REPENSAR A AMÉRICA LATINA NA GUERRA FRIA COMO PARTE DO SUL GLOBAL
Flóres Giorgini
FIELD, Thomas C. Jr; KREPP, Stella; PETTINÀ, Vanni. Latin America and the Global Cold War. The New Cold War history. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020. 440
Latin America and the Global Cold War foi publicado na coleção The new cold war history, dirigida por Odd Arne Westad, autor também do curto posfácio do texto. O objetivo dessa coletânea é publicar livros que proponham novas interpretações do período da Guerra Fria a partir de pesquisas em arquivos da China ou dos países da antiga URSS, entre outros. De forma mais geral, a new cold war history, é uma tentativa, formulada no final dos anos 90 do século passado, de repensar o paradigma que estava na base da maioria das pesquisas sobre o período que começa no pós-guerra e que o considera como caraterizado exclusivamente pelas principais tensões em termos militares e econômicos entre o bloco ocidental e soviético. Entre as várias implicações dessa perspectiva tem o fato de considerar tudo que aconteceu fora desses dois blocos, na “periferia” da Guerra Fria, como sendo sem importância para a compreensão histórica do período. Com relação a esse ponto, a perspectiva da Global Cold War mostra como, ao contrário, os países do Terceiro Mundo, ou mais recentemente, do Sul Global, foram os palcos de alguns dos principais conflitos do pós guerra, e como, ao mesmo tempo, é impossível entender as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais nesses países sem levar em conta as intervenções internacionais das duas superpotências. Isso não significa, no entanto, considerar esses países como meras peças no tabuleiro da Guerra Fria. As políticas e iniciativas desses países eram, ao invés disso, fruto da articulação entre interesses nacionais, estratégias políticas dos governos locais e o contexto de tensão internacional. Nessa linha de pesquisa, o trabalho de Westad e seu livro, de 2005, The Global Cold War foram sem dúvida seminais (WESTAD, 2005).
Outros trabalhos nessa linha tentaram sublinhar as articulações complexas entre políticas internacionais dos dois blocos, movimentos de emancipação e dinâmicas do desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo através de perspectivas variadas, tanto transnacionais quanto internacionais (BLECHA, BREZINOVÁ, MANKE, 2017). Esses estudos apontam para a necessidade de descentrar o olhar histórico sobre o período da Guerra Fria para dar mais espaço aos territórios e aos atores nacionais e internacionais que até muito recentemente eram considerados como marginais pela estrutura da narrativa histórica canônica. Se a maioria das pesquisas não chega a recolocar em questão a legitimidade dessa narrativa para falar da história dos países não alinhados, como o fez Wallerstein (WALLERSTEIN, 2010), ela tenta mesmo assim enriquecê-la com as experiências dos países do Sul Global. Mas relativamente poucos estudos até hoje tentaram integrar a experiência dos países da América Latina nesse esquema conceitual.
Como o título do livro em questão indica, o texto organizado por Field Jr., Krepp e Pettinà se inscreve primeiramente nessa linha de pesquisa. As raízes do projeto estariam em um workshop organizado por Krepp, em 2014, em Berna, na Suíça, e do qual participaram também Pettinà e Field Jr.; assim como em uma apresentação conjunta dos três futuros editores do livro, em 2015, sobre a questão do desenvolvimento na América Latina durante a Guerra Fria. Foi nesses dois eventos que surgiu e tomou forma a ideia de um texto no qual a história contemporânea do continente latino-americano teria sido escrita a partir de uma perspectiva de história global (de uma perspectiva capaz de reconstruir a história da América Latina levando em conta as relações e interações múltiplas e complexas entre os diferentes atores, em contextos locais e internacionais, por cima e por baixo das fronteiras nacionais), que teria permitido, ao mesmo tempo, “provincializar” os estudos das superpotências – principalmente dos EUA – e pensar a América do Sul além do hemisfério ocidental.
Pois, uma das principais constatações dos editores na introdução do livro é que as múltiplas relações entre a América Latina e o resto do Sul Global teriam sido esquecidas pelos historiadores interessados na história contemporânea do continente. Isso seria em grande parte consequência de uma historiografia sobre o Terceiro Mundo, e sobre o terceiro mundismo, baseada na maioria dos casos apenas nas experiências dos países dos blocos socialista e afro-asiático; mas também de certa relutância dos historiadores latino-americanos em abandonar narrativas históricas fundadas na ideia da excepcionalidade nacional das evoluções econômicas, políticas e sociais de cada país. A essa perspectiva histórica soma-se outra, comum entre os historiadores das relações internacionais, interessados na Guerra Fria, centrada no impacto dos Estados Unidos no continente sul-americano. Como consequência, a história contemporânea da América Latina raramente é pensada para além de suas fronteiras e ainda menos como parte da história do Sul Global.
