GUIMARÃES, Cesar. Imagens da memória (entre o legível e o visível), Belo Horizonte, Curso de Pós-Graduação de Estudos Literários/Editora da UFMG, 1997, 249 pp.
Míriam Lifchitz Moreira Leite
Professora aposentada do Departamento de História - USP
Assessora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia - USP
Para escrever esta resenha cometi uma operação que talvez não seja perdoada pelo Autor. Tive de desmontar o texto do livro, para conseguir transmitir, aos possíveis leitores, o seu conteúdo, perturbando, assim, o impacto que ele me causou à primeira leitura. Essa desmontagem fez-se necessária, pois uma pressuposição de conhecimentos de filosofia, literatura e cinema que não são assim tão difundidos, reunidos desta maneira, interfere no prazer do texto.
O livro todo tem como pano de fundo o "bombardeio de imagens a que estamos hoje sujeitos, a ponto de não podermos mais distinguir a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos pela televisão". "Em nossa memória se depositam, por extratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas tenha relevo."
O convívio cotidiano com a saciedade de imagens acaba nos anestesiando tanto para imagens visuais, como sonoras, fazendo com que empobreçam de significações, como também fiquemos com os sentidos insensibilizados. "Quanto mais se aperfeiçoam os dispositivos tecnológicos, mais nos alienamos da percepção e o esquecimento se apodera de nossa memória."
Em resposta ao perigo de desligamento de nossos sentidos, a memória surge como matéria-prima por excelência tanto do cinema, quanto da literatura. A memória como todo um rol de imagens diferentes - retratos, fotografias, descrições, cenas, ou seja, conjuntos de signos a compor conjuntos de imagens, ilusões e sonhos que passam a fazer parte da memória individual e coletiva.
Durante muito tempo afastada de estudos científicos e filosóficos, a Memória adquire agora uma posição central, com a retomada dos trabalhos de Bergson e suas leituras feitas sucessivamente em Cinema-tempo e Cinema=Movimento de Gilles Deleuze. As imagens da Memória, pela presença e pela ausência, não apenas na literatura e no cinema, mas como se tem observado em trabalhos de Antropologia e Sociologia, vêm adquirindo um peso e uma diversidade que levam à identificação do próprio mundo exterior. Passam a ser representadas como força de procura, poder de fabulação, eterno retorno, esquecimento e desmemória.
Neste livro, o Autor leva em conta unicamente a Memória do criador na literatura e no cinema, e não a Memória do leitor e do espectador. Embora distinga o cinema, que realiza movimento e tempo da literatura, a qual só pode figurá-los com signos linguísticos, passa em revista as contribuições de Freud, Lacan, Bergson, Deleuze, Pierce, Maurice Blanchot e Pasolini, apontando como a dificuldade inicial de lidar com a memória e com o inconsciente levou Freud a se utilizar de analogias com instrumentos e aparelhos técnicos.
É nesse ponto que chegamos ao corpus documental do trabalho que precisei decompor, para conseguir transmitir o legível e o visível, que às vezes se confundem, nem sempre são coisas diferentes, pois alguns autores fizeram cinema e alguns diretores de filmes escreveram teorizações. Nessa desmontagem é que ficou claro que tanto o texto escrito quanto o visual inscrevem-se na memória através de imagens, imagens mentais, que são responsáveis pela flutuação da memória do presente e do futuro para o passado.
Marguerite Duras
Escrever
India Song
Le Vice consul
O amante da China do Norte
O caminhão
O deslumbramento
Os olhos verdes
Peter Handke
A mulher canhota
A repetição
A tarde de um escritor
A ausência
Breve carta para um longo adeus.
O chinês da dor
O medo do goleiro diante do pênalti.
