionário está sensivelmente alargada, regulamentando a noção de "pessoa socialmente perigosa". Depois de 1929, graças à repressão autorizada por esses tipos de crime, o laboratório experimental do trabalho forçado, iniciado improvisadamente durante a guerra civil, servirá de matriz para um imensa constelação de campos em escala continental : o arquipélago do Gulag.
Se o artigo de Werth, com grande sobriedade, revê à luz dos novos documentos a evolução das formas de repressão no comunismo soviético, o artigo sobre a Internacional Comunista, escrito pelos organizadores do livro, S. Courtois e J.-L. Panné, reduz a ação do Comintern às vagas de repressão contra os partidos comunistas. Não há como negar que a progressiva "penalização geral das relações sociais" na sociedade soviética vai contribuir para uma criminalização das oposições, reais ou imaginárias, no interior de vários partidos comunistas. Courtois cita um texto de Trotsky, pouco depois do atentado que sofrera em 24 de maio de 1940, indicando que a polícia política e o Comintern estavam indissoluvelmente ligados, a primeira dominando o segundo. Havia inegavelmente uma pressão extremamente forte dos serviços policiais soviéticos sobre os militantes do Comintern, estando sempre presentes a desconfiança e o medo. Os grandes expurgos stalinistas de 1937-38 dizimaram lideranças inteiras de partidos comunistas, como os poloneses.
Entre as melhores contribuições está o trabalho de J.-L. Margolin, que tenta explicar o conjunto das mortes violentas atribuídas ao regime maoísta evocando os seis a dez milhões de vítimas diretas, além das dezenas de milhões de contra-revolucionários que passaram um longo período de suas vidas no sistema penitenciário e onde talvez 20 milhões ali morreram. Da mesma forma que Werth, essa revisão, apesar da falta de acesso aos arquivos, é bem-sucedida porque recupera uma tradição de violência na sociedade chinesa.
O modelo do comunismo chinês no triunfo da revolução de 1949 já está claramente delineado: concentração da dinâmica revolucionária sobre a construção do Estado e concentração desse Estado, guerreiro por natureza, sobre a construção de um exército capaz de enfrentar o Estado e o Exército presidido pelos "fantoches" inimigos, no caso Chiang Kai-shek. Como aponta Margolin, estamos bem longe do comunismo soviético ou do marxismo: é por intermédio do bolchevismo, reduzido a uma tomada de poder e de reforço de um Estado nacional-revolucionário, que os revolucionários chegaram ao comunismo. É desde cedo o "socialismo de caserna" (tribunais de exceção, pelotões de execução) que é instalado. O Grande Terror stalinista dos anos 1936-38 foi precedido por aqueles dos sovietes chineses entre 1927 e 1931. Mas qualquer comparação ou aproximação entre as duas experiências deve levar em conta que a revolução chinesa de 1949 se propagou dos campos para as cidades: os expurgos urbanos foram precedidos pelo movimento da reforma agrária.
Mao Tsé-tung, em novembro de 1950, sanciona os massacres em curso, quando as tropas chinesas entram no conflito coreano: "Em nenhuma dúvida nós devemos matar todos os elementos reacionários que merecem ser mortos". A análise da revolução cultural como um "totalitarismo anárquico", entre 1966 e 1976, mostra que, no quadro de uma rebelião repressiva, a dimensão terrorista era inseparável do comunismo chinês.
As análises dedicadas aos outros continentes, como a África e a América Latina, fazem emergir a violência dos socialismos e comunismos ou das revoluções a partir de um contexto de pacificação, de não-violência, que nunca existiu em nenhuma sociedade. A patética avaliação dos socialismos latino-americanos é, sem dúvida, a pior parte do livro.
A América Latina, durante toda a existência da Internacional Comunista, desde 1919 até a Segunda Guerra, teve um papel acessório, sendo o continente associado às sociedades "semicoloniais". A informação era precária e limitada. Essa sina se reflete em "A América Latina à Prova dos Comunismos", que parece mais um enredo de escola de samba carioca, colocando a repressão latino-americana de inspiração socialista e comunista num mesmo bloco, saltando contextos e periodizações. As vítimas são estimadas em 150 mil, um amálgama de contagens delirantes. O resultado é que cada sociedade referida perde a sua especificidade, sem falar da falta de referência ao contexto internacional.
Enfim, o que resta depois de todo esse périplo? Apesar de vários autores como Nicolas Werth terem criticado no jornal "Le Monde" a apropriação politizada do "Livro Negro", traduzida num intenso cruzar na mídia, a responsabilidade maior está no prefácio sensacionalista, feito por Stephane Courtois. Talvez uma excelente operação mediática, mas operação simplificadora das grandes contribuições do livro. Não há mais nenhuma dúvida sobre a legitimidade de estabelecer algumas relações entre os campos de concentração nazista e os horrores dos gulags de diversa procedência comunistas. Mas, como lembrava Moshe Lewin, num artigo em meio à tormenta suscitada pelo livro, quaisquer que tenham sido os traços similares num determinado período entre o fascismo e o regime soviético (especialmente sob o stalinismo), jamais se deve mascarar o fato que suas trajetórias diferentes puderam oferecer futuros diferentes, o fim do comunismo soviético está aí para provar. Uma lição pode ser retirada de "O Livro Negro": a reconstituição da história da violência jamais pode ser retirada das configurações complexas onde a repressão ocorre.
Paulo Sérgio Pinheiro é professor de ciência política na USP e autor de 'Estratégias da Ilusão - A Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935) (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo

FREUD E SEU DUPLO - REFLEXÕES ENTRE PSICANÁLISE E ARTE


O poeta e o psicanalista
09/Mai/98
Yudith Rosenbaum
LITERATURA; POESIA; PSICANÁLISE; NOEMI MORITZ KON /AUTORA/; FREUD E SEU DUPLO - REFLEXÕES ENTRE PSICANÁLISE E ARTE /LIVRO

o escritor austríaco Arthur Schnitzler assim se refere a uma curiosa carta de Freud a ele endereçada, em maio de 1922 : "Por algum aspecto eu me constituo no 'duplo' do professor Freud. Freud me definiu certa vez como seu gêmeo psíquico. Na literatura percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Entretanto, ambos, o poeta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma".
Nessa carta, ponto de partida do interessante estudo de Noemi M. Kon, Freud faz uma "confissão extremamente íntima". Tocado por uma "estranha sensação de familiaridade", reconhece no romancista uma identidade ameaçadora, "uma espécie de temor de encontrar meu 'duplo'±". Referindo-se a Schnitzler como um "explorador das profundezas", Freud afirma: "O senhor sabe por intuição -realmente a partir de uma fina auto-observação- tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho".
O aproveitamento que Moritz Kon faz dessa ameaçadora afinidade entre o analista e o artista rompe os limites estreitos de um paralelo simplista. O resultado é a minuciosa composição de uma sinfonia, cujas vozes melódicas se articulam harmonicamente para construírem uma obra psicanalítica singular.Vejamos as melodias que tecem essa escrita/partitura.
Três vertentes se entrelaçam no entendimento das relações ambíguas de Freud com a arte e o artista, desenhando os três movimentos sinfônicos desse ensaio. O primeiro deles se volta para o contexto de Viena do fim-de-século, buscando no "zeitgeist" (espírito do tempo) possíveis ressonâncias no pensamento freudiano. A conformação do chamado "homem psicológico", como nos elucida a autora, é um fenômeno europeu maior, alicerçado na atmosfera de derrocada do espírito clássico, de acolhimento do irracional e reconhecimento da essência múltipla e contraditória do ser humano. O movimento artístico e cultural denominado Secessão, na Viena finissecular, condensa todas essas características e fertiliza as produções freudianas, simultaneamente fruto da crise dos valores liberais do século 19 e matriz de um novo lugar para o imaginário.
Esse novo tempo histórico, Freud compartilha com outros artistas (entre eles, Klimt e Mahler), todos eles comprometidos com a veia conflituosa entre o ficcional e o científico. E aqui desdobra-se a segunda e fundamental vertente desse ensaio: a relação entre psicanálise e estética, pensada com originalidade a partir da ótica sensível da filosofia de Merleau-Ponty. Na crítica pontyana ao subjetivismo filosófico, tanto quanto ao objetivismo científico, a autora encontra uma afinidade inextricável com o olhar radical da psicanálise, que, antes de ser desvendamento do que se oculta -arqueologia do recalcado-, é criação de sentidos, produção (e não mera tradução) de significados. "O fazer psicanalítico", diz-nos Noemi M. Kon, "é um fazer criador, no sentido de que engendra realidades, ou sentimentos de realidade, no lugar de fazer advir uma realidade já conformada, desde antes, mas esquecida".
É contra a noção de "latência", que ainda resiste entre os analistas atuais, que se insurge a autora, tentando desmistificar a idéia de um significado oculto que se disfarça. A discussão sobre a imanência entre sentido e forma, pano de fundo desse ensaio, logrou avanços mais expressivos na teoria literária (em particular, na estilística de Auerbach e de Spitzer) do que na psicanálise. Ainda prevalece, nessa última, a anterioridade dos pólos dessa equação, seja do significado sobre o significante, ou vice-versa (como na psicanálise lacaniana). Daí ser bastante oportuna a problematização de Noemi Kon, fazendo reverberar a força criadora da arte na prática psicanalítica. A importância do livro está, sobretudo, em deslocar o leitor de uma compreensão cômoda do que seja a relação analítica, dinamizando o campo da psicanálise ao pensá-la como experiência estética.