Dentre as iniciativas mais recentes, que permitiram reavaliar o lugar da América Latina nesse contexto mais amplo, os autores citam os estudos que repensaram o próprio conceito de Terceiro Mundo, sublinhando a sua dimensão política antes que territorial ou étnica. As contribuições do livro permitem ir mais longe na reformulação da história desse movimento histórico e – através do estudo das realidades locais, nacionais e regionais latino-americanas no período da Guerra Fria – mostrar as múltiplas e complexas “conexões e interações que existiam entre a América Latina e as outras regiões conhecidas coletivamente como o Terceiro Mundo” (p.7). Mais do que isso, o livro propõe repensar a “história da América Latina como parte da história do Terceiro Mundo”, estudando as várias manifestações do “terceiro mundismo latino americano” no período da Guerra Fria (Ibid).
Sem dúvida essa perspectiva constitui uma pista muito pouco explorada até agora no que diz a respeito à maneira de pensar a história do continente latino-americano no período pós-guerra e principalmente as imbricações complexas entre experiência latino-americana, movimento do Terceiro Mundo e lógicas próprias à Guerra Fria. No entanto, parece importante lembrar aqui o trabalho do historiador chileno Eduardo Devés Valdés que, apesar de partir de uma perspectiva histórica diferente, de história intelectual e de não se debruçar sobre às questões ligadas à Guerra Fria, já estuda há um tempo o “pensamento periférico” (VALDÉS, 2017) e as circulações intelectuais entre América Latina, África e Ásia, dentro do que ele chama de “mundo periférico” (VALDÉS, 2003). Vale mencionar também o trabalho de outro historiador chileno, German Fuschini Alburquerque que desde 2010 tem publicado vários artigos (ALBURQUERQUE, 2010; ALBURQUERQUE, 2011; ALBURQUERQUE, 2014) sobre o terceiro-mundismo e o não alinhamento de vários países da América Latina.
O livro conta com a participação de 15 pesquisadores, cujas contribuições foram selecionadas pelos editores e revisadas por pares. A maioria (9) deles obteve seu doutorado em uma Instituição nos Estados Unidos ou a ela está ligado atualmente. Se a esses adicionamos os que prepararam suas teses de doutorado ou trabalham em instituições do Reino Unido (3), vemos aparecer um grupo de autores em larga parte ligados ao mundo da pesquisa anglo-saxã. Apenas três, considerando as informações disponíveis, têm atualmente alguma ligação profissional com instituições latino-americanas ou realizaram parte de sua formação doutoral no continente.
Com relação à natureza multifacetada do livro, gostaria de chamar a atenção para o interesse de tratar de forma colaborativa o tema em questão. De fato, essa forma seja talvez a única que permite escrever uma história realmente global da América Latina, além de mostrar todas as potencialidades e o interesse da cooperação entre pesquisadores na produção do saber científico, ainda mais em áreas, como a das ciências humanas e sociais, onde o trabalho de pesquisa continua, às vezes, sendo muito centrado na produção individual.
Um dos méritos principais desse trabalho coletivo é o fato de as contribuições reconstruírem as histórias das múltiplas conexões entre os países latino-americanos e o Terceiro Mundo com base em fontes provenientes de arquivos situados em 19 países: Argélia, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Cuba, Tchecoslováquia, República Dominicana, Alemanha, Guatemala, Rússia, França, Haiti, Índia, México, Nicarágua, Panamá, Reino Unido e Estados Unidos. Esse trabalho demanda o domínio de várias línguas e certa familiaridade com a organização dos arquivos nos diferentes países – além do tempo e dos recursos financeiros necessários para poder viajar até cada um deles. Tal conjunto de elementos, incontornáveis para tratar de uma coleção de documentos tão vasta, seria dificilmente acumulável por um só indivíduo.
Além disso, parece-me que cada contribuição adquire mais valor quando articulada com o conjunto das outras que podem explorar experiências similares, mas também diferentes, em outros países ou em momentos distintos ou ainda a partir de diversas perspectivas históricas, mostrando assim a complexidade e a riqueza do momento analisado.
Mas se a perspectiva proposta pelos editores e articulada pelos pesquisadores que participaram da escritura do livro constitui uma tomada de posição importante a favor da integração da América Latina na história do Sul Global, isso não deve nos fazer esquecer o valor de cada contribuição e do conjunto delas na historiografia sobre a inserção da América Latina na história do Terceiro Mundo ao longo do século passado.
