A contribuição italiana, segundo Sérgio Buarque de Holanda
Lucy Maffei Hutter*
Pesquisadora do IEB-USP
A contribuição italiana para a formação do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda. Florianópolis: NUT/NEIITA/UFSC, 2002.
Trata-se aqui de um ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, originariamente escrito em italiano e publicado em 1954, em Siena (Itália), na revista Ausonia (IX, nº 5), então sob a direção de Luigi Fiorentini. Traduzido para o português em 2002, cuja publicação da Universidade Federal de Santa Catarina é bilíngue, conta com uma introdução – Itinerari italiani di Sérgio Buarque de Hollanda (Itinerários italianos de Sérgio Buarque de Hollanda) de Aniello Angelo Avella, professor da Universidade de Roma - que, como o próprio título indica, mostra o relacionamento do autor do ensaio com a cultura italiana e a brasileira.
Buarque de Hollanda, ao longo do texto, demonstra como são as culturas, brasileira e italiana, "tão próximas nas suas raízes comuns e seculares", concluindo que seria, por si, razão suficiente para o estímulo do "conhecimento recíproco entre os dois povos".
Analisa, inicialmente, como sempre com muita lucidez, os diferentes caminhos seguidos de um lado pelos países de colonização espanhola, na América e, de outro, o Brasil colonizado pelos portugueses, embora ambos de cultura ibérica. O sistema de governo no Brasil, uma vez independente, refletiu o arraigamento às raízes européias.
Com a manutenção da Corte, que serviu como um obstáculo à luta entre facções, teria o Brasil conseguido manter um território de tamanhas proporções, sem uma subdivisão como ocorreu com as terras de dominação espanhola.
Faz referência à maneira diversa de encarar a riqueza, em se tratando dos portugueses e daqueles originários da Península Itálica: enquanto Portugal não a separava da propriedade fundiária atribuindo uma importância maior às conquistas territoriais, o mesmo não se dava com genoveses, venezianos e pisanos que consideravam mais os lucros advindos da conquista. Diferença esta, todavia, não considerada, pelo autor, essencial.
No auge da expansão, as possessões coloniais fundadas pelos portugueses, continham traços de semelhança com alfândegas e entrepostos implantados no litoral do Mediterrâneo e do Mar Negro, pelas cidades marítimas italianas.
Outra comparação é feita com aqueles da Península Itálica: se nos finais do século XV chegaram os portugueses à Índia, por via marítima, conseguiram eles atingir uma meta, anteriormente já tentada, na década de 90 do século XIII, pelos genoveses Ugolino e Valdino Vivaldi. Sugere mesmo que os portugueses "procuravam prolongar através do oceano a obra de seus antecessores: os navegadores e os mercadores italianos".
Provavelmente tenha aqui o autor se valido tão somente de uma força de expressão, já que sendo a navegação um dos meios mais antigos de transporte, e não havendo possibilidade de se determinar nem quando e nem em que local ou locais se iniciou, nos parece que as tentativas de navegação se davam simultaneamente, em várias regiões do planeta, sem que existisse a preocupação, propriamente dita, de seguir determinados antecessores, mas, sim, o interesse em novas conquistas e lucros daí advindos.
Com relação à chegada dos portugueses às terras posteriormente denominadas Brasil, usa o autor o termo "descobertas", generalizando - o que tudo faz crer – as terras onde aportaram tanto genoveses, venezianos, pisanos, quanto os portugueses. Em Raízes do Brasil é também utilizado o termo "descobrimento", referindo-se ao Brasil, termo este, aliás, de consenso na ocasião, quando foram elaboradas essas obras.
É detalhada a chegada dos portugueses ao Brasil, a caminho da Índia, e os primeiros contactos desses europeus com os habitantes da terra. Aqui, mais uma vez, é feita comparação com os da referida Península, ou seja, tiveram eles a mesma atitude "ao se adaptarem aos usos, às exigências e às necessidades das terras descobertas".
Tece considerações sobre a harmonia reinante entre colonizadores e os naturais da terra, ao chegar a esquadra portuguesa, em 1500, momento tido como primeiro encontro entre ambos.
Tanto esse aspecto como as eventuais possibilidades da Coroa portuguesa de extrair algum lucro da terra - visão de Caminha - são comentados pelo autor.
