Carlos A. C. Lemos. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo, EDUSP, 1999, 264 pp.
Fraya Frehse
Doutoranda em Antropologia — USP
Professor universitário, arquiteto, pintor e historiador da arquitetura brasileira: Carlos Lemos é um autor cujo nome se confunde com muito do que se sabe hoje sobre as formas de morar em São Paulo no passado. Nesse sentido, o recente Casa paulista... foi escrito por um pesquisador já consagrado, detentor de uma vasta obra acadêmica referente à arquitetura residencial paulista e que se sobressai também por seu engajamento institucional em defesa do patrimônio histórico do país1.
O fato de abordar uma temática já explorada pelo estudioso em outras ocasiões não retira do texto nem um pouco de sua instigante originalidade. Nele, Lemos explicita com todas as letras a perspectiva teórico-metodológica que vem norteando o seu olhar sobre a história da casa paulista. Logo nas primeiras linhas, a frase "no território de São Paulo, (...) a evolução das habitações atendeu a imposições de ordem cultural que valem a pena ser recordadas por estarem esquecidas ou mesmo não percebidas" (: 10) anuncia o que lhe interessa: a compreensão do espaço por meio da cultura.
Essa orientação perpassa a formulação da principal tese do livro, ousada pelo escopo temporal e espacial que se propõe abarcar, e que preconiza "ter havido um desenvolvimento da habitação paulista, sem rupturas, sem mudanças drásticas ou saltos na forma e no uso daquela casa até a chegada do café e do ecletismo, que subverteu tudo" (: 12). Para desenvolver o argumento, Lemos sabe que é imprescindível dialogar com a Antropologia, disciplina que incentiva a reflexão sobre a relação entre espaço e contexto sociocultural no mínimo desde que Émile Durkheim incluiu a noção de espaço no rol das categorias do pensamento coletivo2.
O arquiteto constrói o seu recorte de análise recorrendo especificamente a considerações de Eunice Durham sobre o caráter "artificial" do comportamento humano (organizado que é através de sistemas simbólicos) e sobre a relativa artificialidade, portanto, do ambiente que o homem cria, recria e transmite adiante através da cultura3. Nesse sentido, o que importa, segundo o autor, é compreender a relação entre moradia — "parte relevante desse ambiente artificial" — e atividade doméstica. E isso precisamente no contexto da chamada "arquitetura vernácula", desprovida da figura do arquiteto, e na qual a técnica, "manipulando os recursos da natureza envoltória, satisfaz as exigências de todo um complexo cultural que rege a vida cotidiana" (: 22).
O reconhecimento explícito da interface da Arquitetura com a Antropologia permite ao pesquisador elaborar um instrumental peculiar de análise. A noção de "programa", que, no léxico arquitetônico, designa o conjunto de atividades programadas para se darem no espaço projetado, possui, em Casa paulista..., uma conotação mais complexa, baseada na constatação de um indelével descompasso entre o espaço arquitetônico concebido e as vivências cotidianas que nele se dão.
É por isso que seriam duas as facetas do programa residencial. Se, em princípio, ele engloba ocupações do grupo familiar comuns em qualquer região do mundo (comer, dormir, realizar os serviços domésticos, relacionar-se com estranhos etc.), assumiria, entretanto, singularidades, ligadas ao modo como se realiza no espaço, dependendo das condições ou disponibilidades vigentes localmente em determinada época.
Entre o geral e o específico, Lemos opta pelo segundo — e, portanto, por uma abordagem referenciada pela "antropologia cultural". Embora se autodenominando um "intruso em seara alheia" (: 20), de fato se baseia nas relações e concepções socioculturais vigentes em diferentes áreas rurais e urbanas daquilo que é hoje o território paulista, a fim de apreender os programas residenciais ali difundidos entre meados do século XVI e o último quartel do XIX. E isso para além da atenção que dispensa à técnica construtiva, ao clima e à intenção plástica, elementos que, paralelamente ao programa, condicionam a planta arquitetônica.
Mas como o especialista realiza o seu empreendimento, se busca os programas de uma arquitetura hoje em dia em grande parte inexistente, para a qual quase não há documentação textual e iconográfica elucidativa? O grande trunfo do arquiteto é uma aprofundada pesquisa em fontes históricas variadas: plantas arquitetônicas, pinturas e fotografias — produzidas por ele mesmo ou por órgãos de defesa do patrimônio histórico; escrituras e inventários; atestados de óbito e testamentos; recenseamentos e livros de arquitetura popular ibérica; relatos de viajantes, de memorialistas e textos de cronistas, políticos e historiadores. Entrecruzar depoimentos contemporâneos com a iconografia, à luz de uma contextualização do vocabulário respectivamente empregado na documentação ("casa", "sobrado", "alpendre", "varanda", "cozinha" etc.), permite ao estudioso apreender hábitos, usos e costumes do passado.
Aí entram em cena as três "atividades do cotidiano" que perfariam o programa da casa paulista: o convívio com estranhos, a intimidade doméstica e o trabalho caseiro (em especial, a culinária). Ao longo do tempo, essas funções teriam dado origem respectivamente a zonas de recepção, de intimidade e de serviço com características definidas, nas casas das várias "regiões culturais paulistas" (Bacias do Tietê, do Rio Grande, do Ribeira do Iguape, do Paraíba e do Paranapanema).
