quinta-feira, 1 de abril de 2010

Nós, os Tikopias. Um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva


Raymond Firth. Nós, os Tikopias. Um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva. Prefácio de Bronislaw Malinowski. Apresentação de Marcos Lanna. Edusp, São Paulo, 1998, 756 pp.

Renato Sztutman
Mestrando do Departamento de Antropologia – USP

Em 1998, Raymond Firth, aos 97 anos, comemora 70 anos de sua primeira viagem à terra dos Tikopia, na Polinésia. Desta primeira ida à campo, Firth pôde conceber sua primeira grande obra, Nós, os Tikopia, publicada em 1936 e que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português. Trata-se de uma monografia de fôlego – nada menos que 756 páginas – sobre essa população do Pacífico, arquitetada a partir de um modelo clássico, muito próprio da escola funcionalista britânica. Com a tradução de Nós, os Tikopia, o leitor ganha mais que uma etnografia exaustiva, encontrando um estilo literário engenhoso, aliado a formulações teóricas criativas passíveis de uma leitura atual.

Firth formou-se em Economia em Auckland, Nova Zelândia, seu país natal. Descobriu a Etnologia na London School of Economics, sob a orientação de Bronislaw Malinowski (quem aliás assina o prefácio desse livro). Depois de defender uma tese sobre a economia primitiva dos Maori, baseada em documentos escritos, partiu às ilhas Salomão para encontrar os Tikopia, sobre os quais publicaria sete livros e, sobretudo, com quem estreitaria um vínculo perpassando muitas décadas. Firth se refere a Nós, os Tikopia como apenas uma monografia inicial sobre aquela sociedade primitiva, optando por um dos temas que mais intrigava os antropólogos daquela primeira metade de século: o parentesco. (Temas como religião, economia e mudança cultural seriam, à sua parte, reservados para as publicações posteriores, em que dá continuidade às investigações antropológicas entre os mesmos nativos.)

No posfácio da edição brasileira, Firth narra a surpresa em voltar aos Tikopia em 1966 (então sua terceira viagem), depois de quatorze anos sem encontrá-los. Em vez da imagem edênica dos "povos seminus", isolados em uma ilha da Polinésia, oferecida ao leitor logo nas primeiras páginas de Nós, os Tikopia, ele se deparava com um contexto de contato avançado com o "mundo dos brancos", caracterizado, entre outras coisas, pela instalação da Igreja Anglicana. Todavia, Firth se mostra apto a lidar com essa realidade transformacional, jamais corroborando com a hipótese da aculturação. "Não obstante, ainda continuam a ser assertivamente Tikopia" (:740). O que começou como decepção, terminava com uma segurança: a de que, apesar das forças exógenas, as relações de parentesco se mantinham, prevalecendo ao contato, apontando a vitalidade da organização social tradicional.

Antes de mergulhar no estudo do parentesco, núcleo duro da sociedade em questão, Firth apresenta os Tikopia ao leitor em termos entusiastas. "Como um gourmet caminhando em volta de um banquete servido à mesa, saboreia antecipadamente a qualidade daquilo que irá apreciar inteiramente mais tarde" (: 24). Assim é possível descrever os três primeiros capítulos do livro: um aperitivo para o banquete etnográfico que espera o leitor. No entanto, este aperitivo revela questões bastante caras ao projeto antropológico que se verificaria nas décadas posteriores. Trata-se de uma discussão bem apurada sobre a "postura" do antropólogo em campo, apontando questões metodológicas importantes. Diferente de um manual da observação participante, tendo em vista uma neutralidade inalienável, tal como traçado na "Introdução" dos Argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski, aqui Firth atenta à impossibilidade de falar de uma determinada sociedade sem previamente se situar, explicitando sua inserção em tal cenário. É então que o primeiro capítulo lhe serve para expor todo o fascínio em relação àqueles nativos, "saudáveis e vigorosos" (: 26). A observação participante como método emprestado de Malinowski vem à tona. Mais uma vez, é preciso viver como os nativos, estabelecer laços com eles, sem perder de vista, é claro, o vigor científico. E Firth parece manter-se fiel a esse projeto; esclarece de antemão sua posição para poder falar, sem recuos ou ressentimentos, da vida social nativa tal como seus olhos a conceberam.

