quinta-feira, 1 de abril de 2010

Lágrimas de Luz ¾ o drama romântico no cinema


Capuzzo, Heitor. Lágrimas de Luz ¾ o drama romântico no cinema, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, 221 pp.

Mirela Berger
Mestre em Antropologia Social ¾ USP
Professora de Sociologia e Antropologia ¾ UNISA


Disse Mássimo Canevacci: "o cinema possui um enigma mítico em seu poder de atração"(1984). Estar numa sala de cinema escura é estar imerso em um reino que mistura realidade e fantasia, dando asas aos nossos sentimentos e sonhos. Se o filme em questão for um drama romântico, talvez se potencializem ainda mais as possibilidades de catarse e identificação com as tramas. Afinal, qual de nós, simples mortais, não tem um amor romântico (ou, pelo menos, uma idéia do que seja isso) para nos fazer entrar em comunhão com os dramas vividos pelos personagens?

O novo livro de Heitor Capuzzo, Lágrimas de luz ¾ o drama romântico no cinema, pretende analisar as estratégias narrativas do melodrama desde Intolerância, de David Griffith (1916) até Titanic, de James Cameron (1997), e perceber porque este gênero cinematográfico é capaz de conquistar grandes platéias e suscitar sofridas lágrimas. O cinema vem sendo alvo de atenção de Capuzzo há algum tempo. Por dez anos ele atuou como crítico de cinema e dirigiu curtas-metragens. Hoje atua como professor titular do Departamento de Fotografia e Cinema da EBA/UFMG e coordena o midia@rte. É autor, entre outros, de Alfred Hitchcock: o cinema em construção e de O cinema além da imaginação (ambos publicados pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, em Vitória, respectivamente, em 1993 e 1990). Para os amantes do cinema e para a antropologia visual, trata-se de um livro fundamental. Recentemente, platéias de várias partes do mundo se emocionaram, e como disse a crítica, mesmo os corações mais duros sucumbiram diante do filme dinamarquês Dançando no escuro (Dancer in the Dark), de Lars Von Trier. Embora não analisado por Capuzzo, a leitura do livro lança luz sobre os mecanismos narrativos e estruturais que tanto fascinaram o público no filme de Trier. Do ponto de vista da antropologia visual, o livro é um excelente exercício não somente de análises fílmicas, mas também de dissecamento das estruturas narrativas de um gênero caro ao cinema, o drama romântico.

Cabe-nos então perguntar: o que caracteriza o drama romântico? Quais as suas estruturas?

Capuzzo começa a responder esta questão logo nas páginas iniciais do livro, quando analisa o episódio "A mãe e a lei", de Intolerância, filme de Griffith. Segundo ele, o plano-detalhe das mãos tensas da mulher aguardando o veredicto do marido, que desvia o espectador de seu rosto e o leva a construir por si só a antecipação do veredicto (que será negativo ao marido), faz que ele participe da construção narrativa. Ou seja, o recurso de utilizar estruturas em contraponto, articulando internamente os planos e a busca constante de um diálogo entre o público e a trama seriam algumas das estratégias narrativas do melodrama. A essas, Capuzzo acrescenta o uso de detalhes, entre eles os adereços (no caso de Griffith, o enxoval de casamento de dois jovens), que permeiam toda a trama como expressivos recursos dramáticos para acentuar conflitos individuais, sociais ou, mesmo, acontecimentos históricos. Nos planos-detalhes, Capuzzo vê grande parte do exercício de concentração dramática e de busca da empatia do público. Outro recurso muito utilizado é o embate entre sociedade e concretização de projetos individuais, bem como a construção dos personagens principais como representantes de valores ideais e, por isso mesmo, isolados de alguma maneira da sociedade mais ampla. Estas estratégias levam à identificação do público com os personagens e com as tramas.