E teriam produzido nestas áreas, em meio a ciclos de riqueza econômica diversos, cinco "momentos arquitetônicos": a moradia da fase do bandeirismo e dos anos seguintes à descoberta do ouro mineiro; aquela do tempo do açúcar e do tropeirismo; a casa trazida pelos mineiros migrados a São Paulo com a decadência das minas auríferas; aquela do tempo do arroz e a do início do ciclo cafeeiro.
É respectivamente do programa, da técnica construtiva e do partido de cada um desses tipos de residência que tratam cinco dos seis capítulos de Casa paulista.... O último capítulo tematiza a arquitetura eclética introduzida em São Paulo no bojo da prosperidade cafeeira oitocentista, a fim de discutir a principal tese do livro.
Mas não nos enganemos. O livro não se restringe a descrever tipos de programas, de técnicas e de partidos. Lemos encara o desafio de refletir a respeito dos mecanismos socioculturais subjacentes à dinâmica de transformações por que passa a casa paulista no tempo e no espaço, desde os primeiros anos coloniais. Advém daí o peso que possui, no livro, a chamada "casa colonial" — a ponto de o autor sintetizar o seu intento como "uma breve história da casa paulista, especialmente da casa colonial" (: 12; grifos meus).
Se o primeiro e mais complexo capítulo é todo dedicado a esta questão, isso se deve ao fato de o arquiteto vislumbrar as três atividades-chave do programa paulista primeiro na "casa bandeirista", construção própria da população mameluca que surgiu na Bacia do Tietê em meio à miscigenação ibérica e indígena entre os séculos XVI e meados do XVIII. Quanto à técnica construtiva, é também na casa bandeirista que primeiro se dá o uso da taipa de mão e de pilão. Esta última, herança árabe que chega a São Paulo por influência ibérica, torna-se uma característica própria da arquitetura paulista até a segunda metade do XIX.
Quando o assunto é a origem do partido bandeirista, a acuidade da pesquisa documental permite a Lemos afirmar que se difundiu em São Paulo, "tomando feições próprias, um modelo popular ibérico qualquer. Na arquitetura brasileira, teria sido a primeira manifestação onde uma apropriação assumiu feitio regional ligado a uma sociedade segregada" (: 64). Longe de preconizar que a presença do componente ibérico na arquitetura paulista dos primeiros séculos seja indício de uma ausência de dinâmica cultural, o pesquisador, na verdade, assinala o vigor dessa influência — para além dos inegáveis "sincretismos" derivados do "confronto entre duas culturas, a indígena e a ibérica" (: 22). Nesse sentido, abre espaço para que se reflita a respeito do instigante fato de ser precisamente a releitura que a arquitetura ibérica sofre localmente, num território marcado, no mínimo até a segunda metade do XVIII, por forte isolamento e pobreza, o ingrediente que garante a essa mesma arquitetura a peculiaridade que a destaca no cenário da história colonial brasileira.
Definidos o programa, a técnica e o partido da casa bandeirista, ganha sentido problematizar como a arquitetura residencial paulista ulterior se relaciona com esse primeiro tipo de moradia. No final do primeiro capítulo, o autor fornece uma resposta para esta questão, que será corroborada por meio da análise de vários outros exemplares arquitetônicos, nas páginas restantes do livro.
Lemos parte de uma crítica à tese clássica de Luís Saia sobre o desenvolvimento da arquitetura rural colonial paulista com a decadência do estilo de vida bandeirista4. Apoiado em pesquisa documental — e não apenas, como Saia, na análise de doze exemplares de casas rurais então remanescentes —, não enxerga a casa bandeirista como "solução purista" a partir da qual tenham necessariamente se derivado todos os outros modelos paulistas — "desconformes" — de moradia rural colonial5. Nada de padrões originais; não se pode, portanto, definir a priori as trajetórias formais dos diversos partidos arquitetônicos na história.
E mais: é impossível conceber que plantas arquitetônicas se sucedam linearmente ao longo dos séculos. Analisando, por meio dos documentos, os diversos partidos residenciais existentes em diferentes momentos históricos, o autor demonstra que coexistem, no tempo, exemplares de casas com características históricas bastante distintas.
Significaria isso que não há qualquer continuidade entre a casa bandeirista e os modelos de moradias produzidos nos séculos seguintes? Mesmo correndo o risco de estar lançando um olhar demasiado antropológico sobre a linha argumentativa do autor, penso ser possível afirmar que este, mesmo que de maneira indireta, deixa o leitor entrever sim a continuidade, mas uma continuidade que opera de forma específica.
Somos levados a discernir, a partir das três "atividades do cotidiano" englobadas pelo programa residencial colonial, uma matriz de funções que é ressignificada nas distintas "regiões culturais" paulistas ao longo dos séculos, em meio à dialética entre continuidade e ruptura que caracteriza a dinâmica sociocultural. Acompanhamos, por exemplo, como, nas moradias da região açucareira ao norte de Campinas, o velho corredor fronteiro à casa bandeirista reaparece, mesmo que fechado. Transformou-se em sala de receber, enquanto a capela vira oratório exclusivo da família (Capítulo 2).
