Hebe Maria Mattos
Paulo Gilroy, O Atlântico Negro - Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM - Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2002, 427p.
Em boa hora se apresenta ao público brasileiro a versão em português de O Atlântico Negro, de Paul Gilroy. Sua perspectiva, ao mesmo tempo antiessencialista e afirmativa da dinâmica das culturas e identidades negras no Atlântico, abre perspectivas inovadoras ao debate, atualmente em curso, sobre a questão da adoção de políticas de discriminação positiva para o combate ao racismo no Brasil.
Trata-se de texto denso e complexo, construído a partir de múltiplas referências a diversos aspectos das culturas negras - da literatura à música - no mundo de língua inglesa, o que o torna, por vezes, de leitura difícil. Por outro lado, seu argumento central tem enorme apelo e poder de sedução, desde que se organiza a partir da utilização de alguns conceitos-chave que se mostram extremamente esclarecedores para a compreensão dos processos de racialização no Ocidente, bem como de suas implicações políticas e culturais.
O primeiro deles é a noção de diáspora que se concretiza de forma bela no título do livro - o Atlântico Negro. Para Gilroy, as culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que muitas vezes lhe sucedeu que se funda politicamente a identidade cultural dos negros no Ocidente.
Segundo Gilroy, a discussão contemporânea sobre a diáspora negra teria surgido como uma resposta direta "aos ganhos trans-locais advindos do movimento Black Power durante a Guerra Fria" (p. 17), mas teria rapidamente evoluído para uma contestação das formas essencialistas de pensar as culturas e identidade negras no mundo ocidental. Gilroy tenta levá-la mais longe, abordando radicalmente a identidade negra como construção política e histórica marcada pelas trocas culturais através do Atlântico, na qual a questão das origens interessa menos que as experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural. Estas experiências se produziriam desde o tráfico negreiro, trauma original, até as mais diversas experiências de encantamento e estranhamento em viagens e exílios entre América, Europa e África.
Chega-se, aí, no segundo daqueles conceitos básicos e esclarecedores, a relação entre modernidade e dupla consciência que compõe o subtítulo do livro, propondo abordar o pensamento e a arte negros no Ocidente como contracultura da modernidade.
Acompanhando a biografia e a produção literária de escritores negros norte-americanos, precursores ou ícones do nacionalismo negro e do pan-africanismo, como Frederick Douglas, Martin Delany, Du Bois e Ricard Wright, Gilroy vai acentuar a importância, para a construção do pensamento de cada um deles, da associação de uma vivência pessoal da escravidão ou do terror racial nos Estados Unidos, com a formação intelectual iluminista e o contato direto com a Europa em diferentes experiências de viagem. As relações de Frederick Douglas com o cristianismo e os radicalismos ingleses e escoceses, de Martin Delany com a medicina racializada do século XIX, de Du Bois com o culturalismo alemão, de Richard Wright com o existencialismo francês são consideradas dimensões constitutivas para compreensão de seus textos. Em uma frase provocativa, Gilroy irá afirmar
Marcada por suas origens européias, a cultura política negra moderna sempre esteve mais interessada na relação de identidade com as raízes e o enraizamento do que em ver a identidade como um processo de movimento e mediação [...]. (p. 65)
Resumindo graficamente a radicalidade desta perspectiva, África e Europa aparecem imbricadas e indistintas no mapa que ilustra a capa do livro.
O autor escreve de um ponto de vista a um mesmo tempo negro e inglês e, por isso, escolhe como interlocutores preferenciais - tentando marcar-lhes as limitações - o nacionalismo cultural britânico e o absolutismo étnico do pensamento africano-americano. Um de seus principais esforços, especialmente no primeiro ensaio do livro, está em mostrar as múltiplas interconexões das experiências da classe trabalhadora inglesa e dos negros americanos, quando tomadas em perspectiva atlântica.
Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas [da cultura], quero desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural. (p. 57)
Assumindo radicalmente a perspectiva de Linebaugh em seu famoso e polêmico artigo "Atlantic Mountains" (traduzido no Brasil como "Todas as Montanhas Atlânticas Estremeceram", Revista Brasileira de História, nº 6, 1983), Gilroy considera que "o navio [continua] a ser talvez o mais importante canal de comunicação pan-africana antes do aparecimento do disco long-play". (p. 54)
De uma perspectiva mais crítica, não se pode deixar de considerar que o livro se ressente de uma perspectiva demasiadamente definida pelo mundo de língua inglesa, europeu e americano. Mesmo a África negra anglofônica praticamente não é considerada, de modo que as dificuldades óbvias de construção de uma identidade negra no Continente africano, fora dos contextos de lutas anticoloniais, não chegam a ser exploradas. As trocas culturais consideradas no livro, fora do tráfico negreiro original, consideram pouco a margem africana do Atlântico, a não ser quando falam da Libéria ou da África do Sul.
Isto se dá, por outro lado, porque o processo de construção de identidades e culturas negras nasce efetivamente na América, como resistência à escravidão e ao terror racial, para daí voltar a circular no Atlântico, europeu ou africano. Gilroy está absolutamente correto, portanto, quando associa as identidades e culturas negras à experiência e à memória da escravidão na diáspora africana no Novo Mundo e aos processos de racialização dela decorrentes. Em função da perspectiva demasiadamente inglesa, entretanto, este processo de racialização aparece de forma um tanto monolítica e pouco problematizada. A escravidão moderna é definida por ele, de forma absoluta, como "escravidão racial", o que não é facilmente demonstrável do ponto de vista empírico antes do século XVIII. Os processos de racialização do negro e do branco são bem posteriores às condições históricas européias e africanas que deram origem ao tráfico atlântico de escravos no século XVI.
Por outro lado, o livro de Gilroy concentra-se corretamente em processos culturais que se desenvolveram a partir da segunda metade do século XVIII, quando a escravidão moderna efetivamente se vê crescentemente explicada a partir de processos raciais. Estes processos, entretanto, atingem diferentemente as muitas áreas do mundo atlântico por eles conectadas. Neste sentido, uma abordagem da escravidão no Império português e de sua continuidade no novo Estado brasileiro oitocentista permitiriam uma análise mais nuançada e complexa dos processos de racialização e de suas implicações políticas e identitárias. Por outro lado, a abordagem proposta no livro abre novas possibilidades para o estudo das culturas e identidades negras no Brasil. De fato, apenas uma perspectiva atlântica pode fazer emergir, por exemplo, todas as implicações políticas e culturais do esforço de intelectuais negros, no Brasil oitocentista, em desracializar as justificativas para a continuidade da escravidão, do qual Antônio Pereira Rebouças é um exemplo recentemente visitado, mas de forma nenhuma isolado.1
O livro de Paul Gilroy organiza-se em seis ensaios que se estruturam procurando apreender o Atlântico Negro como contracultura da modernidade (título do primeiro capítulo), a partir dos empréstimos teóricos e hibridismos culturais presentes tanto na produção literária de intelectuais negros norte-americanos (Martin Delany, Frederick Douglas, Du Bois, Richard Wright), como na música negra dita africano-americana nos Estados Unidos (Jubillee Singers, Jimmy Hendrix e o hip-hop). Os capítulos sobre a música negra, talvez o mais consistente indicador da presença da matriz cultural africana na cultura negra no Ocidente, enfatizam - sem negar a africanidade - as trocas com os estilos, o público e a música européia, abordando as viagens pioneiras do Jubilee Singers à Europa, bem como a experiência visceralmente moderna, culturalmente transnacional e híbrida de músicos como Jimmy Hendrix e de estilos como o hip-hop. Com esta argumentação o autor procura romper a polarização entre as teorias essencialistas e antiessencialista da identidade negra, buscando enfatizar a historicidade desta construção cultural e seu sentido eminentemente político.
Mesmo propondo, com vigor, uma discussão crítica do "africentrismo" e dos essencialismos culturais, raciais ou étnicos, para Gilroy o Atlântico negro se apresenta como construção identitária mutante, porém definitiva, no contexto do mundo ocidental. Em suas palavras, "um mesmo mutável" (p. 29). Não por acaso, o capítulo final retoma a idéia de diáspora e estabelece conexões com fontes da cultura judaica, procurando explorar as muitas analogias, em geral pouco trabalhadas, entre o sionismo e o nacionalismo negro.
