quinta-feira, 1 de abril de 2010

Panará: A volta dos índios gigantes com ensaio fotografico e relato de Pedro Martinelli


Ricardo Arnt, Lúcio Flávio Pinto & Raimundo Pinto. Panará: A volta dos índios gigantes com ensaio fotografico e relato de Pedro Martinelli. Instituto Socioambiental, São Paulo, 1998, 166pp.

Elizabeth Ewart
doutoranda do Depto. de Antropologia London School of Economics


Sabe-se que os 500 anos de presença não-indígena nas Américas tem tido um profundo impacto demográfico sobre as sociedades indígenas do continente. Estatísticas e cálculos numéricos sobre estas populações no Brasil são, às vezes, os únicos traços que permanecem. Isto facilmente cria a noção do que os povos indígenas no Brasil estão desaparecendo, ignorando-se assim o fato do que, hoje em dia, o índice de natalidade nos grupos indígenas está crescendo e sua população aumentando.

Panará: a volta dos índios gigantes representa um trabalho muito bem-vindo e bem acabado, que mostra o outro lado dessa história de dizimação e desaparecimento indígena. Nessa história, nada do trauma sofrido por conta do ‘contato’ com a sociedade nacional vem sendo ignorado, portanto é uma história na qual os próprios Panará aparecem como sujeitos com voz e determinação.

O livro cobre os últimos trinta anos da história Panará e mostra claramente como eles conseguiram livrar-se do status de meras ‘vítimas do milagre’ para se tornarem criadores da própria história, uma história que pertence tanto aos Panará quanto aos povos indígenas no Brasil e, de fato, ao Brasil como um todo.

O texto, escrito por tres jornalistas e num estilo que lhes é próprio, dá uma descrição bastante generalizada de quem são os Panará, como eles vivem e também um relato muito detalhado dos acontecimentos entre os anos 1967 e 1975, o período entre a primeira tentativa de contatá-los até a remoção dos sobreviventes do grupo para o Parque Indígena do Xingú.

Os Panará se tornaram famosos nos primeiros anos da década 70. As notícias diziam que os índios que moravam na bacia do Rio Peixoto de Azevedo, no norte do Mato Grosso, eram muito brabos e de uma estatura gigantesca. Estes índios capturaram a imaginação do público brasileiro e estrangeiro e a expedição para contatá-los foi uma das mais bem documentadas na imprensa nacional e internacional aproveitando, sem dúvida, as novas possibilidades da telecomunicação.

O que estava em jogo não era apenas um grupo de índios atrapalhando o progresso nacional - eles moravam na área de construção da BR-163, Cuiabá-Santarem -, mas toda a questão da identidade nacional num país se desenvolvendo e que apenas estava começando a usufruir das imensas riquezas do interior. Qual seria o papel ou a posição dos índios neste Brasil moderno e mais affluente? O mistério e a aventura de sair em busca destes "selvagens" - que eles sejam nobres ou cruéis faltava ainda determinar - dominou a imaginação de uma nação. Esta imaginação foi sustentada em grande parte pelas reportagens e documentários da expedição, da qual participou Pedro Martinelli, então fotógrafo do O Globo.

Os irmãos Villas Bôas, que se tornaram lendários por mérito próprio, passaram anos tentando estabelecer um contato pacífico com os Kreen Akorore, nome pelo qual os Panará eram conhecidos na época. Meses e meses de espera, pendurando presentes na floresta; não é por acaso que estas expedições vem sendo chamadas de "frente de atração".

Finalmente, sob alta publicidade, o contato se estabeleceu e as primeiras imagens da "tribo da idade da pedra" circulavam pelo mundo.

Logo houve uma queda populacional imensa, causada por doenças importadas como sarampo e gripe, contraidas pela população antes do ‘primeiro contato’ com os brancos. O apoio das entidades oficiais era insuficiente e veio tarde demais. O resultado foi que no começo de 1975, os 79 sobreviventes Panará, de uma população estimada entre 400-600, foram transferidos para o Posto Diauarum no Parque Indígena do Xingú. Mas o sofrimento e a experiência traumática não parou com o deslocamento, ao contrário. Serão muitos anos ainda até se manifestarem os primeiros sinais de recuperação tanto no nível demográfico quanto no nível cultural.

Apesar do sucesso com qual os Panará se adaptaram às novas condições ecológicas e à situação da política interétnica no parque, eles nunca perderam a sensação de estar vivendo na terra alheia. Este sentimento permaneceu tão forte que, quando a possibilidade de voltar para a área tradicional deles se apresentou, foram eles os primeiros a segurá-la com uma convicção e uma força que nunca enfraqueceu, apesar dos grandes perigos e obstáculos burocráticos que eles tiveram de enfrentar.

Em 1997 os últimos Panará deixaram o Parque e se mudaram para a aldeia nova, que veio sendo construída na beira do Rio Iriri. A história dos Panará contada neste livro é uma história impressionante de declínio, quase extinção e recuperação extraordinária.