Mas contemplamos também o que muda para continuar como era. Nesse sentido, a copa, por exemplo, zona intermediária entre a cozinha e a sala de jantar que chega às casas modernistas do século XX, seria uma herança da antiga grande sala familiar bandeirista e da varanda do início do Oitocentos (Capítulo 6). Mantém-se um espaço privilegiado para a expressão da intimidade doméstica.
Uma dinâmica semelhante vale para a técnica construtiva. Se a taipa de pilão é própria da paisagem paulista durante três séculos, também sofre ressignificações, em especial a partir do momento em que começa a perder espaço para o tijolo. Atento para o descompasso entre as concepções socioculturais vigentes e o espaço concebido em meio a elas, Lemos flagra, nos primórdios da prosperidade cafeeira em São Paulo, moradias que empregam os então modernos tijolos conservando, no entanto, os velhos padrões estéticos da arquitetura de taipa (Capítulo 4).
Mais do que reproduzir aqui todos os fascinantes casos analisados pelo arquiteto, vale assinalar alguns argumentos importantes que ele vai trazendo à tona à medida que o texto avança. A chamada "casa paulista" moldada no decorrer dos séculos deveria muito à presença, no território que hoje constitui o Estado de São Paulo, de grupos de outras regiões do Brasil. Mineiros chegaram à zona canavieira de Campinas e ao médio Paraíba a partir dos anos finais do XVIII; ocuparam os afluentes do rio Grande nos primeiros anos do Oitocentos. A influência baiana, por sua vez, fez-se presente na arquitetura rural do Vale do Paraíba dos primeiros tempos do café.
Por meio dessa interpretação, o pesquisador contribui, com o seu quinhão, para a desconstrução de um mito comum na historiografia paulista. Trata-se da crença de que as vicissitudes da história de São Paulo — e, em especial, os sucessos econômicos desta — se devam à atuação exclusiva de gente originária destas plagas, sobretudo bandeirantes, no contexto de isolamento em que então viviam6.
No que se refere estritamente à cidade de São Paulo, pelo fato de a análise abranger um período histórico bastante amplo, são outros os mitos que o autor ajuda a relativizar; precisamente, o de que a aparência colonial da cidade só tenha sofrido alterações a partir da década de 1870, sob a influência do crescimento da economia cafeeira no oeste da então província de São Paulo7. O estudioso mostra que uma primeira avalanche de transformações da arquitetura colonial piratiningana toma conta das ruas centrais da cidade já em fins do XVIII, em meio aos dividendos direta ou indiretamente trazidos à economia urbana pela prosperidade do quadrilátero do açúcar e do comércio de tropas entre o Rio Grande do Sul e Sorocaba.
Nesse sentido, Lemos acaba por propor também um novo olhar sobre as únicas fotografias de vistas urbanas paulistanas do início da década de 1860 disponíveis atualmente. Fonte iconográfica privilegiada por arquitetos e urbanistas para o entendimento das construções da cidade "de taipa", colonial — anterior às transformações arquitetônicas e urbanísticas que lhe alteraram profundamente o aspecto físico8 —, as imagens de Militão Augusto de Azevedo são exploradas pelo especialista enquanto documentação visual de um "centro urbano paulistano já maquilado, ou melhor, 'modernizado'" — precisamente em fins do XVIII (: 118).
A relativização dos marcos históricos da urbanização de São Paulo não impede, entretanto, que o pesquisador reconheça o último quartel do XIX como fundamental ponto de inflexão do desenvolvimento arquitetônico paulistano e paulista. Abordada no último capítulo do livro, a ruptura histórica que o ecletismo representa seria produto de um universo residencial impulsionado por novos hábitos, atividades e mercadorias, novos equipamentos urbanos e de habitação, em geral importados. Advém daí o argumento de que "a casa tradicional recebeu entre suas taipas velhas as novidades do gosto novo. A modernização começou pelo interior das moradias. De dentro para fora" (: 252).
É pena que, a fim de corroborar a sua tese principal de que o café — e, conseqüentemente, o ecletismo — representam uma completa ruptura na história da arquitetura paulista, o autor deixe, nesse momento final do livro, pouco espaço para as ressignificações que sofrem as velhas formas arquitetônicas — e, portanto, concepções socioculturais — também nesse contexto de fins do XIX.
Será que passou mesmo a vigorar de maneira absoluta um "necessário repúdio" de "todos" contra as formas arquitetônicas do passado (: 252; grifos meus)? Será que, desprovido de quaisquer hesitações, "o pensamento estava de modo premonitório voltado para a funcionalidade implícita na `máquina de morar'" (ibid.)? Dificilmente. O próprio arquiteto aponta para o fato de que, ao mesmo tempo em que desponta no cenário urbano o palacete eclético, multiplicam-se os cortiços e casas de aluguel, que atestam, em sua arquitetura, a persistência de velhas distribuições espaciais.