O livro, desse ponto de vista, é uma contribuição fundamental, que traz histórias múltiplas e variadas sobre o assunto. Ele está dividido em duas partes, ambas muito bem equilibradas em termos de páginas e capítulos (7 para cada parte), intituladas respectivamente Third World Nationalism e Third World Internationalism. Digamos, logo de partida, que alguns artigos poderiam muito bem estar em uma ou outra seção, mostrando que as duas dimensões das interações entre experiências latino-americanas e Terceiro Mundo – lato senso – são muitas vezes complementares.
Na primeira parte, as contribuições tratam, em boa medida, do uso estratégico feito pelos governos latino-americanos do vocabulário terceiro mundista e do contexto internacional – da aparição do movimento dos países não alinhados (MNA) – para sustentar seus interesses políticos e econômicos nacionais, com relação aos diferentes blocos da Guerra Fria.
Um bom exemplo dessa dinâmica, apontada também por outros autores, é o estudo de Thomas C. Field Jr. (Capítulo 2) que analisa parte da experiência do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), partido que chegara ao poder na Bolívia em 1952 e que recebera centenas de milhões de dólares do governo estadunidense, apesar de conseguir nacionalizar as minas de estanho, implementar uma reforma agrária radical e manter relações com a Checoslováquia e com Cuba no começo dos anos 1960. Como entender essa experiência que parecia aproximar o país da postura dos países do MNA na procura de uma posição internacional de equidistância entre os dois blocos da Guerra Fria?
Para tentar responder a essa pergunta o autor analisa a política internacional e o contexto nacional do segundo governo Paz Estenssoro através do estudo conjunto de fontes bolivianas, mas também de fontes produzidas por agentes dos Estados checo, cubano e estadunidense, durante suas respectivas tentativas de atrair o Estado boliviano em suas áreas de influência. A experiência boliviana é um bom exemplo dos limites das tentativas dos governos nacionalistas latino-americanos em desenvolver uma política externa de não alinhamento e da tensão entre a implementação dessa lógica na esfera internacional e a pregnância do esquema da oposição entre os blocos da Guerra Fria na mentalidade dos atores implicados no contexto latino-americano.
Em relação a este último ponto, o texto de David M. K. Sheinin (Capítulo 7) coloca em questão a ideia geralmente aceita pela historiografia nacional e pela opinião comum argentina de que o país teria se mantido à margem dos conflitos entre as grandes potências da Guerra Fria e de suas estratégias internacionais por causa de sua implementação, na esfera internacional, da tercera posición elaborada por Juan Perón nos anos 1950. O autor, na contramão desse lugar comum da historiografia nacional, considera que a “tercera posición da Argentina” nunca foi mais do que “uma vaga declaração de intenção” (p. 194) e que as convergências ocasionais entre os interesses dos governos argentinos e dos membros do MNA nunca “comprometeram uma sólida e vital política externa em favor de Washington” (p.176), fruto também do forte anticomunismo das elites políticas argentinas.
Os dois artigos que tratam do Brasil, escritos por Miguel Serra Coelho (Capítulo 1) e Stella Krepp (Capítulo 4), situam-se também nessa primeira seção do livro e estudam as relações bilaterais do país com a Índia independente após 1947 e sua participação nos dois primeiros encontros do MNA, em 1961 e 1964. Ambos consideram que o interesse do Brasil pelo bloco dos países afro-asiáticos e por sua política de não alinhamento estava, na maioria dos casos, ligado a interesses nacionais imediatos – como o eventual apoio desses novos países aos projetos brasileiros na Organização das Nações Unidas – ou econômicos de “renegociação da ordem econômica global” (p.118). O subdesenvolvimento econômico e suas causas internacionais teriam sido assim o principal ponto de encontro entre os interesses do Estado brasileiro e o movimento do Terceiro Mundo.
Os dois autores sublinham como de fato os representantes internacionais brasileiros pensavam o país como profundamente ligado ao bloco ocidental, política e culturalmente. A esse respeito, seria interessante saber até que ponto essa representação da identidade brasileira pode ser considerada como expressiva da autoimagem nacional de outros setores da sociedade brasileira ou se, ao contrário, ela estaria ligada à origem socioeconômica bastante homogênea dos funcionários e diplomatas do Itamarati nesse período (1940 – 1970).
