quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Filme dentro do filme


Ana Lúcia Andrade. O Filme dentro do filme. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1999.

Andréa Claudia Miguel Marques Barbosa
Doutoranda em Antropologia — USP


O cinema e a antropologia têm estabelecido um intenso diálogo ao longo de suas histórias. Desde o nascimento da linguagem e da disciplina até os dias de hoje, muitas foram as aproximações. Uma delas tem sido no sentido de compreender as relações entre a produção imagética de uma sociedade e sua própria vida social. Sem cair ingenuamente no engano de considerar o cinema como espelho da vida, procura-se caminhos para desvendar essa complexa relação entre arte e vida. O cinema é um artefato cultural. Artefato cuidadosamente manufaturado, buscando propiciar ao seu público um misto de identificação e distanciamento. O filme carrega, desde sua concepção até sua exibição pública, intenções e cargas simbólicas que são oferecidas ao espectador que as degusta conforme suas próprias intenções e competências simbólicas. Ao colocar o espectador numa posição privilegiada, na qual observa todos os acontecimentos narrados, mas sem o envolvimento real, o cinema pode empreender seu jogo de revelação e engano. E, através desse jogo, pode desencadear uma relação entre tempo e memória, entre imagem e imaginário, dando um novo significado ao presente vivido.

O trabalho de Ana Lúcia Andrade situa-se no campo do estudo da linguagem cinematográfica, mas acompanhando seu argumento e análise podemos, aqui, do lado da antropologia, refletir sobre o que o cinema pode nos revelar, através de seus próprios mecanismos (no caso deste estudo, a metalinguagem), acerca do caminho de mão dupla operado entre a cultura e o indivíduo. Os filmes geram sentidos que se complexificam à medida que aumentam os níveis de leitura possíveis. Partindo deste referencial é que empreendemos a leitura deste texto.

A autora se propõe a fazer um histórico da metalinguagem no cinema e uma reflexão sobre uma certa tendência autofágica do mesmo. Partindo dessa hipótese a análise nos introduz no instigante mundo de imagens que, como se estivesse sendo projetado num espelho, refletem infinitas outras imagens de si mesmo. A princípio me pareceu um percurso difícil, mas foi com fascinação que acompanhei o texto, deliciando-me a cada novo exercício de desvendamento dessas construções fílmicas. A escolha dos filmes a serem analisados foi extremamente feliz e confesso que terminei o livro sedenta de ir ao cinema e sentir na retina as imagens descritas. Como não foi possível, mesmo porque os filmes em cartaz não se prestavam ao exercício proposto no livro, terminei por ir à locadora mais próxima. Revendo alguns dos filmes analisados no texto, pude relê-lo com outros olhos, olhos curiosamente descortinados.

A arte do século XX tem uma capacidade impressionante de auto-reflexão e, neste sentido, a metalinguagem aparece como estratégia de auto-referência, seja na ênfase quase alcoviteira de falar sobre seus personagens, seja na explicitação dos códigos da linguagem ou na referência à sua própria estrutura. Dois tipos de filme trabalham neste registro: os filmes que se referem ao universo cinematográfico através da temática (o filme sobre cinema: biografias de atores, diretores ou personalidades da indústria cinematográfica) e os filmes que explicitam o discurso cinematográfico, ou seja, o filme dentro do filme. Neste último caso o recurso da metalinguagem é inserido como parte fundamental da trama.

Desde cedo o cinema soube criar uma situação de projeção/identificação para com o espectador desencadeada pela própria linguagem e evidenciada pelo próprio ritual cinematográfico. O ato de ir ao cinema, sentar numa sala escura, ser cercado de silêncios interrompidos por sussurros, a luz que vem do alto e de trás projetando-se na imensa tela à frente e que inunda seus espectadores com suas imagens e as próprias estratégias narrativas propiciam um mergulho do espectador.

A metalinguagem se insere neste contexto criando um elo de identificação com o espectador. Operando o reconhecimento de recursos da linguagem, o espectador se coloca de forma privilegiada como compartilhando uma espécie de segredo.

"O processo do cinema para se constituir enquanto linguagem se daria passo a passo, fazendo com que o espectador se familiarizasse progressivamente com os códigos aprimorados. Ao retratar a si mesmo, o cinema chamava a atenção para o espectador que se identificava como participante do ritual cinematográfico" (: 24).

