O romance de 1930
Simone Ruffato
Mestranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. 712 p.
A representação do Brasil na literatura brasileira transitou, grosso modo, da tentativa de autonomização de um todo (um país, uma nação) composto de diferentes regiões e suas peculiaridades – projeto principalmente de José de Alencar –, para a exaltação particular de cada uma de suas partes, como maneira mais obstinada de se afirmar "brasileiro" (cujo primeiro grito possivelmente foi dado já pelo escritor Franklin Távora, em prefácio a seu romance O cabeleira, de 1876).
Devido a essa transição, ainda existem entre os estudiosos discordâncias a respeito de se as obras literárias produzidas a partir da década de 1930 foram influenciadas pelo Modernismo de 22, ou se apenas deram continuidade a uma preocupação que vinha de antes. Há quem afirme que não houve desdobramento entre 1922 e 1930 – caso de Octavio de Faria, Jorge Amado e de Graciliano Ramos, este último tornado escritor-símbolo da época, que em nada se identificou com o momento que considerou apenas destruidor, nunca criador – e quem, como Lúcia Miguel-Pereira, afinal reconhecida como uma das grandes críticas literárias do século XX, acredite que a literatura de 1930 jamais seria a mesma, nem teria sido tão bem recebida, sem os modernistas para lhe abrir os caminhos. O que mais ou menos permaneceu consensual é o fato de que essa produção desenvolveu-se em duas direções, aparentemente opostas, a "social" e a "intimista".
Não seria sábio tentar compreender essa evolução de maneira categórica, mesmo porque estas são somente algumas das muitas dúvidas que a permeiam. Qualquer que seja a conclusão a que se chegue, certamente haverá argumentos ou exceções suficientes que a contestem, e é exatamente por isso que, de antemão, devem ser louvados todos aqueles que se proponham a enfrentar abertamente tão intricada tarefa.
O imponente volume de Uma história do romance de 30 pode assustar à primeira vista, mas a fluência e objetividade de seu autor, Luís Bueno, professor da Universidade Federal do Paraná, logo desfazem essa impressão. Antes, contudo, há duas ressalvas a fazer, por sua grande relevância no livro, e para que ao final se sobreponham apenas seus aspectos positivos. Dois conceitos são utilizados ao longo da obra que podem causar certa confusão a um leitor mais minucioso. O primeiro deles é o de "proletário"; o segundo, o de "romance de 30".
Tomado pelos autores da época com uma acepção mais genérica, e com o intuito de "esquadrinhar palmo a palmo a miséria do país", incorporando os "pobres" à cena política e intelectual, "proletário" termina por designar todo e qualquer indivíduo que traga em si um "ar de revolta", que esteja contra o "sistema" ou, de alguma forma, à margem da sociedade. Assim sendo, para os escritores de 1930, "proletários" seriam desde trabalhadores rurais, passando por estivadores, vaqueiros, militantes, miseráveis, prostitutas, malandros, boxeurs, capoeiras, retirantes, desempregados, crianças, homossexuais, inválidos, mendigos, viúvas desamparadas, pescadores, jovens intelectuais, soldados, até o operário urbano. Tratando-se de escritores que aberta e radicalmente se declaravam comunistas, marxistas ou "de esquerda", essa generalização deve ter tido uma razão de ser muito forte, uma vez que o Manifesto Comunista deixa explícito que proletários são os "operários modernos"1.
A respeito de "romance de 30" (que abarcaria tanto os de "esquerda" quanto os de "direita"), a mesma confusão pode se dar, ao depararmos com outros tantos termos que se referem à mesma coisa: "romance social", "regionalista", "de esquerda", "engajado", "revolucionário", "intimista", "psicológico", "católico". No caso da literatura de esquerda, Bueno explica que ela "tinha se definido de forma pouco precisa, sobre aqueles três pilares – espírito documental (especialmente voltado para a vida das camadas mais pobres), movimento de massa e sentimento de luta e revolta (...)". No caso da direita, a situação não é muito menos vaga, pois, no ápice da polarização política, "católico" era o mesmo que "conservador" e, portanto, anti-comunista; bem como "intimistas" e "psicológicos", cujas sutilezas tampouco estarão expostas nesta resenha.
