Ronald Raminelli. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira. São Paulo/Rio de Janeiro, Edusp/Fapesp/Jorge Zahar, 1996, 186 pp..
Alessandra El Far
Doutoranda do Departamento de Antropologia – USP
Comentava Michel de Montaigne em "Dos canibais", publicado no ano de 1580: "Tantos personagens eminentes se enganaram acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros de igual importância"1. Não é difícil perceber que o ensaísta francês estava se referindo, neste pequeno trecho, à descoberta do Novo Mundo. Afinal, tratava-se da aparição de terras inéditas carregadas de uma realidade completamente diversa da experiência européia. No entanto, para além do evento, o autor aponta aqui algo de importância similar, ou seja, o fato desse ocorrido ter fermentado uma intensa e abrangente discussão filosófica e teológica ao longo de inúmeras décadas. Apesar de Montaigne estar escrevendo no final do século XVI, estas especulações, acerca da América e seus habitantes, atravessaram todo o XVII, permanecendo ainda latentes no Iluminismo.
Dos poucos trabalhos feitos no Brasil referentes à Colônia, e em específico sobre o impacto de duas culturas tão díspares e suas conseqüências nos debates intelectuais em voga na época, certamente podemos fazer menção ao livro de Ronald Raminelli. Em Imagens da colonização, resultado de sua tese de doutoramento em história, o autor escolhe como tema de análise um flanco pouco explorado pelos historiadores e antropólogos: a polissemia da representação do índio no imaginário europeu, tendo sempre em vista o contexto das relações coloniais.
Para tal empreitada, Raminelli levantou um rico material de pesquisa em bibliotecas e arquivos, no Brasil e no exterior, que não só perpassou as cartas jesuíticas e os tratados filosóficos, como também recuperou uma vasta iconografia produzida no período. E foi exatamente diante do confronto entre esses dois tipos de fonte, ou seja, entre texto e imagem, que o autor percebeu uma chave original de interpretação. Ao invés dessas imagens terem por referência os escritos dos europeus que aqui estiveram, elas dialogavam com muitos dos estereótipos que perambulavam pelo imaginário do Velho Mundo. Nos desenhos de época, os nativos perdiam suas especificidades para assumir o aspecto de bruxos, feiticeiros, demônios e homens selvagens. Esse processo, na visão do historiador, além de reforçar os projetos coloniais, assinalava a dificuldade dos conquistadores em compreender uma nova realidade cultural.
O autor inicia o livro dissecando alguns dos princípios teológicos que procuravam dar aos ameríndios e aos europeus a mesma origem, com a intenção de mostrar que apesar das evidentes diferenças presentes na língua, na cor da pele e nos costumes, os "novos habitantes" possuíam a mesma disposição para receber os ensinamentos divinos e a salvação. Ignorando qualquer relato nativo sobre a gênese no território americano, o padre Simão de Vasconcelos, por exemplo, segundo o relato de Raminelli, chegou a conceber que os índios provinham de uma ilha chamada Atlante, localizada no mar Mediterrâneo, de extensão gigantesca, maior do que a Ásia ou a África, a qual havia sido inundada pelas águas do oceano. Em meio a falas engenhosas, teólogos, como Yves d’Evreux e Manoel da Nóbrega, cada um a sua maneira, demonstravam a possibilidade de livrar o gentio da degeneração e convertê-lo ao cristianismo, seguindo os preceitos, é claro, da verdadeira religião.
Para visualizar a diversidade de visões acerca do novo continente e seus habitantes, o livro avança através do pensamento de padres e filósofos até o século XVIII. Passando pelas obras de Antônio Vieira, Montaigne, Jean de Léry, De Pauw, Buffon, dentre outros – que caracterizaram o índio americano ora como o bom ou mau selvagem, ora como um ser passível ou não de salvação ante os elevados pressupostos da civilização européia –, Raminelli sublinha que, de uma forma ou de outra, os índios foram assimilados sob o mito do homem bárbaro, e sob o crivo da tutela e da colonização.
