Faulhaber, Priscila. O lago dos espelhos, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, Coleção Eduardo Galvão, 1998, 215 pp.
Betty Midlin
Doutora em Antropologia pela PUC-SP
O lago dos espelhos: mergulhando ao encontro dos índios
O que é o povo brasileiro, esse mosaico ou combinação alquímica de tantas origens, línguas, proveniências, múltiplas histórias conjuntas, lutas e feitos? Quantas vidas foram suprimidas, quantos massacres físicos e quantas formas de pensar, arrasados até mesmo na memória do país? E o que, ou quem sobrevive com teimosia, sob quais novas substâncias e aparências, quais os caudais arcaicos e resistentes, retransformados?
A essa indagação, feita por tantos brasileiros por exemplo, por Darcy Ribeiro, que se estende sobre o tema com a ousadia habitual em seus livros (em especial em O povo brasileiro e em seus vídeos educacionais) , Priscila Faulhaber dá uma resposta muito original e profunda.
Seu livro é indutivo e dedutivo. Parte de uma observação precisa e copiosa de dados concretos, em uma região em particular, a de Tefé e do Médio Solimões, acompanhando o perfil de vários povos indígenas em ebulição, ressurgimento, mudança, como os Miranhas, Cocamas, Cambebas, Mayorunas. Mesmo quem nunca esteve nessas distantes plagas da Amazônia consegue visualizar com ela a cidade à beira da água, as embarcações, o comércio, os ares e notícias, vindos pela correnteza dos rios, de vários países (Colômbia, Peru, Brasil, Venezuela, América Latina), o burburinho de agentes diversos, missionários, mineradores, pesquisadores, estudiosos, pescadores, comerciantes, gente pobre e rica, luso-brasileira, negra, cabocla e índia, de todas as cores, forjando uma identidade única de ribeirinhos urbanos ou habitantes das brenhas.
Ao descrever o concreto, em que se percebe que ela viveu com intensidade, a autora não perde de vista amplas questões teóricas sempre assustadoras: o que é uma nação, como se constrói a idéia e a política do nacionalismo, que ao tomar terras e destruir modos de vida de habitantes antigos se torna meta no país.
Analisando muitas obras clássicas, por exemplo de historiadores como Hobsbawn ou mesmo ficciconistas como Mário de Andrade, investiga conceitos sobre o que é a fronteira, o conflito entre nações, entre nações e comunidades, povos, o "outro". Surge a dúvida: o que é esse objetivo nacional tão pouco contestado de "civilizar", "desenvolver", incorporar ao país e ao mercado capitalista o que é considerado terra de ninguém, de floresta e escura ignorância?
Essa perspectiva vai lhe permitir uma análise crítica do que é, com relação aos povos indígenas, o papel do governo e o dos militares na fronteira, por exemplo com o projeto Calha Norte, ou com a criação da figura da colônia indígena, na verdade uma política que restringe os direitos indígenas à terra.
Interessante no livro é como a autora vai seguindo os contornos da identidade indígena de vários povos, identidade moldada por múltiplas influências, pela história regional e nacional, pela luta pela terra, pelo movimento indígena, pela contraposição ou adesão à influência religiosa ou a movimentos sociais e correntes políticas.
A análise do movimento indígena, logo no primeiro capítulo do livro, é muito bem feita, equilibrada mas não desapaixonada. Tenho a impressão de que irá se tornar leitura obrigatória nos cursos de antropologia. A organização indígena no país é relativamente recente, do final da ditadura e dos anos 80, mas muito da sua história tende a ser esquecida, mesmo por quem acompanhou de perto os acontecimentos. A formação da UNI e o I Encontro dos Povos Indígenas do Brasil em 1982, os dramas de representatividade de tantos povos e comunidades, iniciando uma forma democrática de fazer política, merecem ser lembrados. Não há muita literatura sobre esse período, e menos ainda sobre o nascimento e crescimento de uma organização regional como a UNI-Tefé. Vamos seguindo como se articulam, surgindo com nova força, lutando pela terra e por seus direitos, obtendo ou não vitórias na demarcação de suas áreas, povos e etnias diversas, como os Miranhas, Cambebas, Mayorunas, Cocamas, Ticunas e outros do Médio Solimões, com fluxo e refluxo ao longo do tempo da importância de cada um deles. Vemos como se organizam em entidades maiores que a regional, como a COPIAR (Coordenação de Professores Indígenas da Amazônia), CAPOIB (Comissão de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil), AMINS (Associação da Mulheres Indígenas do Médio Solimões), COIAB (Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), etc. É lembrada a influência da Igreja, do Movimento de Educação de Base, do CIMI, imaginamos as dificuldades dos conflitos entre católicos e crentes. Avaliamos os embates com a FUNAI, com o governo, com os militares, a imensa contradição quotidiana em que se situam os povos indígenas, sujeitos a tantos domínios variados, à exploração econômica, à vida urbana, à relação com a economia de mercado.
