Caixa modernista
Marcos Antonio de Moraes
Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
SCHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa modernista. São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.
Em um olhar retrospectivo sobre as publicações que recuperam textos da fase "heróica" do modernismo brasileiro (1922-1929), constata-se a relevância dos lançamentos editoriais ligados à comemoração do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, em 1972. Naquela ocasião, três livros buscaram suprir a carência de documentos de fonte primária, favorecendo novas formulações críticas: Vanguarda européia e modernismo brasileiro, valiosa coletânea de manifestos modernistas traduzida e anotada por Gilberto de Mendonça Teles, Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29, alentada "documentação" reunida por Marta Rossetti Batista, Telê Ancona Lopez e Yone Soares de Lima, sob a chancela do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e a edição fac-similar da revista Klaxon (1922-3), realizada pelo bibliófilo e empresário José Mindlin. As três obras permitiram que se captasse, em profundidade, a dimensão da vida cultural do período, para além da interpretação tout court dos livros modernistas. Deram continuidade à pesquisa pioneira de Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna, publicada em 1958.
Nas décadas de 1980 e 1990, férteis em estudos beneficiados por essas edições, emergiu, em mais de uma dezena de livros, o consistente projeto epistolar de Mário de Andrade. Essa correspondência, cuja capacidade de refletir as diversas faces do movimento modernista já estava patente na edição das Cartas a Manuel Bandeira, em 1958, somente tornou-se objeto de maior interesse nos estudos literários brasileiros quando a "moda" estruturalista perdeu a força. Percebeu-se que a epistolografia de Mário de Andrade, tão abrangente quanto extensa, trazia elementos originais não apenas para se compor a biografia do escritor ou documentar o processo de criação de suas obras, como também para se avaliar linhas de força dentro do movimento de vanguarda, documentar influências, debates e intervenções a partir dos "bastidores", isto é, do espaço privado. Conjugando-se agora o potencial da correspondência com as obras editadas e a fervilhante vida literária espelhada nos periódicos, pode-se explorar com bastante proveito a dialética do público e do privado, percebendo os dois lados da tapeçaria do modernismo.
Sob essa ampla perspectiva de apreensão do movimento modernista brasileiro, percebe-se melhor a importância e a singularidade da Caixa modernista organizada em 2003 pelo professor de Literatura na Universidade de São Paulo, Jorge Schwartz. Trata-se, de fato, de uma caixa grande (38 x 30 x 2,5cm), de papel kraft, mostrando em seu rótulo a capa estilizada do livro de poemas de Mário de Andrade Paulicéia desvairada (1922). Aberta e desdobrado o conteúdo em forma de tríptico, o leitor depara-se com objetos heterogêneos, cuidadosamente acomodados. "Uma caixa encerra sempre enigmas", explica o idealizador do projeto no texto de apresentação. E o leitor, diante dessa "síntese caleidoscópica" que é a Caixa modernista, aceita participar de um ato lúdico, tirando daqui e dali livros e catálogos impressos em fac-símile, um CD de músicas, reproduções de quadros etc. Logo, ao prazer da surpresa soma-se o desejo do observador de encontrar razões para compreender o objetivo da empreitada ou o critério que norteou a escolha dos documentos para configurar o conjunto. Mas, será tarde demais para interrogações desse naipe, pois o jogo da amarelinha cortaziano já se impôs.
Há liames visíveis – confirmados pela própria contiguidade dos documentos – unindo, por exemplo, o programa do segundo dia da Semana de Arte Moderna ao datiloscrito original conservado pelo mecenas Paulo Prado, no qual se entrevê o primeiro momento da idéia levada a cabo. Da mesma forma, os livros presentes na caixa, Paulicéia desvairada de Mário de Andrade e Pau Brasil (1924) de Oswald de Andrade, explicitam duas etapas do ideário modernista, a saber, o acerto de ponteiros com as técnicas das vanguardas européias que marca primeiro volume, e a busca de uma poesia nacional a partir da incorporação das conquistas expressivas do modernismo, no livro de Oswald. O encarte do CD "Música em torno do Modernismo", produzido por José Miguel Wisnick e Cacá Machado, esclarece as relações entre Yara, xote de Anacleto de Medeiros composto na década de 1880 e o aproveitamento erudito desse tema nos Choros n. 10 (1926) de Heitor Villa-Lobos, fundamentando o trânsito entre a expressão musical popular e o experimentalismo da vanguarda.
