Oracy Nogueira. Preconceito de marca. Edusp, São Paulo, 1998, 245pp
Teófilo de Queiroz Júnior
Professor aposentado do Departamento de Sociologia – USP
A Edusp (Editora da Universidade de São Paulo) acaba de publicar um respeitável trabalho de Oracy Nogueira, sociólogo falecido há três anos. Trata-se de Preconceito de marca. As relações raciais em Itapetininga.
Este estudo foi editado pela primeira vez, em 1995, como Relações raciais no Município de Itapetininga, fazendo parte de um volume de título quilométrico: Ensaio sociológico sobre as origens, as manifestações e os efeitos do preconceito de cor no Município de São Paulo.
O intervalo, de quase meio século, entre as duas publicações é de particular importância, seja ao se considerar o fato editorial, seja ao se avaliar as contribuições contidas no livro. Em termos editoriais, o trabalho de Oracy Nogueira, ora resgatado, conquista autonomia, ao tornar-se conteúdo único de um livro, com o aval acadêmico da editora e da professora, responsável por sua edição e apresentação, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Isso expressa indissimulável reconhecimento da competência do autor e da significação de sua obra. Já em termos de contribuições, elas ficaram um tanto ignoradas ou esquecidas por esse quase meio século, transcorrido entre as duas publicações.
A primeira destas, passadas quatro décadas, terminaria, muito provavelmente, na situação dos textos de edição esgotada, que se tornam restritos a bibliotecas especializadas, às estantes dos especialistas, menos difundidos e estudados do que certamente mereciam. Agora, a obra ressurge com seu rigor de pesquisa de campo e fontes, sustentando ponderações consistentes e férteis. Mas, a bem da verdade, deve-se reconhecer que, de alguma forma, essa permanência do trabalho em questão, no limbo sociológico, também lhe terá sido favorável. É que, nos anos 60, os chamados estudos de comunidade, aos quais este se filia, foram alvo de severa crítica, ao passo que hoje, muito provavelmente, ele já encontrará leitores menos indispostos e, pois, mais abertos à validade de seu conteúdo, mais receptivos às suas contribuições.
O livro expõe, em suas 245 páginas, o que seu autor chamou de "relatório" (de pesquisa), agora amoldado, com competência e sem desrespeito aos originais, pela professora que o apresenta, enriquecendo o volume com uma Nota sobre o trabalho de edição e a Bibliografia de Oracy Nogueira. Vem também com o título ampliado pela expressão Preconceito de marca, o que apenas explicita o critério interpretativo a que se submeteu a pesquisa. Além disso, fica a critério da apresentadora a atribuição de títulos às duas partes em que se divide o texto. O Tempo da Escravidão é como se denomina a primeira parte, com quatro subtítulos, seus respectivos apêndices e mais um sumário. A Segunda – "O Preconceito Racial de Marca"–, contém cinco subtítulos e seus apêndices, mais "Sumário e Conclusões".
Foi a abundância de notas, resultado do empenho investigatório do autor, que levou a apresentadora a distribuí-las em apêndices numerados, cada um deles abrangendo uma variedade de "Documentos", por sua vez indicados pela abreviatura "Doc" e também numerados. Nesses, são encontrados dados, como o próprio plano de pesquisa; apontamentos pessoais de membros da comunidade, registros cartoriais (inventários, testamentos), entrevistas, depoimentos, questionários, artigos e notícias de jornal; atas, observações diretas de fatos do cotidiano, de situações especiais, como celebrações religiosas, comemorações cívicas e sociais etc.
Parece não ter escapado à atenção do pesquisador o que quer que fosse necessário ou útil à analise e explicação do efetivo relacionamento de brancos com negros e seus mestiços – as formas assumidas, os preceitos e valores de que se revestiam, os objetivos visados e os fatores de sua persistência ou alterações.
Foi com o objetivo de favorecer a "fluência para a leitura contemporânea", conforme justifica a apresentadora, que esta procedeu aos ajustes de ordem editorial. E o resultado foi adequado, pois conferiu ao texto equilíbrio formal entre o corpo da redação e as notas correspondentes.