O cinema mudo utilizou a fórmula de falar do processo cinematográfico para atrair a atenção do público com uma "envolvente ilusão de participação". Ficamos imaginando o quanto Those Awful Hats ( D.W. Griffith, EUA, 1909), com seu traço de crônica do cotidiano, foi hilário para a época já que ainda o é. Uma comédia de três minutos ambientada numa sala de projeção, o filme de Griffith acompanha os transtornos que as senhoras e seus gigantescos chapéus causavam aos demais espectadores. Além da querela entre os espectadores, podemos também acompanhar o filme que passa na tela do cinema/personagem, que é um filme de argumento do próprio Griffith, realizado no ano anterior. O ritual do espetáculo cinematográfico está em evidência e é sobre ele e nós mesmos como participantes duplicados que o filme constrói seu fascínio.

Se no cinema mudo a auto-referência já provocava o espectador para penetrar no filme para além da história narrada, com a chegada do som ao cinema as possibilidades do uso da metalinguagem se ampliaram e se enriqueceram. De King Kong (Merian Cooper, 1933) a Cidadão Kane (Orson Wells, 1941) o cinema fala de si e sobre si com orgulho. Aliás, como atenta a autora, a filmografia de Wells é um divisor de águas para a forma narrativa clássica, em especial Cidadão Kane que utiliza a metalinguagem como forma de ampliar as possibilidades da narrativa.

Continuando a viagem que o livro nos propicia, chegamos aos anos 50 e seus filmes que espalham veneno sobre a indústria cinematográfica de Hollywood. Fato que não é gratuito, pois lembremos que é nesse período que surge a televisão, que não demorou nem uma década para se tornar um veículo de massa. "Através deste veículo, cada nova geração de espectadores que surge tem acesso a um considerável acervo retrospectivo de grande parte da produção cinematográfica. Permitiu-se, então, uma melhor compreensão e reconhecimento dos códigos cinematográficos, assim como das citações intertextuais por parte do público. Dessa forma, o cinema passa a ousar possibilidades mais complexas de utilização do recurso da metalinguagem, apostando cada vez mais em narrativas que proporcionem um segundo nível de leitura ao espectador" (: 73).

Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950), repleto de citações ao próprio universo cinematográfico nos mais diversos níveis, é o melhor exemplo apresentado desse período. A personagem Norma Desmond, uma decadente estrela do cinema mudo, é interpretada por Gloria Swanson, também uma famosa atriz do cinema mudo afastada das telas. Erich Von Stroheim, que faz uma ponta no filme de Wilder como mordomo de Norma e um antigo diretor de cinema mudo admirador inconteste da atriz, foi mesmo diretor de filmes mudos, dirigindo Gloria num desses filmes (Minha Rainha, de 1928). Crepúsculo dos Deuses abusa da metalinguagem e a autora desvenda o filme como se descascasse uma gigantesca e suculenta cebola. A cada camada, uma surpresa, uma transparência não percebida, uma opacidade revelada.

O mesmo tratamento é dado ao filme Quando Paris alucina ( Richard Quine, 1964), um filme que trata da criação de um outro filme (A garota que roubou a Torre Eiffel). A parte do processo de criação em questão é a roteirização, e uma etapa que, presumivelmente, é feita com palavras, vai sendo apresentada com imagens. As próprias palavras tornam-se imagens e vamos percebendo as várias narrativas imbricadas num movimento de vaievém entre o tempo da narrativa de Quando Paris alucina, o tempo de A garota que roubou a Torre Eiffel e o tempo da imaginação dos protagonistas ao escreverem as cenas. "Quando Paris alucina" articula-se pressupondo uma certa cumplicidade com o público por possuir uma narrativa complexa que necessita do inventário imagético do espectador em sua construção. Mais do que um filme dentro do filme, Quando Paris alucina apresenta a narrativa dentro da narrativa, em um jogo de imbricamento alucinante. Metaforicamente é como se fosse possível visualizar o cinema simultaneamente sendo feito e exibido, em uma junção entre o roteiro, a realização, a montagem e a captação pelo espectador do que está ocorrendo na tela" (: 97). A sensação de que a história de Quando Paris alucina está sendo escrita durante o tempo do próprio filme é habilmente recolocada pela autora a nós leitores, que ficamos com a impressão de estarmos passo a passo sendo apresentados à estrutura da narrativa como se ela fosse se concretizando à medida que a autora vai nos revelando os segredos do filme.

