quinta-feira, 1 de abril de 2010

A Morte no Bosque


Brigitte Aubert. A Morte no Bosque. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 275 pp.

Mirela Berger
Mestre do Departamento de Antropologia – USP

Brigitte Aubert nasceu em Cannes em 1956. Iniciou sua carreira literária como roteirista de cinema; foi também produtora de curtas-metragens, entre eles Nuits Noiris (1984), premiado pela televisão francesa. Escreveu três romances policiais e em 1996, recebeu o Grande Prêmio da Literatura Policial.

Seu terceiro livro, traduzido no Brasil como A Morte no Bosque enfoca uma jovem portadora de deficiências locomotoras, visuais e de comunicação que tenta descobrir a identidade de um serial killer que vem matando e mutilando crianças num subúrbio de Paris. Com a ajuda de uma menina de sete anos, Virginie, irmã de um dos garotos assassinados, ela tentará descobrir o assassino e ao mesmo tempo, sobreviver a ele, já que ele tentará assassiná-la.

O livro encontra-se assim na intersecção de duas temáticas instigantes: a relação de portadores de deficiência com o mundo ao seu redor e os serial killers, assassinos em série que permeiam o imaginário e infelizmente, a realidade de sociedades complexas. Principalmente, no que se refere a segunda temática, o tema é corroborado pelos últimos acontecimentos policiais, nos quais serial killers espalham surpresa e indignação, como no caso, tão veiculado, do chamado "maníaco do parque", que violentou e matou 11 mulheres no Parque do Estado, em São Paulo. A autora Brigitte Aubert soube explorar muito bem acontecimentos verídicos, como o do casal inglês acusado de matar e enterrar no quintal várias mulheres, inclusive as próprias filhas. É justamente esta mescla entre ficção e realidade, que torna a leitura do livro interessante.

No que se refere à construção da trama de suspense, cabe ressaltar que o livro muitas vezes nos submerge num clima tenso, instigante e que nos faz querer avançar para descobrir logo o assassino. Um de seus pontos fortes é a tentativa de analisar a constituição da personalidade e do modus operandi dos serial killers, refletindo sobre as origens psicológicas e sociais de um comportamento desviante. Mas, no final a autora peca, justamente por abandonar estas linhas e insistir apenas no velho esquema de "o culpado é quem menos se espera". Na ânsia de por um ponto final na trama, o livro perde a densidade e não investe em pontos cruciais, como o da relação de Virginie com o assassino, que ela parece conhecer bem.

No entanto, o grande mote de interesse do romance, não só para os adeptos do gênero suspense, mas principalmente para a Antropologia é a temática da construção da imagem de pessoas portadoras de deficiência, ainda mais porque a autora não porta nenhuma deficiência, não se tratando portanto da construção de uma auto-imagem, mas sim, de uma imagem do outro. Além disso, embora este romance policial seja talvez o primeiro no qual se vê uma jovem portadora de deficiência tentar descobrir assassinos, no que se refere ao cinema, o tema é constantemente abordado. O número de filmes, principalmente norte-americanos1, que apostam no binômio deficiência-suspense é grande, e a cada ano, surgem novas produções. A deficiência aparece na maioria dos casos como deficiência visual, seguida pela deficiência motora, de fala e mental. A trama central não varia muito: normalmente, pessoas portadoras de deficiência testemunham um crime, como o assassinato de um parceiro ou de violência sexual contra elas próprias e passam a ser perseguidas pelo assassino, que ao contrário da polícia, acredita que elas são testemunhas em potencial e tentam assassiná-las antes que elas o denunciem e provem sua culpa. Outros, como Jennifer 8, investem na obsessão de serial killers por portadores de deficiência visual.