Maria Gabriela llansol
Um beijo dado mais tarde
Um falcão no punho
Finita
O restante mundo
Causa amante
João Gilberto Noll
Os bandoleiros
O quinto animal da esquina
Rastros de verão
Zulmira Ribeiro Tavares
O nome do bispo
Termos de comparação
Wim Wenders
Silver City
O verão nas cidades
Alice nas cidades
No correr do tempo
Nick's Movie
O estado das coisas
Paris, Texas
Tokio-Ga
Até o fim do mundo
Diário de roupas e cidades
Tão longe, tão perto
Contracampo
Nicholas Ray
The Lusty Man
We Can't go Home Again
Grifith
Intolerância
Serguei Eisenstein
A forma do filme
Memórias imorais: um autobiografia
John Ford
Breve carta para um longo adeus
Noel Burch
La lucarne de l'infini
Alain Resnais
O ano passado em Marienbad
O atordoamento do sujeito com a variedade e a velocidade da civilização da imagem parece conduzir à incomunicabilidade e ao insulamento. Cada um dos autores passa a usar imagens literárias como formas de acesso à realidade exterior como elementos de alucinação do imaginário ou como quocientes de ilusão, desilusão e autoconsciência.
A escrita procura se apropriar da imagem descrevendo minuciosa e microscopicamente o que ela revela. Abandona o conjunto e seleciona um ponto ou um fragmento. O interesse deixa de estar no que foi escrito para se deslocar ao movimento que descreve a escrita . As imagens táteis, plásticas e visuais privilegiam o irrelevante e detalhes insignificantes. O que se busca na memória é uma aproximação da essência, a tradução do mundo em imagens com privilégio dos não-acontecimentos, dos vazios, dos colapsos de sentido, dos lugares desertificados, do tédio de janelas simuladas, de sonhos infantis e de anjos cegos.
Cesar Guimarães nos transporta para um universo fluido e gelatinoso de signos legíveis e visíveis que, ainda que heterogêneos, se buscam e fogem sem encobrir suas diferenças, fazendo superposições e desencaixes entre visível e legível. O que pergunto, afogada nesse texto extremamente sugestivo, é até que ponto cabe tratar desses livros em conjunto, como se a reprodutibilidade de suas imagens lhes tirasse o caráter de criações únicas e diferenciadas. Além de me propor o problema fundamental da distinção entre o legível e o visível em suas relações com a Memória.
Revista de Antropologia
Míriam Lifchitz Moreira Leite
Professora aposentada do Departamento de História - USP
Assessora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia - USP
Para escrever esta resenha cometi uma operação que talvez não seja perdoada pelo Autor. Tive de desmontar o texto do livro, para conseguir transmitir, aos possíveis leitores, o seu conteúdo, perturbando, assim, o impacto que ele me causou à primeira leitura. Essa desmontagem fez-se necessária, pois uma pressuposição de conhecimentos de filosofia, literatura e cinema que não são assim tão difundidos, reunidos desta maneira, interfere no prazer do texto.
O livro todo tem como pano de fundo o "bombardeio de imagens a que estamos hoje sujeitos, a ponto de não podermos mais distinguir a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos pela televisão". "Em nossa memória se depositam, por extratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas tenha relevo."
O convívio cotidiano com a saciedade de imagens acaba nos anestesiando tanto para imagens visuais, como sonoras, fazendo com que empobreçam de significações, como também fiquemos com os sentidos insensibilizados. "Quanto mais se aperfeiçoam os dispositivos tecnológicos, mais nos alienamos da percepção e o esquecimento se apodera de nossa memória."
Em resposta ao perigo de desligamento de nossos sentidos, a memória surge como matéria-prima por excelência tanto do cinema, quanto da literatura. A memória como todo um rol de imagens diferentes - retratos, fotografias, descrições, cenas, ou seja, conjuntos de signos a compor conjuntos de imagens, ilusões e sonhos que passam a fazer parte da memória individual e coletiva.
Durante muito tempo afastada de estudos científicos e filosóficos, a Memória adquire agora uma posição central, com a retomada dos trabalhos de Bergson e suas leituras feitas sucessivamente em Cinema-tempo e Cinema=Movimento de Gilles Deleuze. As imagens da Memória, pela presença e pela ausência, não apenas na literatura e no cinema, mas como se tem observado em trabalhos de Antropologia e Sociologia, vêm adquirindo um peso e uma diversidade que levam à identificação do próprio mundo exterior. Passam a ser representadas como força de procura, poder de fabulação, eterno retorno, esquecimento e desmemória.
