Vargas, Eduardo Viana. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais, Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2000.
Maria Thereza Rosa Ribeiro
Professora do Departamento de Sociologia e Política - UFP
O livro de Eduardo Viana Vargas, Antes Tarde do que nunca, apresenta o título que designa seu objeto de estudo ¾ a Sociologia das leis da imitação, oposição e invenção de Gabriel Tarde (1843-1904) ¾ por uma palavra que designa outro objeto, que denota a demora do reconhecimento da microssociologia de Tarde, classificada numa categoria "menor" no campo acadêmico.
O problema enunciado pelo autor é saber por que as obras de Tarde ¾ Le Lois de l'imitation, La Logique Sociale, L'Opposition Universalle, Les Lois Sociales, La Criminalité Compararée, La Philosophie Pénale, Les Transformations du Droit, entre outras ¾ após sua morte, foram relegadas ao esquecimento, não tendo experimentado a repercussão que teve a obra de David Émile Durkheim (1858-1917). Embora Tarde tenha partilhado da emoção de ver seus escritos publicados e sentido a importância de ser membro presidente da Société de Sociologie de Paris e professor do famoso Collège de France. Igualmente presenciou a receptividade de sua obra, no campo intelectual e acadêmico, a partir de 1880 na França, recebendo elogios de seus contemporâneos, "ao lado de Comte, Le Play e Durkheim, como um dos quatro grandes sociólogos franceses do século XIX" (: 21).
A estratégia de pesquisa escolhida pelo autor, remete-o a traçar o sistema intelectual do século XIX na sociedade francesa, buscando à luz do método genealógico e arqueológico de Foucault (1971) reconstituir a emergência do campo da produção acadêmica das ciências sociais. O autor ensaia uma interpretação dimensionada pela luta das classificações científicas neste campo ¾ a despeito de suas reservas no tratamento da "teoria da prática" desenvolvida por Bourdieu (1976) ¾, levando-o a construir os motivos da classificação hierárquica no campo científico. As motivações das diferenças teóricas e metodológicas são várias, conforme Vargas, desde a fisionomia de caracteres particulares constitutivos da trajetória de vida dos protagonistas que arquitetaram o saber sociológico, sobretudo Émile Durkheim e Gabriel Tarde ¾ seus círculos de amizade; local de nascimento; filiação religiosa rabínica e católica, respectivamente; oportunidade de inserção na academia; a interface de suas produções sociológicas estabelecida com a educação e a política republicana, em Durkheim, e com a literatura e o direito, em Tarde no século XIX ¾ até, como salienta o autor, a conjuntura política francesa durante a III República, a partir de 1871, na qual se desenha "a crise alemã do pensamento francês" denominada por Renan, com a derrota militar da França, ante a força prussiana (: 81). Essas forças motrizes engendraram alguns condicionantes e acasos, os quais contribuíram para dimensionar a descoberta da sociedade e a construção da idéia de social na obra de Durkheim e Tarde.
Com isso, o autor se propõe a narrar o outro lado da história das ciências sociais, pouco difundido no campo acadêmico, revelando que ¾ ao desconstruir o domínio da sociologia cientificista durkheiminiana ¾ a emergência das ciências sociais se configurou numa "rede de intrigas" (Veyne, 1971), ou seja, num entrelaçamento de acontecimentos, agenciamentos e discursos originados de causas bastante humanas, culminando num cenário no qual aparecem diferentes personagens, como Renan, Tarde, Le Bon, Weber, Spencer, Durkheim, com distintas percepções e avaliações interpretativas da sociedade moderna.
Cabe observar que, em pleno cenário do século XIX, despontava a transposição das concepções evolucionistas e cientificistas ¾ caudatórias das explicações derivadas da gênese do mundo biológico e natural ¾ para o terreno das relações humanas. A ciência sociológica, tributária do evolucionismo cientificista, brotou da constatação modelar de Comte (1798-1857), quando disse no Cours de philosophie positive (1830-1842) que todo indivíduo reproduz, sumariamente, os vários estágios da espécie: teológico, metafísico e positivo, dessa forma a filosofia da história mostrava o quadro geral da repetição sociológica, patenteando como universal a sua lei dos três estados. Embora adotasse a perspectiva objetivista da ciência, Durkheim refutou, em suas obras ¾ Divisão do trabalho social, As regras do método sociológico, O suicídio, As formas da elementares da vida religiosa, entre outras ¾, a noção evolucionista que fornecia a identidade da dinâmica dos processos humanos por toda parte, postulando que os processos particulares não poderiam ser tomados pelo geral ou universal. Ou seja, o objeto de estudo ¾ a sociedade ¾ havia de ser considerado em suas variações morfológicas e fisiológicas constitutivas da institucionalização dos processos sociais e suas respectivas representações coletivas, intrínseca a cada sociedade.
