Bela Feldman-Bianco e Miriam L. Moreira Leite (orgs.). Desafios da imagem. Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas, São Paulo, Papirus, 1998, 319 pp.
Ana Lúcia Ferraz
Mestranda do Departamento de Antropologia – USP
Trata-se de uma coletânea de artigos no campo da Antropologia Visual, organizada por Míriam Moreira Leite e Bela Feldman-Bianco, a partir de um encontro realizado em abril de 1996 na Unicamp, que reuniu pesquisadores do antigo Grupo de Trabalho Usos da Imagem da ANPOCS. A coletânea divide-se em cinco partes que discutem o estatuto heurístico das imagens na produção do conhecimento antropológico, sejam elas objetos, produtos ou meios na pesquisa etnográfica.
O livro abre com um artigo sobre as relações entre fotografia e história na obra de Walter Benjamin, referência fundamental, já que o frankfurtiano era mestre em escrever com imagens. No entanto, a interpretação de Lissovsky, professor da Escola de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do ISER, deixa a desejar. Tomando a noção de história como objeto, o autor propõe as metáforas do tigre e da lontra, alegorias utilizadas por Benjamin em textos específicos, para compreendê-la. No entanto, não tem êxito e se perde citando outros autores com o intuito de instrumentalizar seus argumentos e contextualizar sua análise; aparecem então Nietzsche, Leibniz e até Habermas. Ficamos no escuro quando pretendemos entender a relação da fotografia com o agora, em que o sentido se completa e a história, como num instantâneo fotográfico, realiza-se.
Benjamin escreve com imagens e elas referem-se sempre à particularidade histórica analisada. Os exemplos com os quais argumenta em seus ensaios remetem o leitor para o concreto da vida social, da experiência. Nas Teses sobre o conceito de história, texto em que mobiliza a metáfora do tigre, ele discute método e emprega a sua noção de dialética: uma imagem se opõe a outra e desse embate surge um terceiro sentido. O tigre salta no repente em que o tempo se acelera e o sentido se realiza. É a história que se faz, como no flash fotográfico.
Míriam Moreira Leite, organizadora e autora, brinda-nos com uma breve reflexão sobre o ler/ver imagens, pergunta pela possibilidade de exprimir imagens com palavras, questão a que voltaremos mais adiante. Ela apresenta ainda uma bibliografia básica para os que pretendem trabalhar análises de fotografias. O terceiro autor que reflete sobre linguagem visual é Etienne Samain1. Ele discute as diversas tecnologias que temos hoje disponíveis para trabalhar com imagens nas Ciências Sociais.
Dentre os autores que tomam imagens como objetos de seus ensaios, há os que tomam a fotografia como fonte de suas reflexões. Luciana Bittencourt vai compreender os processos de simbolização através das imagens fotográficas das pessoas que estuda – tecelãs do vale do Jequitinhonha. A foto documenta, é técnica e auxilia na compreensão das formas sociais. A imagem é técnica que faz falar. Segundo a autora, o uso de meios visuais de representação desvenda o processo de comunicação de idéias que forma a base do encontro etnográfico. Ela conceptualiza uma investigação colaborativa2 que enfatiza a interpretação de imagens e de idéias transmitidas pelos sujeitos da imagem. Assim, o conhecimento antropológico não é mais a afirmação que um sujeito faz de um objeto, mas o fruto de uma experiência compartilhada por dois sujeitos.
Ana Niemeyer etnografa uma favela removida. As fotografias são fruto da colaboração entre ela e os moradores e entram em seu texto como informações densas de significado. Os desenhos são tomados como objetos de análise. Seu texto é cheio de imagens que remetem, todas, ao concreto da vida social estudada.
Koury discute as possibilidades da análise de imagens nas Ciências Sociais a partir das impressões suscitadas nele por uma fotografia em particular. Tomando telas e ilustrações, Maria Sylvia Porto Alegre publica uma nova versão de seu trabalho, que conhecemos em Índios no Brasil3. A autora visa compreender como um conjunto de imagens representa os povos indígenas e, além disso, a "atitude social e psíquica em relação a eles" (:86), ou, "a representação do índio pela ótica do homem branco"(:91). Com objetivos imprecisos, a autora fica no generalismo, já que não se debruça sobre o trabalho de nenhum autor em particular e opta por abrir mão de estudar o contexto de produção das imagens que reproduz em seu texto4. Passeando por diversas imagens de índios dá um tratamento temático às suas "fontes documentais".
Diferentemente dessa autora, Schwarcz analisa sua iconografia a partir do contexto de sua produção. Parte das imagens feitas do monarca brasileiro Dom Pedro II, para compreender a construção desse símbolo da nação brasileira. De maneira bastante interessante, toma a noção de representação em seus múltiplos sentidos. No trato com as imagens apresenta ao leitor uma história da figura do imperador e de sua corte tropical: das fotos de sua infância à desmoralização das charges publicadas à época de sua maturidade. Desse modo, "os símbolos aproximam teatro e realidade, fundando, na memória, o mito".
Discutindo acervos visuais e ensino, Patrícia Monte-Mór nos relata sua instigante pesquisa para a realização dos Festivais Internacionais do Filme Etnográfico. No garimpo do nitrato a autora nos conta duas histórias, a do filme etnográfico e a sua experiência de pesquisadora. Uma outra pesquisadora, Maria Beatriz Rocha-Trindade, de Portugal, informa-nos sobre a presença dos recursos multimídeas em materiais didáticos utilizados crescentemente nas salas de aula. A imagem no processo pedagógico tem muito com o que contribuir. Ana Galano narra sua experiência na direção do Núcleo Audiovisual de Documentação (NAVEDOC/UFRJ), dirigindo o projeto de pesquisa Fotografando a Moradia Popular e, em seguida, acompanhando a produção de um vídeo sobre os usos do espaço de moradia. A forma como a pesquisadora constrói o texto remete o leitor à sua experiência.