A violência e os massacres sofridos pelos índios são tão terríveis, inacreditáveis, que é surpreendente que não haja mais documentação e divulgação na sociedade brasileira sobre tudo o que passaram. Também não é possível compreender a afirmação étnica desses povos, e os seus problemas de identidade, sem esse doloroso pano de fundo. O capítulo do livro de Priscila sobre as fontes históricas traz à tona o horror do que se passou nessa região. Eis a expansão portuguesa e espanhola, em guerra pelo domínio de terras que não pertenciam a nenhum dos dois estados, mas que jamais eram vistas como legitimamente pertencentes aos povos que as habitavam desde tempos imemoriais. São documentos históricos, relatos de cronistas e viajantes descrevendo terríveis massacres, a escravidão indígena, a exploração econômica. Destaca-se um dossiê, o de Casement e Hardenburg, bastante conhecido fora do Brasil, mas menos difundido aqui, sobre a sujeição dos índios no início do século XX, na exploração da borracha. A desumanidade da nossa história peruana e brasileira traçada neste capítulo evoca a de um filme recente de Lúcia Murat, Brava gente brasileira, excelente ficção histórica sobre os Kadiwéu no século XVIII.
A cidade de Tefé tem para os antropólogos uma aura especial, que felizmente é explorada de forma pouco comum no livro: Tefé é a cidade de dois etnólogos importantes que escreveram aproximadamente na mesma época (no início do século XX). O primeiro é Ermano Stradelli, um conde geógrafo, autor da célebre Lenda do Jurupari, um clássico da mitologia indígena brasileira. O segundo é Constantino Tastevin que, apesar de missionário, escreveu trabalhos preciosos sobre os índios da região e teve um envolvimento com seu drama e com a solução de seus problemas. Há ainda índios que se lembram dele.
O Lago dos Espelhos é um lago mítico, domínio de um povo indígena, onde uma moça castigada por ter perdido a virgindade devia passar dias e noites polindo com uma pedra pesada outras muitas pedras do lago, fazendo-as cintilar como espelhos. A pedra maior devia ser atirada ao lago na festa da moça nova, a festa de uma menina recém-menstruada, fazendo o lago brilhar como um diamante com o reflexo da lua.
Esta é a metáfora escolhida para o livro e seu título, baseada num relato de um velho Miranha publicado por um autor da região, Cabriolé de Souza. É assim, de fato, que Priscila Faulhaber faz brilharem os tesouros indígenas, submersos e fantasmagóricos, mas que conservam a propriedade mágica de ressurgir e se tornar personagens ativos no Brasil atual, marcando a existência de povos indígenas e de perfis de identidade étnica, exibindo até mesmo uma face de mobilização política e afirmação social.
É no capítulo final sobre o imaginário regional que a autora mais se abandona ao encantamento com o pensamento outro que está investigando, fica mais livre de um certo estilo acadêmico e analítico que percorre boa parte do livro, enevoando um pouco a vivacidade do quadro desconhecido que ela descreve de maneira tão única. É aqui que aparecem o Navio Encantado, a Cobra Grande, a Curupira, o Mapinguari, o mítico Arco-Íris, gente transformada em felinos, os "mistérios do fundo", a pajelança, os assentamentos, comunidades ou cidades mágicas no fundo das águas que são o marco geográfico da propriedade territorial concreta de povos ou comunidades dos dias de hoje.
São uma maravilha os relatos documentados pela autora, boa parte deles da AI Barreira da Missão. Em si valeriam o livro, são uma obra a continuar. Vê-se como as narrativas míticas refletem ou correspondem de maneiras misteriosas à estrutura social, aos dramas de vida da população. A violência das relações sociais, a busca do ouro e da riqueza, a luta pela terra e pela identidade étnica são traços marcantes. Essas histórias sobre povoados que desaparecem no fundo das águas com toda sua gente, sobre visagens, sobre as viagens ao além, sobre o saber mágico dos livros ou de velhos experientes não são mitologias de povos específicos, mas de toda uma região, e são encontradas também em outras partes do Brasil no Nordeste, por exemplo, talvez por causa de movimentos migratórios ou em virtude da influência européia. O sincretismo e a multiplicidade de raízes culturais, sua permanente transformação, são uma riqueza brasileira a ser conhecida e investigada. O lago dos espelhos, com densa informação e análise sobre o imaginário e sua relação com a sociedade, a partir da aguda observação de uma região e de vários povos, torna-se uma leitura obrigatória para quem quiser material para conhecer o Brasil a fundo.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
Betty Midlin
Doutora em Antropologia pela PUC-SP
O lago dos espelhos: mergulhando ao encontro dos índios
O que é o povo brasileiro, esse mosaico ou combinação alquímica de tantas origens, línguas, proveniências, múltiplas histórias conjuntas, lutas e feitos? Quantas vidas foram suprimidas, quantos massacres físicos e quantas formas de pensar, arrasados até mesmo na memória do país? E o que, ou quem sobrevive com teimosia, sob quais novas substâncias e aparências, quais os caudais arcaicos e resistentes, retransformados?