Sylvio Romero, no Ensaio de filosofia do direito, comenta que Gabriel Tarde ampliou ao seu modo a perspectiva evolucionista da moderna geração francesa, declarando ser a repetição não uma simples lei sociológica, senão uma lei universal que possui três aspectos: físico ou vibratório, biológico ou hereditário e social ou imitativo. A diferença do evolucionismo de Tarde em respeito ao de Spencer, Comte, Haeckel etc. se apresenta em relegar a hereditariedade para o domínio da biologia, não lhe reconhecendo seu largo ganho na esfera social, em que o próprio processo da repetição é, a seu ver, desempenhado, principalmente, pela imitação (Romero, 1969: 555).
A proposição de Tarde, desde Les Lois de l'Imitation, é de que cada progresso do saber, como salienta Vargas, "tende a nos convencer de que todas as semelhanças são devidas a repetições" (: 224), que se desdobram nas três seguintes: "No mundo químico, físico, astronômico, as semelhanças (atômicas, ondulatórias, gravitacionais) decorrem de movimentos periódicos vibratórios. No mundo vivo, elas resultam da transmissão hereditária, da geração intra ou extra orgânica. No mundo social, são os frutos da imitação. As repetições vibratórias, hereditárias e imitativas constituem as três formas básicas do que Tarde chama de 'Repetição Universal', e são responsáveis pela produção das semelhanças de origem física, biológica e social" (: 225). Essas idéias levam à seguinte definição da sociedade: "Uma coleção de seres com tendência a se imitarem entre si, ou que, sem se imitarem, atualmente, se parecem, e suas qualidades comuns são cópias antigas de um mesmo modelo" (Tarde, 1907: 93).
Tarde estabelecia a analogia das repetições ou regularidade no campo de conhecimento da Física, da Astrologia, da Química, da Geologia, da Biologia, estendendo resolutamente para a Ciência Social. A imitação é, como afirma Vargas, "uma ação à distância de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou inconsciente, voluntária ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou recíproca, mas não pode deixar de ser produzida à distância, em uma espécie de 'geração à distância', pois assim perderia sua especificidade" (: 226). A noção de imitação não deixa de se apresentar como postulado de um evolucionismo sui generis, posto que todas as semelhanças de origem social, percebidas no mundo social, são fruto direto da imitação sob todas as formas, imitação-costume ou imitação-moda, imitação-simpatia, imitação-obediência, imitação-instrução, imitação-educação, imitação-espontânea ou imitação-refletida (Tarde, 1907: 44).
Segundo Eduardo Vargas, Tarde elaborou o sentido de social, atribuindo os princípios do movimento, os da afinidade, os da vida e os da cooperação humana idênticos em todo mundo, o que corrobora com "outra tendência marcante dos processos repetitivos: a tendência à uniformização" (: 226). Nesse rumo, pode-se acentuar a anuência de Tarde à tese da filosofia de história segundo a qual "as leis do espírito humano são as mesmas em todas as épocas e por toda a parte" elas comandam a "marcha progressiva e irreversível que vai (...) dos diversos costumes locais aos padrões globais, dos pequenos e muito numerosos conflitos às poucas porém grandes guerras" (: 226). Nisso reside o sentido da imitação, considerado por Vargas como "produções conservadoras" detentas nas repetições das relações sociais em toda parte, conforme a "tendência assimiladora" dos grupos sociais de imitar as "idéias antes de imitar a sua expressão", ou seja, "toda imitação é unilateral e só depois se torna recíproca ou se mutualiza" (Tarde, 1890 apud Vargas: 227). As semelhanças, portanto, resultam da transmissão da geração que se concretiza na ampliação do campo social, atravessam no seu desdobramento três fases universais: o período de início e dificuldade em que tem a lutar com as tendências opostas; época de vitória e expansão; finalmente, momento de exaustão, diante novos impulsos e novas tendências (: 226-8).