Os dois capítulos seguintes oferecem ao leitor aquelas informações básicas que toda monografia tradicional deve conter, mesmo que depois vá abandonar. Trata-se da contextualização histórica e geográfica, seguida de uma descrição da "vida na aldeia", acentuando alguns pontos da relação com o meio ambiente e alguns aspectos da constituição dos assentamentos locais. Feito este mapeamento e esta introdução à sociedade Tikopia de maneira mais literária e subjetiva, adentramos a etnografia propriamente dita, em que a descrição minuciosa e rigorosa toma lugar. Firth se debruça sobre a questão do parentesco nas páginas seguintes (capítulos 4 a 9), para depois se ater a questões mais gerais quanto à organização social (capítulos 10 a 12) e, por fim, se remeter aos mecanismos de conformação do indivíduo à sociedade por meio dos rituais de iniciação e casamentos, tema aliás presente em todo o livro.

O parentesco, fenômeno de "reinterpretação em termos sociais dos fatos da procriação e da união social regularizada" (: 521), anunciado como tema principal no início do livro e considerado como "nexo basal" da sociedade Tikopia na conclusão, é a matéria do "miolo", na tentativa de visualizar uma imagem genérica da organização social Tikopia. O parentesco é, para Firth, aquilo que constitui os "canais de comunicação" dessa sociedade, uma "moldura para a cooperação econômica e social e fator de estabilidade" (: 523).

É preciso situar as definições em Nós, os Tikopia sobre o parentesco como anterior ao modelo africano e à teoria da descendência, então consolidada com a publicação do African systems of kinship and marriage, de 1950, organizado por Radcliffe-Brown. A "descendência", tal como visualizada na África – conceito-chave para entender a Antropologia Social britânica nos anos 40 e 50 – não rende neste momento discussões mais férteis. É possível argumentar que a discussão de Firth não tem em vista modelos regionais (o complexo Polinésio) ou conceituais mais amplos. Trata-se de uma obra pioneira que, à la Malinowski, tenta extrair da observação empírica questões passíveis de serem tratadas pela disciplina. Isso não quer dizer que Firth desenvolva um debate intelectual desatrelado de seus interlocutores. Pelo contrário, debates caros à Antropologia, tais como os empreendidos por Morgan e Kroeber, na tentativa de discutir as relações entre terminologia e sistema de atitudes, ou os de Rivers quanto à aproximação de regras matrimoniais, são levados em conta. No entanto, não parecem oferecer à análise de Firth paradigmas propriamente ditos, mas ferramentas para a construção de um quadro etnográfico específico calcado na experiência Tikopia.

Segundo Firth, a unidade de parentesco entre os Tikopia não é a linhagem (como entre muitos povos africanos), mas a "casa" (paito), um agrupamento de várias famílias nucleares, cujo pertencimento se dá por meio de um ancestral masculino. (Por "casa" não se entende uma unidade residencial propriamente dita, uma vez que os membros podem estar espalhados por várias aldeias.) A relação entre as "casas" se estabelece de maneira hierárquica, uma vez que a riqueza diferencial de cada paito se dá pelos dados tradicionais relativos à posse da terra. Um conjunto de casas conforma um "clã". Este se define pela cooperação econômica e social entre as "casas" e designa uma unidade política e religiosa, baseada no poder de jurisdição dos chefes e na filiação a um totem ancestral. É importante salientar que os fatores usuais de delimitação de um clã são a exogamia e o totemismo.

Interessa notar o rendimento da noção de "casa" que o autor nos apresenta, e, que tem sido trazida ao debate pela Antropologia contemporânea a partir de certas conferências que Claude Lévi-Strauss proferiu a respeito de sociedades de descendência cognática. Neste sentido, as "casas" retratadas por Raymond Firth podem ser compreendidas como sujeitos de direitos e deveres, como quer Lévi-Strauss. Estudos de Etnologia indígena atuais, como os de Vanessa Lea entre os Mebengokre (Kayapó), vêm trazendo à baila uma noção de "casa", de maneira a perceber como se dá a transmissão de prerrogativas rituais, bens materiais e imateriais em sociedades carentes de corporações rígidas, tal como vislumbradas pelo modelos teóricos da Antropologia até os anos 70.