O segundo capítulo detêm-se na análise da ampla utilização do termo bárbaro por aqueles que retrataram as terras americanas. Se o conceito aristotélico serviu, na Antigüidade, para denominar todos aqueles que não pertenciam à civilização grega, com o objetivo de destacar a superioridade do povo grego; no século XVI, ao sabor das novas conjunturas, o vocábulo ganhou outros significados e colorações. Usando a noção de "pseudometamorfose", cunhada por Erwin Panofsky, Raminelli busca evidenciar as transformações que o barbarismo de Aristóteles sofreu ao ser deslocado de seu contexto original e utilizado no âmbito colonial da era moderna. Aqui essa palavra impregnou as representações sobre os ameríndios fundamentando a conquista e a necessidade de intervenção.
Depois de observar inúmeras imagens pictóricas produzidas entre os séculos XVI e XVII, que abarcam pintores portugueses, franceses e holandeses, o autor comprova que, ao contrário do que se esperava, esses desenhos não tiveram por inspiração ou fonte de pesquisa os textos daqueles que aqui estiveram mas, sim, foram baseados em alegorias divulgadas pelas iconografias européias. Talvez o desinteresse dos editores de Portugal em publicar as cartas e relatos dos jesuítas explique em parte o descompasso entre o conhecimento empírico produzido textualmente por aqueles que viram o Novo Mundo com seus próprios olhos e as cartografias, gravuras, mapas e pinturas daqueles que permaneciam distantes da realidade americana. Entretanto, como enfatiza o autor, mais interessante do que buscar as razões desse hiato existente entre texto e imagem, seria investigar a maneira pela qual esses estereótipos foram difundidos no interior da produção pictórica européia.
Após discorrer sobre alguns quadros que escolheram como tema a violência dos nativos, o martírio dos padres que trabalharam na catequização, os aspectos primitivos dos combates, a ausência de roupas e pudor, as técnicas primitivas de agricultura, todos frisando os costumes do homem selvagem, o autor irá estender-se nas imagens que focalizaram o canibalismo, para melhor elucidar como a barbárie ilustrada nessa iconografia estava imersa nos clichês do período.
O ritual antropofágico, enredo central do próximo capítulo, apesar de ser decorrente pelos documentos quinhentistas e seiscentistas, que sublinhavam a predominância masculina no comando da guerra e da vingança, foi retratado nas gravuras e telas européias com o sexo feminino como principal protagonista. Ao descrever um quadro de Theodor De Bry, o historiador salienta a excitação das índias desenhadas que mordem suas próprias mãos e braços em sinal de ansiedade. Numa outra tela, também de De Bry, comenta em mais detalhes o autor: "Um moquém assando braços, pernas e costelas ocupa o centro da gravura; ao redor, há índios comendo o repasto canibal. De um lado, há mulheres, duas delas saciam a vingança com membros: um braço e uma perna. A primeira mulher possui corpo escultural, seios firmes, alguns ornamentos e devora um braço sem perder os gestos de coquette; as velhas, em contrapartida, com rugas na testa, seios caídos, cabelos desalinhados e ralos, lambem os dedos e sorvem a gordura do morto" (p:96).
A divergência com as fontes escritas levaram Raminelli a perceber que a figura estereotipada da mulher nesses rituais foi construída sob o crivo da misoginia européia. Numa época de farta publicação contra as mulheres, de caça às bruxas, de perseguição às feiticeiras e às assembléias do sabá, as índias, na visão dos artistas, assumiam características de agentes demoníacas aliadas ao vício, aos malefícios, à perversão, ao apocalipse e aos desmandos de Satã. Quer dizer, as cenas canibais foram pinceladas em meio aos dilemas europeus latentes nos séculos XVI e XVII, resultando, dessa maneira, uma série de imagens que destoavam do cenário local.
No capítulo quarto, o autor irá aprofundar algumas dimensões desse imaginário demoníaco existente na Europa e o modo pelo qual seus preceitos foram determinantes na constituição dos desenhos que descreviam o novo continente. A idéia de uma América infernal, povoada por seres fantásticos, suscetíveis às seduções do Mal, fadados aos tormentos provocados pelos espíritos malignos, era recorrente nas gravuras de época. Peixes voadores, quadrúpedes com feições humanas, diabos com chifres, pés de ave e asas de vampiro, entes alados, em resumo, um verdadeiro bestiário medieval, foram derrotados pelo cristianismo no Velho Mundo e, por esta razão, teriam voado em grande quantidade para as terras do além-mar. Em face a esta balbúrdia, somente a sabedoria divina seria capaz de salvar as comunidades indígenas do jugo tirânico do demo.