Sendo neutro, portanto, o termo "romance de 30" é de fato uma solução "menos rígida" para encarar o período, e possibilita ao leitor o acesso às obras sem as – por vezes – engessantes categorias literárias. Contudo, ainda que todas aquelas nomenclaturas sejam muitas vezes auto-atribuídas, ao ser aleatoriamente substituído no texto por seus imprecisos e polivalentes "sinônimos", "romance de 30", para o leitor, torna-se tudo e nada. Talvez faça falta uma melhor especificação desses usos, pois também deles depende concluir pelo grau de sucesso ou fracasso dos romances.
Feitas essas observações, a fatura é excelente. Luís Bueno segue à risca o que se propõe a fazer no prefácio: partindo do texto literário, e cuidadosamente atento à recepção das obras pelos críticos, constrói um panorama esclarecedor do desenvolvimento do romance de 1930, e evidencia muito bem como essa produção, em seu percurso de surgimento-apogeu-decadência, desenvolveu-se de forma controversa, coletiva e individualmente. Ou seja, o que num primeiro plano é por impulso associado ao tal "regionalismo", ou aos escritores do Norte, foi, na realidade, um momento de tensão política generalizada (no Brasil, os movimentos que levaram à Revolução de 1930; a instituição do Estado Novo em 1937; no mundo todo, os embates que culminaram na II Guerra), que se refletiu na literatura de diversas maneiras, todas elas norteadas pela necessidade de adoção de uma postura ideológica de direita ou de esquerda – daí variarem tanto suas "correntes literárias". Fica, afinal, perfeitamente exemplificada a menção ao que Antonio Candido identificou como um sentimento de "país novo" e de "país subdesenvolvido"; ou, segundo Haroldo de Campos, de "utópico" e "pós-utópico": a esperança que vinha sendo cultivada ao longo do século XIX, palco da Independência e da proclamação da República, transformou-se em desencanto ao deparar os regimes autoritários, nas primeiras décadas do século XX.
Através desse meticuloso paralelismo entre os movimentos político e literário, pode-se distinguir, por exemplo, o que levou à mudança de perspectiva tanto de escritores como de críticos, que resultaria na enfática aceitação do romance "social" (identificador dos "problemas" sociais), decorrido do acirramento político, em detrimento do "intimista" e, logo depois, na substituição daquele por este (ao se instalar por completo a descrença na modernização do país, por volta de 1937). Dessa maneira, é possível retificar algumas injustiças cometidas e dar às obras sua devida importância, contextualizando-as e tentando identificar quais teriam sido seus propósitos – o que quase sempre vem acompanhado de belas leituras dos textos.
É o caso, por exemplo, de Jorge Amado, desde então e até hoje o mais popular escritor brasileiro: depois de um início de carreira declaradamente apolítico (com O país do carnaval, que lhe rendeu a pecha de anti-comunista), o escritor traz ao público sua opção na forma de livros como Cacau e Jubiabá – já "oficialmente" esquerdistas – e parece abandoná-la de Capitães da areia para Mar morto. Além dele, Raquel de Queiroz (por João Miguel) e Graciliano Ramos (por S. Bernardo) também teriam sido acusados de falta de solidariedade à revolução. Este tipo de interpretação não visa melhorar ou piorar sua qualidade artística ante os olhos do leitor; mas certamente ajuda a refinar nossa opinião saber quais eram as prioridades ou necessidades específicas naquele momento.
Nesse contexto de antagonismos, Bueno destaca outros fatores: um deles é o registro lingüístico de que se vale o escritor para compor seu painel social. A utilização da norma culta remete aos conservadores; a da forma oral ou "popular", aos revolucionários – ambas, de um e de outro lado agudamente condenadas. Outro fator é a descrição maniqueísta que se faz das personagens femininas ("prostitutas" ou "namoradas"); a apresentação de um tipo que foge a ambos os estereótipos causaria polêmica e até mesmo indignação por parte da crítica. Em sua maioria, obras com essas características conservaram valor apenas histórico ou documental, uma vez que, por sua natureza quase sempre didática ou doutrinária, trazem prontas e explícitas as lições que desejam transmitir, e vedados todos os vãos por onde possa escapar o pensamento ou entrar questionamentos. Posteriormente, os romancistas cujas obras habilmente "driblaram" essa polarização foram tidos como os mais brilhantes – caso de Érico Veríssimo.
Com o desânimo provocado pelo golpe que instituiu o Estado Novo em novembro de 1937, o romance "social" inicia sua derrocada, vitimando outros tantos "proletários" tardios, entre eles – voilà! – Raquel de Queiroz (Caminho de pedras) e Graciliano Ramos (Vidas secas), ambos considerados já obsoletos. Apoiado na recepção crítica destas obras, Luís Bueno demonstra como se inverteu a opinião dos leitores, pendendo agora para o "psicológico": "Os mesmos sinais foram lidos de maneiras diametralmente opostas em momentos diferentes, o que diz mais do clima intelectual do que dos livros propriamente ditos"; e o "social" ou "regionalista", antes fundamental para a esquerda, passa a ser considerado "arcaico". Apesar disso, manteve-se a divisão entre romances "intimistas" e "sociais".