Seria precipitado tecer aqui correspondências entre a discussão de Firth e o que está se debatendo atualmente na Antropologia. No entanto, cabe apontar que, antes da formulação dos grandes modelos explicativos (o da descendência e o da aliança) sobre organização social e parentesco em sociedades pensadas como primitivas – as "duas teorias da Antropologia Social", como se refere Louis Dumont –, Firth elaborava questões importantes que a Antropologia das últimas três décadas iria reencontrar, atestada a insuficiência dos modelos na análise de novos dados locais (penso aqui sobretudo no caso sul-americano, tal como apresentado por autores como Anthony Seeger e David Maybury-Lewis). Assim, a noção de "casa", esboçada em Nós, os Tikopia, se não resolve problemas teóricos de imediato, ao menos indica pistas para novos estudos sobre parentesco em sociedades que não parecem se adequar aos grandes modelos explicativos.

Para Lévi-Strauss, a Polinésia é um cenário privilegiado para as manifestações das "sociedades por casas". Para ele, é questionável que essas sociedades possuam um sistema de descendência realmente unilinear (entre os Tikopia, por exemplo, Firth identificou um tipo agnático de descendência). Mais importante, então, seria o desejo de partilhar um mesmo local de residência. Ou seja, mais importante que a regra de descendência seriam as conformações contextuais verificadas na constituição das "casas". Segundo Lévi-Strauss, é necessário entrever a transformação inerente à estrutura, de modo a apreender as estratégias individuais que "deixam transparecer formas" (: 24). De maneira injusta, as reflexões de Lévi-Strauss a respeito da organização social na Polinésia não incluem a discussão de Raymond Firth em Nós, os Tikopia. Todavia, apesar dos pressupostos teóricos divergentes, as conclusões de Lévi-Strauss e Firth apontam direções bastante semelhantes no que diz respeito à problematização da fronteira entre estrutura e estratégia; ponto que, se a obra de Lévi-Strauss não se empenhou em desenvolver, a obra de Firth ao menos procurou trabalhar de maneira mais atenta.

A importância das "casas" na sociedade Tikopia diz respeito não apenas a um problema de descendência, mas também a um problema de aliança. Entre os Tikopia, verifica-se a ausência de uma regra prescrita de casamento (ver capítulo 9). Diferentemente dos Tonga, não há preferência de casamentos com primos cruzados, bem pelo contrário, há uma restrição bilateral aos primos. Ou seja, se algo é prescrito entre os Tikopia é o fato de que eles se casem com parentes distantes por "sangue" e por "residência". É importante notar que no caso dos Tikopia a residência acaba por englobar a consangüinidade.

Temos aqui, permitam-me mais um paralelo com a produção atual, um quadro inverso àquele traçado por Peter Rivière, em Individual and society in Guiana, a respeito das sociedades da região das Guianas, Amazônia Oriental. Se lá opera por um mecanismo de conversão dos afins próximos em consangüíneos, entre os Tikopia, são os consangüíneos remotos que são convertidos em afins próximos. Se nas Guianas, mascara-se a diferença em nome da consangüinidade, entre os Tikopia, recusa-se, nas relações matrimoniais, qualquer tipo de proximidade biológica: o consangüíneo deve ser transformado em afim para que haja relação. Em um caso, a regra é casar perto, no outro, é casar longe, casar necessariamente fora da casa. Isso indica que, para os Tikopia, o fato da co-residência define a proibição de casamento e aponta para um critério de exogamia. A proibição do casamento entre parentes próximos é o que para Firth assegura o "funcionamento harmonioso" das relações sociais. Este mesmo "funcionamento harmonioso" é alcançado de maneira oposta pelos povos guianeses, como constata Rivière, por meio da endogamia de assentamento (settlement) e pela formação de uma comunidade de próximos que se definem como consangüíneos.

O que se destaca no quadro Tikopia construído por Firth é a questão da localidade como condicionante importante do parentesco. Os Tikopia apresentam uma certa fluidez no uso de termos de parentesco, dada a ênfase nas atitudes informais. Desta maneira, uma análise da organização social entre essa população deve levar em conta condicionantes que não apenas aqueles fixados em regras prescritas, mas que tenham como base a manipulação individual dessas mesmas regras. Em outras palavras, o que propõe Raymond Firth é que se redirecione o olhar às ações individuais. Trata-se de apreender as distinções reconhecidas pelos próprios nativos e incorporadas à sua terminologia. "A estrutura do parentesco, considerada empiricamente, é o conjunto de itens de comportamento individual que têm continuidade na vida social que são repetidos continuamente na existência da mesma pessoa e através das gerações" (:141).