Com isso, o autor refere-se à interpretação de Deleuze e Guattari (1980) no que tange à microssociologia de Tarde: "a imitação marca a passagem ou propagação de um fluxo ou onda de crença e de desejo; a oposição, por sua vez, marca a intervenção de fluxo ou onda, sobre outra sob o modo de um choque binário; enquanto a invenção marca a conjugação ou a conexão de múltiplos fluxos de crenças e desejos" (: 231). O autor prossegue, afirmando que para Tarde "o que se repete, o que se propaga, não são sensações, modelos de comportamento ou representações" pois "esses são tão-somente cruzamentos de sensações e representações" (: 230). O objeto da sociologia de Tarde é, portanto, "o estudo das correntes de crenças e desejos no campo social" localizado por meio da cartografia dos "fluxos moleculares de crença e de desejo que constituem uma matéria sub-representativa" diferente do estudo macrossociológico das representações coletivas de Durkheim ou da construção analítica dos tipos ideais e de ação social de Weber.
A microssociologia de Tarde sublinha a analogia da constituição dos fenômenos sociais com a causa dos fenômenos físicos, químicos e biológicos; porém, segundo Vargas, dissolve a objetividade durkheiminiana explicativa da função da relação indivíduo e sociedade, que designa a "naturalização dos vínculos sociais" da coletividade e do individualismo. Para Tarde, "os indivíduos são compostos como os átomos são um turbilhão, 'alguma coisa de infinitamente complicado'" (: 262).
Vargas compartilha da idéia de que a atualidade da microssociologia de Tarde leva um desafio à teoria social no rumo a desconcertar o "consenso epistemológico" intrínseco ao processo de consolidação das Escolas Sociológicas, no momento de institucionalização das ciências sociais, no campo acadêmico do século XIX e início do século XX. Nessa vereda, para Vargas, a interpretação sociológica das relações sociais ganha primazia ao deslocar o interesse cognitivo para a perspectiva "ontológica da teoria social", mediante "reelaboração de concepções de ser humano e de fazer humano, reprodução social e transformação social" (Giddens, 1984: XVI-XVII apud Vargas: 262-3).
Contudo, resta ainda a pergunta: em que pese as diferenças do pensamento sociológico de Durkheim e Tarde, de que forma estas idéias foram assimiladas no campo intelectual da época e qual a sua repercussão sobretudo no campo jurídico, na emergência do sistema de ensino laico na França, na literatura do século XIX e no início do século XX? A resposta a estas questões nos remete a constatar que a institucionalização da Sociologia coincide com uma época histórica, em que as elites políticas buscavam medidas de ação pragmática para resolução dos problemas sociais emergentes da sociedade de classes e para a consolidação de uma ordem política burguesa. Pode-se dizer que a sociologia durkheiminiana foi apropriada como instrumento de implementação de práticas discursivas dominantes e, com a finalidade de ganhar força material, necessitava desvencilhar-se do pensamento filosófico, da Psicologia e da Literatura, garantindo uma posição hierárquica "maior" no campo científico. A sociologia de Tarde, ao contrário, encontrou nas idéias filosóficas, no estilo narrativo literário e nas analogias com os fenômenos do mundo vivo e físico, as fontes para reconstituir os fragmentos dispersos de uma sociedade que vivia o dilema ora de romper com as velhas tradições, ora de celebrar as inovações do mundo moderno, impasse constante na necessidade exposta pelas elites dominantes de manter coesa a estrutura da sociedade moderna, para medrar o progresso das classes e a riqueza social. Sob essa ambivalência estrutural tradicional/moderno de corte conservador, a Sociologia durkheiminiana registrava os fatos sociais e as representações coletivas de maneira objetiva e a microssociologia de Tarde postulava a descoberta de regularidade ou de repetições universais presentes nas relações sociais, na Lingüística, na Literatura, no Direito etc. e em toda parte; em ambas, o fundamento do controle social estava em construção.
Bibliografia
ROMERO, S.
1969 Obra filosófica, Rio de Janeiro, José Olympio.
TARDE, G.