Tratando da primeira riqueza da colônia, a saber, o desenvolvimento da produção de cana, agregada à importação do escravo e ao trabalho insano deste, volta a tecer a ligação com aqueles de orígem itálica, destacando o genovês Filippo Adorno, em São Vicente - então capitania de São Paulo – e o florentino Filippo Cavalcanti estabelecido em Pernambuco, conhecido entre os conterrâneos, desde os finais do século XVI como administrador de "grandes negócios", com fabricação de açúcar, e "homem de grande autoridade".
Procede a análise da questão do sistema de colonização portuguesa, capitanias e governo-geral, e da inadequação do mesmo diante da expansão do domínio territorial, com a penetração dos habitantes de São Paulo, no século XVII, interior adentro, atingindo locais distantes em busca do índio e de minérios preciosos. E, quanto à região norte, do Brasil, a interiorização se fez, facilitada, até certo ponto, pelos rios. Resultado dessa expansão: reconhecimento da Espanha, pelo Tratado de Madrid, da ampliação dos domínios portugueses.
Não só o domínio de um território maior, mas, também a luta anterior pela expulsão dos holandeses, entre outros fatores, teriam induzido os descendentes dos colonizadores à noção de uma certa autonomia e "das diferenças que tendiam a separar dos portugueses da Europa".
Já a questão educacional, na colônia, entregue às ordens religiosas e, sobretudo à Companhia de Jesus, propiciou a vinda de missionários tanto portugueses como de outras orígens, entre estes, italianos que, por vezes, chegaram a favorecer seus conterrâneos e até mesmo a contrariar ordens de Portugal, como foi o caso de Gian Antonio Andreoni, natural de Luca, autor do livro Cultura a e opulência do Brasil por suas drogas e minas.
Comenta Buarque de Holanda a influência da cultura italiana na prosa e no verso elaborados no Brasil Colônia. Manuel Botelho de Oliveira, por exemplo, primeiro brasileiro a publicar um livro em verso, o fez em italiano: Musica del Parnaso (ed.1705, Lisboa). Aqueles que se voltavam mais para os outores italianos o faziam em contraposição ao espanholismo, na tentativa da "reconquista de uma tradição nacional perdida", durante o domínio espanhol.
Na década de 60 do século XVIII, um melodrama de Metastasio foi apresentado no Rio de Janeiro, tendo por atores um grupo de mulatos dirigidos por um padre. Ao mesmo autor Metastasio, José Basílio da Gama enviou o seu poema épico O Uraguay, editado em Lisboa, acompanhado de uma carta. Tanto esta como a resposta estão reproduzidas nesse ensaio de Buarque de Holanda, chamando ele a atenção para o tom pouco sincero enquanto demasiadamente elogioso de ambas, não propriamente como uma crítica, mas, com o intuito de mostrar a psicologia setecentista e a maneira de se expressar de uma época.
Para Buarque de Holanda, se de um lado os autores portugueses, voltando-se para os escritos italianos, viam nessa atitude uma maneira de se afastar definitivamente do domínio espanhol, os autores brasileiros, seguindo a mesma linha, teriam achado um caminho para definir sua autonomia perante Portugal.
Alerta para o fato de que aqueles escritores do Brasil, na maioria das vezes, tinham sido influenciados pelas academias literárias – instituição importada da Península Itálica – bem como pela Arcádia, de mesma procedência, o que teria levado a um amadurecimento que das letras passsaria à política. O arcadismo, enfatiza ele, "é um dos aspectos pelo qual a influência italiana foi mais eficaz na formação brasileira".
Se de um lado Buarque de Holanda faz, nesse ensaio, uma análise do influxo da cultura italiana no Brasil, de outro, ele mesmo se viu influenciado por aquela cultura, tema este tratado por Aniello Angelo Avella, acima referido - quando analisa a influência italiana no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda – e o retoma na introdução, já mencionada, que precede o ensaio do historiador, ao abordar os itinerários italianos de Sérgio Buarque de Holanda.
* Publicou, entre outros, A Imigração Italiana em São Paulo de 1902 a 1914 (IEB-USP, 1986) e Navegação nos Séculos XVII e XVIII – Rumo: Brasil (EDUSP, 2005).