Além dessas características gerais do universo do melodrama, Capuzzo vai apontando também as estratégias próprias de cada momento histórico, desde o cinema mudo, passando pelo cinema monumental de Cecil B. De Mille nos anos 20, pelos cineastas estrangeiros tais como Victor Sjöstrom, de O vento, e Friedrich Murnau, de Tabu ¾ A story of south Seas, pelo advento do som, do uso da cor, do cinema dos anos 40, até chegar aos anos 90. O trabalho de Capuzzo é tão rico, tanto na extensão do período abordado, quanto na quantidade de filmes analisados, além da descrição densa à la Geertz das cenas, que o trabalho de resenhar o livro torna-se difícil, obrigando-nos a recortes pesarosos. Assim, para evidenciar o modo como Capuzzo analisa os filmes e suas estratégias, recortaremos algumas passagens, tais como o período entre os anos 20 e 40 e, do mesmo modo que Capuzzo, terminaremos com as passagens referentes ao filme Titanic.

Capuzzo afirma que o período do cinema mudo e de seu sucesso comercial no cinema industrial americano deve muito a Cecil B. De Mille, cuja principal característica era a momumentalidade, criada a partir do uso de trucagens e efeitos especiais. Segundo ele, a diferença entre De Mille e Griffith é que De Mille arrisca dentro de possibilidades seguras tais como o impacto fácil, os efeitos sensacionalistas, o excesso de estímulo e o exagero de figurantes e adereços, gerando um cinema pouco sutil, mas que numa realidade industrial tornou-se um modelo de sucesso a ser alcançado e que Hollywood não cessará de utilizar, como veremos depois em Titanic, já nos anos 90. O que interessou a De Mille foram os efeitos especiais, que procuram o espetacular, numa encenação marcada pela teatralidade, apostando no impacto que eles causariam no espectador. Os contrapontos são amplamente utilizados, bem como a particularização de conflitos históricos em alguns personagens, construindo uma síntese dramática de grande apelo sobre o espectador.

Nos anos 20 o cinema mudo atingirá sua sedimentação, principalmente com a chegada de cineastas estrangeiros à Hollywood. O público já estará alfabetizado na linguagem das imagens em movimento e permitirá a busca por articulações narrativas mais complexas, que permitam inclusive o abandono dos letreiros. Será o caso de Victor Sjöstrom, de O vento, que se concentrará na interiorização dos conflitos para criar a atmosfera dramática. O filme narra a fábula de uma jovem filha do Sul que se desloca até o deserto do Oeste para ir morar com um primo casado. Ventos castigam a região cobrindo todo o vilarejo com areia. A jovem não é aceita pela esposa do primo que a expulsa de casa e a força a desposar um rude vaqueiro. Sozinha numa cabana ela enfrenta várias dificuldades, que vão desde o clima até uma tentativa de estupro que a leva a cometer um homicídio. Após essas intempéries, a jovem descobre-se mulher adulta, enfrenta a vida e vive feliz com o seu marido.

Capuzzo mostra como no filme são estabelecidos dois níveis: o factual, pragmático, em que os personagens demonstram um comportamento direto, sem ambigüidades; e uma onírica subjetividade, na qual elementos concretos articulam-se para revelar o universo interior dos personagens centrais. Serão criados paralelismos entre os espaços internos e externos. Em vez de buscar efeitos especiais, Sjöstrom procura a nuança e a sutileza em um filme que segundo Capuzzo é duro, árduo e cruel, assim como o cenário em que se passa a trama. Desse modo, como Griffith, Sjöstrom utiliza-se de detalhes que permeiam toda a trama e, no caso, a areia surgirá como ligação entre vários contrapontos. Ela concentrará as atenções do público na construção intimista da personagem central, utilizando, metaforicamente, as ações catastróficas da natureza para acentuar a sensação de que a personagem central é "uma estranha no ninho", levando o público a rememorar situações de desprezo e abandono e, assim, se identificar com o drama da personagem.

Com o advento do som, novas estratégias narrativas vão surgir. O diálogo cinematográfico ganhará destaque. Capuzzo comenta que seqüências antológicas do cinema mudo não resistiriam a uma sonorização, tornando impensável dublar os filmes mudos. Trata-se não apenas de substituir letreiros por diálogos, mas sim de repensar estruturas narrativas. Será preciso tempo para que essa nova linguagem amadureça. Tanto foi assim que Capuzzo comenta que houve um abismo entre Frankenstein (EUA, 1931, de James Whale) e Do mundo nada se leva (You can't take it with you ¾ EUA, 1938, de Frank Capra). O primeiro utilizou-se do som para criar o ritmo de várias passagens e as imagens entraram apenas para ilustrar os diálogos. Já com o segundo, ocorre um equilíbrio entre imagem e som. Capra percebeu que o som deveria se adequar à mesma estrutura de contrapontos que a imagem já havia articulado anteriormente.