1907 Las Leys de la imitatión, 2 ed., trad. Alejo Garcia Górgora, Madrid, Daniel Jorro.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
Maria Thereza Rosa Ribeiro
Professora do Departamento de Sociologia e Política - UFP
O livro de Eduardo Viana Vargas, Antes Tarde do que nunca, apresenta o título que designa seu objeto de estudo ¾ a Sociologia das leis da imitação, oposição e invenção de Gabriel Tarde (1843-1904) ¾ por uma palavra que designa outro objeto, que denota a demora do reconhecimento da microssociologia de Tarde, classificada numa categoria "menor" no campo acadêmico.
O problema enunciado pelo autor é saber por que as obras de Tarde ¾ Le Lois de l'imitation, La Logique Sociale, L'Opposition Universalle, Les Lois Sociales, La Criminalité Compararée, La Philosophie Pénale, Les Transformations du Droit, entre outras ¾ após sua morte, foram relegadas ao esquecimento, não tendo experimentado a repercussão que teve a obra de David Émile Durkheim (1858-1917). Embora Tarde tenha partilhado da emoção de ver seus escritos publicados e sentido a importância de ser membro presidente da Société de Sociologie de Paris e professor do famoso Collège de France. Igualmente presenciou a receptividade de sua obra, no campo intelectual e acadêmico, a partir de 1880 na França, recebendo elogios de seus contemporâneos, "ao lado de Comte, Le Play e Durkheim, como um dos quatro grandes sociólogos franceses do século XIX" (: 21).
A estratégia de pesquisa escolhida pelo autor, remete-o a traçar o sistema intelectual do século XIX na sociedade francesa, buscando à luz do método genealógico e arqueológico de Foucault (1971) reconstituir a emergência do campo da produção acadêmica das ciências sociais. O autor ensaia uma interpretação dimensionada pela luta das classificações científicas neste campo ¾ a despeito de suas reservas no tratamento da "teoria da prática" desenvolvida por Bourdieu (1976) ¾, levando-o a construir os motivos da classificação hierárquica no campo científico. As motivações das diferenças teóricas e metodológicas são várias, conforme Vargas, desde a fisionomia de caracteres particulares constitutivos da trajetória de vida dos protagonistas que arquitetaram o saber sociológico, sobretudo Émile Durkheim e Gabriel Tarde ¾ seus círculos de amizade; local de nascimento; filiação religiosa rabínica e católica, respectivamente; oportunidade de inserção na academia; a interface de suas produções sociológicas estabelecida com a educação e a política republicana, em Durkheim, e com a literatura e o direito, em Tarde no século XIX ¾ até, como salienta o autor, a conjuntura política francesa durante a III República, a partir de 1871, na qual se desenha "a crise alemã do pensamento francês" denominada por Renan, com a derrota militar da França, ante a força prussiana (: 81). Essas forças motrizes engendraram alguns condicionantes e acasos, os quais contribuíram para dimensionar a descoberta da sociedade e a construção da idéia de social na obra de Durkheim e Tarde.
Com isso, o autor se propõe a narrar o outro lado da história das ciências sociais, pouco difundido no campo acadêmico, revelando que ¾ ao desconstruir o domínio da sociologia cientificista durkheiminiana ¾ a emergência das ciências sociais se configurou numa "rede de intrigas" (Veyne, 1971), ou seja, num entrelaçamento de acontecimentos, agenciamentos e discursos originados de causas bastante humanas, culminando num cenário no qual aparecem diferentes personagens, como Renan, Tarde, Le Bon, Weber, Spencer, Durkheim, com distintas percepções e avaliações interpretativas da sociedade moderna.
Cabe observar que, em pleno cenário do século XIX, despontava a transposição das concepções evolucionistas e cientificistas ¾ caudatórias das explicações derivadas da gênese do mundo biológico e natural ¾ para o terreno das relações humanas. A ciência sociológica, tributária do evolucionismo cientificista, brotou da constatação modelar de Comte (1798-1857), quando disse no Cours de philosophie positive (1830-1842) que todo indivíduo reproduz, sumariamente, os vários estágios da espécie: teológico, metafísico e positivo, dessa forma a filosofia da história mostrava o quadro geral da repetição sociológica, patenteando como universal a sua lei dos três estados. Embora adotasse a perspectiva objetivista da ciência, Durkheim refutou, em suas obras ¾ Divisão do trabalho social, As regras do método sociológico, O suicídio, As formas da elementares da vida religiosa, entre outras ¾, a noção evolucionista que fornecia a identidade da dinâmica dos processos humanos por toda parte, postulando que os processos particulares não poderiam ser tomados pelo geral ou universal. Ou seja, o objeto de estudo ¾ a sociedade ¾ havia de ser considerado em suas variações morfológicas e fisiológicas constitutivas da institucionalização dos processos sociais e suas respectivas representações coletivas, intrínseca a cada sociedade.