Em outra direção, são inúmeras as combinações interpretativas possíveis deixadas a cargo do leitor perspicaz. Tomando por caminho a questão da "língua brasileira", central nas discussões dos anos de 1920 na literatura brasileira, despontam as reflexões do "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada ("Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.") e da "Falação" do prefácio-manifesto de Pau Brasil ("A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros."). O assunto reaparece no poema "Vício na fala" de Oswald e em uma resenha do Livro de poemas de Jorge Fernandes, assinada por Alcântara Machado, no primeiro número da Revista de Antropofagia etc. Há, nesse sentido, uma proposição didática na Caixa modernista, ao incitar no leitor uma compreensão não linear das propostas da vanguarda nacional, por meio de um conjunto de elementos textuais e visuais paradigmáticos.
Inovando, essa box-art sublinha a importância do processo de criação da obra de arte, afinando-se com as atuais indagações da Crítica Genética. Como a obra acabada elide as escolhas feitas pelos pintores ali representados, a Caixa modernista propõe uma estratégia para que se possa fruir também um pouco do trajeto criativo deles. Assim, A negra ou A caipirinha de Tarsila do Amaral, reproduzidas em postais, em "formato sanfona", trazem a tela "definitiva" na parte superior e, nas dobras, os esboços e as versões preliminares. Essa justaposição ao mesmo tempo em que assinala o caráter dinâmico da criação, humaniza o procedimento artístico.
Como são muitas as peças deste "museu portátil', o jogo de combinações multiplica-se: o nacionalismo cheio de humor, que viceja na capa de Pau Brasil, alcança, sem essa nuance crítica, porém, os frontispícios de Vamos caçar papagaios (1926) e Martim Cererê (1928) de Cassiano Ricardo; o anúncio do filme São Paulo – a Sinfonia da metrópole vincula-se à arquitetura revolucionária da "casa modernista" de Warchavchik. A reprodução fotográfica da famosa escultura Cabeça de Cristo de Victor Brecheret associa-se a Paulicéia desvairada, como testemunha Mário de Andrade em "O movimento modernista" (1942):
[...] afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo, sensualissimamente feliz. Isso a notícia correu num átimo, e aparentada [...] invadiu a casa pra ver. E pra brigar. [...] Onde se viu Cristo de trancinha! [...] Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. [...] Depois subi para o meu quarto [...]. Me lembro que cheguei à sacada [...]. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, 'Paulicéia desvairada'. O estouro chegara afinal [...].1
Pela ousadia deste projeto editorial que suscita a efetiva interação do leitor, pela instigante possibilidade de múltiplas leituras e pelo destaque dado ao processo de criação, a Caixa modernista afirma-se, certamente, como mais um marco na bibliografia do modernismo brasileiro.
1 ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 4. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. p. 233-4.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
Marcos Antonio de Moraes
Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
SCHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa modernista. São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.
Em um olhar retrospectivo sobre as publicações que recuperam textos da fase "heróica" do modernismo brasileiro (1922-1929), constata-se a relevância dos lançamentos editoriais ligados à comemoração do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, em 1972. Naquela ocasião, três livros buscaram suprir a carência de documentos de fonte primária, favorecendo novas formulações críticas: Vanguarda européia e modernismo brasileiro, valiosa coletânea de manifestos modernistas traduzida e anotada por Gilberto de Mendonça Teles, Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29, alentada "documentação" reunida por Marta Rossetti Batista, Telê Ancona Lopez e Yone Soares de Lima, sob a chancela do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e a edição fac-similar da revista Klaxon (1922-3), realizada pelo bibliófilo e empresário José Mindlin. As três obras permitiram que se captasse, em profundidade, a dimensão da vida cultural do período, para além da interpretação tout court dos livros modernistas. Deram continuidade à pesquisa pioneira de Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna, publicada em 1958.
Nas décadas de 1980 e 1990, férteis em estudos beneficiados por essas edições, emergiu, em mais de uma dezena de livros, o consistente projeto epistolar de Mário de Andrade. Essa correspondência, cuja capacidade de refletir as diversas faces do movimento modernista já estava patente na edição das Cartas a Manuel Bandeira, em 1958, somente tornou-se objeto de maior interesse nos estudos literários brasileiros quando a "moda" estruturalista perdeu a força. Percebeu-se que a epistolografia de Mário de Andrade, tão abrangente quanto extensa, trazia elementos originais não apenas para se compor a biografia do escritor ou documentar o processo de criação de suas obras, como também para se avaliar linhas de força dentro do movimento de vanguarda, documentar influências, debates e intervenções a partir dos "bastidores", isto é, do espaço privado. Conjugando-se agora o potencial da correspondência com as obras editadas e a fervilhante vida literária espelhada nos periódicos, pode-se explorar com bastante proveito a dialética do público e do privado, percebendo os dois lados da tapeçaria do modernismo.