A sofisticação teórica associada a um postura militante não deixam de conferir uma certa ambigüidade, mas também um incontestável charme ao resultado final do livro. Pensar as identidades e culturas negras entendidas sob a perspectiva da diáspora permite a Gilroy não apenas entender a historicidade e multiplicidade das configurações culturais negras, mas também, no limite, tentar superar a noção de raça como estruturadora dessas culturas e identidades. As identidades negras da diáspora, culturalmente híbridas e dinâmicas, se constroem não apenas a partir da memória do trauma original da escravidão e da vivência posterior da violência racial e do racismo, mas também a partir de uma experiência radical de desenraizamento e constante metamorfose cultural, estrutural à experiência da modernidade. Esta perspectiva se acentua, em especial, no prefácio à edição brasileira, em que mais explicitamente o autor assume o quanto a noção de Atlântico negro tem a ganhar incorporando o Atlântico Sul e suas muitas configurações culturais, expandindo-se muito além da camisa de força do modelo norte-americano do "africano-americano". Em suas próprias palavras, no prefácio à edição brasileira:
Sugiro que devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não-centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde de nosso planeta e para suas aspirações democráticas. Este trabalho corresponde às aflições da geração da Guerra Fria, que incluem a atração pelo passado, a adesão ética e política à idéia de celebrar a experiência sublime da escravidão e uma disposição geralmente favorável diante de movimentos sociais que desafiem o sistema numa insurgência revolucionária que complemente, amplie e, então, repudie um iluminismo europeu incompleto e codificado racialmente. (p. 16)
Nota
1. Cf. Keila Grinberg. O Fiador dos Brasileiros. Direito Civil, Escravidão e Cidadania no Tempo de Antônio Pereira Rebouças (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo. Originalmente tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2000) e Hebe Maria Mattos, Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000).
Paulo Gilroy, O Atlântico Negro - Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM - Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2002, 427p.
Em boa hora se apresenta ao público brasileiro a versão em português de O Atlântico Negro, de Paul Gilroy. Sua perspectiva, ao mesmo tempo antiessencialista e afirmativa da dinâmica das culturas e identidades negras no Atlântico, abre perspectivas inovadoras ao debate, atualmente em curso, sobre a questão da adoção de políticas de discriminação positiva para o combate ao racismo no Brasil.
Trata-se de texto denso e complexo, construído a partir de múltiplas referências a diversos aspectos das culturas negras - da literatura à música - no mundo de língua inglesa, o que o torna, por vezes, de leitura difícil. Por outro lado, seu argumento central tem enorme apelo e poder de sedução, desde que se organiza a partir da utilização de alguns conceitos-chave que se mostram extremamente esclarecedores para a compreensão dos processos de racialização no Ocidente, bem como de suas implicações políticas e culturais.
O primeiro deles é a noção de diáspora que se concretiza de forma bela no título do livro - o Atlântico Negro. Para Gilroy, as culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que muitas vezes lhe sucedeu que se funda politicamente a identidade cultural dos negros no Ocidente.
Segundo Gilroy, a discussão contemporânea sobre a diáspora negra teria surgido como uma resposta direta "aos ganhos trans-locais advindos do movimento Black Power durante a Guerra Fria" (p. 17), mas teria rapidamente evoluído para uma contestação das formas essencialistas de pensar as culturas e identidade negras no mundo ocidental. Gilroy tenta levá-la mais longe, abordando radicalmente a identidade negra como construção política e histórica marcada pelas trocas culturais através do Atlântico, na qual a questão das origens interessa menos que as experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural. Estas experiências se produziriam desde o tráfico negreiro, trauma original, até as mais diversas experiências de encantamento e estranhamento em viagens e exílios entre América, Europa e África.