No livro, a produção imagética é considerada instrumento de pesquisa, pelo menos este é o título de sua quarta parte. Nela, escrevem Luciana Bittencourt, Clarice Peixoto e Ana Niemeyer. A afirmação da imagem como instrumento precisa aqui ser melhor discutida, já que todos os estudos reunidos sob esse título têm na imagem a possibilidade de comunicação com os sujeitos estudados. Luciana Bittencourt discute com os seus nativos as imagens produzidas por eles, Clarice Peixoto exibe as cenas de entrevistas aos idosos franceses, e Ana Niemeyer compartilha com os sujeitos que estuda a produção de fotografias, que acompanham, no tempo, a sua situação da moradia. De todo modo, a imagem é condição para a realização dessas pesquisas, para a compreensão das representações nativas, além da representação do próprio pesquisador. Já que, como nos ensina Etienne Samain no seu artigo, as próprias técnicas influenciam o modo de ver e de refletir sobre as imagens. Fotografia, iconografia e vídeo, no livro, são técnicas presentes no campo da Antropologia Social.
Com a linguagem do vídeo trabalham Cláudia Fonseca, Nuno Godolphin, Andréa Caldarello e Rogério Rosa, autores de "Ciranda, Cirandinha". Tematizam o fazer etnográfico e apresentam reflexões sobre a prática de videografar, dos bastidores de seu vídeo, discutindo polifonia e autoria. Uma interessante resenha5 desse vídeo é a escrita por Rosilene Alvin e, publicada no Cadernos de Antropologia e Imagem. Ela nos remete de volta à questão proposta por Míriam Moreira Leite acerca da tradutibilidade dos códigos escrito e imagético: descrevendo o vídeo com palavras, a autora cria imagens que remetem o leitor à empiria dos estudos sobre a circulação de crianças entre famílias de classes populares.
Outra autora que trabalha com vídeo na pesquisa é Clarice Peixoto6 que comenta questões surgidas a partir da prática de videografar em campo. Seu trabalho entre idosos franceses e cariocas é mencionado como exemplo de questões mais gerais sobre a produção imagética por parte de etnógrafos. Bela Feldman-Bianco em Saudade cita Jean Rouch e a concepção do filme etnográfico como o meio mais fácil de estabelecer o diálogo entre o antropólogo e seus sujeitos. Uma antropologia compartilhada cujo momento crucial é a apresentação do filme aos sujeitos filmados, a "contradádiva audiovisual". Empregando a noção de etnografia visual, Bela parte de histórias orais para tematizar o significado da Saudade.
Dominique Tilkin Gallois, para além da apropriação instrumental das imagens, reflete sobre as possibilidades da comunicação intercultural e acerca da importância dos antropólogos terem sempre em mente o público a que se destinam os trabalhos antropológicos, sejam eles textos, vídeos ou filmes. Começa seu texto apontando a perspectiva do antropólogo ter acesso ao grande público, por um lado, e, por outro, a de sermos compreendidos pelas comunidades que estudamos. Responsável, com Vincent Carelli, pelo projeto Vídeo nas Aldeias, a autora defende a necessidade de "abrir um canal para as vozes dos outros". Afirma que o seu objetivo é criar um "texto intervozes" e "testar sua capacidade de comunicação com os índios". Estamos falando da possibilidade da Antropologia como mediadora entre culturas diferentes, a do pesquisador e a do pesquisado, e questionando esse lugar passivo na relação de produção do conhecimento antropológico.
Diversas autoras nessa coletânea adotam a proposta de uma antropologia compartilhada – de modos bem diferentes: Feldman-Bianco, Peixoto, Niemeyer, Bittencourt, Gallois. Cada uma explicita essa perspectiva exemplificando com o caso estudado, com a sua experiência particular de pesquisa. Assumindo a autoria do texto/vídeo (Fonseca, Koury, Feldman-Bianco), comentando sua própria prática (Monte-Mór, Galano) e privilegiando a etnografia (Niemeyer), todos valorizam a prática da pesquisa empírica nas ciências sociais ao mobilizarem suas imagens.
As implicações dessas concepções para o campo de nossa disciplina são várias, a mais importante delas é o abandono de falsas dicotomias entre imagem e texto ou entre uma Antropologia Visual e uma Antropologia da Comunicação. A etnografia assume assim um papel importante na ampliação das fronteiras da comunicação humana em suas diversas formas. A produção do conhecimento está explicitada em seus procedimentos, problematizada em suas técnicas e há sobretudo uma consciência mais aguda da relação na qual um homem objetiva outro.
Notas
1 Ver ainda E. Samain (org.) O fotográfico. São Paulo, Hucitec, 1998.
2 Como para V. J. Caldarola "Imaging process as ethnographic inquiry", Visual Anthropology 1 (4), 1988:433-51.
3 Luís Donizete Benzi Grupioni (org.). Brasília, MEC, 1994.
4 As imagens reproduzidas no artigo vão do século XVI, com a xilogravura do francês Richard Breton, ao XIX, com as gravuras publicadas por Spix e Martius em seu Atlas zur Reise, além de bicos de pena de Hercules Florence e aquarelas de Maximilian zu Wied-Neuwied.
5 Maria Rosilene Alvin resenha "Ciranda, Cirandinha" no Cadernos de Antropologia e Imagem 3. Rio de Janeiro, 1996 :223-5.
6 Ver ainda C. Peixoto "Do diário de campo à câmera na mão ou de como virar antropólogo cineasta", Revista de Antropologia 39 (2), São Paulo, 1996:225-73.
Revista de Antropologia
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