A essa indagação, feita por tantos brasileiros por exemplo, por Darcy Ribeiro, que se estende sobre o tema com a ousadia habitual em seus livros (em especial em O povo brasileiro e em seus vídeos educacionais) , Priscila Faulhaber dá uma resposta muito original e profunda.
Seu livro é indutivo e dedutivo. Parte de uma observação precisa e copiosa de dados concretos, em uma região em particular, a de Tefé e do Médio Solimões, acompanhando o perfil de vários povos indígenas em ebulição, ressurgimento, mudança, como os Miranhas, Cocamas, Cambebas, Mayorunas. Mesmo quem nunca esteve nessas distantes plagas da Amazônia consegue visualizar com ela a cidade à beira da água, as embarcações, o comércio, os ares e notícias, vindos pela correnteza dos rios, de vários países (Colômbia, Peru, Brasil, Venezuela, América Latina), o burburinho de agentes diversos, missionários, mineradores, pesquisadores, estudiosos, pescadores, comerciantes, gente pobre e rica, luso-brasileira, negra, cabocla e índia, de todas as cores, forjando uma identidade única de ribeirinhos urbanos ou habitantes das brenhas.
Ao descrever o concreto, em que se percebe que ela viveu com intensidade, a autora não perde de vista amplas questões teóricas sempre assustadoras: o que é uma nação, como se constrói a idéia e a política do nacionalismo, que ao tomar terras e destruir modos de vida de habitantes antigos se torna meta no país.
Analisando muitas obras clássicas, por exemplo de historiadores como Hobsbawn ou mesmo ficciconistas como Mário de Andrade, investiga conceitos sobre o que é a fronteira, o conflito entre nações, entre nações e comunidades, povos, o "outro". Surge a dúvida: o que é esse objetivo nacional tão pouco contestado de "civilizar", "desenvolver", incorporar ao país e ao mercado capitalista o que é considerado terra de ninguém, de floresta e escura ignorância?
Essa perspectiva vai lhe permitir uma análise crítica do que é, com relação aos povos indígenas, o papel do governo e o dos militares na fronteira, por exemplo com o projeto Calha Norte, ou com a criação da figura da colônia indígena, na verdade uma política que restringe os direitos indígenas à terra.
Interessante no livro é como a autora vai seguindo os contornos da identidade indígena de vários povos, identidade moldada por múltiplas influências, pela história regional e nacional, pela luta pela terra, pelo movimento indígena, pela contraposição ou adesão à influência religiosa ou a movimentos sociais e correntes políticas.
A análise do movimento indígena, logo no primeiro capítulo do livro, é muito bem feita, equilibrada mas não desapaixonada. Tenho a impressão de que irá se tornar leitura obrigatória nos cursos de antropologia. A organização indígena no país é relativamente recente, do final da ditadura e dos anos 80, mas muito da sua história tende a ser esquecida, mesmo por quem acompanhou de perto os acontecimentos. A formação da UNI e o I Encontro dos Povos Indígenas do Brasil em 1982, os dramas de representatividade de tantos povos e comunidades, iniciando uma forma democrática de fazer política, merecem ser lembrados. Não há muita literatura sobre esse período, e menos ainda sobre o nascimento e crescimento de uma organização regional como a UNI-Tefé. Vamos seguindo como se articulam, surgindo com nova força, lutando pela terra e por seus direitos, obtendo ou não vitórias na demarcação de suas áreas, povos e etnias diversas, como os Miranhas, Cambebas, Mayorunas, Cocamas, Ticunas e outros do Médio Solimões, com fluxo e refluxo ao longo do tempo da importância de cada um deles. Vemos como se organizam em entidades maiores que a regional, como a COPIAR (Coordenação de Professores Indígenas da Amazônia), CAPOIB (Comissão de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil), AMINS (Associação da Mulheres Indígenas do Médio Solimões), COIAB (Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), etc. É lembrada a influência da Igreja, do Movimento de Educação de Base, do CIMI, imaginamos as dificuldades dos conflitos entre católicos e crentes. Avaliamos os embates com a FUNAI, com o governo, com os militares, a imensa contradição quotidiana em que se situam os povos indígenas, sujeitos a tantos domínios variados, à exploração econômica, à vida urbana, à relação com a economia de mercado.
