Geertz, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, 248 pp.
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Professora do Departamento de Antropologia - USP
Mercadores do espanto: a prática antropológica na visão travessa de C. Geertz
Sou da cabeça aos pés um etnógrafo que escreve sobre etnografia.
Para Geertz o trabalho antropológico sempre foi tarefa de "corpo a corpo" - uma grande e complexa experiência de campo ¾, mas nem por isso menos severa. Revelar as singularidades de outros povos, examinar o alcance e a estrutura da experiência humana, aí estavam dispostos os maiores trunfos dessa antropologia interpretativa, hermenêutica para alguns, simbólica ou criativa para outros, fundada nos anos 60 nos Estados Unidos. Ficavam guardados nos pequenos detalhes da vida vivida, na idéia de que a cultura é microscópica, mas também na capacidade descritiva e de interpretação, os trunfos desse novo movimento, que surgia sem querer e evitava a rubrica de escola ou as regras e modelos preestabelecidos.
O novo grupo se impôs na mesma velocidade em que as obras de Geertz ¾ uma espécie de líder não nomeado ¾ foram sendo editadas. Em A interpretação das culturas, e por meio de uma série de ensaios que iam da religião a um pequeno ritual de briga de galos em Bali, o antropólogo inaugurava um estilo individual e a prática benjaminiana de produzir insights, no lugar da grande teoria arrumada. Mais uma vez a religião, como uma prática que ensina a sofrer e menos a consolar, aparecia como tema central em The religion of Java. Em Negara o etnógrafo se vestia de historiador e estudava o ritual em uma sociedade monárquica, na qual os limites entre realidade e representação restavam pouco estabelecidos. Foi com a publicação de Local knowledge que Geertz sinalizou para a possibilidade de entender os antropólogos tal qual uma aldeia, sujeita a padrões, regras e costumes originais. Provocou a todos quando editou Works and lives, indicando como, no ambiente intelectual, não há unanimidade possível.
Como se pode notar, com base nessa amostragem que não se pretende exaustiva, Geertz não tem medo do debate e é esse modo tão próprio de ser e de fazer antropologia que aparece, bem caracterizado, nas páginas dessa última coletânea de ensaios. Nela, o antropólogo norte-americano, com sua verve conhecida, retoma grandes temas da disciplina, faz um balanço da situação atual, repensa autores e escolas, isso tudo sem deixar de desfazer de seu próprio trajeto pessoal.
Talvez pela primeira vez Geertz se permita comentar sobre sua biografia pessoal, mas mesmo assim o faz apagando pistas ou evitando canonizar um perfil que ¾ como qualquer perfil ¾ foi construído a partir de vários acidentes e improvisos: a passagem pela marinha, os estudos em Ohio, o estágio breve como copy-boy no enlouquecido New York Post, a opção um pouco tímida e a princípio desenformada pela antropologia, a primeira formação em Cambridge, um ano em Berkeley e o tão aguardado trabalho de campo ¾ Java, Bali, Sumatra e Marrocos. O final dessa longa experiência não é exatamente um ponto final; os trinta anos no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, levaram à criação conjunta de um grupo que é hoje referência para todo aquele que se imagine interessado em humanidades.
Mas a reflexão não é de escorpião: não se volta exclusivamente para uma glorificação pessoal e ao, contrário, se abre para temas que desfilam pelo livro como um todo. Depois desse capítulo mais biográfico, os demais introduzem, com a maestria de quem sabe orquestrar vozes dissonantes, reflexões atuais sobre a disciplina. Nos momentos seguintes, Geertz debate questões morais que envolvem o trabalho de campo e impasses teóricos surgidos em tempos globalizados. A falta de pesquisas isoladas, a situação dos ex-países coloniais, a geração de assistentes desempregados etc. tudo leva a reavaliar e a repensar não só a Antropologia, como a trajetória que, no limite, é de cada um.