A tendência dos autores, por outro lado, é menos parcial e a atitude que toma vulto passa a ser o questionamento. Surgem então obras como Um rio que imita o Reno (1939), de Viana Moog (segundo Bueno, uma "discussão sobre as certezas tão absolutas que dominaram a discussão política da década até ali. Nem direita nem esquerda, enquanto visões definitivas e propostas de solução, parecem ter sentido nesse romance"); Carvão da vida (1937), de Armando de Oliveira; Amanhecer (1938), de Lúcia Miguel-Pereira; e Navios iluminados (1937), de Ranulfo Prata.
A impressão que se tem é a de que houve um "micro-processo" de euforia e desilusão dentro desse momento de tomada de consciência de país subdesenvolvido: a crença na eficácia do partidarismo indicava ainda algum caminho para os intelectuais de 1930; renunciar aos valores ideológicos, aos movimentos de luta, ao escancaramento das mazelas nacionais, enfim, à revolução, esse sim talvez tenha sido o fim da utopia particular do romance de 1930. Em resumo do autor:
Pertencer a uma família, a uma classe, a um grupo, a um sindicato: nada disso serve para impulsionar as grandes mudanças. Nem tampouco o indivíduo, sozinho, poderá encontrar saída fácil para os seus problemas. (p.503).
De brinde, Luís Bueno deixa-nos suas impressões a respeito de quatro magníficos autores – Cornélio Pena, Ciro dos Anjos, Dionélio Machado e Graciliano Ramos –, sendo os três primeiros (autores, respectivamente, das obras-primas A menina morta, O amanuense Belmiro e Os ratos) injustamente pouco lidos, e mais que merecidamente destacados em meio ao imenso legado dos artistas de 30.
1 Ainda: "As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em conseqüência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros. Abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no proletariado. O lúmpen-proletariado, putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação." MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p. 46-9.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Simone Ruffato
Mestranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. 712 p.
A representação do Brasil na literatura brasileira transitou, grosso modo, da tentativa de autonomização de um todo (um país, uma nação) composto de diferentes regiões e suas peculiaridades – projeto principalmente de José de Alencar –, para a exaltação particular de cada uma de suas partes, como maneira mais obstinada de se afirmar "brasileiro" (cujo primeiro grito possivelmente foi dado já pelo escritor Franklin Távora, em prefácio a seu romance O cabeleira, de 1876).
Devido a essa transição, ainda existem entre os estudiosos discordâncias a respeito de se as obras literárias produzidas a partir da década de 1930 foram influenciadas pelo Modernismo de 22, ou se apenas deram continuidade a uma preocupação que vinha de antes. Há quem afirme que não houve desdobramento entre 1922 e 1930 – caso de Octavio de Faria, Jorge Amado e de Graciliano Ramos, este último tornado escritor-símbolo da época, que em nada se identificou com o momento que considerou apenas destruidor, nunca criador – e quem, como Lúcia Miguel-Pereira, afinal reconhecida como uma das grandes críticas literárias do século XX, acredite que a literatura de 1930 jamais seria a mesma, nem teria sido tão bem recebida, sem os modernistas para lhe abrir os caminhos. O que mais ou menos permaneceu consensual é o fato de que essa produção desenvolveu-se em duas direções, aparentemente opostas, a "social" e a "intimista".
Não seria sábio tentar compreender essa evolução de maneira categórica, mesmo porque estas são somente algumas das muitas dúvidas que a permeiam. Qualquer que seja a conclusão a que se chegue, certamente haverá argumentos ou exceções suficientes que a contestem, e é exatamente por isso que, de antemão, devem ser louvados todos aqueles que se proponham a enfrentar abertamente tão intricada tarefa.
O imponente volume de Uma história do romance de 30 pode assustar à primeira vista, mas a fluência e objetividade de seu autor, Luís Bueno, professor da Universidade Federal do Paraná, logo desfazem essa impressão. Antes, contudo, há duas ressalvas a fazer, por sua grande relevância no livro, e para que ao final se sobreponham apenas seus aspectos positivos. Dois conceitos são utilizados ao longo da obra que podem causar certa confusão a um leitor mais minucioso. O primeiro deles é o de "proletário"; o segundo, o de "romance de 30".