A grande questão que parece se impor, tanto nos filmes, quanto no livro de Brigitte Aubert, é saber porque pessoas portadoras de deficiência despertam tanto interesse, principalmente para os realizadores de filmes de suspense e para os espectadores, que consomem abundantemente a produção e, cujo interesse, motiva ainda mais os cineastas a investirem no gênero. As respostas podem ser procuradas no romance, e estão ligadas à construção da imagem de pessoas portadoras de deficiência. Vejamos como a imagem de Elise, a heroína do romance, é construída em várias passagens: "Sou muda, cega, imóvel. Em suma: um legume vivo"(p:7), "Tenho 36 anos. Praticava esqui, natação, gostava do sol, dos passeios, das viagens, dos romances de amor. O amor... E agora estou enterrada em mim mesma e rezo todos os dias para morrer completamente"(p:9), "E eu, obviamente, não sou de nenhum auxílio, deitada numa cama como uma lontra encalhada" (p:155), "Miss Leguminosa. Quem imaginaria que a vida de um legume pode ser tão trepidante"(p:51), "imito um saco de batatas jogado em cima de um sofá" (p:53). Além destas expressões depreciativas, um outro ponto que se repete no trato com pessoas portadoras de deficiência é a tendência de acoplar à deficiência física uma deficiência mental (inexistente), o que obriga a pessoa a fazer esforços sobre-humanos na tentativa de sinalizar sua capacidade de entender e se comunicar, ainda que, como no livro, movimentando apenas um dedo. O livro é prenhe destas caracterizações estereotipadas, principalmente, a de se comparar portadores de deficiência a legumes. Ou seja, de modo geral, a trama, tanto a do livro quanto a dos filmes, caminha no sentido da construção de uma imagem depreciativa do portador de deficiência. Eles são descritos como frágeis, incapazes, inúteis, indefesos, o que os incapacita enquanto testemunha e os tornam a vítima perfeita, aquela que em tese, vai sofrer muito sem ter a possibilidade de defesa ou ataque. No decorrer da trama, esta imagem do portador de deficiência vai sendo fortalecida e despertando no leitor (ou no espectador) a idéia de que estas pessoas são altamente impotentes frente à realidade, justamente por portarem uma deficiência. Também, a terminologia usada no romance e nos filmes, que faz uso das expressões "cega", "muda", "paralítica", "deficiente", etc. caminha no sentido de generalizar a deficiência da pessoa que, em vez de portar uma deficiência, é a própria deficiência encarnada, é a cega. Mais uma vez, a própria terminologia auxilia a cristalizar estereótipos ao tomar o todo pela parte. As pessoas retratadas desta forma, parecem de fato se encaixar na denominação do Outro mais Outro, aquele que não partilha do universo de uma pessoa não portadora de deficiência, onde abundam sons, imagens, ação e pensamento. No entanto, ao distanciar ao máximo este "outro" do "nós", as tramas facilmente caem no lado oposto da moeda. Uma das atitudes mais comuns da sociedade frente ao portador de deficiência é o de oscilar entre a imagem de "coitadinho" e a de "herói". O "coitadinho" é representado pelos atributos negativos vistos acima, construídos em torno de imagens e expressões depreciativas. Já o "herói", é reificado na afirmação de super poderes dos portadores de deficiência, como no caso dos portadores de deficiência visual, o sentido do olfato ou do tato super desenvolvidos, instrumentos que o permitem "superar a deficiência", dar a volta por cima e sobreviver a ataques, matando o assassino ou o denunciando e auxiliando a prendê-lo. O romance de Aubert (e os filmes norte-americanos) oscilam entre estes dois pólos da equação, não dando espaço para que a pessoa portadora de deficiência apareça antes de tudo, enquanto cidadã diferente, mas não desigual ou superior.

Enfim, se o leitor espera um suspense com final inteligente mas que se sustente e reforce os argumentos constitutivos da trama, não vai encontrá-lo neste livro. Mas se espera adentrar no universo estereotipado que cerca portadores de deficiência e transforma a alteridade em clichês, encontrará no livro um fértil manancial.

Nota

1 A lista de filmes de suspense ou policiais onde os protagonistas portam algum tipo de deficiência é muito extensa, mas a título de exemplo, ver: Uma Noite Longa e Escura, Testemunha Cega, Terror Cego, Olhos na Escuridão, Blink – Num piscar de Olhos, Jennifer 8, Testemunha Muda, O Surdo-Mudo, Crimes na escuridão, etc.

Revista de Antropologia

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