Boa parte do texto do livro ocupa-se com a expedição de contato com os "índios gigantes". Vale, porém, repensar um pouco o "mito" do "primeiro contato".

Os Panará são os sobreviventes de uma população muito maior, os chamados Cayapó do Sul, tidos como extintos no começo deste século. Segundo pesquisas históricas eles teriam migrado em direção noroeste, fugindo da frente colonizadora, durante os séculos XVII e XVIII até chegar na bacia do Peixoto de Azevedo. Isto significa que os antepassados dos Panará de hoje, teriam tido um ‘contato’ extensivo com não-índios, que se tornaria posteriormente uma relação de evitação

Foi isto o "primeiro contato"? Os seis anos entre os primeiros sobrevôos das aldeias Panará, a primeira vez que um jovem Panará apareceu na beira do rio, arco e flechas na mão para se mostrar à expedição, o primeiro abraço com Claudio Villas Bôas, qual destes momentos representa mesmo o "primeiro contato"? Não se esqueçam as repercussões do ‘primeiro contato’, grandes epidemias de gripe e sarampo, que já estavam devastando a vida nas aldeias, meses antes do "primeiro contato" sair na capa do O Globo no dia 10 de fevereiro de 1973.

Vale lembrar estes fatos porque torna-se mais claro que a história dos grupos indígenas não coloca-se simplesmente como se existissem ilhas isoladas e sem história, ocupadas por povos indígenas esperando a sua ‘descoberta’ seguida pela erradicação inevitável. O que este livro mostra é exatamente a determinação dos Panará naquilo que se transformará em história.

Mas não é apenas isso, a parte mais interessante e evocativa do texto é o capítulo em que Teseya, um dos homens mais velhos conta seu lado da história da chegada dos brancos.

"Agora acabaram com a nossa terra. Sonsênasan, onde eu cresci, acabou. A terra do meu sobrinho acabou. Acabou minha terra, e não foi eu que pedi eles entrarem lá. Eu entendo da terra. Por isso já peguei de volta o que sobrou". [Teseya :106]

Mais impressionante do que qualquer referência literária ou fonte documental, é a apresentação de uma longa lista de 176 nomes de pessoas Panará mortas por causa de doenças entre 1973 e 1975 no Peixoto de Azevedo.



As fotos

O núcleo do livro é formado por dois ensaios fotográficos acompanhados por um relato, ambos de Pedro Martinelli. Como jovem fotógrafo do O Globo ele acompanhou a expedição dos Villas Bôas na década de 70.

A primeira série de fotografias mostra o trabalho da ‘frente de atração’ no contexto da BR-163, que veio sendo construída e se aproximou dia a día da área onde os ‘índios gigantes’ estavam morando. O ensaio conclui com as primeiras imagens dos Panará após terem estabelecido contato com os Villas Bôas.

O primeiro acampamento da expedição foi feito na beira do Peixoto de Azevedo; só a chegada até lá levou oito meses. Muitas fotos testemunham o trabalho duro de abrir pista de pouso e construir as casas do acampamento com a ajuda apenas de machados e outros utensílios de uso manual. O progresso veio lentamente para este grupo de homens da expedição, a maioria deles índios do Xingú, que trabalhavam nesta floresta desconhecida com o objetivo de contatar um grupo de índios sobre os quais pouco era sabido e além disso se dizia que eram gigantes.

Um segundo acampamento foi construido rio abaixo. De novo passaram meses em que foram feitas canoas para transporte, construiram-se casas e abriu-se a pista de pouso.

Essas fotos, que são sobretudo documentos jornalísticos de uma época particular da história do Brasil Central, são entremeadas de belas imagens da natureza intata que era o Rio Peixoto de Azevedo naquele tempo. A mesma região aparecerá no segundo ensaio, uns trinta anos depois, uma paisagem lunar de destruição e poluição causada pelo garimpo que inundou a área seguindo a construção da estrada. Isto também se tornou história.

A segunda parte do primeiro ensaio trata da busca pelos Panará. Contém umas imagens aéreas fantásticas dos vôos sobre as aldeias e roças, as quais são notáveis pela forma e construção geométrica assim como pela limpeza completa da vegetação rasteira.

Uma foto de duas páginas, altamente ampliada, captura a imaginação do leitor. Nem tanto pela informação visual contida na própria fotografia - são dois homens, arcos estendidos atirando no avião sobrevôando os Panará com flechas - mas pela mensagem transmitida. A ampliação deixa a imagem obscura, embora as intenções permaneçam claras. Trata-se de um fotógrafo mostrando uma tribo primitiva e isolada, cujos meios tecnológicos são precários, meras flechas lançadas contra um avião, para enfrentar o progresso que um dia vai tomar conta de qualquer maneira deles também.

Meses após os sobrevôos, finalmente o contato no chão.

A fotografia do jovem guerreiro Panará, mostrando-se na beira do rio, arco e flechas na mão, olhando diretamente para o observador estreiou na capa do OGlobo. Criou-se mais um pedaço de história.

