quinta-feira, 1 de abril de 2010

Entre os fiéis. Irã, Paquistão, Malásia, Indonésia


Naipaul, V. S. Entre os fiéis. Irã, Paquistão, Malásia, Indonésia -1981, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, 544 pp.

Francirosy Campos Barbosa Ferreira
Mestranda em Antropologia Social - USP
Pesquisadora do Grupo de Antropologia Visual - USP


Esta resenha é fruto de muitas idas e vindas, do meu processo de amadurecimento em relação ao tema e aos conceitos que permeiam a discussão sobre religião, cultura e política no Islã. É sobre este manancial que escreve Naipaul, em alguns momentos, relutante com o que ouve, em outros, assumindo o discurso do nativo, e neste caso, mais precisamente os muçulmanos do Irã, Paquistão, Malásia e Indonésia.

Entretanto, esse livro traz à tona uma discussão interessante que é o Islã observado em quatro regiões totalmente distintas umas das outras.

Se o Islã é um modo de vida e de viver, ele tem se amoldado conforme o lugar e a cultura onde se insere, sem perder de vista o que lhe é mais sagrado ¾ os cinco pilares ¾, adorar a um único Deus, o jejum do ramadã, as cinco orações diárias, a peregrinação à Meca, o Zakat.

Naipaul, de origem indiana, nasceu em Trinidad, estudou no University College, em Oxford, escreve desde 1954, tem 22 obras publicadas tanto de ficção como de não ficção. As lembranças de sua infância, sobre os muçulmanos, motivaram a sua viagem a alguns países islâmicos.

Inicia sua viagem pelo Irã, no mês do ramadã, período em que os muçulmanos não bebem, não comem, não fumam, não mantêm relações sexuais do nascer ao pôr do sol. Se esse é um período bom para observação para quem é de fora, por outro lado, provoca no observador certa angústia de ver pessoas que passam o dia ocupadas com o trabalho e orações, deixando a alimentação para o final do dia como forma de recompensa do esforço desse jejum, e da superação dos seus limites.

Sua preocupação é entender a religião através dos fiéis. Afinal, a única coisa que ele sabia é que o Islã tinha um profeta e um livro.

O seu primeiro intérprete, Behzad, surpreendeo com seu discurso revolucionário e marxista, contudo religioso. Conhecer um jovem no Irã que falasse de política e de religião como coisas que caminham juntas o fez observar com mais cuidado os outros féis. No Irã e no Paquistão o que comanda é a lógica da fé, como ele mesmo afirma: "Aceitar o Islã é aceitar determinados conceitos legais"(: 118).

Os intérpretes foram em muitos momentos informantes, aqueles com que nós antropólogos estamos acostumados em nossos campos de pesquisa, além de traduzir a língua falada, eles traduzem os costumes. São filtros do que está à nossa frente.

Behzad era um revolucionário, que saudou a derrubada do Xá, mas a revolução religiosa que viera não era a revolução desejada por ele, que era comunista e lia livros de Lênin. Para ele, os militantes muçulmanos eram lúmpen, como afirma Marx no XVIII Brumário: "o lúmpen do proletariado", aqueles que estão à margem do sistema.

Para muitos muçulmanos no Irã ¾ como o senhor Jeffrey, diretor de um jornal ¾, o sonho da jamé towhidi, isto é, "sociedade dos fiéis", foi despedaçado por Khomeini, a partir do momento em que usou a religião para restringir a liberdade de imprensa e dos cidadãos.

Com o tempo, Naipaul vai percebendo que existem categorias diferentes de fiéis, e esses tipos diferentes dificultaram a sua observação em relação ao que ele chama de dois tipos de religião ¾ a religião da revelação e das regras.

No Paquistão aprendeu que o Islã é um modo de vida completo, onde política e religião fazem parte de uma mesma lei: o Corão. Em Karachi, Naipaul, ao andar de táxi, o motorista vai contando histórias do lugar, desde a derrubada de Bhuttto, líder nacional, populista, que governou despoticamente durante seis anos, e acabou sendo deposto e enforcado. O motoristainformante fala do lugar triste no qual se transformou o seu país, onde nada pode, tudo é proibido.

Ahmed, outro informante, diz que Naipaul deveria ir a Sind, visitar um santuário famoso perto da cidade de Hyderabad; para ele o santuário, o centro sufïsta, estava associado a uma ordem ou irmandade. Nesse centro sufi descobriu que para se chegar a Alá só seria possível através de um médium e na forma de seu murshid (líder espiritual). Aqui temse o informante como aquele que indica o que deve ser visto (em muitos momentos em nossas pesquisas de campo acatamos sugestões dos próprios informantes: veja isso, leia isso, fale com tal pessoa).

Na Malásia o Islã está presente desde o século XIV ou XV, trazido por um viajante indiano. Shafi, o seu mais novo informante ¾ de acordo com o autor ¾, apresenta uma contradição sendo um homem estudioso, inteligente e, ao mesmo tempo, com forte desejo de voltar a sua aldeia. No fundo era o desejo que tinha em restabelecer as regras, e recriar a segurança de sua infância em sua aldeia malaia.

Na Indonésia conheceu outro informante, este disse que para entender os muçulmanos indonésios era preciso ir à zona rural e conhecer os colégios islâmicos ¾ pesantrem ¾, onde o jovem aprendera a conduta islâmica e adquirira conhecimento.

O que fica desse olhar sobre essas culturas e essa religião é o que já apontava Sahlins (1990) "esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática" (: 7, grifos meus).

Em muitos momentos, durante a leitura, ficava me policiando para não exigir demais do autor, embora a crítica sempre fosse à forma de sua abordagem, por exemplo, quando perguntava a uma mulher por que usava o véu, acabava recebendo uma resposta qualquer. E isto não era acompanhado de uma reflexão, ou observação. Na verdade esperava que ele pudesse observar os significados dados pelos muçulmanos de forma a constatar o quanto eles são reavaliados na prática, dependendo de qual cultura se está falando.

Se podemos considerar que há categorias diferentes de fiéis, é porque existem culturas diferentes nas quais a religião está inserida. Se o passado préislâmico da Malásia e da Indonésia, na primeira, mais parecia costumes de aldeões e, na segunda, evidenciava-se como uma grande civilização, este é sem dúvida um marco dessa diferença cultural.

O livro é sem sombra de dúvida um bom mergulho entre os religiosos do Islã. A sociedade de fiéis da qual falava o senhor Jeffrey é o que Marques (2001) fala em sua dissertação de mestrado da formação de ummat, isto é, uma verdadeira comunidade. Comunidade esta que integra todos os muçulmanos independentemente de sua cultura mas, que na prática sabemos, tão difícil de se concretizar. Se, a história é ordenada culturalmente de diferentes modos, levando em consideração os esquemas de significação das coisas, os esquemas culturais são ordenados historicamente, isto porque os significados ¾ como apontei anteriormente ¾ são reavaliados quando realizados na prática (Sahlins, 1990: 7).

Bibliografia

MARQUES, V. L. M.
2001 Conversão ao Islam: o olhar brasileiro, a construção das novas identidades e o retorno à tradição, São Paulo, dissertação de mestrado, PUC.

SAHLINS, M.
1990 Ilhas de História, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 218 pp.

TAUSSIG, M. T.
1993 Mimesis and Alterity: a particular history of the sense, Routledge, New York.

Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP

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