A base epistemológica desse estudo inspira-se na potência poética da filosofia pré-reflexiva de Merleau-Ponty, que toma o gesto do pintor pós-impressionista como emblema de uma não-representatividade figural, ou seja, gesto demiúrgico do que se dá a ser a partir de seu próprio fazer. Antimimese, portanto, que recusa a dicotomia consciência/mundo, sujeito/objeto, palavra/coisa. Inspira-se a autora no pintor Paul Klee -"a arte não reproduz o visível, faz visível"- e o parodia com precisão: "A psicanálise não reproduz o audível, ela faz audível".
A discussão nos convida a revisitar o conceito de interpretação, suporte até hoje de uma leitura do humano que a psicanálise pretende ser. Que lugar caberia à interpretação, se analista e paciente forem pensados como sujeitos igualmente implicados na produção de sentidos irredutíveis a um último núcleo latente? O modelo proposto pela autora não considera a psicanálise uma hermenêutica (ciência da interpretação), o que traz implicações no modo de olhar o fenômeno psíquico. "Hermeneuein", palavra grega, significa trazer mensagens, agir como Hermes, o deus mensageiro. Se não há mensagens a serem traduzidas do latente ao manifesto, trata-se de uma nova psicanálise, reconhecida não mais pelo vértice científico, mas pelo estético. Freud, nos diz a autora, vislumbrou esse caminho, mas não o sustentou.
Temeroso de perder-se da severa via científica, Freud reluta em entregar-se à força do imaginário -tão poderosa em sua escrita artística- que o conduz na exploração do inconsciente. Esse seria, por fim, o terceiro pilar do estudo de Noemi Kon, que tem no texto de Monique Schneider ("La Realité et la Résistance à l'Imaginaire", 1977) sua âncora teórica. Preocupada em depreender uma possível teoria estética da obra freudiana, Schneider acaba desvendando uma "dupla navegação" do pensamento psicanalítico nos embates com a figura do artista: ora se acumplicia com ela, ora dela se defende. "O que está em jogo aqui", afirma Kon, "é o estatuto do imaginário para Freud e a psicanálise", entendendo-se a posição oscilante e ambígua de Freud frente ao artista como deslocamento de sua relutância maior em legitimar a fantasia no processo criador do cientista.
Aberta às irrupções luminosas do informe, do estranho familiar em nós, a autora se alinha, ao final do livro, com as teorias mais recentes que discutem psicanálise e arte, apontando justamente a dimensão paradoxal irredutível da experiência estética na prática psicanalítica e na própria existência humana. A noção de "espaço potencial", do psicanalista Winnicott, ganha destaque, bem como o conceito de "formatividade", do esteta italiano Luigi Pareyson. Ambos consagrariam o que Freud não conseguiu reconhecer sem hesitações e que a pergunta da autora sintetiza: "Cabe a nós aceitar a dimensão da criação, da positividade do imaginário, constituinte da psicanálise, e assim nos aproximarmos do duplo de todos nós, materializado na figura do poeta por Freud?".
Inevitável perguntarmos, na contramão do presente estudo, o que impediria a psicanálise de ser arte, uma vez que o artista também constrói por meio de "laborioso trabalho" -e que Freud parece esquecer quando menciona apenas a intuição do seu duplo, Schnitzler. Certamente, essa trilha nos levaria a outro livro, igualmente importante num tempo em que as diferenciações (sexuais, científicas, artísticas, políticas) tendem a se dissolver no campo analógico das similitudes. Por isso, o livro de Noemi Kon pede um leitor cuidadoso, que saiba percorrer o meio-fio de suas idéias sem perder os contornos, tanto da psicanálise, quanto da arte.
"Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar", afirmou certa vez o hermeneuta Paul Ricoeur. Após a leitura de Freud e seu duplo, poderíamos dizer que onde quer que alguém interprete (para muitos, ainda, o ofício do analista), o outro dele mesmo se ergue para sonhar e poetizar.

Yudith Rosenbaum é psicóloga e autora de "Manuel Bandeira - Uma Poesia da Ausência" (Edusp/Imago).

Folha de São paulo