Sob essa ampla perspectiva de apreensão do movimento modernista brasileiro, percebe-se melhor a importância e a singularidade da Caixa modernista organizada em 2003 pelo professor de Literatura na Universidade de São Paulo, Jorge Schwartz. Trata-se, de fato, de uma caixa grande (38 x 30 x 2,5cm), de papel kraft, mostrando em seu rótulo a capa estilizada do livro de poemas de Mário de Andrade Paulicéia desvairada (1922). Aberta e desdobrado o conteúdo em forma de tríptico, o leitor depara-se com objetos heterogêneos, cuidadosamente acomodados. "Uma caixa encerra sempre enigmas", explica o idealizador do projeto no texto de apresentação. E o leitor, diante dessa "síntese caleidoscópica" que é a Caixa modernista, aceita participar de um ato lúdico, tirando daqui e dali livros e catálogos impressos em fac-símile, um CD de músicas, reproduções de quadros etc. Logo, ao prazer da surpresa soma-se o desejo do observador de encontrar razões para compreender o objetivo da empreitada ou o critério que norteou a escolha dos documentos para configurar o conjunto. Mas, será tarde demais para interrogações desse naipe, pois o jogo da amarelinha cortaziano já se impôs.
Há liames visíveis – confirmados pela própria contiguidade dos documentos – unindo, por exemplo, o programa do segundo dia da Semana de Arte Moderna ao datiloscrito original conservado pelo mecenas Paulo Prado, no qual se entrevê o primeiro momento da idéia levada a cabo. Da mesma forma, os livros presentes na caixa, Paulicéia desvairada de Mário de Andrade e Pau Brasil (1924) de Oswald de Andrade, explicitam duas etapas do ideário modernista, a saber, o acerto de ponteiros com as técnicas das vanguardas européias que marca primeiro volume, e a busca de uma poesia nacional a partir da incorporação das conquistas expressivas do modernismo, no livro de Oswald. O encarte do CD "Música em torno do Modernismo", produzido por José Miguel Wisnick e Cacá Machado, esclarece as relações entre Yara, xote de Anacleto de Medeiros composto na década de 1880 e o aproveitamento erudito desse tema nos Choros n. 10 (1926) de Heitor Villa-Lobos, fundamentando o trânsito entre a expressão musical popular e o experimentalismo da vanguarda.
Em outra direção, são inúmeras as combinações interpretativas possíveis deixadas a cargo do leitor perspicaz. Tomando por caminho a questão da "língua brasileira", central nas discussões dos anos de 1920 na literatura brasileira, despontam as reflexões do "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada ("Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.") e da "Falação" do prefácio-manifesto de Pau Brasil ("A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros."). O assunto reaparece no poema "Vício na fala" de Oswald e em uma resenha do Livro de poemas de Jorge Fernandes, assinada por Alcântara Machado, no primeiro número da Revista de Antropofagia etc. Há, nesse sentido, uma proposição didática na Caixa modernista, ao incitar no leitor uma compreensão não linear das propostas da vanguarda nacional, por meio de um conjunto de elementos textuais e visuais paradigmáticos.
Inovando, essa box-art sublinha a importância do processo de criação da obra de arte, afinando-se com as atuais indagações da Crítica Genética. Como a obra acabada elide as escolhas feitas pelos pintores ali representados, a Caixa modernista propõe uma estratégia para que se possa fruir também um pouco do trajeto criativo deles. Assim, A negra ou A caipirinha de Tarsila do Amaral, reproduzidas em postais, em "formato sanfona", trazem a tela "definitiva" na parte superior e, nas dobras, os esboços e as versões preliminares. Essa justaposição ao mesmo tempo em que assinala o caráter dinâmico da criação, humaniza o procedimento artístico.
Como são muitas as peças deste "museu portátil', o jogo de combinações multiplica-se: o nacionalismo cheio de humor, que viceja na capa de Pau Brasil, alcança, sem essa nuance crítica, porém, os frontispícios de Vamos caçar papagaios (1926) e Martim Cererê (1928) de Cassiano Ricardo; o anúncio do filme São Paulo – a Sinfonia da metrópole vincula-se à arquitetura revolucionária da "casa modernista" de Warchavchik. A reprodução fotográfica da famosa escultura Cabeça de Cristo de Victor Brecheret associa-se a Paulicéia desvairada, como testemunha Mário de Andrade em "O movimento modernista" (1942):
[...] afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo, sensualissimamente feliz. Isso a notícia correu num átimo, e aparentada [...] invadiu a casa pra ver. E pra brigar. [...] Onde se viu Cristo de trancinha! [...] Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. [...] Depois subi para o meu quarto [...]. Me lembro que cheguei à sacada [...]. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, 'Paulicéia desvairada'. O estouro chegara afinal [...].1
Pela ousadia deste projeto editorial que suscita a efetiva interação do leitor, pela instigante possibilidade de múltiplas leituras e pelo destaque dado ao processo de criação, a Caixa modernista afirma-se, certamente, como mais um marco na bibliografia do modernismo brasileiro.
1 ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 4. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. p. 233-4.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - USP
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