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Lucy Maffei Hutter*
Pesquisadora do IEB-USP
A contribuição italiana para a formação do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda. Florianópolis: NUT/NEIITA/UFSC, 2002.
Trata-se aqui de um ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, originariamente escrito em italiano e publicado em 1954, em Siena (Itália), na revista Ausonia (IX, nº 5), então sob a direção de Luigi Fiorentini. Traduzido para o português em 2002, cuja publicação da Universidade Federal de Santa Catarina é bilíngue, conta com uma introdução – Itinerari italiani di Sérgio Buarque de Hollanda (Itinerários italianos de Sérgio Buarque de Hollanda) de Aniello Angelo Avella, professor da Universidade de Roma - que, como o próprio título indica, mostra o relacionamento do autor do ensaio com a cultura italiana e a brasileira.
Buarque de Hollanda, ao longo do texto, demonstra como são as culturas, brasileira e italiana, "tão próximas nas suas raízes comuns e seculares", concluindo que seria, por si, razão suficiente para o estímulo do "conhecimento recíproco entre os dois povos".
Analisa, inicialmente, como sempre com muita lucidez, os diferentes caminhos seguidos de um lado pelos países de colonização espanhola, na América e, de outro, o Brasil colonizado pelos portugueses, embora ambos de cultura ibérica. O sistema de governo no Brasil, uma vez independente, refletiu o arraigamento às raízes européias.
Com a manutenção da Corte, que serviu como um obstáculo à luta entre facções, teria o Brasil conseguido manter um território de tamanhas proporções, sem uma subdivisão como ocorreu com as terras de dominação espanhola.
Faz referência à maneira diversa de encarar a riqueza, em se tratando dos portugueses e daqueles originários da Península Itálica: enquanto Portugal não a separava da propriedade fundiária atribuindo uma importância maior às conquistas territoriais, o mesmo não se dava com genoveses, venezianos e pisanos que consideravam mais os lucros advindos da conquista. Diferença esta, todavia, não considerada, pelo autor, essencial.
No auge da expansão, as possessões coloniais fundadas pelos portugueses, continham traços de semelhança com alfândegas e entrepostos implantados no litoral do Mediterrâneo e do Mar Negro, pelas cidades marítimas italianas.
Outra comparação é feita com aqueles da Península Itálica: se nos finais do século XV chegaram os portugueses à Índia, por via marítima, conseguiram eles atingir uma meta, anteriormente já tentada, na década de 90 do século XIII, pelos genoveses Ugolino e Valdino Vivaldi. Sugere mesmo que os portugueses "procuravam prolongar através do oceano a obra de seus antecessores: os navegadores e os mercadores italianos".
Provavelmente tenha aqui o autor se valido tão somente de uma força de expressão, já que sendo a navegação um dos meios mais antigos de transporte, e não havendo possibilidade de se determinar nem quando e nem em que local ou locais se iniciou, nos parece que as tentativas de navegação se davam simultaneamente, em várias regiões do planeta, sem que existisse a preocupação, propriamente dita, de seguir determinados antecessores, mas, sim, o interesse em novas conquistas e lucros daí advindos.
Com relação à chegada dos portugueses às terras posteriormente denominadas Brasil, usa o autor o termo "descobertas", generalizando - o que tudo faz crer – as terras onde aportaram tanto genoveses, venezianos, pisanos, quanto os portugueses. Em Raízes do Brasil é também utilizado o termo "descobrimento", referindo-se ao Brasil, termo este, aliás, de consenso na ocasião, quando foram elaboradas essas obras.
É detalhada a chegada dos portugueses ao Brasil, a caminho da Índia, e os primeiros contactos desses europeus com os habitantes da terra. Aqui, mais uma vez, é feita comparação com os da referida Península, ou seja, tiveram eles a mesma atitude "ao se adaptarem aos usos, às exigências e às necessidades das terras descobertas".
Tece considerações sobre a harmonia reinante entre colonizadores e os naturais da terra, ao chegar a esquadra portuguesa, em 1500, momento tido como primeiro encontro entre ambos.
Tanto esse aspecto como as eventuais possibilidades da Coroa portuguesa de extrair algum lucro da terra - visão de Caminha - são comentados pelo autor.
