quinta-feira, 1 de abril de 2010

O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha


Felício Pereira, Vera Lúcia. O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha, UFMG/PUC-Minas, 1996, 206 pp.

Maíra Santi Bühler
Graduanda em Ciências Sociais - USP


O livro, publicado a partir da dissertação de mestrado da autora, apresentada à Faculdade de Letras da UFMG, oferece uma instigante interpretação de alguns contos populares do Vale do Jequitinhonha. O texto é produto de uma inquietação perante um quadro sociocultural no qual ainda existem pessoas entrelaçadas pela troca de experiências e unidas pela arte de narrar em torno da produção artesanal. A figura do narrador ou contador de histórias e História, herói que é memória viva do grupo ao qual pertence, que une o fio de uma vida às outras tantas, passadas e presentes, revela que a memória histórica da região é refletida e elaborada pelo imaginário nos contos e casos populares. Ao todo, a autora trabalha com a interpretação de nove contos provenientes de Turmalina, Minas Novas e Serro, que são apresentados transcritos no final do livro.

O primeiro capítulo, "Conta-se o Vale", apresenta a descrição oficial da história da região que acompanha a formação histórica das áreas mineradoras de Minas Gerais. Grosso modo, o Vale do Jequitinhonha começa a ser colonizado no século XVIII em função da exploração do ouro e do diamante. Para descrever a organização social da época a autora faz uso de relatos de viajantes e indica a existência de uma estrutura social piramidal, característica da sociedade brasileira. Nesse contexto, diz ela, os dominantes estavam ligados à "Real extração" e os dominados sonhavam com a ascensão social na esperança do encontro com alguma pedra preciosa. Mas chega o tempo da decadência, e a população, que estava localizada ao redor dos núcleos mineradores, dispersa-se para as margens dos rios Araçuaí e Jequintinhonha e permanece abandonada vivendo, principalmente, da agricultura de subsistência. Daí decorre uma situação de pobreza material que é bem mais conhecida do que a situação de "riqueza cultural" que a autora irá abordar. Os contos, como espaço de consciência "dos esquecidos da voz oficial", serão objeto de análise do capítulo seguinte que não por acaso irá chamar "O Vale se conta".

O segundo capítulo divide-se em cinco pequenos blocos que discutem a tensão entre permanência e transformação no universo dos contadores e dos contos. O primeiro chama-se "O jogo do contar", nele a autora descreve o processo de sedução empreendido pelo narrador para conquistar o ouvinte numa relação que, uma vez estabelecida, implica a participação efetiva e ativa do ouvinte. O segundo pequeno bloco chama-se "Uma arte em jogo": o que está em jogo é o lugar a partir do qual narra-se uma história. A autoridade do narrador é a autoridade de quem vive, e no caso do Vale do Jequitinhonha o que está em questão é uma narrativa que provém do viver de uma estrutura social repleta de características antagônicas que necessariamente estão presentes na fala dos narradores. Estrutura social dicotômica: mineração e subsistência, senhores e escravos, leis de dominação e espírito aventureiro etc. Os contos e casos são, nesse sentido, uma apropriação memorialística que funda um tipo de consciência histórica. Assim a versão da história que a autora procura está na possibilidade do contar de si mesmo que está na possibilidade de trocar/possuir um espaço no qual a memória coletiva é valorizada, pública e lembrada.

O terceiro bloco chama-se "Jogo de cena" e dá continuidade aos dois primeiros: a autora apresenta o que talvez possamos chamar de "categorias nativas" eleitas pelos contadores de história, como elementos que lhes permitem a autoridade do narrar. Tais categorias são galgadas na estrutura social dicotômica, de maneira que os narradores, homens do povo, acabam por reproduzir a lógica dominante.

