quinta-feira, 1 de abril de 2010

Enfrentando preconceitos: um estudo da escola como estratégia de superação de desigualdades


Irene Maria Ferreira Barbosa. Enfrentando preconceitos: um estudo da escola como estratégia de superação de desigualdades. Campinas, Área de Publicações CMU/Unicamp,1997, 250pp.


Monika Dowbor da Silva
graduanda do Departamento de Ciências Socias/USP e bolsista de Iniciação Científica do CNPq.



O livro de Irene Maria Ferreira Barbosa, Enfrentando preconceitos, acompanha a trajetória de Antônio Cesarino Júnior, negro originário de família pobre que conseguiu contrariar a "trajetória modal" e tornou-se um grande advogado, especialista em Direito Social, um professor para quem a teoria só ganhava sentido desde que vinculada à realidade e aos homens trabalhadores. A leitura deste livro desvenda a vida de um homem que acreditava persistentemente que a sua passagem pelo mundo tinha algum sentido, ou melhor, podia acrescentar algum sentido a este mundo desvairado. Tal mensagem, embora secundária em relação ao propósito do livro, toca profundamente o leitor sensível, pois são cada vez mais raros aqueles que acreditam que um indivíduo possa contribuir para realizar alguma mudança na e para a sociedade em que vive. Trata-se de uma descrença legítima diante das aparições relâmpagos de "grandes personagens" - lançadas pela televisão, partidos políticos ou outros meios de comunicação - que caem rapidamente no esquecimento em razão da lei de obsolescência que atinge não somente as mercadorias capitalistas, como também os próprios seres humanos. Ao contrário destas figuras criadas artificialmente, Cesarino Júnior carregava com ele algo singular: o amor e a paixão pelo que fazia.

Isso soa tão trivial, diriam vocês... Na verdade, isto foi tornado trivial e banal, mas mesmo assim não deixa de conter uma poderosa força que concede à pessoa dotada de tais qualidades amplas possibilidades de enfrentar obstáculos (no caso aqui em pauta, o preconceito racial e o estigma da origem social), mantendo-se assim sempre em estado de dignidade.

Mas não é esta a linha principal do livro. O foco de análise situa-se na observação do percurso cujo protagonista portava um estigma social - a cor da pele, que, ao lado de sua origem humilde, dificultava enormemente uma mudança de status. Embora a obstinação do personagem e alguns elementos particulares de sua biografia tivessem permitido a sua ascensão e o seu sucesso, este resultado não leva a autora a nenhuma conclusão otimista. Mesmo a escola, bem observa a autora, contribui também para perpetuar o mecanismo da reprodução das desigualdades sociais, aqui focadas a partir do ponto de vista da discriminação racial. A história de vida de Cesarino Júnior é, pois, mais um testemunho desta realidade.

Apesar da clareza com que são estabelecidos os objetivos do trabalho, às vezes parece que a autora se concentra mais nos feitos do professor Cesarino Júnior, dando a impressão de ter-se esquecido da questão racial. Isto com certeza deve-se à maneira como o próprio Cesarino tratou a questão. O interessante é que, para ele, o problema do preconceito racial sempre ficou meio camuflado, oculto e não verbalizado, fato que a autora não deixa de sublinhar ao longo do livro. Por isso, ficamos talvez com uma visão restrita do que é o preconceito vivido internamente por um professor no meio acadêmico e político. Qual era a intensidade deste conflito em seu dia-a-dia? Até que ponto, num país onde se tem preconceito de ter preconceito, a atitude de um negro não tende a ser preconceituosa com respeito à condição de ser a própria vítima do preconceito? Ou, em outras palavras, em que medida a vítima do preconceito não consegue escapar a esta realidade na tentativa de não ter que enfrentá-la e sofrer as conseqüências de um conflito profundamente complexo? A título de resposta, podemos lembrar que na pesquisa elaborada pela Folha de S. Paulo, a grande maioria (64% dos negros e 84% dos pardos) negou de ter sido pessoalmente vítima de preconceito racial, mas não deixou de afirmar a existência de racismo em 89% de toda a população (pesquisada).

Apesar deste silêncio do professor, a autora segue, através de ricas fontes de informação - entrevista gravada com o protagonista, a autobiografia, entrevistas gravadas com alunos e colegas de Cesarino Júnior, notícias de jornal, etc. - as pistas das diversas manifestações de preconceito que atingiam o nosso personagem. Mais uma vez revela-se o aspecto velado do preconceito racial brasileiro: nunca às claras, nunca direto, ele penetra a vida da vítima, tomando como justificativa outros pretextos. Ou seja, é possível, para quem foge desta realidade, esquecer a sua existência, ou mesmo deixá-la apodrecer no fundo do coração, tomando uma coisa por outra, menos dolorosa? Talvez assim tivesse vivido o professor Cesarino.

O livro é também um interessante retrato histórico, chamando a nossa atenção sobretudo para o período das atividades políticas de Cesarino - à época da ditadura de Getúlio Vargas. Com uma sensação de "déjà vu", lemos com grande espanto sobre as eleições em que a desonestidade, o amadorismo de homens políticos e o oportunismo andavam à solta. Mais uma vez revela-se neste domínio a integridade de Cesarino, que, como homem apaixonado pelo que fazia e pelas idéias em que acreditava, não consegue enganar-se a si próprio, não suportando permanecer numa fachada como mero emblema quando o partido que ele ajudou a fundar transforma-se numa farsa. Encontramos assim neste livro não o retrato de uma personagem ideal, retocada, mas a trajetória de um homem de carne e osso... e de pele negra. Aliás, não exatamente um homem de pele negra, mas de um tom de pele não muito carregado. Diga-se de passagem que, segundo a autora, este traço de aparência lhe permitiu evitar certos obstáculos, o que parece comprovar o caráter de marca e não de origem - adotando-se aqui a dicotomia proposta por Oracy Nogueira - do preconceito racial brasileiro.

A questão racial no Brasil já mereceu uma vasta bibliografia. O estudo da trajetória de um negro com traços mestiços, entretanto, é uma excelente oportunidade para se ver de perto, nas raízes de uma longa vida bem vivida, as nuances do preconceito, a questão racial e o seu movimento histórico, o que é um grande mérito do trabalho em pauta. Nesta história de vida está presente aquilo que escapa a uma leitura de tipo direto e estatístico, revelando-se aqui os conteúdos que somente uma biografia construída com extrema sensibilidade poderia mesmo revelar.

Chegando ao final do livro, não resistimos à eterna pergunta, cuja resposta exigiria o gasto de inúmeras outras páginas e páginas de reflexão: por que somos preconceituosos? Por que o outro e o diferente despertam em nós atitudes irracionais, perversas e agressivas, obstruindo o caminho da ascensão desses outros ou simplesmente negando-lhes o direito ao reconhecimento?

Nota

1 Turra, Cleusa., Venturi, Gustavo. (Org.) Racismo Cordial. São Paulo. Ática. 1995.

Revista de Antropologia

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