quinta-feira, 1 de abril de 2010

Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil


Luís Donisete Benzi Grupioni. Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo, Hucitec/ANPOCS 1988, 341pp.

Dolores Newton
Professora da Johns Hopkin University
(tradução de John Cowart Dawsey)


Escrevo esta resenha como um dos estrangeiros que o Conselho de Fiscalização, o órgão que aqui está sob escrutínio, foi criado para "licenciar, supervisionar e controlar". Supostamente, suas políticas relativas a pesquisadores com interesses em história natural e cultura indígena se aplicavam igualmente a estrangeiros e cidadãos ligados a iniciativas privadas. Na verdade, seu alvo principal era os estrangeiros. Durante seu período de vigência de 1933 a 1968, o Conselho afetou diretamente as atividades profissionais de uma porção de antropólogos, tendo um impacto sobre atividades de coleta e a natureza das coleções reunidas por museus no Brasil e no exterior. Meu trabalho de campo somente começou em 1963, no final da vida efetiva do Conselho, e sob os auspícios de um acordo entre a Harvard University e o Museu Nacional que se desviou de suas provisões apenas para duplicá-las. Em todo caso, a ideologia que informou as políticas do Conselho esteve em vigor nas décadas seguintes durante as quais trabalhei.

Trata-se aqui de uma excelente e oportuna pesquisa, realizada com perícia. Precisamos saber como tais políticas afetam a antropologia, e se foram devidamente continuadas. Selecionando parte do arquivo do Conselho (mantido no Museu de Astronomia e Ciências Afins do CNPq no Rio de Janeiro) relacionada a vários antropólogos conhecidos, Grupioni procura verificar como o trabalho de pesquisadores pode ter sido afetado pelas políticas. Documentos dos arquivos de diversos museus suplementam os do Conselho. O projeto de Grupioni de análise de arquivos surge após sua experiência de pesquisa de campo e trabalhos com coleções. Chama atenção o fato de que este estudo foi apresentado como uma tese de mestrado, sendo inclusive agraciado com o prêmio da ANPOCS de 1997 na categoria de melhor tese de mestrado nas Ciências Sociais.

Os dois primeiros capítulos tratam do clima social e intelectual em que surgiram as políticas nacionalistas e o Conselho que foi criado para implementá-las. Esta é uma história que evoca comparações com políticas em vários países; farei adiante alguns comentários a respeito de políticas nos Estados Unidos. No capítulo três, alguns arquivos menores, referentes ao licenciamento de pesquisa de campo de Charles Wagley, William Lipkind e Buell Quain e, finalmente, David Maybury-Lewis, são examinados. Os grandes dossiês de Claude Lévi-Strauss e Curt Nimuendajú, com um capítulo para cada autor, constituem o cerne do trabalho. O texto ainda apresenta um capítulo final com as conclusões, fotografias, apêndices (as solicitações ano a ano de licenciamentos, e os documentos específicos consultados), uma bibliografia, e um índice.

Detalhes fascinantes são revelados a respeito dos estilos de trabalho de campo destes antropólogos. Quantos antropólogos poderiam resistir ao exercício de comparar essas experiências de campo com as suas próprias? No Brasil da primeira metade do século XX, o contingente de pessoal normalmente previsto para compor uma "expedição" incluía não apenas pesquisadores de diferentes especializações, mas também um staff de apoio. Sendo assim, o trabalho de campo "solo" de Nimuendajú foi marcante para a sua época; seus interesses que abarcaram as mais variadas especialidades da antropologia desde a linguística até a arqueologia, e seus registros meticulosos, destacam-se como algo raro para qualquer época.

Grupioni levanta uma questão em relação aos próprios arquivos: os documentos realmente apresentam novas informações a respeito da cultura mais ampla, ou seria apenas o conhecimento da cultura mais ampla que lhes confere significado? (Esta questão assemelha-se a outra colocada pelo historiador Hesseltine a respeito de artefatos: seriam dados em si mesmos ou meras ilustrações de assuntos conhecidos através da palavra escrita?) Assim como acontece quando as evidências são artefatos, há omissões notáveis em determinados registros de arquivos: Grupioni aponta para o fato de que as deliberações do Conselho deixam de mencionar a prisão de Nimuendajú, sob acusação de espionagem.