Chega-se, aí, no segundo daqueles conceitos básicos e esclarecedores, a relação entre modernidade e dupla consciência que compõe o subtítulo do livro, propondo abordar o pensamento e a arte negros no Ocidente como contracultura da modernidade.
Acompanhando a biografia e a produção literária de escritores negros norte-americanos, precursores ou ícones do nacionalismo negro e do pan-africanismo, como Frederick Douglas, Martin Delany, Du Bois e Ricard Wright, Gilroy vai acentuar a importância, para a construção do pensamento de cada um deles, da associação de uma vivência pessoal da escravidão ou do terror racial nos Estados Unidos, com a formação intelectual iluminista e o contato direto com a Europa em diferentes experiências de viagem. As relações de Frederick Douglas com o cristianismo e os radicalismos ingleses e escoceses, de Martin Delany com a medicina racializada do século XIX, de Du Bois com o culturalismo alemão, de Richard Wright com o existencialismo francês são consideradas dimensões constitutivas para compreensão de seus textos. Em uma frase provocativa, Gilroy irá afirmar
Marcada por suas origens européias, a cultura política negra moderna sempre esteve mais interessada na relação de identidade com as raízes e o enraizamento do que em ver a identidade como um processo de movimento e mediação [...]. (p. 65)
Resumindo graficamente a radicalidade desta perspectiva, África e Europa aparecem imbricadas e indistintas no mapa que ilustra a capa do livro.
O autor escreve de um ponto de vista a um mesmo tempo negro e inglês e, por isso, escolhe como interlocutores preferenciais - tentando marcar-lhes as limitações - o nacionalismo cultural britânico e o absolutismo étnico do pensamento africano-americano. Um de seus principais esforços, especialmente no primeiro ensaio do livro, está em mostrar as múltiplas interconexões das experiências da classe trabalhadora inglesa e dos negros americanos, quando tomadas em perspectiva atlântica.
Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas [da cultura], quero desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural. (p. 57)
Assumindo radicalmente a perspectiva de Linebaugh em seu famoso e polêmico artigo "Atlantic Mountains" (traduzido no Brasil como "Todas as Montanhas Atlânticas Estremeceram", Revista Brasileira de História, nº 6, 1983), Gilroy considera que "o navio [continua] a ser talvez o mais importante canal de comunicação pan-africana antes do aparecimento do disco long-play". (p. 54)
De uma perspectiva mais crítica, não se pode deixar de considerar que o livro se ressente de uma perspectiva demasiadamente definida pelo mundo de língua inglesa, europeu e americano. Mesmo a África negra anglofônica praticamente não é considerada, de modo que as dificuldades óbvias de construção de uma identidade negra no Continente africano, fora dos contextos de lutas anticoloniais, não chegam a ser exploradas. As trocas culturais consideradas no livro, fora do tráfico negreiro original, consideram pouco a margem africana do Atlântico, a não ser quando falam da Libéria ou da África do Sul.
Isto se dá, por outro lado, porque o processo de construção de identidades e culturas negras nasce efetivamente na América, como resistência à escravidão e ao terror racial, para daí voltar a circular no Atlântico, europeu ou africano. Gilroy está absolutamente correto, portanto, quando associa as identidades e culturas negras à experiência e à memória da escravidão na diáspora africana no Novo Mundo e aos processos de racialização dela decorrentes. Em função da perspectiva demasiadamente inglesa, entretanto, este processo de racialização aparece de forma um tanto monolítica e pouco problematizada. A escravidão moderna é definida por ele, de forma absoluta, como "escravidão racial", o que não é facilmente demonstrável do ponto de vista empírico antes do século XVIII. Os processos de racialização do negro e do branco são bem posteriores às condições históricas européias e africanas que deram origem ao tráfico atlântico de escravos no século XVI.