Firth desenvolve aqui uma crítica à equação sistema de terminologia e sistema de atitudes, visando buscar "outras" atitudes, aquelas que não são prescritas e que revelam um mundo de carne e sangue, em que os indivíduos têm participação. Em uma sociedade patrilinear e patrilocal como a Tikopia, é necessário entrever a importância das atitudes para com os parentes maternos, que indicam um dado complementar, um tipo de relação baseado na não-obrigatoriedade e na espontaneidade (ver capítulo 7). Entre os Tikopia, mais importante que o comportamento formal para com os parentes, decorrente de regras prescritas pela terminologia, é o comportamento informal.

O tema das escolhas individuais é esboçado em Nós, os Tikopia, revelando uma complementaridade entre psiquismo e estrutura social. A ausência de regras prescritivas de casamento (conformando aquilo que chamaríamos de "estruturas complexas") e a verificação de uma prática de casamento por captura de mulheres (ver capítulo 15) implicam, em Firth, a necessidade de pensar na noção de estratégia em contraposição à de estrutura. Segundo sua acepção, a organização social se distingue da estrutura social à medida que se funda nas escolhas individuais.

Ao pensar a paisagem cambiante na Polinésia tratada por Firth, recordamo-nos das constatações posteriores realizadas por Marshall Sahlins em Ilhas de história. Estaria contido já neste primeiro Firth um esforço de pensar a inter-relação entre estrutura e práxis, atentando ao fato de que para muitas sociedades o caráter "performativo" sobrepõe-se ao "prescritivo". Em outras palavras, em uma sociedade polinésia como a Tikopia, a ênfase na estratégia, em termos de reelaboração das categorias na prática, esclarece mais que a consideração da regra. O individualismo em Firth é justamente o lugar dessa possibilidade de manipulação, um contraponto à estrutura.

No entanto, por opor indivíduo e sociedade, estratégia e estrutura, afirmando uma oposição tipicamente britânica, Firth se afasta da tradição maussiana e também da discussão posterior de Sahlins. Para Firth, a tensão entre indivíduo e sociedade é constantemente reposta, dando origem a um embate. Um exemplo disso são os rituais de iniciação (ver capítulo 13) e as práticas de casamento (ver capítulo 15). O indivíduo Tikopia, ao mesmo tempo que constrói a sociedade, é moldado por ela, que lhe impõe disciplina e normas de conduta.

Firth conclui Nós, os Tikopia na esperança de ter conduzido o leitor em uma viagem quase completa ao mundo daqueles nativos. Subjaz ao seu percurso um projeto "holista" no que se refere à sua posição em relação aos fatos. Trata-se de cravar um ponto de vista panorâmico – privilegiado – para o antropólogo, o que revela o sabor clássico desta monografia. Quanto à abordagem dos fatos observados, o "holismo" é abandonado em função de uma aproximação mais individualista, resultando no que Marcos Lanna define, na apresentação, como método "funcional-individualista".

Ao concluir a leitura de Nós, os Tikopia, o leitor contemporâneo se vê diante de questões deixadas em aberto. Muitas delas são reconhecidas em trabalhos mais recentes, como os de Sahlins e Lévi-Strauss suscitados acima. Outras, por sua vez, instigam novas pesquisas, seja na Polinésia, na América do Sul indígena ou mesmo nas sociedades ditas complexas. Por seu estilo literário magistral, Nós, os Tikopia deixa a impressão de que uma monografia ainda é capaz de propiciar uma incursão em um mundo compacto, "de carne e sangue", como argumentaria Malinowski.

Em um tempo em que a Etnografia é sacrificada em nome do ressentimento do etnográfo diante de sua impotência em relação ao todo e à verdade, ler o clássico de Raymond Firth tende a ser confortante. De um lado, porque encontramos nele um questionamento quanto ao lugar do antropólogo, o que faz de sua monografia não um tratado indiscutível, mas o produto de um autor, localizado e ciente dos limites de sua empreitada. De outro, reencontramo-nos com o projeto de uma metodologia "tão objetiva e desapaixonada quanto possível" (: 526), que, ainda que possa soar démodé nos dias de hoje, era o que legitimava o distanciamento necessário para "explicar" os fenômenos observados a partir de um arsenal conceitual acadêmico. Fica então a impressão de que o modelo clássico da Etnografia ainda não se perdeu: faz sentido e estimula em muito os nossos pensamentos.

Revista de Antropologia

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