Neste livro, o Autor leva em conta unicamente a Memória do criador na literatura e no cinema, e não a Memória do leitor e do espectador. Embora distinga o cinema, que realiza movimento e tempo da literatura, a qual só pode figurá-los com signos linguísticos, passa em revista as contribuições de Freud, Lacan, Bergson, Deleuze, Pierce, Maurice Blanchot e Pasolini, apontando como a dificuldade inicial de lidar com a memória e com o inconsciente levou Freud a se utilizar de analogias com instrumentos e aparelhos técnicos.
É nesse ponto que chegamos ao corpus documental do trabalho que precisei decompor, para conseguir transmitir o legível e o visível, que às vezes se confundem, nem sempre são coisas diferentes, pois alguns autores fizeram cinema e alguns diretores de filmes escreveram teorizações. Nessa desmontagem é que ficou claro que tanto o texto escrito quanto o visual inscrevem-se na memória através de imagens, imagens mentais, que são responsáveis pela flutuação da memória do presente e do futuro para o passado.
Marguerite Duras
Escrever
India Song
Le Vice consul
O amante da China do Norte
O caminhão
O deslumbramento
Os olhos verdes
Peter Handke
A mulher canhota
A repetição
A tarde de um escritor
A ausência
Breve carta para um longo adeus.
O chinês da dor
O medo do goleiro diante do pênalti.
Maria Gabriela llansol
Um beijo dado mais tarde
Um falcão no punho
Finita
O restante mundo
Causa amante
João Gilberto Noll
Os bandoleiros
O quinto animal da esquina
Rastros de verão
Zulmira Ribeiro Tavares
O nome do bispo
Termos de comparação
Wim Wenders
Silver City
O verão nas cidades
Alice nas cidades
No correr do tempo
Nick's Movie
O estado das coisas
Paris, Texas
Tokio-Ga
Até o fim do mundo
Diário de roupas e cidades
Tão longe, tão perto
Contracampo
Nicholas Ray
The Lusty Man
We Can't go Home Again
Grifith
Intolerância
Serguei Eisenstein
A forma do filme
Memórias imorais: um autobiografia
John Ford
Breve carta para um longo adeus
Noel Burch
La lucarne de l'infini
Alain Resnais
O ano passado em Marienbad
O atordoamento do sujeito com a variedade e a velocidade da civilização da imagem parece conduzir à incomunicabilidade e ao insulamento. Cada um dos autores passa a usar imagens literárias como formas de acesso à realidade exterior como elementos de alucinação do imaginário ou como quocientes de ilusão, desilusão e autoconsciência.
A escrita procura se apropriar da imagem descrevendo minuciosa e microscopicamente o que ela revela. Abandona o conjunto e seleciona um ponto ou um fragmento. O interesse deixa de estar no que foi escrito para se deslocar ao movimento que descreve a escrita . As imagens táteis, plásticas e visuais privilegiam o irrelevante e detalhes insignificantes. O que se busca na memória é uma aproximação da essência, a tradução do mundo em imagens com privilégio dos não-acontecimentos, dos vazios, dos colapsos de sentido, dos lugares desertificados, do tédio de janelas simuladas, de sonhos infantis e de anjos cegos.
Cesar Guimarães nos transporta para um universo fluido e gelatinoso de signos legíveis e visíveis que, ainda que heterogêneos, se buscam e fogem sem encobrir suas diferenças, fazendo superposições e desencaixes entre visível e legível. O que pergunto, afogada nesse texto extremamente sugestivo, é até que ponto cabe tratar desses livros em conjunto, como se a reprodutibilidade de suas imagens lhes tirasse o caráter de criações únicas e diferenciadas. Além de me propor o problema fundamental da distinção entre o legível e o visível em suas relações com a Memória.
Revista de Antropologia
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