Por outro lado, o livro de Gilroy concentra-se corretamente em processos culturais que se desenvolveram a partir da segunda metade do século XVIII, quando a escravidão moderna efetivamente se vê crescentemente explicada a partir de processos raciais. Estes processos, entretanto, atingem diferentemente as muitas áreas do mundo atlântico por eles conectadas. Neste sentido, uma abordagem da escravidão no Império português e de sua continuidade no novo Estado brasileiro oitocentista permitiriam uma análise mais nuançada e complexa dos processos de racialização e de suas implicações políticas e identitárias. Por outro lado, a abordagem proposta no livro abre novas possibilidades para o estudo das culturas e identidades negras no Brasil. De fato, apenas uma perspectiva atlântica pode fazer emergir, por exemplo, todas as implicações políticas e culturais do esforço de intelectuais negros, no Brasil oitocentista, em desracializar as justificativas para a continuidade da escravidão, do qual Antônio Pereira Rebouças é um exemplo recentemente visitado, mas de forma nenhuma isolado.1
O livro de Paul Gilroy organiza-se em seis ensaios que se estruturam procurando apreender o Atlântico Negro como contracultura da modernidade (título do primeiro capítulo), a partir dos empréstimos teóricos e hibridismos culturais presentes tanto na produção literária de intelectuais negros norte-americanos (Martin Delany, Frederick Douglas, Du Bois, Richard Wright), como na música negra dita africano-americana nos Estados Unidos (Jubillee Singers, Jimmy Hendrix e o hip-hop). Os capítulos sobre a música negra, talvez o mais consistente indicador da presença da matriz cultural africana na cultura negra no Ocidente, enfatizam - sem negar a africanidade - as trocas com os estilos, o público e a música européia, abordando as viagens pioneiras do Jubilee Singers à Europa, bem como a experiência visceralmente moderna, culturalmente transnacional e híbrida de músicos como Jimmy Hendrix e de estilos como o hip-hop. Com esta argumentação o autor procura romper a polarização entre as teorias essencialistas e antiessencialista da identidade negra, buscando enfatizar a historicidade desta construção cultural e seu sentido eminentemente político.
Mesmo propondo, com vigor, uma discussão crítica do "africentrismo" e dos essencialismos culturais, raciais ou étnicos, para Gilroy o Atlântico negro se apresenta como construção identitária mutante, porém definitiva, no contexto do mundo ocidental. Em suas palavras, "um mesmo mutável" (p. 29). Não por acaso, o capítulo final retoma a idéia de diáspora e estabelece conexões com fontes da cultura judaica, procurando explorar as muitas analogias, em geral pouco trabalhadas, entre o sionismo e o nacionalismo negro.
A sofisticação teórica associada a um postura militante não deixam de conferir uma certa ambigüidade, mas também um incontestável charme ao resultado final do livro. Pensar as identidades e culturas negras entendidas sob a perspectiva da diáspora permite a Gilroy não apenas entender a historicidade e multiplicidade das configurações culturais negras, mas também, no limite, tentar superar a noção de raça como estruturadora dessas culturas e identidades. As identidades negras da diáspora, culturalmente híbridas e dinâmicas, se constroem não apenas a partir da memória do trauma original da escravidão e da vivência posterior da violência racial e do racismo, mas também a partir de uma experiência radical de desenraizamento e constante metamorfose cultural, estrutural à experiência da modernidade. Esta perspectiva se acentua, em especial, no prefácio à edição brasileira, em que mais explicitamente o autor assume o quanto a noção de Atlântico negro tem a ganhar incorporando o Atlântico Sul e suas muitas configurações culturais, expandindo-se muito além da camisa de força do modelo norte-americano do "africano-americano". Em suas próprias palavras, no prefácio à edição brasileira:
Sugiro que devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não-centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde de nosso planeta e para suas aspirações democráticas. Este trabalho corresponde às aflições da geração da Guerra Fria, que incluem a atração pelo passado, a adesão ética e política à idéia de celebrar a experiência sublime da escravidão e uma disposição geralmente favorável diante de movimentos sociais que desafiem o sistema numa insurgência revolucionária que complemente, amplie e, então, repudie um iluminismo europeu incompleto e codificado racialmente. (p. 16)
Nota
1. Cf. Keila Grinberg. O Fiador dos Brasileiros. Direito Civil, Escravidão e Cidadania no Tempo de Antônio Pereira Rebouças (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo. Originalmente tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2000) e Hebe Maria Mattos, Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000).
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