E até o moderno palacete, em princípio pautado no "morar à francesa", revela ambigüidades entre o passado e o presente. A velha "faixa de transição entre o público e o privado" da casa bandeirista, dotada de quarto de hóspedes, capela ou oratório e um alpendre central, reaparece, na nova forma residencial da elite cafeeira, mesmo que modificada: o quarto de hóspedes situa-se no térreo, ao lado do vestíbulo destinado à recepção das visitas.
A forte presença de releituras culturais do passado também em um momento tão pleno de transformações como os "tempos do café" de forma alguma invalida a tese principal de Lemos. Com efeito, programa, técnica e partido arquitetônicos passam por enormes mudanças à medida que São Paulo vai, por meio das bem sucedidas exportações cafeeiras, se inserindo no mercado internacional capitalista de fins do XIX. O estudioso alude à introdução de fogões "econômicos" e de geladeiras nas casas dos mais abastados, ao emprego de tijolos e à atuação de imigrantes no mercado da construção civil. São, todas essas, inovações que por si só atestam mudanças radicais no modo de a sociedade perceber e vivenciar — portanto, conceber arquitetonicamente — o espaço doméstico.
Depois do longo trajeto por três séculos de São Paulo, o leitor chega às páginas finais de Casa paulista... encantado. Encantado porque o pesquisador lhe proporcionou uma incrível viagem imaginária pelos velhos corredores e alcovas nos quais viveram antigas e, em grande parte, já esquecidas gerações de indivíduos. A farta iconografia que acompanha o texto insinua os múltiplos sentidos de uma história que, de alguma forma, diz respeito a todos nós. E isso apesar de faltarem as datas de produção de algumas imagens, o que evoca no leitor a estranha impressão de que as construções nelas retratadas se situam fora da história.
É necessário ressaltar que a sensação de proximidade em relação a um mundo tão longínquo não se deve apenas aos recursos visuais utilizados pelo autor. Advém do fato de que o arquiteto parte de paredes de taipa, telhados e varandas para chegar às pessoas e ao cotidiano que estas vivenciam nesse ambiente físico. Possivelmente o espaço residencial, nos três séculos em questão, tenha sido menos marcado pela separação entre "público" e "privado" — categorias sociologicamente significativas no cenário europeu — do que pelo fundamental papel da intimidade, num contexto patriarcal e escravista fortemente hierarquizado e no qual a esfera pública — definida pela atuação ostensiva do Estado — não existia enquanto tal9.
E, no entanto, marcado ou não pela privacidade, o fato é que, como mostra Lemos, o espaço constitui sempre um instigante cenário para o estudo de um cotidiano e de uma cultura que já não existem mais. Por meio do espaço, o cotidiano e a cultura que aproximam deste mesmo espaço. Por meio da Antropologia, a Arquitetura.
Notas
1 Além de professor de arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Lemos é membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Dentre os seus inúmeros trabalhos destacam-se Cozinhas etc. (São Paulo, Perspectiva, 1978), Arquitetura brasileira (São Paulo, Melhoramentos, 1978), Alvenaria burguesa: breve histórico da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico gerado pelo café (São Paulo, Nobel, 1985), História da casa brasileira (São Paulo, Contexto, 1989), Ramos de Azevedo e seu escritório (São Paulo, Pini, 1993).
2 Cf. em particular Émile Durkheim, Les Formes Elémentaires de la Vie Réligieuse, Paris, Quadrige/PUF, 1994 (1a ed.: 1921), esp. pp. 12-28.
3 Cf. Eunice Durham, "Cultura, patrimônio e preservação. Texto II", in Antônio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado, São Paulo, Brasiliense, 1984.
4 Cf. Luís Saia, A casa bandeirantista (uma interpretação), São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1955, e Morada paulista, São Paulo, Perspectiva, 1972.
5. Cf. Luís Saia, A casa bandeirantista..., citado por Carlos A. C. Lemos, Casa paulista..., p. 49.
6 Uma contextualização crítica da produção historiográfica, em particular, paulistana, centrada nessa crença encontra-se em Raquel Glezer, "O campo da História", Cadernos de História de São Paulo, no 1, São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1992, p. 11.
7 Cf., entre outros, Richard Morse, Formação Histórica de São Paulo (De comunidade à metrópole), São Paulo, Difel, 1970 (1a ed.: 1954), e Ernani da Silva Bruno, História e tradições da cidade de São Paulo. Metrópole do café (1872-1918), São Paulo, HUCITEC, 1983 (1a ed.: 1954).
8 Cf., entre outros, Benedito Lima de Toledo, "A imperial cidade de São Paulo vista por Militão", in Benedito Lima de Toledo et alii, Álbum comparativo da cidade de São Paulo, 1862-1887, São Paulo, PMSP/SMC, 1981.