Outro equilíbrio digno de registro, creditado exclusivamente ao autor, é o que se verifica entre o quantitativo e o qualitativo no conteúdo. De quantitativo, há fartura de dados que, tratados com competência estatística, aprofundam os quadros preliminares em tabelas e gráficos elucidativos.
É sabida a dificuldade na localização e utilização de tais dados, sempre escassos e muitas vezes imprecisos, principalmente quando elaborados em datas distantes, como nos dois séculos anteriores, já que o primeiro momento focalizado pela análise é o século XVIII. De lá é que surgem as primeiras notícias de escravos na localidade, antes mesmo que Itapetininga surgisse como vila, para chegar a arraial, em 1724, e ser emancipada como município, em 1770, colocando-se, assim, entre os mais antigos municípios paulistas. Tais dificuldades, contudo, não impediram o autor de montar quadros mostrando, por exemplo, o valor do escravo masculino adulto e de seu trabalho, em confronto com artigos os mais variados e até surpreendentes, como produtos agrícolas, alimentos diversos, tecidos para vestuário, instrumento musical etc.
Também é mostrada a proporcionalidade na distribuição dos contigentes branco, pardo e preto pelas profissões e ocupações locais. Tudo isso para explicar as bases e a configuração da estrutura social, ao longo dos séculos XVIII e XIX, e para vê-la com clareza, neste século. Ao mesmo tempo, são apreendidos e avaliados os recursos legais, morais e consuetudinários responsáveis por sua persistência ou alteração. E, como em Itapetininga também intervieram princípios, objetivos e procedimentos do movimento abolicionista, tudo isso é registrado e avaliado no acompanhamento das alterações provocadas na ordem social vigente, com suas conseqüências.
Até aqui, a primeira parte. Já na segunda, que trata das quatro primeiras décadas deste século, e inevitáveis ultrapassagens no tempo, requeridas para a tomada de perspectiva analítica, os dados numéricos são mais abundantes e confiáveis; é a maior presença de quadros, tabelas e gráficos. O pesquisador recorre com freqüência às informações oficiais do censo de 1940, último anterior à pesquisa, confrontando-as com as correspondentes, encontradas no Censo Provincial, de 1886, e no Nacional, de 1890. Esse procedimento isenta o trabalho de um dos defeitos apontados nos estudos de comunidade, ou seja, restringir a observação e a pesquisa a uma realidade local, única, menor, extrapolando os resultados obtidos, como se esses tivessem a mesma validade para contextos mais amplos e complexos. No trabalho de Oracy Nogueira, os dados obtidos na localidade observada são analisados e interpretados em comparação com outros, de âmbitos que se vão dilatando, da província ao país.
Criteriosos procedimentos metodológicos foram obedecidos pelo sociólogo competente e com prática em pesquisa, ao observar dados, coletá-los e manipulá-los pela análise e explicação. Ficaram, assim, asseguradas contribuições ao amadurecimento da própria Sociologia no Brasil (não se deve esquecer que a pesquisa ocorreu ainda na primeira metade deste século), e à comprovada convicção da validade da pesquisa de campo nessa ciência. O que constituía o verdadeiro alvo do trabalho, no entanto, era a obtenção de conhecimentos mais objetivos e confiáveis, numa palavra, científicos, sobre o que há de peculiar e, até então, insuficientemente explicado nas relações raciais entre brancos e negros no Brasil, o preconceito de marca. O autor atingiu essa meta, pondo à prova a consistência de sua concepção desse tipo de preconceito, e, ao mesmo tempo, testando a eficácia deste na explicação das relações raciais entre nós.
Os quase dois séculos e meio de história local, abrangidos pela pesquisa, permitiram analisar a ocupação do espaço físico e a configuração por ela assumida, esta e aquela condicionadas pela prática econômica – pecuária, agricultura de subsistência, comércio de animais de carga e montaria, nos primeiros tempos; cultivo do café e do algodão, depois. Na composição demográfica o detalhamento das proporções entre brancos, pardos e pretos levou cada um desses segmentos a ser visto em sua subdivisão por sexo e idade.