Chegamos aos anos 70 e a alguns filmes que fazem uma homenagem à história do cinema mundial. É o caso de A noite americana de François Truffaut (1973) e No mundo do cinema de Peter Bogdanovich (1976). O primeiro também incorpora uma forte e relevante necessidade de refletir sobre o fazer cinema e sua obra inspiradora é Oito e meio de Fellini (1963). A relação entre a vida e o cinema é bastante presente tanto em Oito e meio quanto em A noite americana. Os sonhos atormentadores do personagem de Fellini (e do próprio diretor que se vê pressionado depois de ter ganho muitos prêmios com A doce vida de 1959) se aproximam das angústias de Truffaut ao lastimar que a vida não é tão bem agenciada, interessante, densa e intensa quanto as imagens que os cineastas organizam (: 119). Os questionamentos acerca do fazer cinema seguem sendo questões trabalhadas pelos filmes na década seguinte. Em 1981 a Mulher do Tenente Francês, de Karel Reisz, atua exatamente nesta chave de imbricamento entre ficção e realidade. A metalinguagem se explicita através das duas narrativas que evocam dois universos ficcionais distintos e contrapostos entre si.

Ainda perseguindo a questão da relação entre o cinema e a vida, Rosa púrpura do Cairo (Wood Allen, 1985) presta uma homenagem ao cinema e ao ritual cinematográfico partindo do imaginário do público. O cinema como projeção e identificação, o cinema como "fuga". Neste filme vemos sua protagonista, Cecília, literalmente entrar no filme e, assim sendo, vemos também a magia do cinema se realizar plenamente. Ela conseguiu este feito por ser uma espectadora atenta , erudita, uma cinéfila. Ter entrado no filme foi seu prêmio. "A Metalinguagem como elemento criativo 'liberta' o espectador passivo, através da ilusão de participação estabelecida. O espectador acompanha uma suposta 'construção' do filme que se utiliza deste recurso e a participação se dá através da decodificação do discurso" (: 141).

Chegando a filmes bem atuais como O jogador (Robert Altman, 1992) e Fargo (Joel Coen, 1996), a autora demonstra o quanto a auto-reflexão ainda está presente no cinema e pelo visto sempre estará. Como num círculo vicioso, quanto mais citações e temas auto-referentes, mais os filmes criam no público um sentimento de cumplicidade. Filmes como os dos irmãos Coen (Ajuste final, Roda da fortuna, Barton Fink e Fargo) trabalham, assim como Wells em Cidadão Kane, alargando as fronteiras do discurso cinematográfico e nesse sentido alargam também a relação com o público. A cada reconhecimento, a cada "flagrante" do público o encanto se renova. É como uma criança que ganha uma caixa de mágicas. Ao aprender os segredos dos truques, ela não perde o interesse, ao contrário, este se renova numa cumplicidade que torna cada um de nós um pouco mágicos, um pouco cineastas, um pouco mais próximos da vida.

Ao enfocar como o cinema através do artifício da metaliguagem fala ao público, ou seja, como a auto-reflexão no cinema não pode fugir da questão colocada por Truffaut de que é impossível dissociar o cinema da vida, a autora trabalha muito próximo à idéia de Geertz (1997) de que a arte faz parte da vida e não há outro meio de interpretá-la senão dentro do curso da vida no mundo. Os filmes não podem ser considerados como meros encadeamentos de formas puras. É preciso perceber como "os meios pelos quais a arte se expressa e o sentimento pela vida que os estimula são inseparáveis"(Matisse apud Geertz, id.: 148).

O jogo travado entre o espectador e o cinema é evidenciado pela autora através do artifício da metalinguagem e enriquece nossa percepção das construções simbólicas operadas pela cultura. Através da metalinguagem, somos convidados a perceber como o cinema funciona (ganhamos uma caixa de mágicas) e, com isso, se formos espectadores atentos, a enxergar mais o mundo. "Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível" (Xavier, 1993).

Bibliografia

GEERTZ, C.
1997 O saber local, Petrópolis, Vozes.

MENEZES, P.
1996 "Cinema: imagem e interpretação", Tempo Social, vol. 8(2).

MORIN, E.
s/d O cinema ou o homem imaginário, Lisboa, Moraes.

XAVIER, I.
1993 "Cinema: revelação e engano", in NOVAES, A. (org.), O olhar, São Paulo, Companhia das Letras.

Revista de Antropologia

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