Arquivos podem fornecer informações a respeito de projetos fracassados, que dificilmente emergiriam de registros publicados. Em um desses projetos, Nimuendajú relata sua busca por um grupo de Kayapós (Kayapós do Araguaia entre os rios Arraias e Pau d'Arco), com uma população estimada de 1500 pessoas em 1900. Vi uma coleção atribuída a estes Kayapós, mas nunca havia encontrado um registro escrito sobre eles. Fazendo uso das cartas de Nimuendajú, Grupioni desfez o mistério a respeito do que havia acontecido com este grupo de Kayapós: em 1940 Nimuendajú procurara por eles encontrando apenas três indivíduos, dispersos na população local.

A partir destes documentos, descobrimos detalhes a respeito das interações entre vários antropólogos. Por exemplo, quantos sabiam que Lévi-Strauss convidara Nimuendajú para juntar-se a ele numa de suas expedições? A amizade estreita entre Nimuendajú e Carlos Estevão, então diretor do Museu Goeldi, explica a trajetória dos itens singulares que encontrei entre as coleções relativamente pequenas do Museu do Estado de Pernambuco. Nimuendajú pessoalmente presenteara Estevão com alguns artefatos, que posteriormente foram levados a Recife, onde Estevão passou seus últimos anos, finalmente doando sua coleção particular ao museu local. Dados de arquivos ajudam a esclarecer essas teias pessoais, informando-nos também a respeito das histórias das coleções.

Necessita-se de um guia como Grupioni para entender as nuanças de re-posicionamentos estratégicos entre protagonistas, seja entre membros do Conselho, seja entre o Conselho como um todo e o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Os destinos de projetos individuais de pesquisa foram decididos em meio a deslocamentos nas relações de poder, personalidades (com destaque a Heloísa Torres), e rivalidades entre instituições.

Apesar de emitir licenciamentos, o Conselho era obrigado a compartilhar seu poder com o SPI, que detinha o controle sobre a situação em campo. A cooperação do SPI, ou a sua falta, freqüentemente determinava o sucesso ou fracasso de uma expedição. Essa instituição foi um tropeço em um momento ou outro nas carreiras de pesquisa de quase todos estes antropólogos; ela geralmente vencia. A política de antagonismo entre o SPI (que se reencarna na FUNAI) e pesquisadores de campo se mantém nos dias de hoje tão intensa quanto antes. Os objetivos destas duas agências não eram necessariamente conflitantes, mas quando seus poderes relativos estavam em questão, elas defendiam suas prerrogativas particulares e protegiam seus interesses. Nos casos em que o SPI e o Conselho discordavam quanto à aprovação ou não do acesso de pesquisadores a áreas indígenas, os respectivos interesses ficam bem delineados: o SPI não queria nenhum antropólogo entrando em áreas em que seu controle e condição de única agência externa já não estivessem consolidados; os membros do Conselho que ali estavam como representantes de museus queriam coleções.

Mesmo quando as estórias que Grupioni desvenda não permitem responder a todas as suas questões, o cuidado e procedimento meticuloso do autor fazem com que este estudo nos ajude a entender a antropologia no Brasil. Para muitos a leitura do texto deverá proporcionar uma experiência de déja vu, ao passo que iniciantes poderão aqui encontrar fragmentos de sabedoria úteis para quem busca uma estratégia de carreira bem-sucedida. Para mim, o autor fornece respostas satisfatórias para uma porção de pequenos mistérios, e abre um conjunto de questões que poderiam ser tratadas em estudos posteriores. A seguir, gostaria de deter-me numa dessas questões: os efeitos da política do Conselho sobre procedimentos de coleta e sobre a natureza das coleções realizadas.