9 Sobre as dificuldades teóricas envolvidas na transposição dos conceitos "público" e "privado" para a compreensão do contexto brasileiro, cf. José de Souza Martins, "Apontamentos sobre vida cotidiana e História", in A sociabilidade do homem simples. Cotidiano e história na modernidade anômala, São Paulo, HUCITEC, 2000. Sobre a importância da noção de "intimidade" no Brasil, cf. também Fernando A. Novais, "Condições da privacidade na Colônia", in Fernando A. Novais (org.), História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
Revista de Antropologia
Fraya Frehse
Doutoranda em Antropologia — USP
Professor universitário, arquiteto, pintor e historiador da arquitetura brasileira: Carlos Lemos é um autor cujo nome se confunde com muito do que se sabe hoje sobre as formas de morar em São Paulo no passado. Nesse sentido, o recente Casa paulista... foi escrito por um pesquisador já consagrado, detentor de uma vasta obra acadêmica referente à arquitetura residencial paulista e que se sobressai também por seu engajamento institucional em defesa do patrimônio histórico do país1.
O fato de abordar uma temática já explorada pelo estudioso em outras ocasiões não retira do texto nem um pouco de sua instigante originalidade. Nele, Lemos explicita com todas as letras a perspectiva teórico-metodológica que vem norteando o seu olhar sobre a história da casa paulista. Logo nas primeiras linhas, a frase "no território de São Paulo, (...) a evolução das habitações atendeu a imposições de ordem cultural que valem a pena ser recordadas por estarem esquecidas ou mesmo não percebidas" (: 10) anuncia o que lhe interessa: a compreensão do espaço por meio da cultura.
Essa orientação perpassa a formulação da principal tese do livro, ousada pelo escopo temporal e espacial que se propõe abarcar, e que preconiza "ter havido um desenvolvimento da habitação paulista, sem rupturas, sem mudanças drásticas ou saltos na forma e no uso daquela casa até a chegada do café e do ecletismo, que subverteu tudo" (: 12). Para desenvolver o argumento, Lemos sabe que é imprescindível dialogar com a Antropologia, disciplina que incentiva a reflexão sobre a relação entre espaço e contexto sociocultural no mínimo desde que Émile Durkheim incluiu a noção de espaço no rol das categorias do pensamento coletivo2.
O arquiteto constrói o seu recorte de análise recorrendo especificamente a considerações de Eunice Durham sobre o caráter "artificial" do comportamento humano (organizado que é através de sistemas simbólicos) e sobre a relativa artificialidade, portanto, do ambiente que o homem cria, recria e transmite adiante através da cultura3. Nesse sentido, o que importa, segundo o autor, é compreender a relação entre moradia — "parte relevante desse ambiente artificial" — e atividade doméstica. E isso precisamente no contexto da chamada "arquitetura vernácula", desprovida da figura do arquiteto, e na qual a técnica, "manipulando os recursos da natureza envoltória, satisfaz as exigências de todo um complexo cultural que rege a vida cotidiana" (: 22).
O reconhecimento explícito da interface da Arquitetura com a Antropologia permite ao pesquisador elaborar um instrumental peculiar de análise. A noção de "programa", que, no léxico arquitetônico, designa o conjunto de atividades programadas para se darem no espaço projetado, possui, em Casa paulista..., uma conotação mais complexa, baseada na constatação de um indelével descompasso entre o espaço arquitetônico concebido e as vivências cotidianas que nele se dão.
É por isso que seriam duas as facetas do programa residencial. Se, em princípio, ele engloba ocupações do grupo familiar comuns em qualquer região do mundo (comer, dormir, realizar os serviços domésticos, relacionar-se com estranhos etc.), assumiria, entretanto, singularidades, ligadas ao modo como se realiza no espaço, dependendo das condições ou disponibilidades vigentes localmente em determinada época.
Entre o geral e o específico, Lemos opta pelo segundo — e, portanto, por uma abordagem referenciada pela "antropologia cultural". Embora se autodenominando um "intruso em seara alheia" (: 20), de fato se baseia nas relações e concepções socioculturais vigentes em diferentes áreas rurais e urbanas daquilo que é hoje o território paulista, a fim de apreender os programas residenciais ali difundidos entre meados do século XVI e o último quartel do XIX. E isso para além da atenção que dispensa à técnica construtiva, ao clima e à intenção plástica, elementos que, paralelamente ao programa, condicionam a planta arquitetônica.
Mas como o especialista realiza o seu empreendimento, se busca os programas de uma arquitetura hoje em dia em grande parte inexistente, para a qual quase não há documentação textual e iconográfica elucidativa? O grande trunfo do arquiteto é uma aprofundada pesquisa em fontes históricas variadas: plantas arquitetônicas, pinturas e fotografias — produzidas por ele mesmo ou por órgãos de defesa do patrimônio histórico; escrituras e inventários; atestados de óbito e testamentos; recenseamentos e livros de arquitetura popular ibérica; relatos de viajantes, de memorialistas e textos de cronistas, políticos e historiadores. Entrecruzar depoimentos contemporâneos com a iconografia, à luz de uma contextualização do vocabulário respectivamente empregado na documentação ("casa", "sobrado", "alpendre", "varanda", "cozinha" etc.), permite ao estudioso apreender hábitos, usos e costumes do passado.
Aí entram em cena as três "atividades do cotidiano" que perfariam o programa da casa paulista: o convívio com estranhos, a intimidade doméstica e o trabalho caseiro (em especial, a culinária). Ao longo do tempo, essas funções teriam dado origem respectivamente a zonas de recepção, de intimidade e de serviço com características definidas, nas casas das várias "regiões culturais paulistas" (Bacias do Tietê, do Rio Grande, do Ribeira do Iguape, do Paraíba e do Paranapanema).
