quinta-feira, 1 de abril de 2010

Navegantes de Integração


Neves, Zanoni. Navegantes de Integração, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998, 296 pp.

Roberto Lima
Doutorando em Antropologia Social ¾ UnB


Remeiros do São Francisco: clientelismo e violência na integração São Franciscana

O tipo social central neste trabalho são os remeiros, como eram designados na cultura regional, ou os moços (moços de barca), como se autodesignavam: aqueles que impulsionavam as "barcas de figura" no rio São Francisco, antes da introdução das velas e do motor a diesel. Seu trabalho consistia basicamente em impulsionar a barca utilizando o remo, quando a viagem era rio abaixo, ou a varejão (uma vara de madeira de quase 10 metros e pesando mais de uma arroba), que o remeiro apoiava no peito e no leito do rio, quando a viagem era a subida do rio. Um trabalho digno das galés exercido por negros, jovens (entre 20 e 30 anos), escravos no período pré-1888, camponeses oriundos do estrato mais baixo da população ribeirinha, altamente estigmatizados pelos segmentos elitizados da região que os designavam depreciativamente como "pés pubos" ou como animais, os porcos d'água.

Originalmente escrito como dissertação de mestrado, com base numa pesquisa de campo iniciada em 1980, defendida na Unicamp em 1991 sob a orientação de Carlos Brandão, e finalmente editada em livro em 1998, o trabalho de Zanoni Neves manteve-se atual nas questões teóricas relativas à antropologia e ganhou importância como documento histórico.

Isso porque, do ponto de vista da teoria antropológica, o texto de Neves busca uma antropologia das "culturas viajantes", dos atores que circulam em uma região bastante extensa (o médio vale do rio São Francisco), e antecipa as discussões atuais de uma antropologia do subalterno que tem ganhado força através da leitura de autores como Said, Spivak e Bhabha, os quais, aliás, não são referidos no texto. De outro modo, sendo o foco do livro as complexas relações sociais que se davam ao redor da estigmatizada figura do remeiro, categoria profissional que praticamente se extinguiu na década de 1950, com o passar do tempo torna-se cada vez mais difícil conseguir relatos e histórias de vida de pessoas que tenham exercido tal atividade. O resultado da união destes dois fatores é que Neves não quer "resgatar" mas, trabalhar a memória para tornar visível esta categoria.

Dividido em cinco partes, o livro trata de avaliar a importância histórica desses trabalhadores, situando-os como principais agentes da integração entre as cidades ribeirinhas e possibilitadores do comércio inter-regional.

A primeira parte do livro faz uma apresentação histórica das cidades ribeirinhas e das barcas que as uniam. Tem a função de dar ao leitor um panorama da realidade regional e introduzi-lo nos diversos sistemas produtivos (ouro em Paracatu, sal em Pilão Arcado e Sento Sé, açúcar, rapadura e cachaça de Santa Maria da Vitória e Januária) e de comércio (gado, carne seca e couros, além dos já citados) vigentes naquele rio. Isso possibilita a relativização das teses recorrentes no pensamento social brasileiro sobre o "isolamento do médio São Francisco" no período que vai do início do século XVIII, quando começam a ser mais abundantes as fontes escritas, até 1950. O panorama traçado por Neves mostra a região como cruzamento de diversos caminhos que demandavam os Gerais, Goiás, Piauí, Salvador, as Minas Gerais e o Rio de Janeiro, com os quais as cidades ribeirinhas comercializavam mercadorias transportadas em barcas, tropas de mulas e carros de boi.

Esta imagem do rio como paisagem de homens em movimento trata de envolver o leitor para pensar esses atores que raramente aparecem em mais que dois parágrafos de cada livro da literatura tradicional São Franciscana. Criado este vínculo, Neves situa os remeiros no quadro das possibilidades existentes de trabalhadores na região ¾ sejam os trabalhadores do rio (agricultores de lameiros, passadores, balseiros e vapozeiros), sejam os que fazem comércio em terra firme (tropeiros, carreiros, carroceiros e ferroviários) ¾, dentro do quadro de relações camponesas locais, atentando que, como 85% da população ribeirinha era rural em 1940, muitas vezes os remeiros conciliavam o trabalho na terra com o trabalho nas barcas.

É aí que o livro começa realmente a crescer. O autor toma como fio analítico as diversas faces do coronelismo regional, ou, para usar a terminologia de Décio Saes adotada por Neves, as relações de dependência pessoal ao chefe local, como componentes estruturais das relações de trabalho dentro e fora da barca.

A tripulação de uma barca era composta de 6 a 12 remeiros e um piloto ou mestre, o qual ficava no leme. Nas barcas pequenas, podia coincidir deste último ser o barqueiro, o proprietário da barca, mas nas maiores, este era um encarregado. Em teoria, os remeiros de um lado e o mestre do outro, fosse barqueiro ou encarregado, formam os dois pólos da tensão dentro da barca, como na fala do barqueiro e coronel Clemente Araújo Castro que chegou na Capitania dos Portos de Juazeiro e disse: "quero que matricule minha barca e os oito bandidos" (: 163). Fala esta que explicita a atuação dos remeiros como jagunços no universo fora da barca (e havia barqueiros que só contratavam remeiros que fossem bons de tiro).