Outro estudo, que parte da concepção econômica do Terceiro Mundo para pensar as ligações entre suas diferentes partes é o de Sarah Foss (Capítulo 5) sobre a experiência do National Program of Community Development, lançado pelo governo da Guatemala, em 1964. A partir da implementação dessa política na cidade de Tactic, a autora pôde observar interesses e objetivos divergentes perseguidos pelos diferentes atores implicados nesse projeto, assim como o uso estratégico feito por alguns deles da identidade com o Terceiro Mundo. Em uma perspectiva parecida, Miriam Elizabeth Villanueva (Capítulo 13) estuda também, na segunda parte do livro, os usos estratégicos da retórica anti-imperialista e terceiro mundista pelo general Omar Torrijos Herrera e o governo militar panamense (a partir de 1968). O líder militar e a elite no poder teriam de fato se aproveitado da retórica terceiro mundista e anti-imperialista para incentivar ao mesmo tempo o apoio popular ao novo governo e o apoio internacional a suas tentativas de negociar com os Estados Unidos a restituição do Canal do Panamá, inserindo-se em discussões globais sobre o anticolonialismo e a libertação do Terceiro Mundo (p. 345).
Completam essa primeira parte do livro mais dois artigos escritos por Vanni Pettinà (Capítulo 3) e por Michelle Getchell (Capítulo 6) sobre, respectivamente, as relações entre México e URSS no final dos anos 1950 e começo da década seguinte, e a política externa cubana, promovida por Fidel Castro, de inserção no bloco afro-asiático. O texto de Pettinà aponta para uma questão importante, que é a de considerar as relações entre a América Latina e os países do bloco socialista para estudar as formas de identificação do continente americano com o Terceiro Mundo – assim como suas tentativas de aproximação dos países do MNA – e vice-versa. No caso específico do México, de fato, a tentativa do governo López Mateos no final dos anos 1950 em construir pontes com a URSS era parte de um projeto mais amplo de recolocar em questão a rígida aliança entre o país e o vizinho norte-americano no contexto da Guerra Fria (p.74) Como afirma também Field Jr., uma das melhores maneiras de identificar os interesses da América Latina para o não alinhamento do Terceiro Mundo é explorar as relações com os países socialistas do Leste Europeu e Cuba (p. 46).
Com relação ao papel de Cuba, o texto de Michelle Getchell aponta, por sua vez, para as tensões que existiam entre a política externa desse país e a da URSS com relação ao restante do continente latino-americano, atritos que minavam os esforços do bloco socialista em atrair os outros países da região para sua órbita no campo na Guerra Fria. Além disso, a autora sublinha também o papel central de Cuba no processo de assimilação do continente latino-americano ao Terceiro Mundo (tanto no nível político, como nas representações sociais), através de suas tentativas de defender os interesses nacionais e de se emancipar da dependência com a União Soviética – dependência econômica e política às vezes especular àquela de outros países latino-americanos com os Estados Unidos.
A centralidade de Cuba como ponte entre os países afro-asiáticos e os ibero-americanos é também sublinhada por Eric Gettig, que escreveu o outro texto do livro sobre a política externa do governo castrista com relação aos principais fóruns do “projeto do Terceiro Mundo”, segundo a expressão de Vijay Prashad, citada pelo autor (Capítulo 10). Nesse capítulo, já na segunda parte do livro, o autor afirma que o impacto cubano sobre as formas de associação entre os países da América Latina e o projeto do Terceiro Mundo foi, ao mesmo tempo, “direto, influenciando a forma como os indivíduos e governos latino-americanos agiram com relação ao Terceiro Mundo e suas instituições emergentes”, mas também indireto, pois Cuba se tornou o motor dos esforços correspondentes dos Estados Unidos para moldar o envolvimento latino-americano com esse movimento internacional (p. 241).
Na segunda seção do livro, encontramos pesquisas sobre as diversas, e interessantíssimas, iniciativas de atores latino-americanos para construir redes de solidariedade internacionais em apoio às lutas travadas no nível nacional, como é o caso da Frente Sandinista de Liberación Nacional e de seus esforços para construir uma base de legitimação e apoio internacional para sua revolta contra a dinastia Somoza, tema estudado por Eline Van Ommen (Capítulo 14).