Sylvio Romero, no Ensaio de filosofia do direito, comenta que Gabriel Tarde ampliou ao seu modo a perspectiva evolucionista da moderna geração francesa, declarando ser a repetição não uma simples lei sociológica, senão uma lei universal que possui três aspectos: físico ou vibratório, biológico ou hereditário e social ou imitativo. A diferença do evolucionismo de Tarde em respeito ao de Spencer, Comte, Haeckel etc. se apresenta em relegar a hereditariedade para o domínio da biologia, não lhe reconhecendo seu largo ganho na esfera social, em que o próprio processo da repetição é, a seu ver, desempenhado, principalmente, pela imitação (Romero, 1969: 555).
A proposição de Tarde, desde Les Lois de l'Imitation, é de que cada progresso do saber, como salienta Vargas, "tende a nos convencer de que todas as semelhanças são devidas a repetições" (: 224), que se desdobram nas três seguintes: "No mundo químico, físico, astronômico, as semelhanças (atômicas, ondulatórias, gravitacionais) decorrem de movimentos periódicos vibratórios. No mundo vivo, elas resultam da transmissão hereditária, da geração intra ou extra orgânica. No mundo social, são os frutos da imitação. As repetições vibratórias, hereditárias e imitativas constituem as três formas básicas do que Tarde chama de 'Repetição Universal', e são responsáveis pela produção das semelhanças de origem física, biológica e social" (: 225). Essas idéias levam à seguinte definição da sociedade: "Uma coleção de seres com tendência a se imitarem entre si, ou que, sem se imitarem, atualmente, se parecem, e suas qualidades comuns são cópias antigas de um mesmo modelo" (Tarde, 1907: 93).
Tarde estabelecia a analogia das repetições ou regularidade no campo de conhecimento da Física, da Astrologia, da Química, da Geologia, da Biologia, estendendo resolutamente para a Ciência Social. A imitação é, como afirma Vargas, "uma ação à distância de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou inconsciente, voluntária ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou recíproca, mas não pode deixar de ser produzida à distância, em uma espécie de 'geração à distância', pois assim perderia sua especificidade" (: 226). A noção de imitação não deixa de se apresentar como postulado de um evolucionismo sui generis, posto que todas as semelhanças de origem social, percebidas no mundo social, são fruto direto da imitação sob todas as formas, imitação-costume ou imitação-moda, imitação-simpatia, imitação-obediência, imitação-instrução, imitação-educação, imitação-espontânea ou imitação-refletida (Tarde, 1907: 44).
Segundo Eduardo Vargas, Tarde elaborou o sentido de social, atribuindo os princípios do movimento, os da afinidade, os da vida e os da cooperação humana idênticos em todo mundo, o que corrobora com "outra tendência marcante dos processos repetitivos: a tendência à uniformização" (: 226). Nesse rumo, pode-se acentuar a anuência de Tarde à tese da filosofia de história segundo a qual "as leis do espírito humano são as mesmas em todas as épocas e por toda a parte" elas comandam a "marcha progressiva e irreversível que vai (...) dos diversos costumes locais aos padrões globais, dos pequenos e muito numerosos conflitos às poucas porém grandes guerras" (: 226). Nisso reside o sentido da imitação, considerado por Vargas como "produções conservadoras" detentas nas repetições das relações sociais em toda parte, conforme a "tendência assimiladora" dos grupos sociais de imitar as "idéias antes de imitar a sua expressão", ou seja, "toda imitação é unilateral e só depois se torna recíproca ou se mutualiza" (Tarde, 1890 apud Vargas: 227). As semelhanças, portanto, resultam da transmissão da geração que se concretiza na ampliação do campo social, atravessam no seu desdobramento três fases universais: o período de início e dificuldade em que tem a lutar com as tendências opostas; época de vitória e expansão; finalmente, momento de exaustão, diante novos impulsos e novas tendências (: 226-8).