Na prática, fora da barca havia um jogo de relações, seja de amizade instrumental, seja de parentesco, entre o barqueiro e os coronéis locais, podendo haver a superposição destes papéis como no exemplo acima. Dentro da barca havia também, entre os remeiros, aqueles que eram "de confiança" (normalmente em número de dois) e que tinham a função de coibir qualquer reivindicação, através do linchamento do remeiro que "criava caso".

Neves é bem-sucedido na forma como apresenta o uso da violência, muitas vezes aplicada, nas palavras de um coronel transcrito no texto, "para dar exemplo". A violência e a discriminação social encontram campos férteis em contextos de relações de dependência pessoal (: 209). Trata-se do "reino do terror" que Taussig (1993) descreve e que tem como conseqüência a invisibilidade política (ao contrário dos pescadores e camponeses que criaram colônias e ligas, não havia qualquer associação reivindicatória de remeiros) e social (através da estigmatização), tornando a resistência quase sempre pessoal (ou, no máximo, restrita ao universo da barca, em forma de fugas). Muitas vezes o principal modo de mostrar resistência era a ritualística jocosidade, em toadas satíricas e mordazes: uma voz que é colocada no meio do rio, inaudível em suas margens.

A invisibilidade social da presença do "remeiro na areia" é trazida pela constatação de uma dialética onde há, pelo lado das elites locais, a depreciação do trabalho: a expressão "foi para o sal" vem daí, era quando o remeiro sucumbia à doença ou à fadiga e ia recuperar-se deitado nas sacas de sal que as barcas carregavam. Zanoni traz para contrastar entrevistas de barqueiros que falavam que aquilo era "corpo mole" e animalizavam verbalmente os remeiros, os bichos d'água. Pelo lado dos que deixavam de ser remeiros, havia a prática do ocultamento do sinal diacrítico de sua condição anterior: as duas marcas no peito deixadas pelo apoio na vara, duas feridas que sangravam e às vezes necessitavam ser curadas, cauterizadas com toucinho fervendo. Ele conta como teve de criar relações de confiança com os entrevistados que lhe permitiram ver as cicatrizes que, mais de trinta anos depois, ainda as possuíam.

No tocante às referências, o livro une uma bibliografia antropológica básica e consistente a uma criteriosa e ampla utilização da produção literária regional que, aliás, é fartamente apresentada sem cair nos perigos do enredamento no pensamento social, visto que a totalidade da produção literária regional é ligada aos coronéis (por exemplo: Wilson Lins, filho do coronel Franklin Lins e, Geraldo Rocha, coronel em Barreiras) e, muitas vezes, esta produção fala dos remeiros como um elemento folclórico, elidindo o sofrimento que era imposto. Vale trazer um trecho de uma entrevista:

O trabalho (de remeiro), diziam que era bonito(...) Era bonito para você que estava de fora! O senhor ver seu sangue correr na ponta de uma vara não é brincadeira. (: 186, entrevista com Nicolau Soares da Silva)
Existe um movimento de vaievém no livro que possivelmente fosse evitável, na construção do texto, decorrente talvez do desejo do autor de sempre relacionar cada tópico a todos os outros. Num país em que há uma imensa construção de conhecimento sociológico que a cada momento trata de esconder o conflito, a preocupação de Neves é compreensível e louvável e, se com isso o texto perde elegância, cria-se um ruído que acentua o incômodo, no leitor, da degradação a que eram submetidos estes trabalhadores.

Bastante didático, o livro pode ser usado sem medo tanto para discussões avançadas quanto introdutórias, embora tenha alguns problemas relativos às imagens vinculadas aos indígenas regionais, que o autor parece usar uma espécie de "índio genérico", na reconstrução hipotética de como o saber sobre o rio foi passado ao português e aos negros, mas este mostra-se um tema tão tangente que não chega a interferir muito.

A única falta sentida ao longo do texto é a presença do rio. Há uma seção rápida sobre a profusão lingüística dos topônimos e acidentes pluviais entre as páginas 175 e 178 e um anexo que me parece sem sentido sobre acidentes navais (: 296). Neves usa a afirmação de Evans-Pritchard, em "os Nuer", de que a profusão lingüística indica centros de interesse, mas então, se esses trabalhadores não se constróem apenas diante de outras categorias sociais, mas são pessoas que se constróem ante o rio, rio muitas vezes humanizado no discurso dos "trabalhadores do rio", talvez a voz do Velho Chico seja a grande ausente no livro.

Agradecimentos

Agradeço a João Batista de Almeida Costa a leitura da primeira versão desta resenha. A responsabilidade pelo que está escrito aqui, claro, é minha.


Revista de Antropologia

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