E teriam produzido nestas áreas, em meio a ciclos de riqueza econômica diversos, cinco "momentos arquitetônicos": a moradia da fase do bandeirismo e dos anos seguintes à descoberta do ouro mineiro; aquela do tempo do açúcar e do tropeirismo; a casa trazida pelos mineiros migrados a São Paulo com a decadência das minas auríferas; aquela do tempo do arroz e a do início do ciclo cafeeiro.
É respectivamente do programa, da técnica construtiva e do partido de cada um desses tipos de residência que tratam cinco dos seis capítulos de Casa paulista.... O último capítulo tematiza a arquitetura eclética introduzida em São Paulo no bojo da prosperidade cafeeira oitocentista, a fim de discutir a principal tese do livro.
Mas não nos enganemos. O livro não se restringe a descrever tipos de programas, de técnicas e de partidos. Lemos encara o desafio de refletir a respeito dos mecanismos socioculturais subjacentes à dinâmica de transformações por que passa a casa paulista no tempo e no espaço, desde os primeiros anos coloniais. Advém daí o peso que possui, no livro, a chamada "casa colonial" — a ponto de o autor sintetizar o seu intento como "uma breve história da casa paulista, especialmente da casa colonial" (: 12; grifos meus).
Se o primeiro e mais complexo capítulo é todo dedicado a esta questão, isso se deve ao fato de o arquiteto vislumbrar as três atividades-chave do programa paulista primeiro na "casa bandeirista", construção própria da população mameluca que surgiu na Bacia do Tietê em meio à miscigenação ibérica e indígena entre os séculos XVI e meados do XVIII. Quanto à técnica construtiva, é também na casa bandeirista que primeiro se dá o uso da taipa de mão e de pilão. Esta última, herança árabe que chega a São Paulo por influência ibérica, torna-se uma característica própria da arquitetura paulista até a segunda metade do XIX.
Quando o assunto é a origem do partido bandeirista, a acuidade da pesquisa documental permite a Lemos afirmar que se difundiu em São Paulo, "tomando feições próprias, um modelo popular ibérico qualquer. Na arquitetura brasileira, teria sido a primeira manifestação onde uma apropriação assumiu feitio regional ligado a uma sociedade segregada" (: 64). Longe de preconizar que a presença do componente ibérico na arquitetura paulista dos primeiros séculos seja indício de uma ausência de dinâmica cultural, o pesquisador, na verdade, assinala o vigor dessa influência — para além dos inegáveis "sincretismos" derivados do "confronto entre duas culturas, a indígena e a ibérica" (: 22). Nesse sentido, abre espaço para que se reflita a respeito do instigante fato de ser precisamente a releitura que a arquitetura ibérica sofre localmente, num território marcado, no mínimo até a segunda metade do XVIII, por forte isolamento e pobreza, o ingrediente que garante a essa mesma arquitetura a peculiaridade que a destaca no cenário da história colonial brasileira.
Definidos o programa, a técnica e o partido da casa bandeirista, ganha sentido problematizar como a arquitetura residencial paulista ulterior se relaciona com esse primeiro tipo de moradia. No final do primeiro capítulo, o autor fornece uma resposta para esta questão, que será corroborada por meio da análise de vários outros exemplares arquitetônicos, nas páginas restantes do livro.
Lemos parte de uma crítica à tese clássica de Luís Saia sobre o desenvolvimento da arquitetura rural colonial paulista com a decadência do estilo de vida bandeirista4. Apoiado em pesquisa documental — e não apenas, como Saia, na análise de doze exemplares de casas rurais então remanescentes —, não enxerga a casa bandeirista como "solução purista" a partir da qual tenham necessariamente se derivado todos os outros modelos paulistas — "desconformes" — de moradia rural colonial5. Nada de padrões originais; não se pode, portanto, definir a priori as trajetórias formais dos diversos partidos arquitetônicos na história.
E mais: é impossível conceber que plantas arquitetônicas se sucedam linearmente ao longo dos séculos. Analisando, por meio dos documentos, os diversos partidos residenciais existentes em diferentes momentos históricos, o autor demonstra que coexistem, no tempo, exemplares de casas com características históricas bastante distintas.
Significaria isso que não há qualquer continuidade entre a casa bandeirista e os modelos de moradias produzidos nos séculos seguintes? Mesmo correndo o risco de estar lançando um olhar demasiado antropológico sobre a linha argumentativa do autor, penso ser possível afirmar que este, mesmo que de maneira indireta, deixa o leitor entrever sim a continuidade, mas uma continuidade que opera de forma específica.
Somos levados a discernir, a partir das três "atividades do cotidiano" englobadas pelo programa residencial colonial, uma matriz de funções que é ressignificada nas distintas "regiões culturais" paulistas ao longo dos séculos, em meio à dialética entre continuidade e ruptura que caracteriza a dinâmica sociocultural. Acompanhamos, por exemplo, como, nas moradias da região açucareira ao norte de Campinas, o velho corredor fronteiro à casa bandeirista reaparece, mesmo que fechado. Transformou-se em sala de receber, enquanto a capela vira oratório exclusivo da família (Capítulo 2).