Engana-se, porém, aquele que pensa que Geertz apenas desconstrói idéias e conceitos alheios. Ao contrário, várias bandeiras são levantadas, de maneira mais ou menos direta. Em primeiro lugar, é fácil encontrar uma defesa veemente da etnografia e de uma abordagem cultural. Por sinal, Geertz é o primeiro a buscar por uma dimensão menos vasta para esse conceito que, ao invés de dar conta de tudo, aparece definido a partir da noção de "consenso": consenso entre outros povos, como entre nós. Há ainda uma retomada da discussão sobre o estatuto da dimensão simbólica no pensamento social e, mais uma vez, a declaração de que o "significado se dá sempre em contexto" e não é, portanto, um código a ser decifrado de maneira fria e distante. Aí está implícita a crítica, que muitas vezes aparece de modo direto, ao modelo estruturalista de Claude Lévi-Strauss, que nunca escondeu sua opção pela busca de estruturas distantes da empiria mais imediata. Nesse duelo de gigantes, não há vencedor definido e por isso mesmo sobra a reflexão, que antes impulsiona para a convivência crítica, do que leva à opção por uma teoria que exclui as demais.
Clifford Geertz não é, porém, um representante máximo dos modelos que fazem da realidade um efeito relativo. Na verdade, o antropólogo parece se opor a tudo e a todos quando defende um "anti-anti-relativismo", ou melhor, nos momentos em que questiona o pavor atual com relação ao relativismo cultural. Com efeito, a ironia de Geertz se destina justamente às saídas pasteurizadas, que pretendem encontrar semelhanças, realidades estáveis ou uma natureza quase essencial ao homem. Para essa nova postura intelectual, nosso autor guarda uma nova designação ¾ "provincialismo cultural" ¾ e acrescenta que esse não seria mesmo o melhor dos partidos: "examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo que consiste a antropologia".
É dessa maneira, e usando um vocabulário inesperado, que o antropólogo lida com controvérsias morais e epistemológicas do momento, introduzindo debates dentro e fora da disciplina. Por fim, mesmo dizendo que não faz, o livro é repassado pela teoria. Temas espinhosos como identidade, nação, Estado, povo mostram como a etnografia não vem para "pacificar", mas é antes um mote para a confusão: "manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e soltando rojões". O antropólogo é "um mercador do espanto", diz Geertz, revelando uma postura distinta de inserção na disciplina. Não é preciso concordar com Geertz; não há como deixar, no entanto, de se entusiasmar com um pensador que continua duvidando dos seus achados.
Mais do que um amontoado de conferências e de ensaios desconexos, esse livro é, portanto, um testemunho de um intelectual vivo e atuante, que faz de suas idéias instrumentos de reflexão (e de provocação), que evita o comodismo das personalidades consagradas e que, sobretudo, sabe rir de si próprio. Pena que a editora ¾ que foi tão cuidadosa na tradução e realizou o mais difícil: deu vazão à maneira original do autor redigir ¾ tenha optado por alterar o título, introduzindo uma versão mais comportada e que combina pouco com a "boa modéstia" de Geertz. Ao trocar o título original ¾ Available light: Anthropological reflections on Philosophical Topics ¾ por Nova luz sobre a antropologia, perdemos na sutileza, assim como fica-se um pouco distante desse estilo singular de fazer teoria. Afinal, Geertz sempre negou estar criando modelos, assim como reagiu às homenagens que essencializavam sua antropologia interpretativa.
Nada como terminar com dois exemplos, retirados do próprio livro, e que revelam essa maneira especial de reagir ao modelo fácil. Esses são detalhes aleatórios, mas próprios dessa "antropologia do sensível", marca de um etnógrafo em primeira mão. Em primeiro lugar, ao invés do "burocrático momento do agradecimento", quando os autores reservam algumas linhas, mais ou menos emocionadas, para dizer o quanto são reconhecidos aos esforços alheios, Geertz optou por relacionar os nomes "em ordem de distância, no corredor", em relação ao seu gabinete; prática de quem sabe (e escreve) que os antropólogos podem ser objeto de estudo, assim como seus nativos. Para terminar, uma anedota atribuída a Samuel Becket, mas que bem poderia ter sido proferida pelo etnógrafo em questão: contam que Becket caminhava com um amigo pelo gramado do Trinity College, em Dublin, numa ensolarada manhã de abril, quando o amigo disse: "Que belo dia, esplêndido, hein"? Beckett prontamente concordou: "De fato, esplêndido, magnífico". "Num dia como esse", prosseguiu o amigo, "a gente se sente feliz por ter nascido." Ao que Beckett retrucou: "Bem, eu não iria tão longe".