A análise da estrutura social, composta por três classes, conforme a auto-divisão da sociedade local, permitiu não só verificar as acomodações sofridas por esse arranjo, ao longo do tempo, mas também ressaltar como e porque ocorreram. Para tanto, pesaram as variações que se deram no perfil demográfico, por duas ordens de causas. As internas, como nascimentos, óbitos, variação nos resultados da miscigenação e os efeitos do movimento abolicionista. Como as externas, os deslocamentos migratórios. Outras interferências decorreram da inobservância da prática de intra-casamento. A essas se soma a perda de bens territoriais, através das gerações. Diminuição acentuada ou perda total dos bens territoriais acarretaram, aos que as sofriam, um rebaixamento na escala social, expondo-os à prestação de serviços a parentes mais abastados, como seus dependentes.
Muitos desses decadentes foram carreados a cargos burocráticos, quando não, a ofícios manuais, considerados menos prestigiosos na localidade. Já as violações ao intra-casamento alimentaram a miscigenação. A respeito, foram recolhidos casos freqüentes de "uniões pré-maritais – duradouras ou ocasionais – de homens brancos de projeção, com mulheres de cor", prática que chegou até as primeiras décadas deste século. Isso, em detrimento da salvaguarda das famílias brancas, que detinham status social superior e concentravam poder econômico e político. Mestiços resultantes dessas uniões (ostentando alguns deles nome de família tradicional), quando instruídos e dotados de traços negróides pouco acentuados, beneficiaram-se desse conjunto de circunstâncias para atingir posto em atividades menos desvalorizadas, podendo até conquistar destaque político. De qualquer modo, no entanto, o apelo a atitudes e práticas dissimulatórias, correntes na localidade, indicavam o mal-estar provocado por tais fatos, em razão do preconceito aí vigente. Servem de exemplos: o uso de termos imprecisos, como "pardo", "mestiço" para designações mais embaraçosas; e a resistência a reconhecer como de negros(s), a despeito dos traços denunciadores, identificados pelo pesquisador, fotografia(s) de pessoa(s) socialmente aceita(s) como integrante(s) do segmento branco.
Outro recurso esclarecedor da resistência local às oportunidades, acessíveis a negros e negróides, encontram-se no paralelo entre a efetiva ascensão social de estrangeiros (principalmente italianos), portadores de conhecimentos técnicos, e a de negros e seus mestiços, mesmo quando, porventura, também portadores desses conhecimentos. A estes últimos o casamento com brancas representou sempre condição indispensável, mas não àqueles outros.
Para manter a resenha em limites desejáveis, cabe concluí-la, pinçando algumas ponderações encontradas no trabalho resenhado e outras que ele provoca. Uma delas é a que o autor chamou de "compromisso" de parte do branco para "com os interesses da população não branca". Como origem desse "compromisso" são admitidos alguns dos seguintes fundamentos, ou o conjunto deles: "experiência anterior do branco peninsular com povos escuros, (...) desproporção entre o volume da população metropolitana e a extensão do mundo colonial a explorar, (...) escassez de mulheres brancas, principalmente no começo da colonização, (...) necessidade que tinha o europeu de se valer de equipamento adaptativo de povos já afeitos às condições de vida dos trópicos, (...) pressão do número crescente de pardos e pretos livres sobre a minoria branca". Conseqüências desses fundamentos na ideologia brasileira de relações raciais "é que esta é ostensivamente miscigenacionista e igualitária". De tal capa ideológica, contudo, Oracy Nogueira traz à luz "um tipo sutil e sub-reptício de preconceito", que se expressa "sob a forma de incentivo ao branqueamento", com o "escalonamento dos indivíduos em função de sua aparência racial".
