sábado, 19 de junho de 2010

História social da infância no Brasil


Fábio Bezerra de Brito
Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral - Neho - USP


FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.

Notadamente nos últimos quinze anos, infância e juventude têm se constituído tema de pesquisa para as ciências humanas no Brasil, mais precisamente o interesse da academia em aprofundar a reflexão e o conhecimento sobre a menoridade definiu-se em meados da década de oitenta. Ao mesmo tempo guia e desdobramento da efervescência dos movimentos sociais em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, a produção inicial concentrou-se no exercício de revisão e de crítica das políticas sociais empreendidas durante o Estado autoritário pós-1964, carregando traços característicos do espírito de militância política do período de transição democrática. Sem limitar-se à denúncia dos conteúdos autoritários subjacentes às práticas assistencialistas governamentais, incorporou a sua agenda propostas alternativas visando contribuir para mudanças nas políticas públicas e para a reforma de instituições.

Um dos méritos dessa primeira onda de publicações foi trazer à superfície dramáticas circunstâncias vividas por setores marginalizados da população infanto-juvenil, garantindo a incômoda visibilidade de determinados meandros da problemática do menor que os governos militares procuraram conservar submersos. Por toda parte, situações críticas ocultas – ou tratadas com indiferença – ficaram evidentes. A comoção pública e o movimento de entidades da sociedade civil em torno da questão dos menores ensejaram conquistas sociais expressivas. Os direitos dos adolescentes e das crianças foram assegurados na Constituição de 1988 e regulamentados no Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Eles tornaram-se sujeitos de direitos cuja prioritária efetivação caberia não somente à família, mas também à sociedade e ao Poder público. Nas ciências humanas, destacou-se a posição de redirecionar pesquisas com vistas a pesquisar a história da mais nova categoria social cujos direitos eram reconhecidos. Impôs-se a opinião de que – além de investigar recentes experiências sociais protagonizadas por menores – era necessário escrever a esquecida história das crianças no Brasil.

Esse objetivo deu origem ao livro História da Criança no Brasil (DEL PRIORI, M. (org.). São Paulo: Contexto, 1991) que deu à infância, pela primeira vez, dimensão histórica própria. Seis anos depois, o modelo desse livro inspirou a obra coletiva História Social da Infância no Brasil. Ambas coletâneas são igualmente vinculadas a núcleos de estudos preocupados com a menoridade nacional. O livro de Del Priori originou-se do pioneiro Centro de Demografia Histórica da América Latina (Cedhal) sediado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O volume organizado por Freitas anuncia-se como o primeiro da série trienal homônima sob responsabilidade do Núcleo de Estudos Avançados em História Social da Infância do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica do Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco.

As convergências entre os livros tomam menor relevo quando eles são vistos de perto. Del Priori reuniu nove artigos partindo de ponto de vista historiográfico para atingir o objetivo de constituir abrangente visão sobre o passado da criança brasileira por meio da pesquisa e da redefinição ampliada do documento histórico. Freitas adotou abordagem de caráter multidisciplinar, enfeixando 13 artigos de diferentes áreas de conhecimento em pouco mais de trezentas páginas. Esta reunião de textos de cientistas de tradições disciplinares diversas – historiadores, antropólogos e críticos literários – poderia resultar em um conjunto instável e pouco consistente, mas não resultou. A história social do título dilatou-se em história das representações sociais, da educação, das idéias, e em crítica literária, mas a leitura do livro, sem perder coerência, ganhou em interesse, demonstrando, de resto, a relevância do olhar multidisciplinar sobre objetos comuns às humanidades.

Abrindo a coletânea, Míriam Moreira Leite apresenta e comenta ligeiramente seleção de excertos sobre a criança brasileira no século XIX que habilmente retirou de livros de viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil durante o século passado e de registros autobiográficos de homens e mulheres que viveram a infância nessa época. Os escritos considerados relevantes estão dispostos em dois grupos temáticos: as marcas da escravidão e preparo para vida adulta. O critério de agrupamento visou a composição de panorama representativo com imagens do cotidiano de crianças pertencentes às diferentes camadas sociais e etnias. É de destacar a persistência de problemas sociais apontados, evidente nos relatos de crianças abandonadas perambulando sem destino pelas ruas.