Mas contemplamos também o que muda para continuar como era. Nesse sentido, a copa, por exemplo, zona intermediária entre a cozinha e a sala de jantar que chega às casas modernistas do século XX, seria uma herança da antiga grande sala familiar bandeirista e da varanda do início do Oitocentos (Capítulo 6). Mantém-se um espaço privilegiado para a expressão da intimidade doméstica.
Uma dinâmica semelhante vale para a técnica construtiva. Se a taipa de pilão é própria da paisagem paulista durante três séculos, também sofre ressignificações, em especial a partir do momento em que começa a perder espaço para o tijolo. Atento para o descompasso entre as concepções socioculturais vigentes e o espaço concebido em meio a elas, Lemos flagra, nos primórdios da prosperidade cafeeira em São Paulo, moradias que empregam os então modernos tijolos conservando, no entanto, os velhos padrões estéticos da arquitetura de taipa (Capítulo 4).
Mais do que reproduzir aqui todos os fascinantes casos analisados pelo arquiteto, vale assinalar alguns argumentos importantes que ele vai trazendo à tona à medida que o texto avança. A chamada "casa paulista" moldada no decorrer dos séculos deveria muito à presença, no território que hoje constitui o Estado de São Paulo, de grupos de outras regiões do Brasil. Mineiros chegaram à zona canavieira de Campinas e ao médio Paraíba a partir dos anos finais do XVIII; ocuparam os afluentes do rio Grande nos primeiros anos do Oitocentos. A influência baiana, por sua vez, fez-se presente na arquitetura rural do Vale do Paraíba dos primeiros tempos do café.
Por meio dessa interpretação, o pesquisador contribui, com o seu quinhão, para a desconstrução de um mito comum na historiografia paulista. Trata-se da crença de que as vicissitudes da história de São Paulo — e, em especial, os sucessos econômicos desta — se devam à atuação exclusiva de gente originária destas plagas, sobretudo bandeirantes, no contexto de isolamento em que então viviam6.
No que se refere estritamente à cidade de São Paulo, pelo fato de a análise abranger um período histórico bastante amplo, são outros os mitos que o autor ajuda a relativizar; precisamente, o de que a aparência colonial da cidade só tenha sofrido alterações a partir da década de 1870, sob a influência do crescimento da economia cafeeira no oeste da então província de São Paulo7. O estudioso mostra que uma primeira avalanche de transformações da arquitetura colonial piratiningana toma conta das ruas centrais da cidade já em fins do XVIII, em meio aos dividendos direta ou indiretamente trazidos à economia urbana pela prosperidade do quadrilátero do açúcar e do comércio de tropas entre o Rio Grande do Sul e Sorocaba.
Nesse sentido, Lemos acaba por propor também um novo olhar sobre as únicas fotografias de vistas urbanas paulistanas do início da década de 1860 disponíveis atualmente. Fonte iconográfica privilegiada por arquitetos e urbanistas para o entendimento das construções da cidade "de taipa", colonial — anterior às transformações arquitetônicas e urbanísticas que lhe alteraram profundamente o aspecto físico8 —, as imagens de Militão Augusto de Azevedo são exploradas pelo especialista enquanto documentação visual de um "centro urbano paulistano já maquilado, ou melhor, 'modernizado'" — precisamente em fins do XVIII (: 118).
A relativização dos marcos históricos da urbanização de São Paulo não impede, entretanto, que o pesquisador reconheça o último quartel do XIX como fundamental ponto de inflexão do desenvolvimento arquitetônico paulistano e paulista. Abordada no último capítulo do livro, a ruptura histórica que o ecletismo representa seria produto de um universo residencial impulsionado por novos hábitos, atividades e mercadorias, novos equipamentos urbanos e de habitação, em geral importados. Advém daí o argumento de que "a casa tradicional recebeu entre suas taipas velhas as novidades do gosto novo. A modernização começou pelo interior das moradias. De dentro para fora" (: 252).
É pena que, a fim de corroborar a sua tese principal de que o café — e, conseqüentemente, o ecletismo — representam uma completa ruptura na história da arquitetura paulista, o autor deixe, nesse momento final do livro, pouco espaço para as ressignificações que sofrem as velhas formas arquitetônicas — e, portanto, concepções socioculturais — também nesse contexto de fins do XIX.
Será que passou mesmo a vigorar de maneira absoluta um "necessário repúdio" de "todos" contra as formas arquitetônicas do passado (: 252; grifos meus)? Será que, desprovido de quaisquer hesitações, "o pensamento estava de modo premonitório voltado para a funcionalidade implícita na `máquina de morar'" (ibid.)? Dificilmente. O próprio arquiteto aponta para o fato de que, ao mesmo tempo em que desponta no cenário urbano o palacete eclético, multiplicam-se os cortiços e casas de aluguel, que atestam, em sua arquitetura, a persistência de velhas distribuições espaciais.