Tratando da primeira riqueza da colônia, a saber, o desenvolvimento da produção de cana, agregada à importação do escravo e ao trabalho insano deste, volta a tecer a ligação com aqueles de orígem itálica, destacando o genovês Filippo Adorno, em São Vicente - então capitania de São Paulo – e o florentino Filippo Cavalcanti estabelecido em Pernambuco, conhecido entre os conterrâneos, desde os finais do século XVI como administrador de "grandes negócios", com fabricação de açúcar, e "homem de grande autoridade".
Procede a análise da questão do sistema de colonização portuguesa, capitanias e governo-geral, e da inadequação do mesmo diante da expansão do domínio territorial, com a penetração dos habitantes de São Paulo, no século XVII, interior adentro, atingindo locais distantes em busca do índio e de minérios preciosos. E, quanto à região norte, do Brasil, a interiorização se fez, facilitada, até certo ponto, pelos rios. Resultado dessa expansão: reconhecimento da Espanha, pelo Tratado de Madrid, da ampliação dos domínios portugueses.
Não só o domínio de um território maior, mas, também a luta anterior pela expulsão dos holandeses, entre outros fatores, teriam induzido os descendentes dos colonizadores à noção de uma certa autonomia e "das diferenças que tendiam a separar dos portugueses da Europa".
Já a questão educacional, na colônia, entregue às ordens religiosas e, sobretudo à Companhia de Jesus, propiciou a vinda de missionários tanto portugueses como de outras orígens, entre estes, italianos que, por vezes, chegaram a favorecer seus conterrâneos e até mesmo a contrariar ordens de Portugal, como foi o caso de Gian Antonio Andreoni, natural de Luca, autor do livro Cultura a e opulência do Brasil por suas drogas e minas.
Comenta Buarque de Holanda a influência da cultura italiana na prosa e no verso elaborados no Brasil Colônia. Manuel Botelho de Oliveira, por exemplo, primeiro brasileiro a publicar um livro em verso, o fez em italiano: Musica del Parnaso (ed.1705, Lisboa). Aqueles que se voltavam mais para os outores italianos o faziam em contraposição ao espanholismo, na tentativa da "reconquista de uma tradição nacional perdida", durante o domínio espanhol.
Na década de 60 do século XVIII, um melodrama de Metastasio foi apresentado no Rio de Janeiro, tendo por atores um grupo de mulatos dirigidos por um padre. Ao mesmo autor Metastasio, José Basílio da Gama enviou o seu poema épico O Uraguay, editado em Lisboa, acompanhado de uma carta. Tanto esta como a resposta estão reproduzidas nesse ensaio de Buarque de Holanda, chamando ele a atenção para o tom pouco sincero enquanto demasiadamente elogioso de ambas, não propriamente como uma crítica, mas, com o intuito de mostrar a psicologia setecentista e a maneira de se expressar de uma época.
Para Buarque de Holanda, se de um lado os autores portugueses, voltando-se para os escritos italianos, viam nessa atitude uma maneira de se afastar definitivamente do domínio espanhol, os autores brasileiros, seguindo a mesma linha, teriam achado um caminho para definir sua autonomia perante Portugal.
Alerta para o fato de que aqueles escritores do Brasil, na maioria das vezes, tinham sido influenciados pelas academias literárias – instituição importada da Península Itálica – bem como pela Arcádia, de mesma procedência, o que teria levado a um amadurecimento que das letras passsaria à política. O arcadismo, enfatiza ele, "é um dos aspectos pelo qual a influência italiana foi mais eficaz na formação brasileira".
Se de um lado Buarque de Holanda faz, nesse ensaio, uma análise do influxo da cultura italiana no Brasil, de outro, ele mesmo se viu influenciado por aquela cultura, tema este tratado por Aniello Angelo Avella, acima referido - quando analisa a influência italiana no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda – e o retoma na introdução, já mencionada, que precede o ensaio do historiador, ao abordar os itinerários italianos de Sérgio Buarque de Holanda.
* Publicou, entre outros, A Imigração Italiana em São Paulo de 1902 a 1914 (IEB-USP, 1986) e Navegação nos Séculos XVII e XVIII – Rumo: Brasil (EDUSP, 2005).
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
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