Geertz foi muito longe, apesar de continuar negando seu próprio legado.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Professora do Departamento de Antropologia - USP
Mercadores do espanto: a prática antropológica na visão travessa de C. Geertz
Sou da cabeça aos pés um etnógrafo que escreve sobre etnografia.
Para Geertz o trabalho antropológico sempre foi tarefa de "corpo a corpo" - uma grande e complexa experiência de campo ¾, mas nem por isso menos severa. Revelar as singularidades de outros povos, examinar o alcance e a estrutura da experiência humana, aí estavam dispostos os maiores trunfos dessa antropologia interpretativa, hermenêutica para alguns, simbólica ou criativa para outros, fundada nos anos 60 nos Estados Unidos. Ficavam guardados nos pequenos detalhes da vida vivida, na idéia de que a cultura é microscópica, mas também na capacidade descritiva e de interpretação, os trunfos desse novo movimento, que surgia sem querer e evitava a rubrica de escola ou as regras e modelos preestabelecidos.
O novo grupo se impôs na mesma velocidade em que as obras de Geertz ¾ uma espécie de líder não nomeado ¾ foram sendo editadas. Em A interpretação das culturas, e por meio de uma série de ensaios que iam da religião a um pequeno ritual de briga de galos em Bali, o antropólogo inaugurava um estilo individual e a prática benjaminiana de produzir insights, no lugar da grande teoria arrumada. Mais uma vez a religião, como uma prática que ensina a sofrer e menos a consolar, aparecia como tema central em The religion of Java. Em Negara o etnógrafo se vestia de historiador e estudava o ritual em uma sociedade monárquica, na qual os limites entre realidade e representação restavam pouco estabelecidos. Foi com a publicação de Local knowledge que Geertz sinalizou para a possibilidade de entender os antropólogos tal qual uma aldeia, sujeita a padrões, regras e costumes originais. Provocou a todos quando editou Works and lives, indicando como, no ambiente intelectual, não há unanimidade possível.
Como se pode notar, com base nessa amostragem que não se pretende exaustiva, Geertz não tem medo do debate e é esse modo tão próprio de ser e de fazer antropologia que aparece, bem caracterizado, nas páginas dessa última coletânea de ensaios. Nela, o antropólogo norte-americano, com sua verve conhecida, retoma grandes temas da disciplina, faz um balanço da situação atual, repensa autores e escolas, isso tudo sem deixar de desfazer de seu próprio trajeto pessoal.
Talvez pela primeira vez Geertz se permita comentar sobre sua biografia pessoal, mas mesmo assim o faz apagando pistas ou evitando canonizar um perfil que ¾ como qualquer perfil ¾ foi construído a partir de vários acidentes e improvisos: a passagem pela marinha, os estudos em Ohio, o estágio breve como copy-boy no enlouquecido New York Post, a opção um pouco tímida e a princípio desenformada pela antropologia, a primeira formação em Cambridge, um ano em Berkeley e o tão aguardado trabalho de campo ¾ Java, Bali, Sumatra e Marrocos. O final dessa longa experiência não é exatamente um ponto final; os trinta anos no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, levaram à criação conjunta de um grupo que é hoje referência para todo aquele que se imagine interessado em humanidades.
Mas a reflexão não é de escorpião: não se volta exclusivamente para uma glorificação pessoal e ao, contrário, se abre para temas que desfilam pelo livro como um todo. Depois desse capítulo mais biográfico, os demais introduzem, com a maestria de quem sabe orquestrar vozes dissonantes, reflexões atuais sobre a disciplina. Nos momentos seguintes, Geertz debate questões morais que envolvem o trabalho de campo e impasses teóricos surgidos em tempos globalizados. A falta de pesquisas isoladas, a situação dos ex-países coloniais, a geração de assistentes desempregados etc. tudo leva a reavaliar e a repensar não só a Antropologia, como a trajetória que, no limite, é de cada um.
