Marianna Monteiro. Noverre: cartas sobre a dança. São Paulo, Edusp/Fapesp, 1998, 400 pp.
Regina P. Müller
Professora do Departamento de Artes Corporais UNICAMP
Relações entre o velho e o novo, confrontos e rupturas, dança e teatro, prática artística e reflexão teórica, público e artista, técnica e expressividade são temas tão candentes na pesquisa e ensino contemporâneos de dança que a principal surpresa agradável ao leitor deste livro é a atualidade e universalidade dos pensamentos de Noverre expostos em suas cartas, escritas no século XVIII.
Ao mesmo tempo, a historicidade e a dimensão estética constitutivas destes temas e o tratamento que recebem nesta obra de Marianna Monteiro poderiam fazer dela referência obrigatória aos dançarinos e a outros artistas e pesquisadores que buscam exigentemente superar abordagens estéreis para encontrar aquelas que dêem conta da arte do movimento do corpo, de dentro de sua própria materialidade.
Segundo a autora , a obra de Noverre, reformador da dança francesa, é fundamental para o desenvolvimento da reflexão sobre os espetáculos de dança na modernidade. Bailarino e compositor de dança, Noverre propõe o balé de ação em contraposição ao balé de corte, mera mecânica do movimento, conceituando mudanças que levariam a dança à expressividade "que veicula significados e emociona" e que, ao mesmo tempo, exigiriam o desenvolvimento dos elementos propriamente coreográficos.
Originalmente uma dissertação de mestrado intitulada Natureza e artifício no balé de ação, este livro foi produzido no âmbito do conhecimento filosófico. A autora entendeu que uma contribuição necessária à divulgação da obra de Noverre deveria compreender um estudo aprofundado que relacionasse as transformações da dança à "efervescência de idéias e às principais discussões estéticas do período". Ao lado das discussões filosóficas de Rousseau e Diderot sobre esta arte, Noverre propõe teoricamente sua reforma a partir de uma visão do próprio palco. Na análise crítica da concepção noverriana do balé de ação, Marianna Monteiro intersecciona "o rumo que tomava a reflexão sobre a dança e as transformações por que passavam os balés". Assim, este livro serve de guia para se explorar o pensamento artístico de uma época e sobre esta linguagem artística em particular, a partir do que Geertz chama de "sensibilidade distintiva", em seu Local Knowledge. É a sensibilidade distintiva, segundo este antropólogo, que " põe em circulação e dá vida aos signos de um sistema particular, a arte, o qual participa, por sua vez, de um sistema de formas simbólicas geral chamado cultura". Aliás, para uma análise histórica, antropológica, semiológica ou estética do fenômeno artístico da dança, o estudo de Marianna Monteiro mostra o que lhes deve ser anterior e fonte imprescindível.Trata-se da reflexão sobre esta arte no interior do diálogo entre o criador e o produtor de idéias, entre o sentimento e a razão, em uma dada época ou cultura.
Pensar a dança é pensar esta relação tal como foi formulada historicamente e tal como sempre se colocou para os intérpretes da arte do corpo expressivo: emoção fisiológica e forma psicossomática.
Estamos, entretanto, falando apenas da primeira parte do livro, ou seja, a leitura crítica e a interpretação da obra de Noverre, dividida em três capítulos denominados "O balé de ação: teoria e história" , "Natureza e verossimilhança no balé" e "O bailarino comediante". A segunda parte apresenta a tradução realizada pela autora das quinze cartas da primeira edição de Lyon e Stuttgart, em 1760, de modo a "flagrar e compreender o pensamento de Noverre apenas em seu impulso inicial de renovação".
A leitura crítica da primeira parte representa, para a autora, o estudo aprofundado necessário para se dar continuidade à divulgação da obra teórica do reformador da dança no século XVIII, iniciada no começo deste, por Levinson, que prefacia a edição de 1927 e "interpreta a reflexão de Noverre como um momento na luta entre a dança e o gesto, a dança como forma abstrata e a dança como forma expressiva". Considerando o contexto do ideário renovador das artes no século XVIII, a autora da presente interpretação a divide em planos que correspondem aos três capítulos, tratando então, respectivamente, do balé da ação em contraposição ao balé de corte, dos conceitos de natureza e verossimilhança que remetem ao lugar da mimese na reforma pretendida e, finalmente, das idéias que fundamentariam a dança teatral de nossos dias. Neste último capítulo, o desenvolvimento da capacidade expressiva é entendido como a modificação mais profunda esperada do trabalho do artista da dança no conjunto das propostas renovadoras.
