Zilda Marcia Iokoi
Depto. de História – FFLCH/USP
SABIA, Debra. Contradicion and conflict : The popular church in Nicarágua. Tuscaloosa and London, the university of Alabama press, 1997. 239 p.
I – O Tema e seu suporte metodológico
O livro de Debra Sabia é um estudo sobre a Igreja popular na Nicarágua e está dividido em três partes: a primeira inclui os capítulos 2 a 5 onde a autora desvenda os problemas das profundas transformações que ocorreram na Igreja Católica, a partir de 1962, quando em Roma realizou-se o Concílio Vaticano II, ou seja, um momento de revisão no sentido da criação de uma igreja popular; a segunda, capítulos 6 a 9, analisa os cismas ocorridos no setor popular e seus efeitos na religião, na política e na vida social dos nicaragüenses; a terceira procura reconstruir e resgatar as experiências vividas pela população no sentido de criar a igreja dos pobres, o desenvolvimento da teologia da Libertação e sua força no reordenamento do país após a derrubada de Somoza.
A pesquisa desenvolvida levou a autora a defrontarse com uma enorme heterogeneidade no setor popular, cujas divisões internas são analisadas no conjunto do trabalho. Como suporte metodológico, utiliza-se da construção weberiana de tipo ideal, que para a autora são construções lógicas criadas pelos cientistas sociais para conceitualizar e analisar os fenômenos observados.
Ela reconhece as dificuldades do uso do método escolhido, uma vez que as abstrações teóricas podem dificultar a relação entre o vivido e os elementos arrolados na construção do modelo. Deste modo, considera a igreja popular na Nicarágua composta de diferentes tipos ideais, que ela foi concebendo em cada momento da pesquisa. A primeira fase se realizou na primavera de 1990. Naquele momento visitou as Comunidades Eclesiais de Base. Depois de dois meses de pesquisa, passou a pesquisar os Institutos e centros cristãos que haviam se distinguido pela participação na igreja popular. As outras fases ocorreram no verão de 1991 e no inverno de 1992. Tentando estabelecer as conexões entre fatos, procurou recuperar os vários pontos de vista, através de contatos com os membros da igreja popular, líderes governamentais, elites econômicas, e oficiais da hierarquia católica, inclusive o cardeal Miguel Obando y Bravo da Nicarágua.
Outra estratégia empregada no projeto foi o método de pesquisa participante que levou à observação direta, à participação nas atividades promovidas pelas CEBs, a levar em consideração as conversas informais com os vários personagens envolvidos na construção da igreja popular, inclusive os protestantes, e finalmente, a participar de atos públicos e toda sorte de eventos organizados por estes grupos.
Os procedimentos definidos constituíram-se pela dupla checagem das informações e também por consultas sobre o entendimento do problema detectado. Conseguiu-se deste modo, organizar uma taxionomia político-ideológica e espiritual que identificava os membros dos vários grupos envolvidos. As comunidades observadas e analisadas foram as de San Pablo, San Judas e Adolfo Reyes, todas na cidade Manágua.
Elas foram selecionadas pelas seguintes razões: primeiro, por serem as mais antigas, numerosas e ativas comunidades da cidade; segundo, por razões históricas, ou seja, serem portadoras de uma cultura política que as diferencia das demais e produzirem um modo de vida baseado no processo de organização popular contra as formas opressivas decorrentes da ditadura somozista. Essas comunidades atuaram de modo ativo e representaram a força de combate da Frente Sandinista de Libertação Nacional na capital. Esta comunidades ofereceram, também, o trabalho de muitos de seus membros de diferentes classes sociais para a organização dos bairros. Elas foram ainda escolhidas por serem as mais significativas comunidades da igreja popular, reconhecidas inclusive pela hierarquia católica. Deste modo a autora também informa que a escolha se deveu ainda às facilidades de acesso às fontes, uma vez que as comunidades têm preservado as histórias e a memória das lutas.
O primeiro tipo ideal constituído foi o referente à presença dos partisans como força organizadora, motivo que permitiu encontrar diferentes modos de práticas religiosas e de organização de comunidades cristãs. Essas diferenças permitiram um progressivo movimento cristão rumo à formação da igreja popular. Assim, neste primeiro tipo estariam os marxistas que atuaram de modo central na FSLN.
O segundo tipo é constituído pelos Cristãos revolucionários, ou seja, aqueles que atuavam movidos pela fé em Cristo o sujeito histórico e pela meta libertadora contra a opressão e em defesa dos pobres.
O terceiro tipo representaria o Reformismo Cristão, ou seja, os que defendem a justiça social sem, entretanto, desejar alterações na estruturação da sociedade em classes. Defendem a hierarquia religiosa e, de certo modo, temem a Igreja popular.
Finalmente, a autora define o conjunto composto pelos Cristãos alienados, ou seja, aqueles que não relacionam a vida religiosa com a vida profana, criticando a politização da religião e rejeitando o movimento das comunidades de base.
Considerando que esses tipos auxiliam no entendimento da dinâmica da experiência revolucionária da igreja popular, a autora ainda considera que eles oferecem importantes esclarecimentos para o tema da religiosidade e do comportamento humano de modo geral.
II – A constituição dos capítulos
O primeiro capítulo leva o nome de Introdução, no qual a autora faz um belo trabalho de guia do leitor nos meandros, impasses e escolhas na formulação do tema. Em seguida, de modo extremamente generoso, mostra seu caminho teórico com tal explicitação que demonstra, por si mesma, os limites das opções e das escolhas. Essa interessante introdução antecipa uma série de conclusões ao leitor e de fato desestimula a leitura atenta no sentido da descoberta, da surpresa, do interesse literário da narrativa apresentada. De todo modo, é correta do ponto de vista dos procedimentos, podendo ser útil ao jovem pesquisador que não tem disponíveis trabalhos desta natureza com maior freqüência.