Os trechos transcritos foram propositadamente longos para que ficasse bem explícito o pensamento do autor e para que fosse possível uma indagação a que tudo isso dá margem. Não seria esse "compromisso", na forma como é apreendido e expresso no texto, uma possível explicação para o fato de elaborarmos com freqüência instrumentos legais para demonstrar que não somos preconceituosos em relação aos negros e mestiços, mas conseguindo apenas leis que "não pegam", conforme expressão popular? É, pelo menos, a impressão que nos causa a ocorrência de renovadas demonstrações desse preconceito, para o qual nos alerta o autor, ao qualificá-lo de "sutil e sub-reptício". Contra o preconceito racial, no entanto, dispomos da Lei Afonso Arinos e, mais recentemente, de uma legislação penal, que inclui o preconceito (o racial inclusive) no rol dos crimes inafiançáveis. Legislando contra o preconceito, aparentemente repelindo-o, mas desrespeitando a legislação que o combate, nós o preservamos de consciência apaziguada. E, quanto aos "interesses dos não-brancos", parece que nos limitamos a vê-los atendidos com o branqueamento, a "morenização", na expressão acalentada por Gilberto Freyre, que proclamava ser tal processo uma invejável lição dada pelo Brasil a outros povos que cultivam o preconceito racial!
Outra observação de Oracy Nogueira, que merece destaque, é a que trata das possibilidades de superação da ideologia, acima denunciada. A condição dessa superação, entrevista como possível, é formulada com base na comparação entre o preconceito racial, vigente nos Estados Unidos, e aquele que nos é próprio. O de lá é "de origem", o de cá, "de marca", como esclarece Oracy Nogueira, em ensaio intitulado Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem; sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil, publicado nos Anais do XXXI Congresso Internacional dos Americanistas. (São Paulo, abril de 1995), e republicado, como parte de um livro seu, sobre a questão das relações raciais, em 1985. O "preconceito de marca" exclui, enquanto o daqui pretere. A preterição impede que se estabeleça entre nós um confronto entre brancos e negros, com esses dois segmentos populacionais separados por um fosso intransponível. Aqui, é possível a ocorrência de casos individuais de sucesso e ascensão social de negróides mais claros e até de alguns negros. Dada essa peculiaridade de nosso preconceito racial, para o autor, o homem de cor, poderá conseguir um rendimento maior no Brasil do que tem sido conseguido em outros países, divulgando, como técnica de esclarecimento, "informações objetivas sobre as diferenças raciais e culturais". Tais esclarecimentos, acrescenta ele, que não são inviabilizados pelo fosso intransponível, que o preconceito de origem cava entre negros e brancos, poderão atingir tanto aqueles, quanto estes últimos.
Dentre essas técnicas de esclarecimentos para divulgar informações objetivas, sobre diferenças raciais e culturais, não arroladas no texto, destaca-se a educação sistemática. Ela é formadora de hábitos de utilização de procedimentos metodológicos científicos, como observação, comparação e análise explicativa, respaldadas por teorias adequadas. Tais exercícios, no caso em questão, encontram imprescindíveis recursos na Antropologia, bem como na Sociologia, ciências que Oracy Nogueira cultivava com seriedade e competência.
Contribuições como as assinaladas aqui, ao lado de outras, não apontadas, mas ao dispor do leitor do livro em questão, servem bem para ressaltar o valor do texto de Oracy Nogueira.
É sabido que muito do que ficou mencionado constitui, hoje, conhecimento familiar aos estudiosos desses problemas. E das propostas, porventura originais, ao tempo da primeira publicação, algumas soarão como já conhecidas, ao passo que outras poderão até ter sido ultrapassadas pelo quase meio século, posterior à sua redação.
O recuado no tempo em que data a elaboração deste trabalho, vale reiterar, fala a seu favor e justifica plenamente a oportunidade que lhe deram a dedicação da apresentadora e o acolhimento da Edusp. A ambas se dirigirão, por certo, os agradecimentos de quantos vierem a ter acesso ao livro em questão.
Revista de Antropologia
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