O quarto bloco chama-se "Jogo de empurra": empurram-se, uma contra outra, distintas concepções de saber. Trata-se de uma breve análise da relação que a história oral vai estabelecendo com algumas das transformações decorrentes da urbanização: desenvolvimento tecnológico e expansão da infra-estrutura educacional. A autora sublinha o fato de que nesse processo o saber local passa progressivamente a ocupar um lugar menor numa escala de valores. Ainda assim os contadores permanecem no exercício da sua função, reunindo-se à volta do fogão a lenha num rito de permanência e integração de culturas, num movimento que incorpora a mudança e desfaz a hierarquia, através de um processo que tece a identidade no presente a partir do passado em comum, do sentido comum da memória.

Por fim, o quinto bloco desse primeiro capítulo chama-se: "No jogo: o saber sabença". O conceito "sabença" indica a não ruptura entre a "cultura erudita" e a "cultura popular", trata-se de um "saber saber" que implica a multiculturalidade, idéia de que culturas diferentes podem ser lidas e transformadas a partir de seu ponto de vista num gesto de reapresentação essencialmente antropofágico. Nesse sentido os contos e casos analisados lidam com as diferenças e transformações, organizam "o pensamento a ação e o sonho", elaboram, a partir da memória, os infinitos encontros com tantos "Outros".

O terceiro capítulo, "As palavras e as coisas" é dedicado não tanto ao lugar que ocupam os contos e casos na construção da identidade, mas mais ao lugar que ocupa a construção da identidade nos contos e casos. A inversão implica um olhar que se detém um pouco mais na estrutura interna das narrativas, tentando enxergar nelas a leitura que faz uma cultura de seu percurso histórico. O capítulo também divide-se em cinco pequenos blocos, a saber: "A mágica da palavra, quem é o mestre?, "O lugar da tradição", "Conto e História: a inversão e pureza e perigo".

A mágica da palavra é o poder de criar os sentidos atribuídos ao vivido. A palavra, no conto maravilhoso, tece o absurdo e contraria o que é dado como natural. Trata-se da palavra que põe a nu a estrutura hierárquica, destaca-se o papel da estrutura patriarcal de poder. A família aparece nos contos, segundo a autora, como microcosmo de uma estrutura social despótica. O mestre é o pai e o rei. Figuras imbricadas em entrecruzamentos que levam a autora a falar numa extensão metonímica do complexo de Édipo. A tradição, aqui, é sinônimo de conservadorismo, a revolta contra a família, diz ela, é a revolta contra o sistema patriarcal de poder. O mestre é quem detém a palavra, quem dita os rumos do desenrolar histórico. Nos contos, a palavra é o meio mágico para mudar a estrutura social.

A inversão entre conto e história é a apropriação que os narradores fazem dos elementos da história do Vale do Jequitinhonha, como contam novamente essa história, como apresentam questões a ela. O conto que é história gira em torno, quase sempre, da tentativa de ascenção social, que implica, de acordo com a autora, a inversão da estrutura de poder e, portanto, numa maneira de narrar a estrutura social dicotômica. Por fim, a pureza e o perigo cercam a figura feminina, que é ao mesmo tempo ameaçadora e submissa. A partir de uma análise acerca da dubiedade das palavras num dos contos apresentados a autora conclui que a mulher é também terra, terra brasileira, e que o homem é também o colonizador. A pureza, a terra virgem, a mulher filha de seu pai. O perigo, a terra devastada, a mulher nas mãos do filho do pai que são os súditos do rei, que lhe roubam a filha, provocando um incesto social, uma inversão da ordem estabelecida.

O quarto capítulo, "Memória e sabença", apresenta a voz do narrador como aquela que, em meio às transformações, traz a referência, o passado, o que é "em comum", o lugar afetivo da memória. Os contos reapresentam, sempre atualizados, os conflitos sociais que não são de hoje, as tramas incorporam novos atores, a mudança é elaborada a partir da sabença, o "saber saber" que responde ao passar do tempo com o arcabouço da experiência.