Engana-se, porém, aquele que pensa que Geertz apenas desconstrói idéias e conceitos alheios. Ao contrário, várias bandeiras são levantadas, de maneira mais ou menos direta. Em primeiro lugar, é fácil encontrar uma defesa veemente da etnografia e de uma abordagem cultural. Por sinal, Geertz é o primeiro a buscar por uma dimensão menos vasta para esse conceito que, ao invés de dar conta de tudo, aparece definido a partir da noção de "consenso": consenso entre outros povos, como entre nós. Há ainda uma retomada da discussão sobre o estatuto da dimensão simbólica no pensamento social e, mais uma vez, a declaração de que o "significado se dá sempre em contexto" e não é, portanto, um código a ser decifrado de maneira fria e distante. Aí está implícita a crítica, que muitas vezes aparece de modo direto, ao modelo estruturalista de Claude Lévi-Strauss, que nunca escondeu sua opção pela busca de estruturas distantes da empiria mais imediata. Nesse duelo de gigantes, não há vencedor definido e por isso mesmo sobra a reflexão, que antes impulsiona para a convivência crítica, do que leva à opção por uma teoria que exclui as demais.
Clifford Geertz não é, porém, um representante máximo dos modelos que fazem da realidade um efeito relativo. Na verdade, o antropólogo parece se opor a tudo e a todos quando defende um "anti-anti-relativismo", ou melhor, nos momentos em que questiona o pavor atual com relação ao relativismo cultural. Com efeito, a ironia de Geertz se destina justamente às saídas pasteurizadas, que pretendem encontrar semelhanças, realidades estáveis ou uma natureza quase essencial ao homem. Para essa nova postura intelectual, nosso autor guarda uma nova designação ¾ "provincialismo cultural" ¾ e acrescenta que esse não seria mesmo o melhor dos partidos: "examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo que consiste a antropologia".
É dessa maneira, e usando um vocabulário inesperado, que o antropólogo lida com controvérsias morais e epistemológicas do momento, introduzindo debates dentro e fora da disciplina. Por fim, mesmo dizendo que não faz, o livro é repassado pela teoria. Temas espinhosos como identidade, nação, Estado, povo mostram como a etnografia não vem para "pacificar", mas é antes um mote para a confusão: "manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e soltando rojões". O antropólogo é "um mercador do espanto", diz Geertz, revelando uma postura distinta de inserção na disciplina. Não é preciso concordar com Geertz; não há como deixar, no entanto, de se entusiasmar com um pensador que continua duvidando dos seus achados.
Mais do que um amontoado de conferências e de ensaios desconexos, esse livro é, portanto, um testemunho de um intelectual vivo e atuante, que faz de suas idéias instrumentos de reflexão (e de provocação), que evita o comodismo das personalidades consagradas e que, sobretudo, sabe rir de si próprio. Pena que a editora ¾ que foi tão cuidadosa na tradução e realizou o mais difícil: deu vazão à maneira original do autor redigir ¾ tenha optado por alterar o título, introduzindo uma versão mais comportada e que combina pouco com a "boa modéstia" de Geertz. Ao trocar o título original ¾ Available light: Anthropological reflections on Philosophical Topics ¾ por Nova luz sobre a antropologia, perdemos na sutileza, assim como fica-se um pouco distante desse estilo singular de fazer teoria. Afinal, Geertz sempre negou estar criando modelos, assim como reagiu às homenagens que essencializavam sua antropologia interpretativa.
Nada como terminar com dois exemplos, retirados do próprio livro, e que revelam essa maneira especial de reagir ao modelo fácil. Esses são detalhes aleatórios, mas próprios dessa "antropologia do sensível", marca de um etnógrafo em primeira mão. Em primeiro lugar, ao invés do "burocrático momento do agradecimento", quando os autores reservam algumas linhas, mais ou menos emocionadas, para dizer o quanto são reconhecidos aos esforços alheios, Geertz optou por relacionar os nomes "em ordem de distância, no corredor", em relação ao seu gabinete; prática de quem sabe (e escreve) que os antropólogos podem ser objeto de estudo, assim como seus nativos. Para terminar, uma anedota atribuída a Samuel Becket, mas que bem poderia ter sido proferida pelo etnógrafo em questão: contam que Becket caminhava com um amigo pelo gramado do Trinity College, em Dublin, numa ensolarada manhã de abril, quando o amigo disse: "Que belo dia, esplêndido, hein"? Beckett prontamente concordou: "De fato, esplêndido, magnífico". "Num dia como esse", prosseguiu o amigo, "a gente se sente feliz por ter nascido." Ao que Beckett retrucou: "Bem, eu não iria tão longe".
Geertz foi muito longe, apesar de continuar negando seu próprio legado.
Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
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