No segundo capítulo, a autora estuda o Concilio Vaticano II, reunido em Roma em 1962 e, como decorrência dele, a reunião episcopal de Medellín e sua repercussão na Nicarágua. Neste ponto não há novidades, uma vez que repete o que a literatura sobre o tema já demonstrou. Trata-se de um capítulo de abertura do tema e dos primeiros estudos para a formulação do objeto da pesquisa.
O terceiro capítulo, A Origem da Igreja Popular, tem um tratamento muito delicado na recuperação do trabalho do Padre José de La Jara, na comunidade de San Pablo. A autora destaca o importante papel da comunidade no sentido de reunir a população e dela emergirem práticas cooperativas e associativas que redimensionaram o sentido agregador e as dimensões de futuro desses grupos. Os primeiros movimentos tinham um caráter mais próximo de um sentido carismático. Pouco a pouco, além da leitura e do entendimento da vida, o cotidiano foi sendo revelado, como um lugar de discussão dos dilemas cotidianos e de troca de experiências. As necessidades do dia a dia passaram a ser tema dos encontros e o que se tornou visível foi o encaminhamento das soluções e o fortalecimento de todos. A partir de San Pablo, proliferou o número de comunidades por todo o país, sendo criado a Operación Permanente de la Emergencia Nacional (OPEN), que passou a questionar o governo de Somoza por sua legitimidade em governar o país. As comunidades proliferaram e foram sendo apoiadas por entidades não governamentais e cada vez mais se aproximaram dos pobres. Pouco a pouco, as conexões com os estudantes foram sendo estabelecidas, especialmente depois da aproximação com a Universidade Nacional. Deste processo participaram duas figuras magníficas como o Padre Uriel Molina e o Padre Jesuíta e poeta Fernando Cardenal1.
No capítulo quatro, a autora trata da Radicalização da Igreja Popular, quando relata o aumento do poder das CEBs e a formação da Frente Sandinista de Libertação Nacional. Evidentemente o ditador respondia com maior repressão a todas as medidas organizativas das comunidades, e os conflitos se tornavam cada vez mais explícitos. Do mesmo modo que no Peru, as determinações do concílio Vaticano II passaram a ser operacionalizadas a partir do entendimento do mundo através do materialismo dialético. Daí terem também seguido a definição das linhas pastorais definidas por Gustavo Gutierrez, articulador da Teologia da Libertação. O Padre Ernesto Cardenal (irmão de Fernando) passou a imprimir um conjunto de escritos que aproximavam os princípios do Marxismo com o social Cristianismo. Este foi o sinal para as lideranças Sandinistas. A união entre os dois grupos permitiu a derrubada da ditadura de Somoza e a revolução nicaraguense inaugurou uma nova coalizão radical de esquerda constituída de cristãos e marxistas.
O Desmoronamento da Coalizão Cristã é o título do capítulo quinto, no qual a autora procurará demonstrar como a ofensiva conservadora, que toma conta da igreja mesmo com a vitória dos encaminhamentos sociais em 1979 em Puebla, abalou a composição política que sustentou a revolução. A análise das razões dos conflitos entre o grupo de Ortega e a coalizão contra-revolucionária de Chamorro foram centrais na perda do poder político dos marxistas. A partir deste ponto, a autora passa a construir os vários tipos ideais para proceder às operações analíticas propostas na introdução: O Tipo Marxista, capítulo sexto, O Tipo Cristão Revolucionário, capítulo sétimo, O Tipo Cristão Reformista, no capítulo oitavo e o Tipo Cristão Alienado no capítulo nono.
III – Por uma Teoria do devir
Finalmente, no décimo capítulo, a autora elabora as suas conclusões quando procura projetar quais as tendências de futuro da igreja popular. Em primeiro lugar, pretende estabelecer entre a política e a religiosidade. Evidentemente, na tessitura dos tipos ideais foi possível perceber uma série de separações entre as duas esferas do conhecimento. Entretanto, as experiências concretas apontam para a inter-relação dos vários tempos simultâneos que se interpõem no vivido, impossibilitando a compartimentação do homem em racionalidade e subjetividade. A autora termina o livro apostando que a igreja popular e a teologia da libertação conseguiram produzir um novo conceito de pessoa, exatamente pela junção entre os dois níveis aqui estudados. Discordando da literatura dos, por ela chamados, pessimistas, que afirmam estar a Teologia da Libertação em declínio, ela prefere aqueles que ainda aguardam os frutos da construção de um novo significado para o resgate da humanidade do homem.
Eu pergunto... O humanismo não se constituiu exatamente no bojo do racionalismo e do iluminismo? Ou estaríamos pensando uma concepção do humano enquanto unidade da matéria e da vontade de potência?
1 Cardenal esteve no Brasil em 1982, tendo participado de uma mesa-redonda organizada pela AELA – Associação de Estudos Latino-Americanos, criada por um grupo de acadêmicos americanistas. Foi um evento que reuniu mais de mil pessoas no auditório do Departamento de História da FFLCH da USP. Seu apoio ao movimento revolucionário católico foi muito importante pois, naquele momento, as forças de resistência estavam enfraquecidas pela forte repressão de 1973/75.
Revista de História - USP
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