* * *

Como bem lembrou a autora no início de suas reflexões, a condição para o florescimento da narrativa está diretamente ligada à produção artesanal. Entretanto, ao longo do seu trabalho, ela deixa de lado as considerações acerca do lugar social do artesanato para analisar exclusivamente o texto oral dos narradores, seu objeto de estudo. Ocorre, no entanto, que o artesanato passou a ocupar, a partir da década de 1970 um lugar central na economia familiar dos habitantes do Vale do Jequitinhonha, região extremamente rica no que concerne a sua cultura material. Com as transformações decorrentes da "modernização", os lavradores foram expulsos de suas terras que hoje são ocupadas por fazendeiros e empresas multinacionais de reflorestamento. Atualmente, parte da sobrevivência econômica, em especial das regiões das quais provêm os narradores que foram ouvidos pela autora, depende da produção artesanal escoada para os grandes centros urbanos, coisa que não acontecia até então, quando a produção do artesanato estava voltada única e exclusivamente para fins utilitários e o comércio realizava-se internamente.

Durante o processo de expulsão dos habitantes de suas terras e portanto da crise na agricultura de subsistência (que a autora não analisa), as mulheres passaram a ocupar um lugar central na economia familiar a partir da produção artesanal que em grande parte do Jequitinhonha é exclusivamente feminina. Nesse sentido, o fato de a autora não desenvolver a relação entre o artesanato e a narrativa impede uma discussão acerca do lugar da mulher na produção da memória histórica. O lugar social da mulher, a relação entre os gêneros, tema caro à discussão da estrutura patriarcal/despótica da família e sociedade brasileira, está atualmente em franca transformação.

Nesse sentido, cabe perguntar se não há uma transformação na própria figura do narrador. De que forma essa narrativa se dá? Basta dizer que ela "ainda" ocorre em torno do fogão à lenha? Quais são as condições sociais da narrativa? Qual é a natureza da relação entre o narrar e fazer do artesanato? Se essa relação é realmente importante para entender de que forma os contos e casos se tornam memória histórica da região, parece impossível compreendê-la na sua complexidade sem uma análise um pouco mais aprofundada do lugar ocupado pelo feminino na produção da consciência histórica. São questões que autora não responde e que exigem uma empreitada de maior fôlego.

Por outro lado, se a palavra é poder, e isso pode-se identificar a partir da análise empreendida pela autora dos contos apresentados, há outra forma de poder não analisada: o poder exercido num processo de produção de duplos culturais. O artesanato remonta valores presentes na vida social tradicional, é uma forma silenciosa de transmissão de saber. Saber ser pessoa, saber viver na fronteira com outros modos de ser. O livro apresenta o universo da palavra, desnuda nos contos o conflito encoberto, a tensão entre o saber e o poder. A argumentação da autora demonstra o caráter que ela chamou "antropofágico" do que ela apontou como "imaginário popular", o recriar dos sentidos tradicionais da existência a partir do encontro com os meios de comunicação de massa, com a escola, com a transformação inevitável. Mas o universo da palavra não dá conta de um processo inteiro, não é o único universo, apesar de ser (que ironia) o mais visível.

O olhar antropológico para esta região leva ao encontro da imagem do artesanato, desafio a ser enfrentado quando se deseja entender outros modos de ser. A palavra é dominante na cultura das letras, mas talvez não seja necessariamente o único espaço de expressão no qual a população local se comunica. O silêncio, ausência de palavras, deve ser aqui misterioso e revelador da existência.

Nesse sentido, a busca de escutar uma versão de história que contrarie a história oficial precisa lançar mão de outros métodos que não a escuta, ou ao menos admiti-los como possibilidade de análise numa tentativa de não reduzir a complexidade do social à possibilidade do discurso.

O trabalho é rico no que concerne a um pequeno feixe de visão sobre o Jequitinhonha, a saber: a análise dos chamados "contos populares" contados por homens. É dentro desse escopo que pode fazer sentido as considerações da autora acerca da leitura "popular" de um trajeto histórico. De qualquer maneira, o livro abre portas para outras questões, incita o desejo de desviar a lanterna para outros aspectos da organização social que a autora não analisou e que por certo levará a uma concepção menos dicotômica e mais complexa desse campo de estudo.

Revista de Antropologia

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