Com isso, o autor refere-se à interpretação de Deleuze e Guattari (1980) no que tange à microssociologia de Tarde: "a imitação marca a passagem ou propagação de um fluxo ou onda de crença e de desejo; a oposição, por sua vez, marca a intervenção de fluxo ou onda, sobre outra sob o modo de um choque binário; enquanto a invenção marca a conjugação ou a conexão de múltiplos fluxos de crenças e desejos" (: 231). O autor prossegue, afirmando que para Tarde "o que se repete, o que se propaga, não são sensações, modelos de comportamento ou representações" pois "esses são tão-somente cruzamentos de sensações e representações" (: 230). O objeto da sociologia de Tarde é, portanto, "o estudo das correntes de crenças e desejos no campo social" localizado por meio da cartografia dos "fluxos moleculares de crença e de desejo que constituem uma matéria sub-representativa" diferente do estudo macrossociológico das representações coletivas de Durkheim ou da construção analítica dos tipos ideais e de ação social de Weber.
A microssociologia de Tarde sublinha a analogia da constituição dos fenômenos sociais com a causa dos fenômenos físicos, químicos e biológicos; porém, segundo Vargas, dissolve a objetividade durkheiminiana explicativa da função da relação indivíduo e sociedade, que designa a "naturalização dos vínculos sociais" da coletividade e do individualismo. Para Tarde, "os indivíduos são compostos como os átomos são um turbilhão, 'alguma coisa de infinitamente complicado'" (: 262).
Vargas compartilha da idéia de que a atualidade da microssociologia de Tarde leva um desafio à teoria social no rumo a desconcertar o "consenso epistemológico" intrínseco ao processo de consolidação das Escolas Sociológicas, no momento de institucionalização das ciências sociais, no campo acadêmico do século XIX e início do século XX. Nessa vereda, para Vargas, a interpretação sociológica das relações sociais ganha primazia ao deslocar o interesse cognitivo para a perspectiva "ontológica da teoria social", mediante "reelaboração de concepções de ser humano e de fazer humano, reprodução social e transformação social" (Giddens, 1984: XVI-XVII apud Vargas: 262-3).
Contudo, resta ainda a pergunta: em que pese as diferenças do pensamento sociológico de Durkheim e Tarde, de que forma estas idéias foram assimiladas no campo intelectual da época e qual a sua repercussão sobretudo no campo jurídico, na emergência do sistema de ensino laico na França, na literatura do século XIX e no início do século XX? A resposta a estas questões nos remete a constatar que a institucionalização da Sociologia coincide com uma época histórica, em que as elites políticas buscavam medidas de ação pragmática para resolução dos problemas sociais emergentes da sociedade de classes e para a consolidação de uma ordem política burguesa. Pode-se dizer que a sociologia durkheiminiana foi apropriada como instrumento de implementação de práticas discursivas dominantes e, com a finalidade de ganhar força material, necessitava desvencilhar-se do pensamento filosófico, da Psicologia e da Literatura, garantindo uma posição hierárquica "maior" no campo científico. A sociologia de Tarde, ao contrário, encontrou nas idéias filosóficas, no estilo narrativo literário e nas analogias com os fenômenos do mundo vivo e físico, as fontes para reconstituir os fragmentos dispersos de uma sociedade que vivia o dilema ora de romper com as velhas tradições, ora de celebrar as inovações do mundo moderno, impasse constante na necessidade exposta pelas elites dominantes de manter coesa a estrutura da sociedade moderna, para medrar o progresso das classes e a riqueza social. Sob essa ambivalência estrutural tradicional/moderno de corte conservador, a Sociologia durkheiminiana registrava os fatos sociais e as representações coletivas de maneira objetiva e a microssociologia de Tarde postulava a descoberta de regularidade ou de repetições universais presentes nas relações sociais, na Lingüística, na Literatura, no Direito etc. e em toda parte; em ambas, o fundamento do controle social estava em construção.
Bibliografia
ROMERO, S.
1969 Obra filosófica, Rio de Janeiro, José Olympio.
TARDE, G.
1907 Las Leys de la imitatión, 2 ed., trad. Alejo Garcia Górgora, Madrid, Daniel Jorro.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
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