A roda dos expostos durou de 1726 a 1950 no Brasil – mais do que em qualquer outro país do mundo ocidental. Uma competente síntese da história desse mecanismo medieval, convertido em verdadeira instituição de assistência à infância desvalida, pode ser encontrada no artigo assinado por Maria Luiza Marcílio. Servindo-se de dados obtidos em aprofundadas pesquisas arquivísticas, Marcílio não só propicia ao leitor subsídios necessários à primeira aproximação do tema, como discute com lucidez as várias funções sociais desempenhadas pelas rodas dos expostos. Desse modo, descobrimos que os cilindros rotatórios de madeira teriam servido tanto aos casais pobres sem recursos para cuidar dos filhos, quanto à preservação da honra de moças solteiras grávidas. Sua utilização, além do mais, constituiu-se em esperto artifício de controle de natalidade para algumas famílias numerosas.

No artigo subseqüente, Mariza Corrêa pretende analisar discursos por trás dos planos de edificação de uma espécie de cidade-reformatório que serviria para abrigar menores pobres do Rio de Janeiro na década de 30. A autora primeiro identifica as correspondências – aliás bastante evidentes – entre as justificativas da ousada empreitada e certas posturas eugenistas disseminadas na comunidade científica brasileira a partir de fins do século passado. Revela posteriormente as concepções sobre mulher e sobre menor subjacentes ao arcabouço teórico dos que defendiam a construção desse espaço específico e vigiado para os pequenos abandonados e infratores. Para tanto, examina detidamente a idéia, corrente à época, de que se deveria reservar papéis preferencias às mulheres na assistência social porque estas seriam dotadas de sentimentos maternais que lhes dariam a vontade natural de atuar em obras sociais. No caso das instituições para menores, esses sentimentos permitiriam ainda a capacidade de reconhecer com mais eficiência futuros desvios comportamentais nos menores internados. Correia mostra também como a antropologia criminal e a psicometria influenciaram uma estratégia de prevenção à criminalidade baseada na identificação precoce de sinais determinantes de futura delinqüência. A eficiência de trabalhos profiláticos junto às crianças e adolescentes em situação de miséria cortaria pela raiz o próprio crime. Daí a concepção da cidade de menores enquanto um local privilegiado porque cientificamente administrado de regeneração social. Trata-se, no entanto, de mais um desses projetos que acabam nunca saindo do papel. Fato que – infelizmente – a autora não busca explicar. É de lamentar, enfim, que as plantas da cidade dos menores reproduzidas em anexo ao artigo estejam desbotadas e ilegíveis.

Segue-se o artigo de Carlos Monarcha, cujo objetivo principal consiste em aferir as representações sociais sobre a infância formuladas durante as duas primeiras décadas republicanas, baseando-se no estudo do conjunto arquitetônico da Escola Normal Caetano de Campos, situado na Praça da República em São Paulo. Segundo o autor, o prédio da escola, construído entre 1892 e 1894, visou a tradução em termos arquitetônicos de uma lição essencial para os republicanos paulistas: a instrução pública garantiria o progresso em direção a uma sociedade racionalizada e desenvolvida. Logo, o sentido da vida aos jovens herdeiros da República deveria ser infundido por meio de valores estéticos presentes nos edifícios onde estudariam, como "a escala monumental, a elegância severa e a sobriedade na decoração", pois "a arquitetura transforma-se em pedagogia eloqüente que ensina aos indivíduos os princípios da sociedade perfeita". É interpretação interessante que pode ser conferida, em parte, nas dezesseis ilustrações reunidas no fim do ensaio. Há imagens de meninos em aula e do material escolar usado por eles. Admire, especialmente, as fotografias do belíssimo pavilhão do Jardim da Infância demolido para a construção do Metrô República.