A violência e os massacres sofridos pelos índios são tão terríveis, inacreditáveis, que é surpreendente que não haja mais documentação e divulgação na sociedade brasileira sobre tudo o que passaram. Também não é possível compreender a afirmação étnica desses povos, e os seus problemas de identidade, sem esse doloroso pano de fundo. O capítulo do livro de Priscila sobre as fontes históricas traz à tona o horror do que se passou nessa região. Eis a expansão portuguesa e espanhola, em guerra pelo domínio de terras que não pertenciam a nenhum dos dois estados, mas que jamais eram vistas como legitimamente pertencentes aos povos que as habitavam desde tempos imemoriais. São documentos históricos, relatos de cronistas e viajantes descrevendo terríveis massacres, a escravidão indígena, a exploração econômica. Destaca-se um dossiê, o de Casement e Hardenburg, bastante conhecido fora do Brasil, mas menos difundido aqui, sobre a sujeição dos índios no início do século XX, na exploração da borracha. A desumanidade da nossa história peruana e brasileira traçada neste capítulo evoca a de um filme recente de Lúcia Murat, Brava gente brasileira, excelente ficção histórica sobre os Kadiwéu no século XVIII.
A cidade de Tefé tem para os antropólogos uma aura especial, que felizmente é explorada de forma pouco comum no livro: Tefé é a cidade de dois etnólogos importantes que escreveram aproximadamente na mesma época (no início do século XX). O primeiro é Ermano Stradelli, um conde geógrafo, autor da célebre Lenda do Jurupari, um clássico da mitologia indígena brasileira. O segundo é Constantino Tastevin que, apesar de missionário, escreveu trabalhos preciosos sobre os índios da região e teve um envolvimento com seu drama e com a solução de seus problemas. Há ainda índios que se lembram dele.
O Lago dos Espelhos é um lago mítico, domínio de um povo indígena, onde uma moça castigada por ter perdido a virgindade devia passar dias e noites polindo com uma pedra pesada outras muitas pedras do lago, fazendo-as cintilar como espelhos. A pedra maior devia ser atirada ao lago na festa da moça nova, a festa de uma menina recém-menstruada, fazendo o lago brilhar como um diamante com o reflexo da lua.
Esta é a metáfora escolhida para o livro e seu título, baseada num relato de um velho Miranha publicado por um autor da região, Cabriolé de Souza. É assim, de fato, que Priscila Faulhaber faz brilharem os tesouros indígenas, submersos e fantasmagóricos, mas que conservam a propriedade mágica de ressurgir e se tornar personagens ativos no Brasil atual, marcando a existência de povos indígenas e de perfis de identidade étnica, exibindo até mesmo uma face de mobilização política e afirmação social.
É no capítulo final sobre o imaginário regional que a autora mais se abandona ao encantamento com o pensamento outro que está investigando, fica mais livre de um certo estilo acadêmico e analítico que percorre boa parte do livro, enevoando um pouco a vivacidade do quadro desconhecido que ela descreve de maneira tão única. É aqui que aparecem o Navio Encantado, a Cobra Grande, a Curupira, o Mapinguari, o mítico Arco-Íris, gente transformada em felinos, os "mistérios do fundo", a pajelança, os assentamentos, comunidades ou cidades mágicas no fundo das águas que são o marco geográfico da propriedade territorial concreta de povos ou comunidades dos dias de hoje.
São uma maravilha os relatos documentados pela autora, boa parte deles da AI Barreira da Missão. Em si valeriam o livro, são uma obra a continuar. Vê-se como as narrativas míticas refletem ou correspondem de maneiras misteriosas à estrutura social, aos dramas de vida da população. A violência das relações sociais, a busca do ouro e da riqueza, a luta pela terra e pela identidade étnica são traços marcantes. Essas histórias sobre povoados que desaparecem no fundo das águas com toda sua gente, sobre visagens, sobre as viagens ao além, sobre o saber mágico dos livros ou de velhos experientes não são mitologias de povos específicos, mas de toda uma região, e são encontradas também em outras partes do Brasil no Nordeste, por exemplo, talvez por causa de movimentos migratórios ou em virtude da influência européia. O sincretismo e a multiplicidade de raízes culturais, sua permanente transformação, são uma riqueza brasileira a ser conhecida e investigada. O lago dos espelhos, com densa informação e análise sobre o imaginário e sua relação com a sociedade, a partir da aguda observação de uma região e de vários povos, torna-se uma leitura obrigatória para quem quiser material para conhecer o Brasil a fundo.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
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