A similitude dos sabás com os festins satânicos em solo americano não só comprovavam a demonização dos índios, mas também reafirmava a necessidade da salvação, catequese e da conquista que, nesse sentido, deixavam de ser apenas um jogo entre contrários, o bem e o mal, para assumir características políticas. Os infortúnios da colonização receberiam, portanto, um empreendimento racional e imprescindível.
Por fim, Ronald Raminelli debate a pequena disseminação da figura do índio no renascimento português. Os relatos do Novo Mundo não só passaram desapercebidos pelos editores do período, como pouco acrescentaram às discussões filosóficas e teológicas. Na perspectiva do autor, os pensadores lusitanos encontravam-se presos a pesquisas esclerosadas, há muito ultrapassadas pelos trabalhos dos demais intelectuais europeus. Os costumes exóticos ganharam uma abordagem superficial, tornando-se valiosos quando se referiam a algo que pudesse garantir o sucesso da colonização.
Para ilustrar tal fenômeno, Raminelli avança na discussão e compara o menosprezo ao ameríndio, um povo sem "lei, nem rei, nem fé", com o fascínio português pelos impérios da China e do Japão. Enquanto as editoras de Lisboa lançavam periodicamente volumes que dissertavam sobre as aventuras de viajantes pelos mares do extremo oriente e o elevado desenvolvimento destas populações, as brochuras acerca dos índios da América recebiam uma atenção bem menor.
Tendo sempre em vista os debates filosóficos e o contexto europeu da época, Ronald Raminelli perpassa todo livro delimitando a fabricação da imagem do índio americano sob o cenário da colonização com a intenção de ressaltar a dificuldade dos conquistadores do Novo Mundo em perceber as especificidades de uma outra cultura. As imagens aqui relatadas e analisadas demonstram que a percepção sobre os nativos não foi organizada tendo em vista as peculiaridades da vida local, mas sim a partir dos impasses em voga na Europa seiscentista.
Apesar do autor trabalhar com temas caros à Antropologia, como a figura do índio, a questão da alteridade, do contato entre culturas e da representação, o diálogo interdisciplinar é estreito, pois tanto a Antropologia quanto a História parecerem aqui penetrar com dificuldades em fronteiras alheias. Isto porque se, por um lado, Raminelli tece sua crítica aos etnólogos dos povos tupinambá, tais como Florestan Fernandes e Eduardo Viveiros de Castro, que, segundo ele, cristalizaram os eventos num eixo anacrônico por não levarem em conta as conjunturas da época; por outro, depois de traçar os enlevos dessa produção iconográfica européia que escolhe como tema o Novo Mundo, o autor se exime de uma análise sobre a dinâmica do contato cultural e suas ressonâncias em ambas as sociedades que, igual ao cenário político e ideológico da colonização, constituíram o pano de fundo dessa problemática.
Somente nas últimas páginas do livro, Raminelli evoca Marshall Sahlins e o debate sobre as transformações culturais através do contato, para afirmar que suas fontes não permitiriam uma maior aproximação com os embates antropológicos. Com isso, seu trabalho circunscreve essa produção no interior dos dilemas europeu do século XVI e XVII, sem arriscar, por exemplo, uma possível discussão sobre a maneira pela qual essa confecção de imagens foi também redimensionada pela cosmologia ameríndia.
Além de ser um livro muito bem escrito, Imagens da colonização deve ser considerado um trabalho de referência sobre a América portuguesa. Sua pesquisa abrangente em arquivos e bibliotecas possibilitou um fértil confronto entre texto e imagem, permitindo a análise não apenas das vicissitudes coloniais mas, principalmente, da incapacidade dos europeus em perceber e compreender a diversidade cultural dos povos do além-mar. Enfim, mesmo dominando uma vasta área territorial e seus habitantes, os conquistadores do século XVI demonstraram seu desinteresse em conhecer o outro. Ao se colocar no papel do colonizador europeu, Montaigne – para voltar mais uma vez ao ensaísta francês que se caracterizou como uma das poucas falas críticas do período – afirmou de modo irônico: "Tudo abraçamos, mas não apertamos senão o vento"2.
Notas
1 Michel de Montaigne. "Dos canibais" in Ensaios, São Paulo, Abril Cultural, coleção Os Pensadores, 1972:104.
2 Idem.
Revista de Antropologia
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