A última parte deste ensaio fotográfico diz muito respeito à construção da imagem indígena na decada de 70.

A escolha dos sujeitos revela um sentimento de que tratava-se de uma cultura que ia se perder inexorávelmente perante o contato com a sociedade não-índia. Afinal, esta foi uma das motivações que resultou na fundação do Parque Indígena do Xingú pelos irmãos Villas Bôas, concebido como um espaço onde os índios poderíam viver de um modo "tradicional" sem ao mesmo tempo atrapalhar a abertura do interior do Brasil ao progresso nacional.

Assim a expedição para contatar os Panará era ligada a duas preocupações. Primeiro a certeza de que a construção da estrada seria uma ameaça séria ao modo de vida tradicional dos Panará e segundo o sentimento de que o próprio contato, embora tido como fundamental, iria de qualquer maneira mudar um estilo de vida até então visto como inalterado.

Estas noções são refletidas nas fotografias dos Panará recém-chegados ao posto de atração. Tres jovens comendo arroz da panela com as mãos, um deles sentado na mesa. Na página oposta, uma mesa comprida de índios Xavante que faziam parte da equipe da FUNAI, então chefiada por Apoena Meireles, comendo arroz com feijão e carne, usando pratos e talheres, bebendo em copos.

Numa outra imagen um jovem Panará aprende a atirar com um revólver, uma outra mostra uns Panará investigando um avião de perto. As fotos precisam de poucas palavras, falando ao observador através das próprias imagens, tanto como documentos históricos quanto como ‘dados’ de interesse antropológico.

Para quem se interessa pela antropologia visual vale a pena refletir mais sobre a construção de imagens e as mensagens nelas transmitidas.

Vinte e cinco anos depois, Pedro Martinelli voltou para os Panará, que estavam ainda morando no Parque do Xingú, mas já na iminência de voltar para o Rio Iriri.O segundo ensaio fotográfico documenta essa volta para a terra de ocupação tradicional dos Panará. Vinte e cinco anos é muito tempo e muito mudou, tanto na vida do fotográfo, quanto nas vidas dos seus sujeitos. Um jovem foto-repórter tornou-se fotógrafo reconhecido, assim as imagens desta segunda parte são esteticamente muito melhor acabadas e não apenas jornalísticas.

No entanto, a preocupação com a mudança permanece como foco do trabalho. Remos de canoa e armas juntaram-se aos arcos e flechas e às bordunas, o transmissor de rádio tem seu lugar no dia-dia da aldeia assim como o toca-fita. Antes, os Panará flechavam aviões, depois os olhavam com curiosidade, agora os vemos sentados tranquilamente nele, prontos para voar para a aldeia nova. Mudou também o Peixoto de Azevedo. Lá onde uma vez nadava uma anta atravessando o rio, agora temos os tubos de alta-pressão dos garimpeiros espalhados pela lama.Um homem Panará fica em pé na ponte que atravessa o Peixoto de Azevedo, vestido com a camisa do time de futebol do Brasil, olha pela paisagem desmatada. Foi isto que o Brasil fez para os Panará?

As fotos dos dois ensaios e o texto tratam da história dos Panará, desde antes dos primeiros encontros com a expedição dos irmãos Villas Bôas até o momento de deixar o parque para construir uma nova aldeia a beira do Iriri e retomar o que sobrou da terra tradicional deles. Obviamente, as fotografias são os produtos do olhar de uma pessoa em particular e num certo momento no tempo. Cabe ao observador lembrar-se disso e ler as imagens tendo isto em mente.

Sendo assim, os retratos são interessante em vários contextos.

Primeiro como documentos de uma época, uma série de acontecimentos que capturavam a imaginação pública na década de 70. Assim este livro é uma fonte rica para quem se interessa pela história recente do Brasil e particularmente pela história do Brasil Central. Segundo, os dois ensaios têm muito a revelar sobre a questão da construção da imagem dos grupos indígenas, tanto na década de 70 quanto hoje. Também abre uma perspectiva interessante para a comparação da escolha de sujeitos e estilo nos dois ensaios. Durante os vinte e cinco anos entre os dois trabalhos, mudaram não apenas o fotógrafo e seus sujeitos mas também a própria imagem que está sendo capturada na máquina.

O texto vem acompanhado de uma lista de referências e fontes documentais que é detalhadíssima e muito bem pesquisada. Representará uma ótima fonte de pesquisa para quem se interessa pelo Brasil Central.

Este livro, lançado pelo Insitituto Socioambiental documenta uma história de successo, a tomada e apropriação da história que durante muito tempo foi vista como fora do alcance dos grupos indígenas. Porém a história não acaba aqui, e é bom não esquecer que a reocupação da terra, a demarcação das áreas indígenas nada mais são do que passos, embora grandes, na busca destes grupos de um modo de vida que seja autônomo e viável no contexto do Brasil contemporâneo.

Revista de Antropologia

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