De acordo com Grupioni, na medida em que as coleções foram vistas como parte do patrimônio nacional, o estado se viu compelido a adquiri-las. Sabe-se que Heloísa Torres também se preocupava com o fato de que grande parte dos artefatos e da riqueza deste acervo nacional estava sob controle de iniciativas privadas, em duvidoso estado de integridade. Grupioni procura saber o que aconteceu com as coleções deixadas no Brasil sob as diretivas do Conselho. No balanço final, descobre-se que metade dos artefatos coletados por Lévi-Strauss desaparecera totalmente, e grande parte do material restante só poderia ser atribuído a suas coleções mediante evidências circunstanciais. Aprendemos que Lévi-Strauss se interessava enormemente por artefatos, neles encontrando a inspiração para seus estudos; no entanto suas coleções brasileiras produziram resultados pouco notáveis, para ele ou para outros.

Em vista do fato de que coleções nunca despertaram interesse em razão de si mesmas, constituindo apenas os meios mais visíveis de se manter um registro, elas se transformaram em uma espécie de tributo. Sendo assim, não havia preocupações com as particularidades de sua aquisição ou com seu valor científico, e nenhuma providência foi tomada para sua manutenção. A proteção do patrimônio nacional significava principalmente que o acesso de outros aos artefatos seria limitado. Grupioni observa que a FUNAI segue os mesmos procedimentos atualmente exigindo uma nova forma de tributo dos pesquisadores — em forma de relatórios de campo — que é igualmente ignorado, uma vez adquirido.

Talvez a política do Conselho tenha sido responsável pelas coletas consideráveis feitas por Nimuendajú para os museus brasileiros. O texto responde uma questão sobre a qual ponderei durante longo tempo: por que Nimuendajú não fez coletas para museus dos Estados Unidos, uma vez que ele trabalhou tão avidamente nas coletas para museus brasileiros e europeus? Trata-se simplesmente, conclui Grupioni, de uma diretiva de Robert Lowie. Mas Grupioni também mostra, sustentando bem seus argumentos, que a atividade de coleta ocupava uma posição central no trabalho de Nimuendajú, que estava extraordinariamente focado em seus próprios objetivos. Possivelmente complicações associadas à guerra ou talvez um cansaço crescente em razão das dificuldades envolvidas na exportação de coleções tenham contribuído para o declínio de sua atividade de coleta e sua decisão de não coletar para museus dos Estados Unidos. Apesar das dificuldades que Nimuendaju enfrentou, seu legado certamente se apresenta como uma estória de sucesso. Pode ser que a visão de Nimuendajú a respeito de uma série de questões estava de acordo com a política oficial brasileira, desempenhando inclusive um papel na sua formação.

As coletas de Nimuendajú, conforme se diz, representavam não apenas os meios de suporte mas os "produtos de sua pesquisa". A visão de que a coleta seja o produto final ao invés de um acervo de dados primários (initial raw data) é marcante. Talvez seja esta uma caracterização precisa da própria visão de Nimuendajú. Ao decidir se valia a pena fazer um estudo etnográfico a respeito de um grupo, ele partia de alguns princípios: é preciso que haja alguma cultura material indígena; uma língua e/ou religião distintas não seriam suficientes. Em determinado momento da pesquisa, Nimuendajú declarava que seu estudo etnográfico sobre um grupo específico estava completo. Sabe-se que ele propositadamente subordinava a interpretação ao registro de dados e observação cuidadosa.

A noção de que a coleta seja um "produto final" persegue minha experiência de pesquisa no Brasil. Hoje, com o benefício do tempo, vejo que minha solicitação para rever a coleção que Jean Lave e eu doamos para o Museu Nacional provavelmente tenha parecido estranha; aquela coleção estava freqüentemente inacessível. Minhas próprias premissas de trabalho incluem o seguinte: uma coleção é um acervo de dados primários (raw data) ao invés de um produto final; seu valor inclui as relações entre os artefatos componentes (e uma divisão por partes apenas dificulta a tarefa de re-montagem dos dados; artefatos são coisas singulares, não cópias clonadas); e, desde que seja possível detectar a sobrevivência de formas culturais descendentes, a tarefa etnográfica nunca termina. Essas premissas diferem das que Nimuendajú mantinha. Isso, sem mencionar a noção de patrimônio (ou tributo), outro ponto de divergência.