E até o moderno palacete, em princípio pautado no "morar à francesa", revela ambigüidades entre o passado e o presente. A velha "faixa de transição entre o público e o privado" da casa bandeirista, dotada de quarto de hóspedes, capela ou oratório e um alpendre central, reaparece, na nova forma residencial da elite cafeeira, mesmo que modificada: o quarto de hóspedes situa-se no térreo, ao lado do vestíbulo destinado à recepção das visitas.
A forte presença de releituras culturais do passado também em um momento tão pleno de transformações como os "tempos do café" de forma alguma invalida a tese principal de Lemos. Com efeito, programa, técnica e partido arquitetônicos passam por enormes mudanças à medida que São Paulo vai, por meio das bem sucedidas exportações cafeeiras, se inserindo no mercado internacional capitalista de fins do XIX. O estudioso alude à introdução de fogões "econômicos" e de geladeiras nas casas dos mais abastados, ao emprego de tijolos e à atuação de imigrantes no mercado da construção civil. São, todas essas, inovações que por si só atestam mudanças radicais no modo de a sociedade perceber e vivenciar — portanto, conceber arquitetonicamente — o espaço doméstico.
Depois do longo trajeto por três séculos de São Paulo, o leitor chega às páginas finais de Casa paulista... encantado. Encantado porque o pesquisador lhe proporcionou uma incrível viagem imaginária pelos velhos corredores e alcovas nos quais viveram antigas e, em grande parte, já esquecidas gerações de indivíduos. A farta iconografia que acompanha o texto insinua os múltiplos sentidos de uma história que, de alguma forma, diz respeito a todos nós. E isso apesar de faltarem as datas de produção de algumas imagens, o que evoca no leitor a estranha impressão de que as construções nelas retratadas se situam fora da história.
É necessário ressaltar que a sensação de proximidade em relação a um mundo tão longínquo não se deve apenas aos recursos visuais utilizados pelo autor. Advém do fato de que o arquiteto parte de paredes de taipa, telhados e varandas para chegar às pessoas e ao cotidiano que estas vivenciam nesse ambiente físico. Possivelmente o espaço residencial, nos três séculos em questão, tenha sido menos marcado pela separação entre "público" e "privado" — categorias sociologicamente significativas no cenário europeu — do que pelo fundamental papel da intimidade, num contexto patriarcal e escravista fortemente hierarquizado e no qual a esfera pública — definida pela atuação ostensiva do Estado — não existia enquanto tal9.
E, no entanto, marcado ou não pela privacidade, o fato é que, como mostra Lemos, o espaço constitui sempre um instigante cenário para o estudo de um cotidiano e de uma cultura que já não existem mais. Por meio do espaço, o cotidiano e a cultura que aproximam deste mesmo espaço. Por meio da Antropologia, a Arquitetura.
Notas
1 Além de professor de arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Lemos é membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Dentre os seus inúmeros trabalhos destacam-se Cozinhas etc. (São Paulo, Perspectiva, 1978), Arquitetura brasileira (São Paulo, Melhoramentos, 1978), Alvenaria burguesa: breve histórico da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico gerado pelo café (São Paulo, Nobel, 1985), História da casa brasileira (São Paulo, Contexto, 1989), Ramos de Azevedo e seu escritório (São Paulo, Pini, 1993).
2 Cf. em particular Émile Durkheim, Les Formes Elémentaires de la Vie Réligieuse, Paris, Quadrige/PUF, 1994 (1a ed.: 1921), esp. pp. 12-28.
3 Cf. Eunice Durham, "Cultura, patrimônio e preservação. Texto II", in Antônio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado, São Paulo, Brasiliense, 1984.
4 Cf. Luís Saia, A casa bandeirantista (uma interpretação), São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1955, e Morada paulista, São Paulo, Perspectiva, 1972.
5. Cf. Luís Saia, A casa bandeirantista..., citado por Carlos A. C. Lemos, Casa paulista..., p. 49.
6 Uma contextualização crítica da produção historiográfica, em particular, paulistana, centrada nessa crença encontra-se em Raquel Glezer, "O campo da História", Cadernos de História de São Paulo, no 1, São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1992, p. 11.
7 Cf., entre outros, Richard Morse, Formação Histórica de São Paulo (De comunidade à metrópole), São Paulo, Difel, 1970 (1a ed.: 1954), e Ernani da Silva Bruno, História e tradições da cidade de São Paulo. Metrópole do café (1872-1918), São Paulo, HUCITEC, 1983 (1a ed.: 1954).
8 Cf., entre outros, Benedito Lima de Toledo, "A imperial cidade de São Paulo vista por Militão", in Benedito Lima de Toledo et alii, Álbum comparativo da cidade de São Paulo, 1862-1887, São Paulo, PMSP/SMC, 1981.
9 Sobre as dificuldades teóricas envolvidas na transposição dos conceitos "público" e "privado" para a compreensão do contexto brasileiro, cf. José de Souza Martins, "Apontamentos sobre vida cotidiana e História", in A sociabilidade do homem simples. Cotidiano e história na modernidade anômala, São Paulo, HUCITEC, 2000. Sobre a importância da noção de "intimidade" no Brasil, cf. também Fernando A. Novais, "Condições da privacidade na Colônia", in Fernando A. Novais (org.), História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
Revista de Antropologia
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