Obra que pela gênese e abrigo no campo da filosofia pode representar o aprofundamento a que se propõe fazer a autora, sua leitura nos faz imediatamente constatar, nos dias de hoje, o fosso existente entre estes mesmos mundos, objeto de reflexão suscitada pela obra do século XVIII, o pensamento sobre a arte e sua realização criadora. Este estudo responde a inquietações de ordem filosófica que dialogam com a História da Arte, o que representa um dos principais méritos deste estudo. Por outro lado, realizar dessa maneira o aprofundamento das idéias que vieram a reformar o balé inaugurando a autonomia da dança como arte, torna-se exatamente a dificuldade de que seus resultados ecoem na prática e compreensão da dança contemporânea (ou da modernidade, como prefere a autora) pelos próprios dançarinos pesquisadores. Quero dizer que, com esta intenção de aprofundamento crítico, lidar com conceitos da ordem da representação apenas de uma perspectiva de dentro do universo estudado, o momento da dança na Europa do século XVIII, pode levar o texto a se encerrar em si mesmo, tornando-o impermeável a interpretações dos artistas criadores. Estou simplesmente falando da sua construção hermética, deste ponto de vista, o que pode excluir do público leitor aqueles que mais deveriam se servir dessa contribuição intelectual ao espírito artístico, corpo e alma, razão e sentimento, emoção e técnica. Aos historiadores, antropólogos, semiólogos e filósofos que estudam as artes, é certamente de muito interesse o livro de Marianna Monteiro e a segunda parte do livro pode ser, a meu ver, o resgate de seu principal valor, o de divulgar a obra de Noverre, atingindo também os bailarinos a quem deve muito interessar as próprias palavras deste autor para sua formação e pesquisa.
Para a Antropologia que aborda a arte como sistema de signos de natureza estética e sensível e pretende compreendê-los "em circulação", esta tarefa implica, de um lado, inscrevê-los no ideário de uma época e, de outro, descrever a construção de um discurso cujas marcas, no caso da dança, são formas psicossomáticas. Significa ainda entender como essas resultam do embate de propostas de como manifestar a relação entre razão e sentimento, historicamente formuladas.
Assim, pensar a dança dessa perspectiva antropológica, exige um diálogo com a História da Arte realizada à maneira da obra de Marianna Monteiro, ou seja, a de flagrar num momento de renovação o conteúdo daquele embate.
Bibliografia
GEERTZ, C.
1983 Local Knowledge. Further essays in Interpretive Anthropology, New York, Basic Books.
Revista de Antropologia
Regina P. Müller
Professora do Departamento de Artes Corporais UNICAMP
Relações entre o velho e o novo, confrontos e rupturas, dança e teatro, prática artística e reflexão teórica, público e artista, técnica e expressividade são temas tão candentes na pesquisa e ensino contemporâneos de dança que a principal surpresa agradável ao leitor deste livro é a atualidade e universalidade dos pensamentos de Noverre expostos em suas cartas, escritas no século XVIII.
Ao mesmo tempo, a historicidade e a dimensão estética constitutivas destes temas e o tratamento que recebem nesta obra de Marianna Monteiro poderiam fazer dela referência obrigatória aos dançarinos e a outros artistas e pesquisadores que buscam exigentemente superar abordagens estéreis para encontrar aquelas que dêem conta da arte do movimento do corpo, de dentro de sua própria materialidade.
Segundo a autora , a obra de Noverre, reformador da dança francesa, é fundamental para o desenvolvimento da reflexão sobre os espetáculos de dança na modernidade. Bailarino e compositor de dança, Noverre propõe o balé de ação em contraposição ao balé de corte, mera mecânica do movimento, conceituando mudanças que levariam a dança à expressividade "que veicula significados e emociona" e que, ao mesmo tempo, exigiriam o desenvolvimento dos elementos propriamente coreográficos.
Originalmente uma dissertação de mestrado intitulada Natureza e artifício no balé de ação, este livro foi produzido no âmbito do conhecimento filosófico. A autora entendeu que uma contribuição necessária à divulgação da obra de Noverre deveria compreender um estudo aprofundado que relacionasse as transformações da dança à "efervescência de idéias e às principais discussões estéticas do período". Ao lado das discussões filosóficas de Rousseau e Diderot sobre esta arte, Noverre propõe teoricamente sua reforma a partir de uma visão do próprio palco. Na análise crítica da concepção noverriana do balé de ação, Marianna Monteiro intersecciona "o rumo que tomava a reflexão sobre a dança e as transformações por que passavam os balés". Assim, este livro serve de guia para se explorar o pensamento artístico de uma época e sobre esta linguagem artística em particular, a partir do que Geertz chama de "sensibilidade distintiva", em seu Local Knowledge. É a sensibilidade distintiva, segundo este antropólogo, que " põe em circulação e dá vida aos signos de um sistema particular, a arte, o qual participa, por sua vez, de um sistema de formas simbólicas geral chamado cultura". Aliás, para uma análise histórica, antropológica, semiológica ou estética do fenômeno artístico da dança, o estudo de Marianna Monteiro mostra o que lhes deve ser anterior e fonte imprescindível.Trata-se da reflexão sobre esta arte no interior do diálogo entre o criador e o produtor de idéias, entre o sentimento e a razão, em uma dada época ou cultura.