Outro ponto importante que Capuzzo salienta é que "a produção do cinema industrial organizou-se a partir de uma estratégica classificação em gêneros, ou seja, modalidades dramáticas que permitem o estabelecimento das principais características comuns de cada ciclo de filmes" (: 71). Segundo ele, o cinema industrial optou por uma dramaturgia que estabeleceu no conflito a base de sua articulação e, para tal, direcionou o olhar do espectador, insistiu no recorte da imagem, acrescentou o som em contraponto e articulou essa imagem sonorizada com outras imagens, procurando uma empatia imediata com o grande público.

Um aspecto curioso da obra de Capuzzo é que, embora desde o início do livro ele procure desvendar as estratégias narrativas do drama romântico, apenas na página 71 ele dará uma definição desse gênero e iniciará uma sistematização das características do mesmo. Talvez ele o faça dessa maneira por considerar que, embora as estruturas do drama romântico já estejam presentes desde o início das produções cinematográficas, será apenas por volta de 1935 que as características deste ciclo de produção ficarão mais evidentes. Outro ponto importante é que Capuzzo não diferencia claramente o drama romântico do melodrama, fazendo uso destas duas expressões como se elas fossem sempre a mesma coisa: Capuzzo entende por drama romântico o ciclo de produções cujo tema é desenvolvido a partir de um par amoroso central que irá pontuar as várias peripécias e afirma que neste gênero as estratégias narrativas são facilmente identificáveis com o universo do melodrama. Entre essas características, Capuzzo salienta as reiterações temáticas, temporais e espaciais.

Entre as temáticas estão os erros de informação, a "lua-de-mel" no meio da narrativa, a gravidez inesperada, a separação entre pais e filhos, a experiência da morte, a utilização de cartas, os conflitos entre o par romântico e o meio social, o tratamento de exceção dado ao par romântico.

As temporais incluem o tratamento de urgência do amor recém-descoberto, o imediatismo na formação do casal, a abrupta reação externa ao par central, a súbita despedida de um dos amantes.

Nas espaciais temos a proposta de níveis diferenciados para os amantes e os demais personagens, através de primeiros planos com a utilização do fundo em contraponto, o claro e o escuro, o alto e o baixo, o interior e o exterior, geralmente sugerindo uma subjetividade e uma objetividade.

Dessa forma, são articuladas reiterações como a narrativa em dois blocos, permitindo uma circularidade ou um caráter cíclico, o uso de flashback para articular passado e presente, a narração em off, comentários musicais enfáticos, mutação do tempo e do espaço em simultaneidade, devido ao constante movimento da narrativa, criando uma instabilidade no par central.

Capuzzo salienta que o drama romântico contém em si uma certa urgência (o amor surge de maneira repentina, os amantes são apresentados logo no início do filme e têm pressa, a declaração de amor tem que ocorrer rapidamente, etc). Ele trabalha situações em seus extremos e, por isso, é frágil e sublime. As coincidências, muito presentes no drama romântico, são estratégias narrativas que sugerem ações divinas (como não lembrar aqui de Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser: "Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco de Assis".

Para terminarmos o passeio por esse maravilhoso livro de Capuzzo, vamos ver como ele analisa dois filmes que, segundo ele próprio, são emblemáticos do gênero descrito acima. São eles A Ponte de Waterloo (Warterloo Bridge¾ EUA, 1940, Mervyn LeRoy) e Titanic (EUA, 1997, James Cameron).