Tomado pelos autores da época com uma acepção mais genérica, e com o intuito de "esquadrinhar palmo a palmo a miséria do país", incorporando os "pobres" à cena política e intelectual, "proletário" termina por designar todo e qualquer indivíduo que traga em si um "ar de revolta", que esteja contra o "sistema" ou, de alguma forma, à margem da sociedade. Assim sendo, para os escritores de 1930, "proletários" seriam desde trabalhadores rurais, passando por estivadores, vaqueiros, militantes, miseráveis, prostitutas, malandros, boxeurs, capoeiras, retirantes, desempregados, crianças, homossexuais, inválidos, mendigos, viúvas desamparadas, pescadores, jovens intelectuais, soldados, até o operário urbano. Tratando-se de escritores que aberta e radicalmente se declaravam comunistas, marxistas ou "de esquerda", essa generalização deve ter tido uma razão de ser muito forte, uma vez que o Manifesto Comunista deixa explícito que proletários são os "operários modernos"1.
A respeito de "romance de 30" (que abarcaria tanto os de "esquerda" quanto os de "direita"), a mesma confusão pode se dar, ao depararmos com outros tantos termos que se referem à mesma coisa: "romance social", "regionalista", "de esquerda", "engajado", "revolucionário", "intimista", "psicológico", "católico". No caso da literatura de esquerda, Bueno explica que ela "tinha se definido de forma pouco precisa, sobre aqueles três pilares – espírito documental (especialmente voltado para a vida das camadas mais pobres), movimento de massa e sentimento de luta e revolta (...)". No caso da direita, a situação não é muito menos vaga, pois, no ápice da polarização política, "católico" era o mesmo que "conservador" e, portanto, anti-comunista; bem como "intimistas" e "psicológicos", cujas sutilezas tampouco estarão expostas nesta resenha.
Sendo neutro, portanto, o termo "romance de 30" é de fato uma solução "menos rígida" para encarar o período, e possibilita ao leitor o acesso às obras sem as – por vezes – engessantes categorias literárias. Contudo, ainda que todas aquelas nomenclaturas sejam muitas vezes auto-atribuídas, ao ser aleatoriamente substituído no texto por seus imprecisos e polivalentes "sinônimos", "romance de 30", para o leitor, torna-se tudo e nada. Talvez faça falta uma melhor especificação desses usos, pois também deles depende concluir pelo grau de sucesso ou fracasso dos romances.
Feitas essas observações, a fatura é excelente. Luís Bueno segue à risca o que se propõe a fazer no prefácio: partindo do texto literário, e cuidadosamente atento à recepção das obras pelos críticos, constrói um panorama esclarecedor do desenvolvimento do romance de 1930, e evidencia muito bem como essa produção, em seu percurso de surgimento-apogeu-decadência, desenvolveu-se de forma controversa, coletiva e individualmente. Ou seja, o que num primeiro plano é por impulso associado ao tal "regionalismo", ou aos escritores do Norte, foi, na realidade, um momento de tensão política generalizada (no Brasil, os movimentos que levaram à Revolução de 1930; a instituição do Estado Novo em 1937; no mundo todo, os embates que culminaram na II Guerra), que se refletiu na literatura de diversas maneiras, todas elas norteadas pela necessidade de adoção de uma postura ideológica de direita ou de esquerda – daí variarem tanto suas "correntes literárias". Fica, afinal, perfeitamente exemplificada a menção ao que Antonio Candido identificou como um sentimento de "país novo" e de "país subdesenvolvido"; ou, segundo Haroldo de Campos, de "utópico" e "pós-utópico": a esperança que vinha sendo cultivada ao longo do século XIX, palco da Independência e da proclamação da República, transformou-se em desencanto ao deparar os regimes autoritários, nas primeiras décadas do século XX.
Através desse meticuloso paralelismo entre os movimentos político e literário, pode-se distinguir, por exemplo, o que levou à mudança de perspectiva tanto de escritores como de críticos, que resultaria na enfática aceitação do romance "social" (identificador dos "problemas" sociais), decorrido do acirramento político, em detrimento do "intimista" e, logo depois, na substituição daquele por este (ao se instalar por completo a descrença na modernização do país, por volta de 1937). Dessa maneira, é possível retificar algumas injustiças cometidas e dar às obras sua devida importância, contextualizando-as e tentando identificar quais teriam sido seus propósitos – o que quase sempre vem acompanhado de belas leituras dos textos.