Fúlvia Rosemberg, em seu artigo, aborda o Projeto Casulo, um programa governamental de educação infantil de massa implementado pela Legião Brasileira de Assistência (LBA) em 1976. Ao examiná-lo, de forma minuciosa, a autora constata marcas da Doutrina de Segurança Nacional. Para Rosemberg, o Casulo era tanto estratégia de prevenção às sublevações sociais decorrentes da ignorância e miséria das camadas populares quanto meio do governo central manter atenta vigilância sobre o território nacional sem intermediação dos poderes locais. Legitimou-se, ainda, por meio de uma retórica nacionalista, um modelo de participação de comunidades no qual estas acabam arcando com o provimento da maior parte dos recursos financeiros necessários ao desenvolvimento de dado projeto social. A propósito, é importante lembrar a manutenção do Casulo como principal programa público de educação infantil até o início da década de 80, o que deixa claro a prioridade dada à expansão quantitativa à custas da qualidade de ensino e da formação de quadros docentes em tal nível de ensino.

Segue-se na coletânea, o artigo de José Geraldo Silveira Bueno, em que o autor analisa o papel desempenhado pelas instituições de educação especial na elaboração das representações sociais sobre o indivíduo considerado anormal, e o de Gilberta Jannuzzi, no qual a autora desenvolve sintética avaliação dos problemas, particularmente desafiadores, que comprometem a definição de um programa conseqüente de educação especial no Brasil. Para tanto, a autora aborda desde aspectos financeiros até aqueles relacionados ao inevitável vinculo à área de saúde pública, passando ainda pelas dificuldades decorrentes da ausência de dados estatísticos confiáveis sobre o número de deficientes brasileiros.

No mais tocante ensaio do livro, Marisa Lajolo recorta imagens sobre a infância na literatura brasileira e trama sugestivo painel entrelaçando os "Meninos Carvoeiros" de Bandeira à "Negrinha" de Lobato; uma lembrança da meninice sofredora de Carolina Maria de Jesus à canção "Pivete" de Chico Buarque e Francis Hime, entre outros testemunhos literários. O resultado delineado é uma triste história da menoridade brasileira, vítima indefesa do abandono social e da violência, uma história longe dos versos idílicos do poema "Meus oito anos", de Casimiro de Abreu, e dolorosamente perto do que constatou Mário de Andrade: "Piá não sofre? sofre". Ainda no campo da literatura, Ivan Rossef estuda as representações sobre a infância presentes na obra de Monteiro Lobato destinada às crianças e aos adolescentes. Busca demonstrar sobretudo a preocupação de Lobato em elaborar uma obra dotada de qualidades formativas que levasse em conta a especificidade dos jovens leitores sem, contudo, comprometer a qualidade narrativa.

Marta Maria Chagas de Carvalho contribui à coletânea com um ensaio no qual examina duas modalidades disciplinares sob cujas práticas discursivas e institucionais a infância brasileira esteve submetida. De um lado, a disciplina como ortopedia, predominante nos três primeiros decênios republicanos. Legitimada por discutíveis concepções científicas deterministas, era visão disciplinar que defendia intervenções profiláticas e corretivas nos potenciais degenerados descobertos pelos recursos da ortofrenia, pedologia e pediatria. De outro, a disciplina como eficiência, hegemônica a partir da década de 30, era influenciada pelo otimismo educacional dos anos 20 e fundamentava-se no poder docente de controlar os excessos derivados da maior liberdade conferida aos alunos pelas novas pedagogias.

O livro é encerrado com o artigo de Míriam Jorge Warde no qual se analisa o diálogo disciplinar entre a educação e a psicologia, quando a última irrompeu com ímpeto notável no campo do conhecimento a partir do final do século XIX. Para a autora, as conseqüências do intercâmbio de abordagens e de conhecimento mostraram-se marcantes e projetaram-se de maneira decisiva em movimentos e em práticas que mudaram formas e objetivos do ensino escolar ao situar a criança no centro do processo educacional.

Acreditamos que História Social de Infância no Brasil é livro que merece ser lido e consultado por especialistas e por todos aqueles preocupados com os problemas da infância e da juventude. Não é sempre que se encontram reunidos, fora das revistas especializadas, ensaios e artigos de qualidade dentro de um campo de estudo que ainda permanece academicamente pouco explorado no Brasil.

Revista de História - USP

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