quinta-feira, 1 de abril de 2010

O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza


Queiroz, R. da S. & Otta, Ema. O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza, São Paulo, Senac, 2000, 181 pp.

Maria de Lourdes Beldi de Alcântara
Núcleo/Laboratório do Imaginário e Memória do Instituto de Psicologia - USP


Já pelo título do livro podemos parabenizar o organizador e seus autores, na maioria antropólogos, ademais de um sociólogo e uma psicóloga. Aqui, no Brasil, temos escassa produção antropológica relativa à questão do corpo, pois está ela sempre inserida em um debate maior sobre a diversidade cultural e seus modos de representação. Sendo assim, esse tema costuma ser abordado apenas em um capítulo ou subcapítulo de um trabalho antropológico ou etnográfico a respeito de uma determinada cultura.

A despeito do trabalho clássico de Marcel Mauss, As técnicas corporais, tal análise fica em geral perdida no meio das etnografias. A escolha deste tema é, pois, da maior importância, já que as práticas simbólicas corporais são fundadoras da ordem cósmica e social e a partir delas poderemos compreender as diferentes culturas.

Tomando a dicotomia natureza/cultura, onde se localiza o corpo e suas representações, se é ele, ao mesmo tempo, uma unidade biológica e uma construção social? É justamente neste cruzamento que os autores em pauta trabalham, oferecendo-nos importantes estudos teóricos e metodológicos. Mostram que é impossível separar estes dois universos, isto é, as representações culturais que se criam em torno da vivencia biológica. Neste intrincado domínio, apresentam eles uma questão importantíssima para as ciências humanas, já que, ao mesmo tempo em que o corpo é uma representação universal, ele identifica e apresenta a cultura. Desse ponto de vista, a estética corporal é um dado cultural que variará de acordo com cada concepção de mundo. A partir disso, os autores vão desenhar este intrigante e, por que não, estético livro sobre a questão do corpo, não um corpo qualquer, e sim o corpo do brasileiro e suas representações.

O primeiro capítulo analisa a concepção de beleza e como ela é construída numa intersecção entre o dado biológico e a representação cultural. Os seus autores, Renato da Silva Queiroz e Emma Otta, fazem aí uma leitura interdisciplinar, traçando um diálogo entre a antropologia e a etologia, cujo símbolo-chave é o corpo e as suas mais variadas concepções. Trata-se de um rico debate entre o inato e o adquirido que, como se sabe, caracteriza a nossa espécie Homo sapiens.

É a partir desta base teórica que os artigos serão desenvolvidos, demonstrando como, através da leitura sobre a estética corporal, o mosaico da cultura brasileira é construído, constatando-se, mais uma vez, a complexidade de nossa cultura. Por este prisma os artigos vão levantar as seguintes questões: poderíamos definir a cultura brasileira através dos vários olhares estéticos sobre o corpo? Se a resposta for positiva, como isso será analisado? É possível definir a estética brasileira como uma estética mestiça? É por meio dessas e de outras indagações que os autores traçam um interessante estudo sobre a construção do imaginário brasileiro relativo à estética do corpo.

Muito embora os textos apresentem vários olhares sobre a questão estética, a compreensão da construção simbólica será alcançada por meio de ambivalências: vertical e horizontal; áreas proibidas e não proibidas; exterior, interior; sagrado e profano; branco e preto; entre outras. Estes olhares irão variar de acordo com o lugar de quem atribui tais valores, ou seja, de acordo com uma visão popular ou da elite, literária e intelectual, fornecendo-nos uma visão estética polifônica de nossa cultura que, desde Gilberto Freire, é conhecida como "cadinho de raças". Dependendo do momento histórico, tudo isso vai ser concebido com uma conotação positiva ou negativa, como se pode avaliar mediante a leitura dos textos de Lilia Schwarcz e Teófilo de Queiroz Jr.

É ainda por meio dessa ordenação que as culturas se diferenciam e se identificam. Diante disso, o corpo configura-se como um mapa onde a identidade cultural se torna aparente, decifrável e ao mesmo tempo intrínseca (como nossos órgãos), mapa que precisa ser estudado, desvendado, para podermos melhor entender o significado simbólico de sua concepção de mundo. Nesse sentido o trabalho de Renate Vietler torna-se primoroso, apresentando-nos como o corpo é um paradigma privilegiado para a compreensão do universo simbólico Bororo.

Assim, parafraseando Marcel Mauss, o corpo, instrumento inato da espécie Homo sapiens, é transformado em corpo-representação, ou seja, um artefato cultural para se contrapor à fronteira que delimita aquilo que toda cultura chama de selvagem, promovendo assim a separação entre natureza e cultura, constructo filosófico que nos ajuda a esquecer que somos parte da espécie animal Homo sapiens.

Revista de Antropologia

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