As questões ideológicas levantadas na época da criação do Conselho continuam sendo importantes. A outra questão maior que aparentemente acompanha políticas a respeito de coleções etnográficas é a exigência de uma licença do governo para se fazer pesquisa de campo com índios. Trata-se de uma discrepância envolvendo a preocupação aparente com proteção — neste caso dos próprios índios — que se associa a um descaso manifesto por suas vidas ou comunidades.

Uma vez que vim ao Brasil após ter feito pesquisa de campo com índios nos Estados Unidos, nunca entendi realmente porque as viagens de pesquisadores para áreas indígenas só poderiam ser feitas mediante autorização oficial, especialmente em vista do fato de que cidadãos comuns — tanto os trapaceiros quanto os inocentes — entravam e saíam livremente das áreas indígenas, até mesmo se apossando de terras, sob protestos inócuos ou inexistentes do governo. Nos Estados Unidos, nunca se exigiu permissão do governo para viver e fazer pesquisa em reservas indígenas. (Em décadas recentes, torna-se cada vez mais necessário obter permissão de autoridades tribais, mas isso resulta de processos de autodeterminação das tribos, e não de decretos governamentais). Qualquer tentativa do governo dos Estados Unidos de se colocar como autoridade final quanto à concessão de acesso de estranhos a uma reserva indígena ou a seus conteúdos culturais, usando o argumento de patrimônio cultural da nação, seria visto como uma pretensão colonialista. Além disso, os próprios índios rejeitariam a noção de que eles representam a herança cultural de outros.

Nos Estados Unidos, coleções etnográficas nunca foram reguladas ou limitadas pelo governo federal. O grau com que as proibições à aquisição privada de artefatos de culturas e povos indígenas se apresentam como matéria de política e legislação no Brasil provocariam estranheza no contexto norte-americano. Teríamos confiança em dizer que as comunidades indígenas estiveram mais bem protegidas, ou que as coleções da cultura material indígena foram feitas de forma mais científica ou melhor preservadas, em razão das políticas protecionistas voltadas ao que se considera como patrimônio nacional? É útil saber até que ponto a posse privada de materiais culturais se opõe à sua preservação e utilidade; não seria possivelmente a propriedade privada uma etapa na vida das coleções de museus?

Apesar de o Conselho de Fiscalização já ter deixado de existir, suas políticas a respeito de coletas e licenciamentos continuam em vigor. Há ironias nessa história. Apesar das restrições políticas às atividades de coleta de pesquisadores, durante décadas muitos artefatos vem sendo retirados de aldeias indígenas e colocados explicitamente nos mercados estrangeiros de exportação, sendo vendidos em lojas Artindia do governo, localizadas propositadamente nos aeroportos internacionais. Essas lojas agora facilitam a venda de artefatos fabricados às custas de espécies ameaçadas. Num caso recente, uma coleção de cocares Kayapós, adquirida legalmente no Brasil numa loja da FUNAI, transformou-se legalmente em artigo de exportação. Porém, devido ao fato de que haviam sido confeccionados com penas de espécies ameaçadas de extinção, os cocares, ao entrarem nos Estados Unidos, foram considerados artigos de contrabando. Esta coleção agora pertence ao governo dos Estados Unidos (ver website da Smithsonian Institution: http://photo2.si.edu/kayapo/kayapo.htm "The Tale of the Kayapó Feather Headresses" [A História dos Cocares Kayapós]).

A investigação de Grupioni nos arquivos do Conselho apresenta um relato precioso a respeito da ideologia e do contexto social pertinentes à pesquisa de campo e formação de coleções em meados de século XX no Brasil. Nem todas as questões que aqui levantei se explicitam nos propósitos de Grupioni, mas talvez seja um indício de sua perícia e de seu trabalho meticuloso o fato de que, ao deixar este trilho de papel, elas todavia são evocadas, e às vezes respondidas. Apenas posso fazer eco a seus comentários introdutórios: a investigação de arquivos, assim como a pesquisa de campo, pode nos levar a direções que seriam inicialmente inimagináveis.

Revista de Antropologia

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