Essa seção explora as múltiplas interações entre os diferentes atores latino-americanos, o mundo socialista, os Estados Unidos e o Terceiro Mundo, como no texto de Tobias Rupprecht (Capitulo 9). Rupprecht estuda os relatos de viagem de alguns intelectuais latino-americanos considerados como terceiro-mundistas que viajaram à URSS entre 1950 e 1970, para mostrar as múltiplas imbricações entre terceiro-mundismo e fascínio pela experiência socialista-soviética entre os atores latino-americanos. Seu texto recoloca em questão a ideia de que o socialismo soviético teria perdido interesse para os intelectuais latino-americanos ao longo da década de 1960, mostrando como vários deles, de origem social simples e membros de grupos marginalizados no nível nacional, continuavam vendo a União Soviética como um modelo positivo de construção de uma sociedade mais justa – pelo menos no que dizia respeito à questão da redistribuição das riquezas.
Outros textos nessa segunda parte do livro exploram as circulações de indivíduos e ideias e sua importância para a construção de identidades supranacionais e de redes de solidariedade transnacionais. Esse é o caso do texto de Alan McPherson (Capitulo 8) que lembra como vários atores políticos e sociais latino-americanos, desde o começo do século XX, imaginavam comunidades – para retomar a clássica ideia de Benedict Anderson (ANDERSON, 2008) – mais amplas do que as delimitadas pelas fronteiras nacionais e como nessas construções imaginárias a questão “racial” era central ainda no período entre as duas guerras mundiais. No estudo sobre a constituição de redes transnacionais de oposição à ocupação norte-americana no Haiti e na República Dominicana (1916–1934), o autor aponta também o papel dos Estados Unidos no surgimento da identificação das populações locais com narrativas mais amplas, como a do pan-africanismo para a sociedade haitiana. O papel dos Estado Unidos na consolidação do Terceiro Mundo já tinha sido apontado por Westad (WESTAD, 2005), e McPherson mostra mais uma de suas facetas com relação ao nascimento de uma consciência racial no Haiti em oposição à ocupação norte-americana claramente marcada por essa questão.
A importância das origens étnicas, como canal de aproximação privilegiado a ser tomado em consideração para entender o interesse das sociedades latino-americanas pela causa dos países afro-asiáticos e sua identificação, ou não, com essas populações, é também apontada por Eugenia Palieraki no único texto do livro sobre o Chile (Capítulo 11). Neste, a autora explora as relações entre os movimentos de esquerda e os governos chilenos e algerianos, entre 1956 e 1973, mostrando como a qualidade dos contatos entre os dois países evoluíram nesse período, passando de alguns encontros informais, através do Comité Chileno Pro-Autodeterminación da Argélia, à abertura da embaixada chilena em Argel, em 1963. O Comité pela autodeterminação da Argélia foi fundado em 1956 dentro da comunidade da diáspora árabe no Chile, com o apoio de partidos políticos nacionais de centro e de esquerda.
Outro texto nessa seção do livro explora a estruturação de redes de solidariedade internacionais em torno de interesses convergentes de atores latino-americanos e afro-asiáticos. Um exemplo é o esforço conjunto desses países para construir a Nova Ordem Econômica Internacional (NIEO em inglês) e para reduzir as desigualdades nas relações econômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Dentre os documentos que formavam o núcleo desse projeto internacional estava a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1974, e elaborada a partir de uma iniciativa do governo mexicano e de seu presidente na época, Luis Echeverría. Estudando as origens dessa proposta, Christy Thornton (Capitulo 12) considera que os seus princípios estariam na experiência do México revolucionário dos anos 1910 e em seus planos, desde então, para reestruturar a organização da esfera internacional. Essa perspectiva, segundo Thornton, permitiria rescrever a história de uma iniciativa fundamental dos países subdesenvolvidos mostrando a importância da participação latino-americana e sua gênese além das lutas do bloco afro-asiático e do contexto histórico de crise do sistema capitalista dos anos 1970.
Infelizmente não é possível, no espaço desta resenha, analisar de forma mais detida todas as contribuições que traz esse livro, a meu ver incontornável para quem se interessa pelas relações entre América Latina e Terceiro Mundo na segunda metade do século XX, ou simplesmente pela história da inserção do continente sul-americano na Guerra Fria. Em conclusão, podemos dizer que pensar a história contemporânea da América Latina como parte do Sul Global permite aos diferentes autores recolocar em questão várias interpretações canônicas sobre o passado recente desses países. Além disso, algumas questões recorrentes nos capítulos do livro, e que tentei apontar no meu texto, permitem balizar sendas para futuros estudos sobre a inserção da América Latina na história do Terceiro Mundo. Por fim, pensamos que as numerosas questões e reflexões que surgem durante a leitura mostram ainda mais a necessidade de continuar pesquisando esse período formador de nossa realidade contemporânea a partir do esquema conceitual proposto pelo livro.
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