É o caso, por exemplo, de Jorge Amado, desde então e até hoje o mais popular escritor brasileiro: depois de um início de carreira declaradamente apolítico (com O país do carnaval, que lhe rendeu a pecha de anti-comunista), o escritor traz ao público sua opção na forma de livros como Cacau e Jubiabá – já "oficialmente" esquerdistas – e parece abandoná-la de Capitães da areia para Mar morto. Além dele, Raquel de Queiroz (por João Miguel) e Graciliano Ramos (por S. Bernardo) também teriam sido acusados de falta de solidariedade à revolução. Este tipo de interpretação não visa melhorar ou piorar sua qualidade artística ante os olhos do leitor; mas certamente ajuda a refinar nossa opinião saber quais eram as prioridades ou necessidades específicas naquele momento.
Nesse contexto de antagonismos, Bueno destaca outros fatores: um deles é o registro lingüístico de que se vale o escritor para compor seu painel social. A utilização da norma culta remete aos conservadores; a da forma oral ou "popular", aos revolucionários – ambas, de um e de outro lado agudamente condenadas. Outro fator é a descrição maniqueísta que se faz das personagens femininas ("prostitutas" ou "namoradas"); a apresentação de um tipo que foge a ambos os estereótipos causaria polêmica e até mesmo indignação por parte da crítica. Em sua maioria, obras com essas características conservaram valor apenas histórico ou documental, uma vez que, por sua natureza quase sempre didática ou doutrinária, trazem prontas e explícitas as lições que desejam transmitir, e vedados todos os vãos por onde possa escapar o pensamento ou entrar questionamentos. Posteriormente, os romancistas cujas obras habilmente "driblaram" essa polarização foram tidos como os mais brilhantes – caso de Érico Veríssimo.
Com o desânimo provocado pelo golpe que instituiu o Estado Novo em novembro de 1937, o romance "social" inicia sua derrocada, vitimando outros tantos "proletários" tardios, entre eles – voilà! – Raquel de Queiroz (Caminho de pedras) e Graciliano Ramos (Vidas secas), ambos considerados já obsoletos. Apoiado na recepção crítica destas obras, Luís Bueno demonstra como se inverteu a opinião dos leitores, pendendo agora para o "psicológico": "Os mesmos sinais foram lidos de maneiras diametralmente opostas em momentos diferentes, o que diz mais do clima intelectual do que dos livros propriamente ditos"; e o "social" ou "regionalista", antes fundamental para a esquerda, passa a ser considerado "arcaico". Apesar disso, manteve-se a divisão entre romances "intimistas" e "sociais".
A tendência dos autores, por outro lado, é menos parcial e a atitude que toma vulto passa a ser o questionamento. Surgem então obras como Um rio que imita o Reno (1939), de Viana Moog (segundo Bueno, uma "discussão sobre as certezas tão absolutas que dominaram a discussão política da década até ali. Nem direita nem esquerda, enquanto visões definitivas e propostas de solução, parecem ter sentido nesse romance"); Carvão da vida (1937), de Armando de Oliveira; Amanhecer (1938), de Lúcia Miguel-Pereira; e Navios iluminados (1937), de Ranulfo Prata.
A impressão que se tem é a de que houve um "micro-processo" de euforia e desilusão dentro desse momento de tomada de consciência de país subdesenvolvido: a crença na eficácia do partidarismo indicava ainda algum caminho para os intelectuais de 1930; renunciar aos valores ideológicos, aos movimentos de luta, ao escancaramento das mazelas nacionais, enfim, à revolução, esse sim talvez tenha sido o fim da utopia particular do romance de 1930. Em resumo do autor:
Pertencer a uma família, a uma classe, a um grupo, a um sindicato: nada disso serve para impulsionar as grandes mudanças. Nem tampouco o indivíduo, sozinho, poderá encontrar saída fácil para os seus problemas. (p.503).
De brinde, Luís Bueno deixa-nos suas impressões a respeito de quatro magníficos autores – Cornélio Pena, Ciro dos Anjos, Dionélio Machado e Graciliano Ramos –, sendo os três primeiros (autores, respectivamente, das obras-primas A menina morta, O amanuense Belmiro e Os ratos) injustamente pouco lidos, e mais que merecidamente destacados em meio ao imenso legado dos artistas de 30.
1 Ainda: "As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em conseqüência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros. Abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no proletariado. O lúmpen-proletariado, putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação." MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p. 46-9.
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