O primeiro conta a história de uma bailarina que se apaixona por um jovem capitão inglês, durante o início da Primeira Guerra Mundial, em Londres. Essa súbita paixão resulta numa tentativa de casamento que é truncada pela iminência da guerra e o imediato recrutamento do capitão Roy para a frente de batalha. A estrutura narrativa possui uma circularidade que é marcada pela repetição dos acontecimentos e que permite ordenar as articulações necessárias para que o tempo e o espaço possam simultaneamente contrapor o particular e o geral, através da subjetividade do casal e dos acontecimentos marcantes que os rodeiam de forma reiterada. A apresentação dos amantes acontece logo no início do filme, bem como o detalhamento dos possíveis elementos que permitirão o encontro mágico. No prólogo já estão apresentadas algumas informações que permitem ao espectador deduzir o destino final.

O segundo conta a história do naufrágio do transatlântico Titanic ocorrido em 1912, alternando fatos documentais com uma narrativa ficcional, envolvendo um jovem casal apaixonado e os impasses sociais que os separam. Rose e Jack, os protagonistas, são de níveis sociais opostos e ocupam diferentes níveis espaciais (ela na primeira classe, na parte mais alta do navio e ele na terceira, no porão). Começará entre os dois uma relação diferenciada, que leva o público à cumplicidade. A "lua-de-mel" no meio do filme parece apontar para um destino trágico.

Cameron trabalha o roteiro em dois níveis temporais, fazendo uso de flashback. No presente, um grupo pretende encontrar tesouros do Titanic, em especial uma jóia em formato de coração cuja existência eles conhecem por causa de um desenho de uma jovem usando-a. Quando esses fatos são transmitidos pela televisão, uma senhora idosa, que percebemos ser Rose, se reconhece no desenho e vai ao encontro da expedição em alto-mar. Trata-se da "ressurreição" de Rose. Tem início uma viagem na memória que alternará passado e presente. Rose dialogará imaginariamente com Jack. Por fim, a jóia será devolvida ao mar, numa metáfora da morte de Rose e da entrega de seu coração a Jack. Será usado o constante recurso de contrapor alto (o convés, o céu estrelado) e baixo (os porões, o fundo do mar), assim como a tendência de isolamento do par romântico.

O impacto visual e dramático do filme é incontestável. Nesse sentido, Capuzzo afirma que

aliado aos aspectos dramáticos, encontra-se na encenação de Cameron um esplendor visual até então inédito na história do cinema industrial. Os recursos digitais permitiram pela primeira vez que o naufrágio do Titanic se concretizasse, virtualmente, nas telas, rivalizando em impacto com a trama desenvolvida. O que poderia ser conflitante, harmonizou-se, inusitadamente. O grande espetáculo catastrófico torna-se contraponto dramático à fragilidade do jovem casal. (: 216)

Capuzzo termina afirmando que é possível perceber um grande ponto de contato entre a produção de Camerom e E o vento levou (Gone with the Wind, EUA,1939, de Victor Fleming): o diálogo entre a grandiosidade da encenação e a particularização dos conflitos íntimos de seus protagonistas. Ambos apontaram para uma nova visualidade para o cinema industrial, conquistando o público e gerando estrondosas bilheterias.

Com essa comparação, Capuzzo encerra o livro cometendo o único deslize desta obra tão interessante para a antropologia visual e para os amantes do cinema. Trata-se do final abrupto, que além de introduzir uma comparação não esperada1, também não reforça (como foi feito em cada um dos filmes anteriores) os elementos cruciais que caracterizam os dois últimos filmes como dramas românticos. É claro que a estrutura é perceptível ao leitor, mas se o autor declara Titanic como emblemático do gênero, talvez não fosse demais reforçar essa associação.

Em todo caso, Capuzzo deve ser elogiado pelo árduo e extenso trabalho analítico que tão habilmente teceu as tramas do drama romântico, desvendando as estratégias narrativas que nos fazem chorar "lágrimas de luz" e, novamente, e quiçá sempre, nos enredam em sua magia.

Notas

1 Ele diz que analisará A Ponte de Waterloo e Titanic, mas, logo em seguida, em vez de compará-los, deixa de lado o primeiro para introduzir em seu lugar E o vento levou.

Bibliografia

CANEVACCI, M. 1984 Antropologia do cinema, São Paulo, Brasiliense.

Revista de Antropologia

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