Pensar a dança é pensar esta relação tal como foi formulada historicamente e tal como sempre se colocou para os intérpretes da arte do corpo expressivo: emoção fisiológica e forma psicossomática.
Estamos, entretanto, falando apenas da primeira parte do livro, ou seja, a leitura crítica e a interpretação da obra de Noverre, dividida em três capítulos denominados "O balé de ação: teoria e história" , "Natureza e verossimilhança no balé" e "O bailarino comediante". A segunda parte apresenta a tradução realizada pela autora das quinze cartas da primeira edição de Lyon e Stuttgart, em 1760, de modo a "flagrar e compreender o pensamento de Noverre apenas em seu impulso inicial de renovação".
A leitura crítica da primeira parte representa, para a autora, o estudo aprofundado necessário para se dar continuidade à divulgação da obra teórica do reformador da dança no século XVIII, iniciada no começo deste, por Levinson, que prefacia a edição de 1927 e "interpreta a reflexão de Noverre como um momento na luta entre a dança e o gesto, a dança como forma abstrata e a dança como forma expressiva". Considerando o contexto do ideário renovador das artes no século XVIII, a autora da presente interpretação a divide em planos que correspondem aos três capítulos, tratando então, respectivamente, do balé da ação em contraposição ao balé de corte, dos conceitos de natureza e verossimilhança que remetem ao lugar da mimese na reforma pretendida e, finalmente, das idéias que fundamentariam a dança teatral de nossos dias. Neste último capítulo, o desenvolvimento da capacidade expressiva é entendido como a modificação mais profunda esperada do trabalho do artista da dança no conjunto das propostas renovadoras.
Obra que pela gênese e abrigo no campo da filosofia pode representar o aprofundamento a que se propõe fazer a autora, sua leitura nos faz imediatamente constatar, nos dias de hoje, o fosso existente entre estes mesmos mundos, objeto de reflexão suscitada pela obra do século XVIII, o pensamento sobre a arte e sua realização criadora. Este estudo responde a inquietações de ordem filosófica que dialogam com a História da Arte, o que representa um dos principais méritos deste estudo. Por outro lado, realizar dessa maneira o aprofundamento das idéias que vieram a reformar o balé inaugurando a autonomia da dança como arte, torna-se exatamente a dificuldade de que seus resultados ecoem na prática e compreensão da dança contemporânea (ou da modernidade, como prefere a autora) pelos próprios dançarinos pesquisadores. Quero dizer que, com esta intenção de aprofundamento crítico, lidar com conceitos da ordem da representação apenas de uma perspectiva de dentro do universo estudado, o momento da dança na Europa do século XVIII, pode levar o texto a se encerrar em si mesmo, tornando-o impermeável a interpretações dos artistas criadores. Estou simplesmente falando da sua construção hermética, deste ponto de vista, o que pode excluir do público leitor aqueles que mais deveriam se servir dessa contribuição intelectual ao espírito artístico, corpo e alma, razão e sentimento, emoção e técnica. Aos historiadores, antropólogos, semiólogos e filósofos que estudam as artes, é certamente de muito interesse o livro de Marianna Monteiro e a segunda parte do livro pode ser, a meu ver, o resgate de seu principal valor, o de divulgar a obra de Noverre, atingindo também os bailarinos a quem deve muito interessar as próprias palavras deste autor para sua formação e pesquisa.
Para a Antropologia que aborda a arte como sistema de signos de natureza estética e sensível e pretende compreendê-los "em circulação", esta tarefa implica, de um lado, inscrevê-los no ideário de uma época e, de outro, descrever a construção de um discurso cujas marcas, no caso da dança, são formas psicossomáticas. Significa ainda entender como essas resultam do embate de propostas de como manifestar a relação entre razão e sentimento, historicamente formuladas.
Assim, pensar a dança dessa perspectiva antropológica, exige um diálogo com a História da Arte realizada à maneira da obra de Marianna Monteiro, ou seja, a de flagrar num momento de renovação o conteúdo daquele embate.
Bibliografia
GEERTZ, C.
1983 Local Knowledge. Further essays in Interpretive Anthropology, New York, Basic Books.
Revista de Antropologia
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